quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

SUPORTAR A PROVAÇÃO QUE NOS TRANSFIGURA

 Missa do 2. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 22,1-1.9a.10-13.15-18; Romanos 8,31b-34; Marcos 9,2-10.

 

O Evangelho do primeiro domingo da Quaresma nos falou das tentações que tanto Jesus quanto nós temos que enfrentar ao longo da vida. Neste segundo domingo, ele nos fala das provações. Enquanto as tentações vêm do espírito do mal e procuram nos afastar da vontade de Deus, as provações vêm do próprio Deus e visam nos confirmar na sua vontade. Enquanto as tentações tendem a nos desfigurar, sobretudo se cedemos a elas e pecamos, as provações podem nos transfigurar, quando saímos delas mais decididos ainda a viver segundo a vontade de Deus.

O grande relato da provação está no sacrifício de Isaac, quando Deus pediu a Abraão que lhe devolvesse seu único filho, a garantia de que ele seria pai de uma multidão de pessoas. Por trás desse relato está a necessidade de Abraão conhecer melhor a Deus, pois naquela época alguns povos pagãos tinham o costume de sacrificar crianças para obterem favores dos deuses aos quais cultuavam. Quando o anjo do Senhor segura a mão de Abraão e impede o sacrifício de Isaac, deve ficar claro para todos nós, filhos de Abraão, pai da nossa fé, que Deus não é um monstro que exige sacrifícios de vidas humanas para nos dar suas bênçãos. Muitos séculos mais tarde, quando Israel perguntar: “Darei eu meu primogênito pelo meu crime, o fruto de minhas entranhas pelo meu pecado?” (Mq 6,7), o profeta Miqueias responderá: “Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom e o que Deus exige de ti: nada mais do que praticar a justiça, amar a bondade e caminhar humildemente com teu Deus!” (Mq 6,8).

Se as tentações são difíceis, igualmente o são as provações. Quando estamos sendo provados em nossa fé, não enxergamos a presença de Deus junto a nós. Pelo contrário, parece não só que Ele escondeu de nós o seu rosto, como também se tornou como que nosso Inimigo, pois sentimos que é d’Ele que está vindo o mal sobre nós, justamente d’Ele, o Deus que é Pai e que é amor! Esse é o grande desafio da provação: continuar a confiar no amor de Deus por nós quando Ele está permitindo que tanta coisa ruim nos aconteça. O mal nunca vem de Deus, mas nenhum mal nos atinge sem que Deus permita. É isso que coloca em crise a nossa fé: como continuar a crer e a confiar que o Pai nos ama como filhos, mesmo quando permite que algo ruim nos aconteça?

Toda provação nos joga dentro de uma noite escura, e nós só poderemos atravessar essa noite escura se mantivermos o nosso olhar fixo nesta Palavra: “Deus que não poupou seu próprio filho, mas o entregou por todos nós, como não nos daria tudo junto com ele?” (Rm 8,32). Se no momento da provação sentimos que parece que Deus se voltou contra nós, o apóstolo Paulo corrige essa ideia errada: como poderia estar contra nós o Pai que nos deu seu Filho único como Salvador? Como você poderia pensar que está sozinho(a) nessa provação e que Jesus ignora a sua situação, quando, na verdade, Ele está ressuscitado à direita de Deus, intercedendo por você? 

Do Monte Moriá, lugar do sacrifício de Isaac, passamos para o Monte Tabor, lugar onde Jesus se transfigurou diante de três discípulos. Nossa vida tem momentos de planície: é o nosso contato diário com a realidade, uma realidade que questiona a nossa fé e desafia os nossos valores cristãos. Essa realidade que nos cerca tem um rosto desfigurado pelo pecado, pelas injustiças, por uma sociedade que se guia por contravalores. Jesus nos ensina que precisamos, em alguns momentos, sair da planície e subir a montanha para nos encontrar com o Pai, na oração, e receber d’Ele uma interpretação correta da realidade, descendo depois para junto dela a fim de ajudá-la a se transfigurar.  

Os grupos que nas redes sociais têm combatido a Campanha da Fraternidade deste ano não aceitam enxergar o que a realidade está mostrando a todos nós. Como ela desafia a nossa fé e os nossos valores cristãos, esses grupos escolhem negá-la. Quando a realidade se mostra desfigurada no desmatamento da Amazônia, na violência social, nos discursos de ódio disseminados nas redes sociais e na política de morte instaurada em nosso País, eles negam tal desfiguração afirmando que “isso é pauta esquerdista”, quando, na verdade, é pauta de todo discípulo de Jesus chamado a transfigurar a realidade que à sua volta se encontra desfigurada.

Neste momento em que a polarização política foi trazida para dentro da nossa Igreja por pessoas que desejam viver sua vida cristã permanentemente sobre o monte da Transfiguração, sem descer à realidade que as desafia e as questiona, o Evangelho nos convida a manter nossos olhos fixos em Jesus. “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” (Mc 9,7). Jesus nunca fugiu do confronto com a realidade do seu tempo, mas fez questão de tocar nela e de transfigurá-la. Ele nos ensina que deixar-nos afetar por aquilo que está desfigurado à nossa volta é o que se espera de todo verdadeiro discípulo seu. Mantenhamos nossos olhos fixos n’Ele, e não naqueles que se encontram num extremo ou noutro da polarização que tem desfigurado o rosto da nossa Igreja no Brasil.  

 

Oração: Senhor Jesus Cristo, queremos entregar a ti a realidade do nosso tempo, desfigurada pelo pecado pessoal e social, pela violência, pelas injustiças e pela desigualdade social. Permanece conosco em nossos momentos de provação. Que eles possam comprovar a verdade da nossa fé, da nossa esperança e do nosso amor. Livra-nos das imagens erradas e doentias que temos de Deus. Revela-nos o verdadeiro rosto do Pai. Que as nossas palavras e as nossas atitudes de verdadeiros discípulos teus ajudem a transfigurar os ambientes em que nos encontramos no dia a dia e o mundo em que vivemos. Enfim, que possamos aguardar com plena confiança o dia da tua vinda, quando nosso corpo, desfigurado pela morte, será transfigurado e se tornará semelhante ao teu. Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

QUEM SÃO OS QUE CRITICAM A CAMPANHA DA FRATERNIDADE ECUMÊNICA 2021?

 


“Os grupos contrários à Campanha da Fraternidade se consideram ‘catolicíssimos’. Todos eles são muito conservadores e muito reacionários a qualquer tipo de mudança dentro da sociedade. E como eles se dizem muito católicos, são contra o ecumenismo, que é o diálogo entre as religiões cristãs. São contra todos os temas difíceis que a sociedade hoje está vivendo. Por exemplo, o problema do racismo, do feminicídio, da homofobia, dos indígenas, da intolerância religiosa. São contra tudo isso para dizer que são contra o Concílio Vaticano II que o Papa Francisco está colocando em prática pra valer” (Dom Joaquim Mol, bispo auxiliar de Belo Horizonte).

“Alguns grupos estão fazendo um processo de demonização da Campanha da Fraternidade. Isso é um equívoco grave. A Campanha da Fraternidade é aprovada e apoiada pelos últimos Papas, desde 1964: Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Todos esses Papas aprovaram e apoiaram a Campanha da Fraternidade. Infelizmente, alguns grupos que se dizem católicos desejam acabar não só com a Campanha da Fraternidade, mas também com toda e qualquer expressão social da fé. São pessoas e grupos que não aceitam o Papa Francisco, não aceitam o Concílio Vaticano II. O nome disso é ‘excomunhão’: está fora da comunhão. Se o cristão católico não aceita o Papa Francisco nem o Concílio Vaticano II, ele se colocou fora da comunhão” (Dom Paulo Jackson, bispo de Garanhuns).

“Esses grupos exigem uma Quaresma que seja vivida apenas como dimensão individual da conversão (intimismo religioso). O eixo disso tudo é ideológico, uma ideologia religiosa fundamentalista. Ora, não existe conversão pessoal sem que exista uma conversão à realidade social. Por que? Porque o centro da fé cristã é a doutrina da Encarnação do Verbo. O Filho de Deus assumiu e redimiu toda a realidade histórica. Esses grupos não leram o Concílio Vaticano II. Se o leram, não o entenderam. Eles estão contra o Magistério de todos os Papas que vieram depois do Concílio, desde Paulo VI até Francisco. Eles sofrem de soberba espiritual: ‘nós, nosso pequeno grupo, sabemos mais do que os 2.500 bispos reunidos com o Papa em Concílio Ecumênico’. Ora, quem se opõe ao Concílio, se opõe ao Espírito Santo” (Pe. Leonardo Lucian Dall Osto, Diocese de Caxias do Sul).

“Quando nós não queremos enfrentar a realidade porque ela nos é incômoda e porque enfrenta os nossos conceitos, nós nos revoltamos contra ela e usamos a religião como pano de fundo para essa revolta. O que está por trás das críticas ao texto-base da Campanha da Fraternidade é aquilo que está por trás das críticas ao Concílio Vaticano II: um determinado grupo de pessoas que, incomodado pela realidade, não a aceita; se fecha à realidade, a nega, e diz: ‘nós, que somos guardiães da sã doutrina, estamos dizendo que isso não é verdade, que esses dados são dados manipulados, são dados da extrema esquerda’” (Pe. Leonardo Lucian Dall Osto, Diocese de Caxias do Sul).

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

NÃO CAIR NA TENTAÇÃO DA POLARIZAÇÃO

Missa do 1. dom. quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 9,8-15; 1Pedro 3,18-22; Marcos 1,12-15.

 

            Estamos vivenciando os primeiros dias do tempo da Quaresma, tempo favorável para a nossa salvação (cf. 2Cor 6,2). A Quaresma é um tempo forte de conversão, a qual consiste em nos voltar para Deus de uma maneira mais intensa e profunda: “Voltai para mim com todo o vosso coração” (Jl 2,12); “Voltai-vos para mim e sereis salvos, homens todos dos confins de toda a terra” (Is 45,22). A Quaresma é um tempo de revisão de vida onde podemos viver a experiência do filho pródigo, tomando decisões em vista de salvar a nossa vida pessoal, comunitária e social: “Vou me levantar, voltar para o meu pai e dizer-lhe: ‘Pai, pequei’” (Lc 15,18).

            Da mesma forma como o Espírito Santo levou Jesus para o deserto, para que permanecesse ali por quarenta dias, assim esse mesmo Espírito deseja conduzir cada um de nós para uma experiência de deserto, em vista de nos desintoxicar de pensamentos, imagens e sentimentos que adoecem a nossa vida pessoal, comunitária e social. O deserto não é um lugar, mas uma experiência que coloca em ordem os nossos afetos e nos ensina a rever os nossos valores, deixando de lado aquilo que é supérfluo e mantendo o foco naquilo que é essencial. O deserto é uma experiência de privação – daí a importância do jejum – mas um jejum que de fato agrada a Deus porque nos abre às necessidades do nosso próximo (cf. Is 58,1-9a).

            Quando Jesus iniciou sua Quaresma, o espírito do mal estava lá, esperando por ele no deserto para tentá-lo, para confundi-lo (cf. Mt 4,1; Mc 1,13; Lc 4,2). Assim também nós iniciamos o nosso tempo quaresmal sentindo a força do mal agindo em nossa Igreja para dividi-la (“diabo” significa “aquele que divide”), colocando-nos uns contra os outros. No exato momento em que o Espírito Santo, através da Campanha da Fraternidade, nos convida a construir pontes que possibilitem o diálogo, a comunhão e a paz nas igrejas e na sociedade, o espírito do mal impulsiona pessoas a fazerem e a disseminarem discursos de ódio nas redes sociais, construindo muros que nos separam uns dos outros.

            É próprio do espírito do mal distorcer a verdade, para confundir e causar discórdia. Uma das distorções feitas por grupos contrários à Campanha da Fraternidade deste ano é acusá-la de promover a cultura gay, quando, na verdade, o momento em que o texto-base trata desse tema é simplesmente para constatar que em nosso país a violência e a política de morte atingem de modo mais grave negros, pobres, índios, mulheres, migrantes e homossexuais (pp.20-40). Quem tem discernimento sabe que existe diferença entre defender a vida de uma pessoa homossexual e defender sua prática homossexual. Além do mais, quem rotula uma pessoa homossexual de ser “pecadora” e “pervertida” está mais para discípulo dos fariseus do que discípulo de Jesus Cristo.

            Precisamos estar atentos às mentiras e às distorções do espírito do mal. Ele procura nos fazer desistir do diálogo, nos fecha em nossa visão míope a respeito da realidade e nos torna convencidos de que somos pessoas do bem e estamos do lado da verdade; os outros é que estão errados. Não podemos cair na tentação da polarização: de um lado, aqueles que querem uma Igreja preocupada unicamente com o espiritual; de outro, os que querem uma Igreja voltada prioritariamente para o social. O nosso modelo sempre foi e sempre será Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Ao se encarnar, ele não só experimentou em si mesmo a força da tentação, como também se contrapôs às estruturas de pecado social que produziam injustiças, sofrimento e morte para inúmeras pessoas. Jesus veio redimir e salvar o ser humano por inteiro, na sua dimensão corpórea, psíquica e espiritual.

Lembremos da Aliança que Deus fez com Noé: “Estabeleço convosco a minha aliança: nenhuma criatura será mais exterminada pelas águas do dilúvio, e não haverá mais dilúvio para devastar a terra” (Gn 9,11). Não usemos as redes sociais para disseminar discursos de ódio que afogam o bom senso, destroem pontes e levantam muros entre as pessoas. “Vamos precisar de todo mundo pra banir do mundo a opressão. Para construir a vida nova, vamos precisar de muito amor” (Beto Guedes, O sal da terra). A humanidade está se afogando no dilúvio da violência, da fome e da pobreza, consequências de uma política de morte que prioriza o dinheiro e não o ser humano. Ou nos salvamos juntos, ou pereceremos todos juntos.   

            Vivamos coerentemente o nosso batismo. Ele nos inseriu na Igreja, corpo místico de Cristo (cf. 1Cor 12,12-26). Se um membro do corpo trabalha contra outro membro, o corpo adoece. Se o lado direito do corpo trabalha contra o esquerdo, e vice-versa, o corpo adoece e pode morrer. O nosso inimigo não é o irmão que está em nossa própria Igreja ou numa outra igreja. O nosso inimigo é o espírito do mal, que nos coloca uns contra os outros para poder reinar sobre todos nós. Supliquemos ao Espírito Santo para que nos descontamine do ódio e da polarização, e nos torne instrumentos da comunhão que Ele deseja restaurar em nossa Igreja, entre os cristãos e entre as diversas religiões, em vista da salvação da humanidade.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi


terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

CONVERSÃO: VOLTAR-NOS PARA AQUELE QUE PODE NOS SALVAR

 Missa de Cinzas. Palavra de Deus: Joel 2,12-18; 2Coríntios 5,20 – 6,2; Mateus 6,1-6.16-18.

             Quaresma, um tempo de quarenta dias. Como o apóstolo Paulo acabou de afirmar, um “tempo favorável” para a nossa salvação. Para chegar ao monte Horeb e se encontrar com Deus, Elias caminhou quarenta dias (cf. 1Rs 19,8). Para iniciar a sua missão de nos salvar, Jesus permaneceu no deserto quarenta dias (cf. Mc 1,13). Jonas, por sua vez, assim pregou à cidade de Nínive: “Daqui quarenta dias, Nínive será destruída” (cf. Jn 3,4). Assim como os ninivitas tiveram um tempo de quarenta dias para se converterem e mudarem suas atitudes, assim a quaresma se abre hoje para nós como um tempo forte de conversão.

No sentido geral, “conversão” significa “mudança”. Ela se mostra necessária quando nos damos conta de que tomamos uma direção errada na vida, trazendo destruição para nós mesmos, para os outros e para o mundo em que vivemos. No sentido bíblico, porém, a conversão tem um sentido mais profundo. Ele não é apenas mudança de direção, mas um “voltar-se”: “Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração (...). Voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo” (Jl 2,12-13).

O tempo da quaresma é um tempo de revisão de vida, o tempo em que, como o filho pródigo, podemos tomar uma decisão em vista de salvar a nossa vida pessoal, comunitária e social: “Vou me levantar, voltar para o meu pai e dizer-lhe: ‘Pai, pequei’” (Lc 15,18). Enquanto Igreja, somos membros do Corpo de Cristo, e o nosso pecado pessoal afeta esse Corpo. Enquanto seres humanos, estamos inseridos na sociedade humana, e o nosso pecado pessoal também produz sofrimento no corpo social. “Voltai-vos para mim e sereis salvos, homens todos dos confins de toda a terra” (Is 45,22). A quaresma não tem por objetivo apenas a nossa salvação individual, mas a salvação da humanidade como um todo.

De quem depende a nossa conversão? Em primeiro lugar, de cada um de nós, tomando consciência da mudança que precisamos fazer em nossas atitudes, em nossa conduta de vida afetiva, profissional e espiritual. Mas a conversão é, sobretudo, obra de Deus em nós. Só Ele pode nos convencer da necessidade de mudança; só a sua graça pode transformar nosso coração endurecido como pedra num coração humanizado e dócil à ação do Espírito Santo (cf. Ez 36,26). Justamente porque a conversão é fruto da graça de Deus em nós, o apóstolo Paulo faz este apelo: “Deixem-se reconciliar com Deus!” (2Cor 5,20). Permitam que Deus cure as feridas que o pecado abriu em vocês, na Igreja e na sociedade humana! Deixem-se conduzir pelo Espírito Santo; deixem-se transformar por sua graça!

Jesus nos recorda no Evangelho que a nossa vida é feita de relacionamentos: nós nos relacionamos com o próximo, com Deus e conosco mesmos. Esses relacionamentos estão saudáveis ou adoecidos? Eles têm gerado em nós paz ou conflitos? Para sanar o nosso relacionamento com o próximo, Jesus nos fala da esmola. Ela deve se traduzir em atitudes de compaixão para com quem sofre, para com quem necessita de nós. Para sanar o nosso relacionamento com Deus, Jesus nos fala da oração. Ela deve se tornar o espaço que damos a Deus para que Ele nos cure, nos corrija e nos transforme pela ação da sua graça. Enfim, para sanar a nossa relação conosco mesmos, Jesus nos fala do jejum como retomada da nossa liberdade diante dos nossos instintos. O jejum reordena a nossa vida, porque nos faz passar do “reagir” ao que sentimos para o “responder” àquilo que nos afeta, e responder a partir da nossa vocação de filhos de Deus e não como simples pessoas mundanas.

“Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Ef 2,14). Uma vez que o nosso pecado pessoal atinge a Igreja em que nos encontramos e a sociedade em que vivemos, tornando-se também pecado social, a Campanha da Fraternidade nos chama à conversão convidando-nos a modificar aquelas atitudes que são opostas ao Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. Segundo Efésios 2,14-16, Cristo “derrubou o muro de inimizade” que se parava os povos; em seu corpo pregado na cruz, “ele destruiu a inimizade” e reconciliou todos os homens com o Pai. Ora, se Cristo derrubou o muro da inimizade, por que alguns católicos estão usando as redes sociais para erguer um muro de inimizade entre o povo católico e o Papa Francisco, entre o povo católico e a Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB)? Se Cristo orou ao Pai pedindo pela unidade entre os cristãos – “Pai, que todos sejam um, para que o mundo creia que tu me enviaste” (cf. Jo 17,21), por que alguns católicos usam as redes sociais para combater o diálogo e a unidade entre a nossa Igreja e outras igrejas cristãs?

Quando Jesus iniciou sua quaresma, o diabo estava lá, esperando por ele no deserto para tentá-lo, para confundi-lo (cf. Mt 4,1; Mc 1,13; Lc 4,2). Assim também nossa Igreja no Brasil inicia sua quaresma sentindo a força do maligno agindo nela, para dividi-la, colocando uns contra os outros. Se o espírito do mal divide, o Espírito Santo une; se o espírito do mal levanta muros de inimizade entre as pessoas, o Espírito Santo constrói pontes que possibilitam o diálogo, o entendimento e a comunhão. Deixemo-nos guiar nesta quaresma pelo Espírito Santo, e assim não cairemos nas armadilhas do espírito maligno.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi     

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

LIVRA-NOS DESTE VÍRUS E DE TODOS OS OUTROS

 

Livra-nos, Senhor, deste vírus, mas também de todos os outros que se escondem dentro dele.

 

Livra-nos do vírus do pânico disseminado, que em vez de construir sabedoria nos atira desamparados para o labirinto da angústia.

 

Livra-nos do vírus do desânimo que nos retira a fortaleza de alma com que melhor se enfrentam as horas difíceis.

 

Livra-nos do vírus do pessimismo, pois não nos deixa ver que, se não pudermos abrir a porta, temos ainda possiblidade de abrir janelas.

 

Livra-nos do vírus do isolamento interior que desagrega, pois o mundo continua a ser uma comunidade viva.

 

Livra-nos do vírus do individualismo que faz crescer as muralhas, mas explode em nosso redor todas as pontes.

 

Livra-nos do vírus da comunicação vazia em doses massivas, pois essa se sobrepõe à verdade das palavras que nos chegam do silêncio.

 

Livra-nos do vírus da impotência, pois uma das coisas mais urgentes a aprender é o poder da nossa vulnerabilidade.

 

Livra-nos, Senhor, do vírus das noites sem fim, pois não deixas de recordar que Tu Mesmo nos colocaste como sentinelas da aurora.

 

José Tolentino Mendonça
Cardeal, poeta e teólogo português.

 

Fonte: Texto-base da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021, pp.27-28.

COMPAIXÃO: UM CORAÇÃO QUE TEM MÃOS PARA TOCAR EM QUEM SOFRE

 Missa do 6. dom. comum. Palavra de Deus: Levítico 13,1-2.44-46; 1Coríntios 10,31 – 11,1; Marcos 1,40-45.

 

            Na época de Jesus, a doença mais temida era a lepra, porque podia contaminar outras pessoas. O medo da contaminação era tão grande que se estabeleceu uma norma, desde a época de Moisés: “O homem atingido por este mal andará com as vestes rasgadas, os cabelos em desordem e a barba coberta, gritando: ‘Impuro! Impuro!’ Durante todo o tempo em que estiver leproso será impuro; e, sendo impuro, deve ficar isolado e morar fora do acampamento’” (Lv 13,45-46). “Fora do acampamento” pode hoje ser entendido como fora da família, fora da Igreja, fora da cidade, para se evitar o convívio com outras pessoas.

Nós já vimos na semana passada que, na época de Jesus, a pessoa enferma, atingida por qualquer doença e não só pela lepra, era vista pelos outros como uma pessoa amaldiçoada por Deus. Se não bastasse estar sofrendo com a doença, a pessoa enferma se sentia não amada por Deus; até mesmo, esquecida e abandonada por Ele. Mas, ao curar cada pessoa enferma, Jesus lhe restituía sua confiança em Deus e a convidava a sair do seu desespero.

Na época em que estamos vivendo, o grande risco de contaminação não vem mais da lepra, mas do novo coronavírus. Para evitar a contaminação e ajudar a salvar vidas, a ciência prudentemente aconselhou o distanciamento social e o uso de máscaras, até que se tenha uma vacina segura que imunize as pessoas diante desse vírus. Quando padres e bispos da nossa Igreja, na fase crítica de contaminação, fecharam suas igrejas por ordem do governo municipal ou estadual, foram acusados nas redes sociais por alguns católicos de terem uma fé materialista e de não verem os serviços religiosos como essenciais. Na prática, esses católicos se distanciam de Jesus e se aproximam dos fariseus, para os quais as leis religiosas tinham que ser obedecidas ainda que ignorando a situação da vida das pessoas. Exemplo concreto: a necessidade de uma pessoa ser curada em dia de sábado.

O Evangelho de hoje nos coloca diante de dois homens que, para evitarem o risco de contaminação, não poderiam de maneira alguma se aproximar: Jesus e o leproso. O primeiro a romper com o distanciamento foi o leproso que, no seu desespero – e, sobretudo, na sua fé –, “chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: ‘Se queres tens o poder de curar-me’” (Mc 1,40). Por ser livre em relação às próprias leis religiosas do seu tempo e por entender que no centro do coração de Deus não está uma norma religiosa, mas o cuidado para com a vida de todo ser humano, “Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: ‘Eu quero: fica curado!’” (Mc 1,41).

Aqui aparece a “marca” principal de Jesus, aquilo que explica cada uma das suas atitudes para com aqueles que sofrem, sua essência enquanto verdadeiro Deus e verdadeiro homem: a compaixão. Lembremos mais uma vez o significado de “compaixão”: deixar-se afetar pelo sofrimento do outro, sentir a dor que o outro sente. Mas a compaixão nunca foi e não é apenas um sentimento; mais do que isso, ela é uma atitude perante aquele que está sofrendo. “Ter compaixão é ter um coração que tem mãos” (Pe. Adroaldo, sj), um coração que se estende e toca na dor dos outros.

Há algo muito importante no Evangelho de hoje! Jesus poderia ter curado aquele leproso apenas com uma palavra, sem tocar nele. No entanto, além de dizer: “Eu quero: fica curado!”, Jesus “estendeu a mão” e “tocou nele”. Jesus não fez apenas algo que era expressamente proibido, mas até mesmo desnecessário. Repito: para curar o leproso, Jesus não precisava tocar nele, mas ele quis. Ao dizer: “Eu quero”, Jesus não disse apenas que queria curar aquele leproso, mas queria também tocar na sua pele, no seu corpo, no seu sentimento de solidão e de ser rejeitado por todas as pessoas por ter lepra.

Diante dessa atitude de Jesus de estender a mão e tocar no leproso, você pode se perguntar: A quem Deus está me pedindo neste momento para eu estender a mão e me reaproximar? Quem Deus está pedindo que eu toque com o meu afeto, com a minha solidariedade, com o meu perdão, com a minha acolhida, fazendo-me próximo? Esse “tocar” de Jesus no leproso também pode nos lembrar de que, infelizmente, existem “toques” que ferem profundamente o outro, como é o caso do abuso sexual, praticado por alguns médicos em seus consultórios, por alguns homens religiosos em suas igrejas e por não poucos homens dentro de suas casas ou da casa de seus parentes. Pessoas que abusam sexualmente de menores estão doentes e precisam ser tratadas.

O gesto de Jesus de “tocar” no leproso também nos lembra algo que algumas pessoas mais velhas afirmam: “os médicos de hoje perderam as mãos”. Alguns médicos, não todos obviamente, atendem pessoas enfermas “a toque de caixa”, sem olhar nos olhos delas e sem tocar no local da enfermidade. Mas não só alguns médicos agem assim! Também alguns líderes religiosos parecem que “perderam as mãos”, porque se mantêm distantes da dor das pessoas que foram confiadas ao cuidado pastoral de suas igrejas; alguns pais também parecem que “perderam as mãos”, porque não se esforçam em diminuir a distância que existe entre eles e seus filhos; alguns netos também parecem que “perderam as mãos” porque não estão sendo educados por seus pais a “tocarem” nos seus avós, que sofrem com a solidão.    

 

Oração: Senhor Jesus, são muitas as lepras que nos contaminam. Podemos estar contaminados com a lepra do ódio, da intolerância ou da indiferença, lepras que adoecem o corpo da nossa família, do nosso ambiente de trabalho e da nossa comunidade de fé. Podemos estar contaminados com a lepra do consumismo, da pornografia, da depressão, do individualismo. Podemos estar contaminados pela lepra da polarização política e religiosa em nosso País, lepra que impede o diálogo e a busca humilde e sincera da verdade. Livra-nos da contaminação! Limpa-nos! Purifica-nos! Estende tua mão e toca onde precisamos ser libertos e curados. Concede ao nosso coração a atitude da compaixão. Que nossa mão se estenda para tocar nas pessoas que necessitam da nossa presença, do nosso afeto, da nossa solidariedade. Assim como o leproso do Evangelho, nos colocamos diante da tua presença com a nossa fé: “Se queres, tens o poder de nos curar”. Amém!  

 

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

domingo, 7 de fevereiro de 2021

CATÓLICOS DIABÓLICOS

 


A Campanha da Fraternidade 2021 ainda não começou, mas as agressões à CNBB e à nossa Igreja, por dialogar com outras igrejas cristãs (pois a CF 2021 é ecumênica) e tratar de temas polêmicos como o feminicídio (assassinato de mulheres), a homossexualidade, o racismo, a violência social e a ecologia, estão “bombando” na Internet, por meio de vídeos caros, de alta qualidade, patrocinado por grupos ricos, feito por pessoas que se consideram mais católicas do que o Papa Francisco e os nossos Bispos, pessoas que acusam quem quer que seja que pense diferente delas de serem de “revolucionários de extrema esquerda”, sendo que, segundo a ignorância bíblica que caracteriza a sua fé, Deus é não apenas “de direita”, mas de “extrema direita”.

 

O tema da CF 2021 é “Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”, e o lema é “Cristo é a nossa paz: do que era dividido ele fez uma unidade” (Efésios 2,14). Enquanto nossa Igreja propõe o diálogo com outras igrejas cristãs para trabalharmos juntos pelo Reino de Deus e por um mundo melhor, os católicos diabólicos enxergam a CF 2021 como uma campanha contra aquela que eles chamam de “Santa Igreja Católica”.  Enquanto nossos bispos lembram ao mundo que “Cristo é a nossa paz”, os católicos diabólicos fazem guerra contra a CNBB na Internet. Enquanto as igrejas cristãs lembram ao mundo que Cristo derrubou o muro da inimizade que havia e do que era dividido fez uma unidade (cf. Ef 2, 14), os católicos diabólicos incentivam os católicos em geral a construírem um muro que os separe da CNBB e também do Papa Francisco pois este, na visão deles, é um Papa “de esquerda”.

 

Em um dos seus vídeos, os católicos diabólicos atacam o CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs), responsável pela elaboração do texto-base da CF 2021. Rotulam seus dirigentes de serem todos “revolucionários de esquerda” e, para provarem sua tese, afirmam que o texto-base da CF 2021 não menciona em suas páginas termos como “Maria”, “Nossa Senhora”, “Mãe de Deus”, “sacramentos” nem “São José”. Falta a esses católicos diabólicos discernimento para saber a diferença entre um livro de catequese e um texto que busca apelar à consciência das pessoas de boa vontade para questões sociais que clamam por atitudes cristãs que sejam “sal da terra” e “luz do mundo” (cf. Mt 5,13.14). Como o texto-base não é um manual de propagação da doutrina católica, eles o definem como “um documento criminoso”, “um documento não católico”, “uma tragédia do início ao fim”.       

 

Criticando o posicionamento das igrejas cristãs frente a problemas sociais como o racismo, a agressão ao meio ambiente e ao grave problema do “feminicídio” (assassinato de mulheres), termo que eles, por serem negacionistas, consideram “absurdo”, esses católicos diabólicos acusam maldosamente a CNBB de defender e fazer propaganda da causa gay. Indo mais longe, afirmam que a CF 2021 pretende convencer os católicos a aceitar as práticas homossexuais e a “acolher os homossexuais sem exigir deles conversão”, coisa que em nenhum momento o texto-base propõe. Mas é assim que esses católicos diabólicos interpretam o documento.

 

Por serem negacionistas, atacam os padres e bispos que fecharam suas igrejas para favorecer o distanciamento social e impedir uma contaminação ainda mais letal do novo coronavírus na população. Deformando a razão principal do distanciamento social, que é a preservação da vida das pessoas, eles acusam maldosamente esses padres e bispos de considerarem o serviço espiritual como “algo não essencial” para as pessoas. Se tudo isso não bastasse, esses católicos diabólicos interpretam o convite que o texto-base da CF 2021 faz a respeitar as crenças religiosas dos índios afirmando que os organizadores da Campanha de pessoas que “condenam as missões católicas” e “negam o céu aos índios”.

 

O vídeo que ora comento encerra-se convocando todos católicos a declararem guerra aos organizadores da CF 2021, o que, na verdade, é uma declaração de guerra à CNBB, e a guerra consiste em não colaborar com a coleta da CF, sempre realizada no Domingo de Ramos, cujo valor é assim dividido: 40% para as ações sociais da CNBB e 60% para as ações socias da Diocese. Literalmente, o vídeo faz a seguinte “chamada”: “Nenhum católico entregue o seu dinheiro para essas pessoas (organizadoras da CF 2021) que são más e estão trabalhando contra a Igreja Católica”. Não colaborar com a coleta da solidariedade, segundo o apresentador do vídeo, será “um ato de amor à Santa Igreja Católica”.

 

Este apresentador termina seu desserviço ao diálogo ecumênico, à paz e à unidade entre os cristãos convidando as pessoas a espalharem seu vídeo pela Internet. Afinal de contas, é preciso que o inimigo continue a semear joio no meio do trigo (cf. Mt 13,25), inclusive, e sobretudo, dentro da Igreja, à qual o apresentador diz amar, nomeando-a como “Santa Igreja Católica”.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

"EU SOU O SENHOR, AQUELE QUE TE CURA" (Êxodo 15,26)

 Missa do 5. dom. comum. Palavra de Deus: Jó 7,1-4.6-7; 1Coríntios 9,16-19.22-23; Marcos 1,29-39.

 

Ninguém duvida que o nosso mundo é doente. Apesar de todo avanço científico e tecnológico, nunca como em nosso tempo as pessoas estiveram tão doentes. Além da proliferação do câncer nas suas inúmeras e diversas manifestações, e da grande batalha contra o novo coronavírus, vemos cada vez mais pessoas adoecerem psiquicamente: síndrome do pânico, ansiedade, depressão, esquizofrenia e outros tantos transtornos.

É inegável que muitas das doenças do nosso tempo são fruto da pobreza, da fome, da desnutrição e da má alimentação; outras, são consequência de ambientes marcados por violência e agressão. Algumas doenças são provocadas pelo vício da bebida alcoólica, do cigarro e de outras drogas, enquanto outras são consequência do estresse no mundo do trabalho, marcado por conflitos e por uma constante exigência de “resultados”. Por fim, temos “doenças novas” devido ao vício do celular. Como já cantava Legião Urbana, na música “Índios”, “nos deram espelhos e vimos um mundo doente”. O tempo excessivo que algumas pessoas passam diante do celular ou do computador, seja nas redes sociais, seja na infinidade de jogos que a Internet oferece, adoece tanto o corpo (sedentarismo) quanto a alma (transtornos emocionais e mentais).

Ora, as doenças estão aí não simplesmente para serem combatidas e curadas, mas para nos dizerem que precisamos mudar nossas atitudes, mudar nossa maneira de entender a vida, de lidar com os conflitos e com as adversidades normais da existência. As doenças estão aí para nos lembrar de que estamos dando prioridade ao que não é prioritário, desrespeitando nossos limites e nos desumanizando; estamos nos alimentando de leituras, de ideologias (de direita e de esquerda), de comida, de bebida e de pessoas tóxicas. Enfim, as doenças estão aí para nos lembrar que comemos alimentos industrializados e processados, ao invés de comida caseira; bebemos refrigerante ou cerveja, no lugar de água ou suco natural, tudo isso somado à falta de disposição e de disciplina em fazermos exercícios físicos ao menos três vezes por semana.

Quando esteve entre nós, Jesus tornou-se uma espécie de ímã que atraía para si muitas pessoas enfermas. Inúmeros doentes procuravam por ele ou eram levados por outros até ele, na esperança de serem curados. Na época de Jesus, toda doença era entendida como castigo de Deus. “A exclusão do templo, lugar santo onde Deus habita, lembra de maneira implacável aos enfermos aquilo que eles já percebem no fundo de sua enfermidade: ‘Deus não os ama como ama os outros’” (José A. Pagola, Jesus, aproximação histórica, p.195). Não bastasse estar sofrendo com a doença, a pessoa enferma se sentia não amada por Deus; até mesmo, esquecida e abandonada por Ele!

Mas Jesus vem e nos revela algo extraordinário: o Deus em que nós cremos não é o “Deus dos justos”, das pessoas corretas, boas e saudáveis, mas o “Deus dos que sofrem”! Cada cura que Jesus realizou, foi para deixar claro que “Deus é, antes de mais nada, o Deus dos que sofrem o desamparo e a exclusão” (José A. Pagola, Jesus, aproximação histórica, p.196). Ao curar um enfermo, Jesus o liberta da imagem deformada e doentia que tinha de Deus, e lhe dá uma imagem correta e saudável, suscitando no doente sua confiança em Deus e convidando-o a sair do seu isolamento e desespero.

Jesus sempre deixou claro, a cada pessoa enferma, que o grande remédio para as doenças é a fé. “Jesus não cura para despertar a fé, mas pede fé para que seja possível a cura” (José A. Pagola, Jesus, aproximação histórica, p.205). A cada doente, Jesus pedia fé na bondade de Deus. “Jesus trabalha o ‘coração’ do enfermo para que confie em Deus, libertando-se desses sentimentos obscuros de culpabilidade e abandono por parte de Deus, que a enfermidade produz” (José A. Pagola, Jesus, aproximação histórica, p.205). Nossa Igreja é chamada por Jesus a se tornar uma presença de cura, um lugar onde as pessoas podem se libertar de imagens erradas de si mesmas e de Deus e construírem imagens verdadeiras e saudáveis, ganhando uma nova compreensão a respeito de si mesmas, da vida e do próprio Deus.

Mas há um detalhe importante no Evangelho de hoje que não pode passar despercebido. Após curar inúmeras pessoas, Jesus se retirou para se colocar na presença do Pai, em oração: “De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto” (Mc 1,35). Quem cuida dos outros precisa cuidar de si também. Ninguém de nós é uma fonte inesgotável de ajuda para os demais. Assim como Jesus, precisamos ter nosso momento diário de reflexão e de encontro com Deus em nossa consciência. A oração é aquele momento em que permitimos que Deus cuide de nós, que Ele corrija nossas ideias erradas e nos liberte de pesos desnecessários que não nos cabem carregar, porque permitimos que os outros os colocassem sobre nós. Sempre que estamos diante de Deus na oração, à semelhança de Jesus, podemos nos lembrar da maneira como Ele se revelou a Israel: “Eu sou o Senhor, aquele que te cura” (Ex 15,26).

Outro detalhe importante, com o qual o Evangelho de hoje termina. Diante da incessante procura do povo por Jesus – “Todos estão te procurando” (Mc 1,37) – ele teve a liberdade de deixar aquele lugar, consciente da sua missão: “Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim” (Mc 1,38). Jesus nos ensina a estar atentos à armadilha do “messianismo”, segundo a qual nós nos achamos “salvadores do mundo”. Não somos o centro do mundo e não nos cabe fazer tudo para todas as pessoas. Não é prudente nem sensato permitir que as pessoas nos elejam como seus salvadores particulares, esperando – e muitas vezes, exigindo – que façamos por elas aquilo que é obrigação delas fazerem por si mesmas. Saibamos nos manter livres e nos desinstalar. Sempre haverá lugares para ir e pessoas para alcançar com o Evangelho no qual cremos. Não nos tornemos propriedade privada de nenhuma pessoa, família, comunidade, paróquia ou Diocese. Quem se acomoda nessa situação esquece “para que veio”; esquece para que se tornou seguidor de Jesus Cristo.   

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi