domingo, 31 de dezembro de 2017

A VERDADEIRA MUDANÇA SÓ PODE VIR DE DENTRO

Missa Santa Maria Mãe de Deus. Palavra de Deus: Números 6,22-27; Gálatas 4,4-7; Lucas 2,16-21.

            Estamos diante do começo de um novo ano, e a vida nos convida a recomeçar. Na verdade, todos nós, todo ser humano, traz ou deveria trazer consigo o desejo de recomeçar. Deus nos convida a recomeçar, e recomeçar não significa simplesmente continuar a fazer as coisas como estamos fazendo; recomeçar significa retomar nossos ideais, reativar nossos sonhos e recuperar os valores que dão sentido à nossa vida.
            Em nome do quê nós vamos recomeçar? Em nome da mudança de calendário de 2017 para 2018? Para recomeçar é preciso ter a convicção que um novo começo é possível, e nós, cristãos, sabemos que um novo começo é sempre possível porque Deus se apresenta na Sagrada Escritura como Aquele que faz novas todas as coisas (cf. Ap 21,5). Além disso, o seu Espírito é descrito como Aquele que renova a face da terra (cf. Sl 104,30). Sim. A rotina é inevitável e ela marca a vida de todo ser humano. Porém nós, cristãos, não nos propomos a viver a vida como usuários de droga, que vivem buscando sensações novas a cada instante, e por isso mudam de droga constantemente, porque querem experimentar sensações diferentes, até morrerem de overdose. Nós, cristãos, olhamos a vida como Maria, procurando nos perguntar, nos acontecimentos mais rotineiros e aparentemente banais do nosso dia a dia, o que Deus está querendo nos dizer, quais os apelos do seu Espírito, para que a nossa vida se abra ao novo que Deus quer gerar em nós (cf. Lc 2,19).
            Certamente cada um de nós deseja e espera por alguma mudança neste novo ano que nasce. Mas é importante nos dar conta de que as coisas só mudam quando nós decidimos mudar. A mudança nunca vem de fora; ela sempre vem de dentro. Por isso, é muito importante estarmos conscientes de que os maiores obstáculos para a mudança se encontram dentro de nós, e não fora. O maior inimigo da mudança não é o outro, nem as circunstâncias, mas nós mesmos. Nós até podemos dizer da boca pra fora que gostaríamos que a nossa vida fosse diferente em 2018, mas precisamos ter a sinceridade e a humildade de reconhecer que nós temos muita resistência em mudar. Por mais que reclamemos da rotina da vida, nós sempre buscamos acomodação, sempre procuramos nos sentir seguros, agarrando-nos aos nossos velhos hábitos e trabalhando contra as mudanças que gostaríamos que acontecessem em nossa vida.
            Nunca como hoje as pessoas estiveram tão abertas a mudanças: elas demonstram não ter dificuldade nenhuma em mudar de religião, de igreja, de parceiro(a), de opinião, de roupa e de corte de cabelo, mas essas mudanças são “epidérmicas”, superficiais. São mudanças externas; por dentro, essas pessoas continuam as mesmas: mesquinhas, egoístas, desonestas, corruptas, imaturas, preguiçosas, chantagistas, sem disposição séria para se responsabilizarem pela própria vida, desfazer-se de suas máscaras, jogarem fora suas muletas e pararem de culpar os outros pela vida sem sentido que levam. Por isso, o apóstolo Paulo nos convida a abandonarmos a nossa postura de adultos acomodados e infantilizados, e assumirmos com determinação e responsabilidade o nosso papel diante da vida, como pessoas que carregam dentro de si o Espírito do próprio Filho de Deus, Espírito que confirma que somos filhos e não escravos (cf. Gl 4,7), isto é, pessoas capacitadas pelo próprio Deus para se tornarem um ser humano melhor e a fazer deste mundo um lugar melhor. Se toda mudança dá trabalho e exige determinação e perseverança, nós temos a graça do Espírito Santo que nos sustenta neste sentido.      
            O encontro dos pastores com o menino Jesus nos coloca uma pergunta: para onde estamos olhando nesta virada de ano? Os pastores nos convidam a olhar para Jesus Cristo, o mesmo ontem, hoje e sempre (cf. Hb 13,8), Aquele que era, que é e que vem (cf. Ap 1,4.8). Em Suas mãos depositamos o nosso passado, certos de que Ele nos redime de todos os nossos pecados; em Suas mãos também depositamos o nosso presente, certos de que Ele cuida de nós e dirige o nosso caminho; em Suas mãos, enfim, depositamos o nosso futuro, sabendo que nenhum daqueles que n’Ele espera ficará desapontado. Se muitas incertezas rondam o nosso coração diante do novo ano que nasce, olhamos para Jesus e dizemos com a mais profunda convicção do nosso coração: “Sei em quem acreditei” (2Tm 2,12); sei em quem depositei a minha fé; sei pela Palavra de quem eu oriento a minha consciência, a minha conduta, a minha vida.  
                Algumas pessoas dizem que 2017 é um ano para ser esquecido, por causa do sofrimento que passaram (como se 2018 viesse com a garantia de que não iremos sofrer!). Ora, as coisas ruins acontecem não para serem esquecidas, mas para nos ensinar alguma coisa. Politicamente, 2017 foi um ano onde o esgoto de Brasília começou a ser exposto de maneira mais profunda pela Lava Jato, revelando que a Praça dos Três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) está corrompida, está infestada por ratos que disseminam a leptospirose da violência, da desigualdade social, da pobreza, do desemprego, da ruína da saúde e da educação por todo o nosso país. Nunca como neste ano de 2017 ficamos conscientes de tanto roubo, de tanta corrupção e assistimos a tanta impunidade, a ponto de termos que admitir que o Brasil hoje é um país (des)governado por bandidos e assassinos; bandidos, porque roubam desmedida e descaradamente; assassinos, porque o dinheiro que desviam causa estragos sociais, como a pobreza e a violência. Muitos desses bandidos e assassinos ainda ocupam a cadeira do Executivo, a maior parte das cadeiras do Legislativo e uma boa parte das cadeiras do Judiciário. Não nos esqueçamos que neste ano de 2018 teremos a possibilidade de varrer do cenário nacional, com o nosso voto, se não todos, pelos menos boa parte deles, caso se apresentem alternativas para tanto.
            Neste início de ano, a Igreja suplica com o salmista: “Que Deus nos dê a sua graça e sua bênção, e sua face resplandeça sobre nós! Que na terra se conheça o seu caminho e a sua salvação por entre os povos” (Sl 67,2-3). Exatamente hoje, oito dias após o Natal, o Evangelho nos fala que “quando se completaram os oito dias (...), deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido” (Lc 2,21). O nome “Jesus” significa “Deus salva”, de modo que Pedro, cheio do Espírito Santo, declarou: “Em nenhum outro existe salvação, pois debaixo do céu não existe outro nome dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12). Portanto, nesta noite de ano novo invocamos o nome de Jesus sobre nós, sobre a nossa Igreja e sobre a face da terra, lembrando que, em Jesus Cristo, o Pai nos abençoou do alto do céu com toda a bênção do seu Espírito (cf. Ef 1,3). Assim, diante do Santíssimo Nome de nosso Senhor Jesus Cristo, nós cantamos:

* Um dia no Monte Alverne, Frei Leão se encontrava em um momento de grande aflição e pediu a Frei Francisco uma palavra sua. Frei Francisco escreveu esta Bênção a próprio punho (um dos únicos manuscritos de São Francisco). Frei Leão o guardou junto a seu hábito, em um pequeno bolso junto ao coração, e só foi encontrado pelos frades no momento de sua morte. Este pequeno manuscrito é hoje guardado no Sacro Convento de Assis, como uma verdadeira relíquia do amor fraterno que une os corações no Amor a Cristo.

TEXTO ORIGINAL – Benedictio Fratri Leoni data

Benedicat tibi Dominus et custodiat te; ostendat faciem suam tibi et misereatur tui. Convertat vultum suum ad te et det tibi pacem (Num 6,24-26). Dominus benedicat, frater Leo, te (cfr. Num 6,27).

TEXTO TRADUZIDO – Bênção dada a Frei Leão

O Senhor te abençoe e te guarde; mostre sua face para ti e tenha misericórdia de ti. Volte seu rosto para ti e te dê a paz (Nm 6,24-26). O Senhor te abençoe, Frei Leão (cfr. Nm 6,27).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

CUIDAR DOS NOSSOS VÍNCULOS, SEM ESQUECER O VÍNCULO PRINCIPAL

Missa da Sagrada Família de Nazaré. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Colossenses 3,12-21; Lucas 2,22-40.

            Começo esta reflexão sobre o Evangelho da Sagrada Família de Nazaré lembrando duas afirmações do Papa Francisco: 1) “Querer formar uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de sonhar com Ele, a coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta história de construir um mundo onde ninguém se sinta só” (AL n.322*). Deus ama a família e nos convida a cultivá-la e a protegê-la, porque ela é necessária para que nenhum ser humano se sinta só. 2) “Nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar” (AL n.325). Portanto, não existe família ideal, assim como não existem relacionamentos ideais. Toda família é chamada a aprender com seus erros, a tratar suas feridas e a buscar o amadurecimento dos seus vínculos afetivos.
            A atitude de Maria e José de apresentarem Jesus para ser consagrado a Deus revela a consciência de que “se Deus não constrói a casa, em vão trabalham seus construtores” (Sl 127,1). Se a consciência e o coração da mãe, do pai e dos filhos não se deixar orientar por Deus, todo o esforço que fazemos por construir um relacionamento e por realizar nosso sonho de felicidade cai no vazio, é vencido pelas dificuldades e abandonado no meio do caminho. Além disso, a consagração de Jesus no Templo nos lembra que a pessoa mais importante de uma família não é o pai, nem a mãe, nem qualquer um dos filhos; a pessoa mais importante de uma família é Deus. Em outras palavras, o vínculo mais importante e urgente a ser cultivado não é o vínculo entre o casal, nem o vínculo entre pais e filhos, mas o vínculo de todos – pais e filhos – com Deus. Só a comunhão com Deus, o Rochedo da nossa salvação (cf. Sl 95,1) – uma comunhão alimentada pela Palavra, pela Eucaristia e pela oração diária –, pode fazer com que nossa casa resista às tempestades e não seja destruída por elas (cf. Mt 7,24-25). 
            O livro do Eclesiástico nos lembra que a nossa comunhão com Deus está diretamente relacionada com a nossa comunhão com os nossos pais (cf. Eclo 3,6.14-16). Sempre que descuidamos do nosso relacionamento com os nossos pais, nos omitindo nas nossas responsabilidades de filhos, distanciando-nos afetivamente deles ou falhando no cuidado para que eles tenham uma velhice digna, estamos nos afastando do Pai Altíssimo, que nos deu o mandamento de honrar pai e mãe. Neste sentido, também o genro e a nora precisam se questionar o quanto as suas possíveis dificuldades de convivência com o sogro e a sogra colaboram para que o marido ou a esposa acabe falhando no seu papel de filho ou filha, por não conseguir administrar as “cobranças” dos dois vínculos – aquele com o cônjuge e aquele com os pais. Aqui é preciso lembrar que os dois vínculos são sagrados aos olhos de Deus e ambos precisam ser cuidados.       
            O apóstolo Paulo nos lembra que “o amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3,14). A nós, que nos acostumamos a reduzir o amor a uma simples emoção, a um sentimento egoísta e passageiro, o apóstolo nos propõe amadurecer em nossa capacidade de amar, de forma que o nosso amor se traduza em “misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência” (Cl 3,12), um amor que aprenda a suportar as dificuldades do relacionamento e a nos perdoar uns aos outros (cf. Cl 3,13), pois não somos anjos, mas pessoas de carne e osso, e os nossos relacionamentos dependem basicamente disso: que cada um de nós cuide daquilo que convém ao nosso relacionamento familiar e não daquilo que convém a si mesmo. Aqui mais uma vez são oportunas as palavras do Papa Francisco: “Se a família consegue concentrar-se em Cristo, Ele unifica e ilumina toda a vida familiar. Os sofrimentos e os problemas são vividos em comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a Ele, pode-se suportar os piores momentos” (AL 317).
            Por falar em Cruz do Senhor, eis as palavras de Simeão a Maria, no momento em que ela consagrava a Deus seu filho Jesus: “Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma” (Lc 2,35). Hoje em dia, cresce sempre mais o número de casais que escolhem não ter filhos porque não querem que sua alma seja ferida por uma espada de dor chamada “preocupação”, “orientação”, “trabalho” em formar a consciência dos filhos neste mundo tão cheio de contra-valores. Por outro lado, é cada vez maior o número de pais que rejeitam essa “espada de dor” omitindo-se em relação à educação dos filhos, não se dando ao trabalho de impor-lhes limites porque não querem se indispor com os filhos. O resultado disso todos nós conhecemos: filhos que crescem sem limites, tratados por seus pais como “príncipes” e “princesas”, excessivamente mimados, se tornam pessoas profundamente mal resolvidas, pessoas que, além de entregarem os pontos diante de qualquer dificuldade que a vida lhes apresenta, costumam multiplicar as “espadas de dor” em nossa sociedade, com seu comportamento imaturo, inconstante e inconsequente.      
            As palavras de Simeão a Maria nos lembram que não existe vida sem dor; não existe relacionamento sem dor; não existe família sem dor. Quem escolhe amar deve ter consciência de que corre o risco de sofrer, assim como quem decide não mais amar por medo de sofrer, terá que lidar com outro tipo de dor. É claro que a vida não é somente dor, mas a dor faz parte da vida de qualquer ser humano. Por isso, a maior herança que os pais podem deixar para os filhos é ensiná-los a lidar de maneira consciente e madura com a dor, e o maior desserviço que os pais podem prestar aos seus filhos e à humanidade é querer poupá-los de toda e qualquer dor, colaborando para que cresçam como pessoas imaturas, adultos mimados e eternamente infantilizados, pessoas incapazes de assumir responsabilidades e de fazer escolhas que sejam duradouras, sobretudo na vida afetiva.
            “(...) eu dobro os joelhos diante do Pai, de quem toda família recebe o nome nos céus e na terra” (Ef 3,14). Neste dia da Sagrada Família de Nazaré dobramos os nossos joelhos para suplicar ao Pai por todas as famílias que estão dobradas diante da dor; feridas por causa da violência; destruídas por causa das guerras; entristecidas por causa do luto; separadas por causa do adultério; desestruturadas por causa da bebida, das drogas e de comportamentos agressivos; famílias empobrecidas pela desigualdade social, atingidas pelo desemprego; famílias financeiramente muito bem amparadas, mas cujos filhos se alimentam de “pão sujo”, porque seus pais ganham dinheiro de maneira desonesta...
                Rezemos pela grande maioria das famílias, atualmente afastadas da nossa Igreja, seja porque seus membros foram batizados, mas não evangelizados, seja porque alguns pastores da nossa Igreja não acolhem o apelo do Espírito que diz: “É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano... É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem descuidar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares” (Papa Francisco, AL 304). “Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas... Lembremo-nos de que um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades” (Papa Francisco, AL 305).
   
*AL – Exortação Apostólica Amoris laetitia (A alegria do amor). Os números se referem aos parágrafos da referida Exortação.


Pe. Paulo Cezar Mazzi 

domingo, 24 de dezembro de 2017

QUE HAJA LUGAR PARA ELE RENASCER EM VOCÊ A CADA DIA PELA FÉ

Missa da noite de Natal. Palavra de Deus: Isaías 9,1-6; Tito 2,11-14; Lucas 2,1-14

            Se quisermos compreender o sentido do Natal, precisamos nos lembrar desta Palavra: “Eu, o Senhor, habito num lugar alto e santo, mas estou junto ao abatido e humilhado, a fim de reanimar o espírito abatido, a fim de reerguer o ânimo dos humilhados” (Is 57,15). Jesus nasceu entre nós porque Deus escolheu descer do alto do céu para Se colocar junto a todo ser humano, especialmente junto daquele que se encontra abatido e humilhado. Justamente por isso, na noite em que Jesus nasceu o Anjo do Senhor se dirigiu aos pastores – homens considerados pecadores, perdidos e sem salvação pelas pessoas daquela época – e lhes disse: “Eu vos anuncio a boa notícia, que será uma alegria para todo o povo: Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,10-11).
            “Nasceu para vós um Salvador” (Lc 2,11). Como nos lembra o Pe. José A. Pagola, “Jesus não nasceu para Maria e José; nasceu para nós!”; nasceu, sobretudo, para os pecadores, para as pessoas que se sentem perdidas, ou que são julgadas pelos outros como tais; Jesus nasceu para aqueles que não enxergam nenhuma chance de salvação. Justamente por isso, Ele disse na casa de Zaqueu que veio ao mundo “para procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 10,19). Portanto, ao proclamarmos que o Filho de Deus se fez pessoa humana, devemos proclamar também que nenhum ser humano está abandonado a si mesmo; ninguém está sozinho em sua solidão, porque Jesus é “Deus conosco” (Mt 1,23), e Ele mesmo nos fez esta promessa: “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20). Ele nasceu não somente para estar conosco por algum tempo, mas para permanecer conosco todos os dias, em nossa caminhada humana, até que um dia estejamos com Ele na casa do Pai (cf. Jo 14,2-3).
            Natal é a festa da encarnação: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). O Filho de Deus se fez pessoa humana; experimentou em seu próprio corpo tudo o que experimentamos: fome, dor, tristeza, ameaça, desejo, tentação, necessidade, carência etc. Mas Ele experimentou tudo isso em favor de cada um de nós, pois sabia que somente aquilo que é assumido pode ser redimido (São Gregório de Nissa). Jesus assumiu a nossa natureza humana, a nossa carne, aquilo que temos de mais frágil e passível de ser corrompido, para nos redimir, para nos reerguer, para nos retirar do abismo da condenação e nos dar a graça da salvação. Por isso hoje, nesta noite de Natal, cada um de nós pode proclamar com o apóstolo Paulo: “quando sou fraco, é então que sou forte” (2Cor 12,10), pois Cristo nos garantiu: “Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que a minha força se manifesta” (2Cor 12,9).
            O Natal é a manifestação da força de Deus na fraqueza humana. O Natal é a celebração da graça de Deus “que se manifestou trazendo a salvação a todas as pessoas” (Tt 2,11). Portanto, o Natal, embora seja celebrado como festa para os cristãos, é, na verdade, uma festa que deveria ser celebrada por todas as pessoas, pois Jesus nasceu como Salvador de todo ser humano e não somente dos cristãos, não somente dos que nele creem. De fato, o próprio Jesus disse que o Pai lhe confiou o poder de salvar todo ser humano e de lhe dar a vida eterna (cf. Jo 17,2). Cabe a nós, cristãos, recuperar a consciência da nossa salvação em Cristo e de ajudar as pessoas do nosso tempo a se encontrarem com Aquele que nasceu como único e verdadeiro Salvador de cada uma delas.
            “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, e para os que habitavam nas sombras da morte brilhou uma luz... Porque para nós nasceu um menino...” (Is 9,1.5). O profeta Isaías disse essas palavras numa época em que o povo de Israel se sentia engolido pela violência, pela ganância e pela destruição das nações inimigas que o rodeavam. Hoje nós, cristãos, somos chamados a profetizar sobre as sombras escuras do terrorismo, das guerras, da violência urbana, da destruição provocada pela fome, pela corrupção, pelas injustiças, pelo tráfico e pelo consumo de drogas, que “para nós nasceu um menino”. Nossa missão como cristãos, como “sal da terra” e “luz do mundo” (cf. Mt 5,13.14), é nos colocar junto daqueles que estão prostrados nas trevas e sentados na sombra da morte, para anunciar-lhes que nasceu Aquele que é a “luz que brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram apagá-la” (Jo 1,5); nasceu Aquele que é “a luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilumina todo ser humano” (Jo 1,9).
            A narrativa do nascimento de Jesus também nos faz um alerta: “Não havia lugar para eles” (Lc 2,7); por isso, Maria deu à luz o seu Filho numa estrebaria. Hoje, diante de Jesus menino, podemos pensar nas crianças que, como Jesus, também não encontram um lugar digno para nascer, crescer e ser educadas. Não há lugar para elas no que diz respeito à saúde e à educação de qualidade; não há lugar para elas no que diz respeito a uma família estruturada; não há lugar para elas no que diz respeito à formação de uma personalidade saudável e de uma identidade sexual clara e bem definida. Pensemos também nas crianças para as quais não há lugar para a religião nem para a fé, na vida delas: são crianças cujos pais têm a preocupação em levá-las para visitar o Papai Noel e tirar foto com ele nos shoppings ou nas praças da cidade, mas não se preocupam em levá-las para visitar e tirar fotos junto de um presépio; são crianças que crescem desconhecendo que a razão de ser do Natal é justamente acolher o Menino que nasceu como nosso Salvador. 
              Por fim, ao celebrarmos o Natal de nosso Senhor Jesus, tenhamos claro que não estamos aqui para olhar um fato do passado e simplesmente recordar o nascimento do Filho de Deus. Muito mais do que isso, a celebração do Natal é sempre uma oportunidade de reavivar a nossa esperança na gloriosa manifestação “do nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo” (Tt 2,13), cuja volta devemos aguardar procurando nos afastar do paganismo e da corrupção moral em que vive o nosso mundo, ao mesmo tempo em que nos esforçamos por viver a cada dia de maneira equilibrada, justa e piedosa (cf. Tt 2,12).       

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

FAÇA-SE EM MIM

Missa do 4o. dom. do advento. Palavra de Deus: 2Samuel 7,1-5.8b-12.14a.16; Romanos 16,25-27; Lucas 1,26-38. 

Durante todo o tempo do Advento nós, Igreja, suplicamos: “Que as nuvens se abram e enviem o orvalho reconfortador; que da terra brote já a flor, que venha pra nós o Salvador!” Hoje, às vésperas do Natal, o Evangelho nos mostra o momento em que os céus se abrem e enviam o orvalho da salvação, Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que Maria é apresentada como a terra do coração humano que se abre docilmente para acolher o anúncio do Anjo e permitir que no seu ventre comece a germinar Aquele que veio nos trazer a salvação.  
Deus poderia ter enviado seu Filho ao mundo “a partir de cima”, descido como que “pronto” do céu, isto é, já adulto, formado. Mas Ele escolheu um outro caminho: quis que Jesus percorresse o mesmo caminho que todo ser humano percorre ao vir ao mundo – o caminho da fecundação, da gestação, das dores de parto, do nascimento, do crescimento etc., até se tornar adulto e iniciar a sua missão como Salvador da humanidade. Além disso, Deus permitiu que seu Filho estivesse sujeito aos mesmos riscos que a vida de qualquer ser humano enfrenta neste mundo, inclusive o risco de ser eliminada pela violência e pela maldade dos homens (cf. Mt 2,13-18). Portanto, o caminho que Deus escolheu para nos salvar foi o caminho da Encarnação: seu Filho Jesus abriu mão da Sua condição divina e se fez pessoa humana no seio de Maria, estando exposto a tudo aquilo que nós, seres humanos, estamos expostos (cf. Hb 4,15).  
O Evangelho da Anunciação que hoje ouvimos nos fala não somente do divino que se faz humano; ele fala também do humano que é chamado a cuidar do divino! Assim como Maria, cada um de nós é chamado a ser como que uma terra aberta ao orvalho que o céu quer derramar para gerar a salvação entre os seres humanos. Assim como Maria foi convidada a assumir o seu lugar na história da salvação, cada um de nós é convidado a colaborar com Deus, para que a história da salvação tenha continuidade no hoje da história da humanidade. Assim como o “sim” de Maria foi fundamental para que Jesus nascesse no meio dos homens, da mesma forma o nosso “sim” hoje é fundamental para que Jesus possa renascer no coração do nosso mundo.
O Natal começa aqui, no exato momento em que Maria diz ao anjo Gabriel: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). E estas palavras de Maria nos questionam: Como ouvimos a Palavra do Senhor? Com que disposição? Até que ponto permitimos que a sua Palavra penetre e permaneça em nós? Até que ponto temos paciência e confiança em esperar na Palavra de Deus, até que ela se cumpra em nós? Assim como Maria, não podemos nos fechar à graça de Deus, como se fôssemos um terreno cimentado, coberto de concreto, impermeável à fecundidade da Palavra de Deus. Pelo contrário, precisamos nos tornar sempre mais uma terra boa, onde a Palavra de Deus possa não somente ser semeada, mas também germinar em nós. Sem a acolhida humilde e obediente da Palavra, não há como a salvação de Deus germinar no chão da nossa vida.
“Faça-se em mim”... Quanto custou a Maria dizer e sustentar essas palavras a Deus! Não foi apenas no momento da Anunciação que ela disse “Faça-se em mim”. Também no momento em que não havia lugar para ela dar à luz o seu Filho (cf. Lc 2,7); também no momento em que precisou fugir com Ele para o Egito, para que Herodes não O matasse (cf. Mt 2,13); também no momento em que Ele, depois de ser reencontrado no Templo, lhe deixou claro que devia cuidar das coisas do seu Pai (cf. Lc 2,49); também no momento em que saiu de Nazaré e iniciou sua missão... Mas foi, sobretudo, no momento em que comungou do sofrimento de Seu Filho na cruz que Maria teve que repetir: “Faça-se em mim” (cf. Jo 19,25).  
A exemplo de Maria, nós precisamos aprender a nos abrir aos desígnios de Deus, aos projetos que Ele tem a nosso respeito e a respeito da humanidade. Nós precisamos não apenas dizer de coração sincero “faça-se em mim”, como precisamos também sustentar o nosso “sim” a Deus em toda e qualquer situação, confiando que tudo concorre para o bem daqueles que se submetem ao querer de Deus e confiam nos Seus propósitos (cf. Rm 8,28). Deus ainda hoje procura por homens e mulheres que tenham a disponibilidade de Maria, que aceitem abrir mãos dos seus projetos pessoais, muitas vezes alimentados por interesses egoístas, para se abrirem a um horizonte maior, colaborando para que Ele reescreva a história da salvação no coração da humanidade. 
“Eis que conceberás e darás à luz um filho...” (Lc 1,31). Numa época em que se espalham no mundo campanhas favoráveis ao aborto, as quais defendem a ideia de que cabe à mulher decidir sobre o seu corpo, como se o filho que ela está gerando fosse apenas um “órgão” do seu corpo que ela pode decidir eliminar; numa época em que muitos filhos são gerados sem alegria, sem amor e sem esperança; numa época em que muitos casais, por medo da violência e da maldade dos homens, decidem não ter filhos; numa época em que muitas pessoas, devido a sofrimentos não superados e a dores não enfrentadas de maneira madura e libertadora, decidiram se tornar “estéreis”, isto é, pessoas sem alegria, sem fé, sem esperança e sem amor perante a vida, Deus nos convida a recuperar a confiança em nossa capacidade de sermos pessoas fecundas, pessoas que se tornem grávidas de um futuro e de uma esperança para si mesmas e para o nosso mundo.
“O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (Lc 1,35). Coloquemo-nos debaixo da sombra do Altíssimo; deixemo-nos “cobrir”, isto é, fecundar pelo Espírito Santo de Deus; deixemo-nos conduzir por Ele, pois somente o Espírito Santo pode gerar Jesus em nós, e somente Ele pode nos fazer portadores de Jesus para os outros... Alegrando-nos com Maria. Aprendamos com ela a dizer a cada dia o nosso “Fiat” (Faça-se, em latim), o nosso “Faça-se” ao que Deus nos propõe na sua Palavra, e que o nosso “Faça-se” não seja dado somente hoje, mas em toda e qualquer circunstância, permitindo que Jesus continue a ser gerado em nós e, por meio de nossas atitudes, nos ambientes em que nos encontramos e no coração daqueles que convivem conosco.        

Oração: Chamas por mim. Ouço tua voz. Que queres de mim, ó meu Senhor? Estou aqui ao teu dispor, servo fiel à tua vontade eu serei. Teus planos vão além do que eu possa entender. Quem sou eu pra merecer tantas graças assim? Meu “sim” eu quero te dizer. Querer o teu querer, e assim viver. Eu sei: já não posso mais calar a voz que grita em mim! Fiat, faça-se, faz em mim, quero que faças sim. Tua vontade sim, faz em mim, quero que faças sim! Simples mulher, pura e fiel, como tua mãe eu quero ser. Silenciar diante de ti e guardar tudo dentro do meu coração. Não quero que a embriaguez dos vinhos que bebi me impeça de provar o sabor do teu vinho novo. Sede nunca mais terei. Contigo eu posso sempre renascer. Eu sei: já não posso mais calar a voz que grita em mim! Fiat, faça-se, faz em mim, quero que faças sim. Tua vontade sim, faz em mim, quero que faças sim!
Fiat (Faça-se) Banda Dom.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

QUEM É VOCÊ? QUAIS SÃO SEUS SONHOS? NO QUÊ VOCÊ CRÊ? O QUE VOCÊ ESPERA?

Missa do 3º. dom. do Advento. Palavra de Deus: Isaías 61,1-2a.10-11; 1Tessalonicenses 5,16-24; João 1,6-8.19-28.

            Uma vez que nós estamos a menos de dez dias do Natal, o Evangelho nos coloca novamente diante de João Batista, aquele que preparou a humanidade para a primeira vinda de Jesus. E João é descrito como “um homem enviado por Deus” (Jo 1,6). Assim como João, cada um de nós se encontra aqui nesta terra, neste mundo, porque foi enviado por Deus. Mas, enviado por quê? Para que? “Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos chegassem à fé por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz” (Jo 1,7-8).
            Diante do testemunho de João, cada um de nós pode dizer: “Eu sou uma missão nesta terra e por isso estou neste mundo” (Papa Francisco, A Alegria do Evangelho n.273). O sentido da nossa existência está na missão que somos, na missão que Deus nos confiou: ajudar as pessoas do nosso tempo a terem um encontro profundo com Aquele que é a luz do mundo, Jesus Cristo (cf. Jo 8,12). Apesar das nossas limitações humanas, precisamos fazer todo o possível para que as pessoas com as quais convivemos cheguem à fé em Jesus Cristo, o único Salvador do mundo. Para isso, nós mesmos precisamos estar na luz, isto é, viver em comunhão com Jesus Cristo e pautar a nossa conduta pela luz do seu Evangelho, pois ninguém pode pretender conduzir alguém para a luz se ele mesmo não está (e nem se esforça para estar) na luz.
            João foi questionado pelas pessoas do seu tempo: “Quem é você?” (Jo 1,19); “O que você diz de si mesmo?” (Jo 1,21). Assim como João Batista, nós, cristãos, somos fortemente questionados pelas pessoas do nosso tempo. Diante das catástrofes e das injustiças sociais, diante da dor e do sofrimento, diante da morte de tantos inocentes, diante de acontecimentos absurdos e totalmente desprovidos de sentido, diante da aparente inexistência de Deus ou da Sua aparente indiferença para com a humanidade, o mundo pergunta a cada um de nós, cristãos: ‘Quem é você? No quê ou em Quem você acredita? Quais são os seus desejos, os seus sonhos, as suas esperanças? O que você pretende fazer da sua existência, da sua breve passagem por este mundo? Por que você ainda reza, ainda lê a Bíblia, ainda vai à Igreja, ainda tem uma religião, ainda tem fé? Que respostas você tem para o absurdo da dor, da maldade, da injustiça e do sofrimento que atingem cegamente inúmeras pessoas do nosso tempo?’
             “Quem é você?” (Jo 1,19); “O que você diz de si mesmo?” (Jo 1,21). Ninguém de nós gosta de ser questionado. Todos nós preferimos encontrar respostas, ao invés de nos deparar com perguntas. As respostas, de certa forma, nos acomodam e nos tranquilizam, enquanto que as perguntas nos incomodam, nos angustiam e nos colocam em “crise”. No entanto, nós não deveríamos ter medo das perguntas, não deveríamos ter medo de ser questionados, mesmo porque os questionamentos nos obrigam a nos desinstalar, a rever a forma como estamos respondendo aos desafios da vida e a nos dar conta de que o Deus em Quem nós cremos jamais aceitou ser transformado em ou tratado como uma resposta fácil para os problemas e questionamentos que o ser humano tem dentro de si.
            “Quem é você?” (Jo 1,19); “O que você diz de si mesmo?” (Jo 1,21). A você, cristão, não cabe responder a todas as perguntas que o mundo lhe faz; ninguém pode ter a pretensão de saber das respostas a tudo, a menos que queira ser enganador e superficial. A você, cristão, cabe ser “uma voz gritando no deserto: coloque em ordem o caminho do Senhor” (Jo 1,23). A você, cristão, cabe não só gritar à consciência do mundo, mas à sua própria esta simples e profunda verdade: “No meio de vocês está alguém que vocês não conhecem” (Jo 1,26). O fato de Jesus Cristo ter nascido há mais de dois mil anos e do seu Evangelho já ter sido anunciado a inúmeras pessoas, não significa que Ele seja hoje (re)conhecido como Salvador por todos aqueles que já entraram em contato com a pregação do Evangelho, assim como não significa que todas as pessoas batizadas e iniciadas na vida cristã tenham tido um verdadeiro encontro com Jesus Cristo ou que ainda estejam percorrendo o caminho da fé.
“No meio de vocês está alguém que vocês não conhecem” (Jo 1,26). Não nos enganemos a respeito de nós mesmos e nem sejamos apressados em aplicar essas palavras àqueles que julgamos ignorantes em termos de fé ou de religião. Deus sempre foi e sempre será Alguém a Quem somos chamados a conhecer melhor e em profundidade. O próprio apóstolo Paulo já deixou claro que o nosso conhecimento a respeito de Deus foi e será sempre limitado, imperfeito: “Agora vemos como que num espelho, de maneira confusa, mas depois veremos face e face. Agora conheço de maneira parcial, mas depois conhecerei como sou plenamente conhecido” (1Cor 13,12). Portanto, as palavras de João Batista não servem como um desestímulo em nossa busca por Deus, mas são um convite a procurá-Lo com humildade, a nos abrir a Ele, permitindo que Ele revele mais de Si mesmo a nós na pessoa de Seu Filho Jesus Cristo, como está escrito: “Ninguém jamais viu a Deus; mas o Filho único, que está voltado para o seio do Pai, este o revelou a nós” (Jo 1,18).
“No meio de vocês está alguém que vocês não conhecem” (Jo 1,26). Muitas pessoas optaram por se tornarem ateias por não entenderem a ausência de Deus na história humana e a Sua omissão em nada fazer para intervir e socorrer uma humanidade cada vez mais ferida pela maldade e pela injustiça dos homens. Talvez essas pessoas desconheçam o que o próprio Deus disse na Escritura: “Meu povo está morrendo por falta de conhecimento... Um povo sem entendimento caminha para a perdição” (Os 4,6.14). O que destrói a humanidade, o que de fato nos machuca, nos adoece e pode nos destruir não é a ausência de Deus, não é a Sua indiferença ou a Sua não existência, mas o fato de nós ignorarmos Deus, o fato de muitos de nós, livre e conscientemente, escolherem viver como se Deus não existisse. Dizendo de outra forma, aquilo que nos adoece e pode nos destruir é desconhecer a verdade de Deus a nosso respeito, e essa verdade só pode ser despertada dentro de nós quando temos a coragem de nos confrontar com uma pergunta: quem sou eu?       
“Quem é você?” (Jo 1,19); “O que você diz de si mesmo?” (Jo 1,21). Ignorar quem você é significa ignorar a sua força, a sua capacidade, as suas dores, as suas feridas, os seus limites, e ignorar essas coisas nos faz muito mal, porque nos adoece e nos mantém presos a situações nocivas e destrutivas. “Quem é você?” (Jo 1,19); “O que você diz de si mesmo?” (Jo 1,21). Nós não somos a roupa de marca que usamos, nem o carro que possuímos, nem os lugares que frequentamos, nem o cargo que ocupamos, nem a função que desempenhamos... Tomar consciência da nossa identidade significa tomar consciência da nossa vocação de homens e mulheres ungidos pelo Espírito de Deus e chamados a anunciar a alegria do Evangelho “aos humildes, curar as feridas da alma, pregar a redenção para os cativos e a liberdade para os que estão presos” (Is 61,1); somos homens e mulheres chamados a aguardar pelo Senhor Jesus na alegria do nosso serviço em favor da salvação da humanidade, cultivando uma vida de oração constante e profunda, agradecendo a Deus a missão que Ele nos confiou, examinando tudo o que o mundo nos apresenta e ficando somente com aquilo que é bom e que convém à nossa salvação, além de procurar nos afastar de toda espécie de maldade, de injustiça e de corrupção (cf. 1Ts 5,16-22). É assim que, segundo apóstolo Paulo, devemos esperar pela volta do Senhor nosso Jesus Cristo.

Oração:

Meu Pai, eu não posso mais caminhar na vida desconhecendo quem Tu és, desconhecendo o Teu amor que pode me curar e a Tua verdade que pode me libertar. Tira o véu dos meus olhos! Que eu conheça mais em profundidade a Ti, o único Deus verdadeiro, e a Teu Filho Jesus Cristo, o único Salvador da humanidade. Que o meu conhecimento de Ti se traduza na intimidade contigo e na conformação da minha vida à Tua vontade.  
Sim, Pai, quanto mais a humanidade não Te reconhece, quanto mais as pessoas decidem não mais buscar conhecer os Teus caminhos e passarem a viver como se Tu não existisse, mais elas se machucam e adoecem, mais elas se tornam destrutivas em relação a si mesmas, aos outros e ao meio ambiente. Faz de nós testemunhas da luz, como João Batista, testemunhas da Tua presença, da Tua verdade e da Tua salvação, para que mais e mais pessoas se abram à verdadeira fé.
O mundo de hoje coloca sérios questionamentos para a nossa fé. Temos consciência de que não devemos fugir desses questionamentos. Que o Teu Espírito nos ajude a dar respostas sérias e profundas para todos aqueles que precisam reencontrar o caminho para Ti e para Teu Filho Jesus Cristo. Perdoa nossa superficialidade, nossa ignorância, nossa incoerência e nosso contratestemunho. Mesmo sendo falhos e imperfeitos, que a nossa presença cristã se torne cada vez mais alegria para os humildes, força para os fracos, cura para os que estão feridos, visão para os que não mais enxergam e libertação para os que se sentem presos.
Pai Santo, que todos nós possamos esperar por Teu Filho Jesus Cristo na alegria em trabalhar pela salvação da humanidade, aprofundando a cada dia a nossa vida de oração, agradecendo-Te por tudo que Tu permites que nos aconteça, pois confiamos nos Teus propósitos a nosso respeito. Enfim, que aprendamos a examinar tudo o que o mundo nos apresenta e escolher somente aquilo que é bom e que convém à nossa salvação, procurando nos afastar de toda espécie de maldade, injustiça e corrupção, pois é desse modo que estaremos devidamente preparados para a chegada de Vosso Filho Jesus. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

NIVELAR, REBAIXAR, ENDIREITAR, ALISAR

Missa do 2º. dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 40,1-5.9-11; 2Pedro 3,8-14; Marcos 1,1-8.
           
            Eis a voz de João Batista dirigida a todos nós, no início desta segunda semana do Advento: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!'' (Mc 1,3). Se, por um lado, sobretudo no Advento, nós clamamos: “Vem, Senhor, vem nos salvar; com teu povo vem caminhar!” (música clássica de advento), por outro lado, precisamos nos perguntar como está o caminho da nossa vida, a estrada do nosso coração; precisamos nos perguntar se Deus, de fato, tem tido acesso à nossa história pessoal e social; precisamos nos perguntar se Deus tem tido acesso à nossa alma, à nossa vida, àquilo que precisamos que seja curado, transformado e salvo por Ele.
             O fato é que ao longo do caminho da nossa vida vão se acumulando determinados entulhos, vão se abrindo certos buracos, alguns trechos vão ficando descuidados: são situações com as quais nós não quisemos lidar, achando que elas se resolveriam por si mesmas; são erros, mentiras e pecados que não quisemos nos dar ao trabalho de remover, e que aos poucos foram se acumulando e obstruindo o caminho. Mas o profeta nos recorda que isso tudo atrapalha e até mesmo impede a graça de Deus de agir em nós e nos transformar. Portanto, se realmente queremos que Deus tenha acesso a nós, precisamos colocar em ordem a nossa própria vida.
            Pensemos no quartinho de despejo da nossa casa. Nós costumamos colocar nele tudo aquilo para o qual não achamos lugar ou utilidade. Dessa forma, nele foi se acumulando uma porção de coisas que não tivemos tempo de consertar ou de arrumar. Por isso, o Senhor hoje nos convida a entrar neste quartinho que é a nossa consciência ou o nosso coração, e começar a colocar ordem nessa bagunça de pensamentos, sentimentos e atitudes que temos levado embolado, achando que, mesmo que não esteja bom, nem correto, nem justo, dá pra caminhar assim, dá pra gente sobreviver. Portanto, entrar em nosso quartinho de despejo significa visitar o nosso deserto interior...
            “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de nosso Deus” (Is 40,3). Aí estão duas coisas das quais frequentemente fugimos, dois “lugares” que evitamos visitar dentro de nós: o deserto, a solidão, isto é, o silêncio, a reflexão, o exame de consciência. E por que evitamos visitar o nosso deserto? Por que evitamos entrar na solidão do nosso coração? Porque nós nos tornamos estranhos para nós mesmos; porque nós não queremos nos dar ao trabalho de nos confrontar com aquilo que nos causa alguma dor ou algum sério questionamento. Na verdade, nós nos escondemos no barulho e na bagunça da correria do dia a dia porque essa é uma forma de não ouvirmos a voz de Deus na solidão da nossa consciência. No entanto, quantas vezes Deus permite que passemos por uma situação de deserto, de solidão, porque só ali podemos ouvi-Lo; porque somente a partir daquela situação podemos fazer uma revisão séria da nossa vida, do nosso comportamento?
            A palavra do Senhor hoje cobra de nós um mínimo de coerência: se desejamos (e, de fato, necessitamos!) que Deus venha nos salvar, precisamos desobstruir o caminho para Ele; precisamos colocar em ordem a nossa vida, nossos afetos, nossos relacionamentos, nossa forma de lidar com as coisas materiais; enfim, precisamos colocar em ordem nossa vida de oração, nossa espiritualidade. Esta é a condição para que Deus nos encontre e nos salve: “Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas; endireite-se o que é torto e alisem-se as asperezas” (Is 40,4). Nivelar os vales significa tapar os buracos que nós mesmos abrimos ou que permitimos que os outros ou as situações de pecado abrissem em nós. Rebaixar os montes e colinas significa “abaixar a bola” do nosso orgulho, descer do pedestal da nossa arrogância e reconhecer que a humildade é a única porta pela qual Deus pode entrar e agir em nós. Endireitar o que é torto significa desfazer-nos de atitudes corruptas, desonestas e mentirosas que podem até nos dar alguma vantagem afetiva ou financeira, mas que roubam a nossa salvação. Por fim, alisar as asperezas significa reconhecer e lidar de uma outra forma com a nossa agressividade, a nossa raiva, a nossa intolerância, que causam tanto estrago em nossa convivência com as pessoas**.
            Uma vez que “Advento” significa “esperar Aquele que vem”, mais uma vez a palavra de Deus vem nos alertar para o risco de não sabermos lidar com a “demora” do Senhor. Desta vez, é o apóstolo Pedro que nos faz esse alerta: “O Senhor não tarda a cumprir sua promessa, como pensam alguns, achando que demora. Ele está usando de paciência para convosco. Pois não deseja que alguém se perca; ao contrário, quer que todos venham a converter-se” (2Pd 3,9). Portanto, o que nós interpretamos como ausência de Deus ou indiferença d’Ele para com a humanidade, Pedro interpreta como paciência de Deus, dando a cada ser humano a oportunidade de rever a sua conduta e colocar em ordem a sua vida. Embora muitas pessoas deixem de esperar pelo Senhor, não mais cuidando do seu caminho de vida, o apóstolo insiste na razão da nossa esperança: “O que nós esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça. Caríssimos, vivendo nesta esperança, esforçai-vos para que ele vos encontre numa vida pura e sem mancha e em paz” (2Pd 3,13-14).
Que cada um de nós se esforce para manter em ordem o caminho da própria existência, de forma que Deus possa nos trazer a sua salvação. Olhando para as questões sociais, que cada um de nós também faça a sua parte para ajudar a nivelar os vales da pobreza, a qual voltou a atingir um nível gritante em nosso país*; rebaixar os montes e as colinas do individualismo e do consumismo, os quais nos mantém distantes e indiferentes aos que sofrem; endireitar o que é torto, não compactuando com e não reproduzindo nas nossas atitudes cotidianas a corrupção, a injustiça e a impunidade que dizemos detestar nos nossos maus políticos; por fim, alisar as asperezas, ajudando nossa sociedade e se desarmar, a abaixar o seu nível de agressividade, de violência e de intolerância. Desse modo, muito mais pessoas poderão ver a salvação que vem do nosso Deus (cf. Is 40,5).   
           
* Depois de uma década promissora, entre 2004 e 2014, quando 30 milhões de brasileiros deixaram a miséria, em 2015 a tendência começou a se inverter. As estatísticas mais recentes mostram que, no Brasil de hoje, há mais de 28 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, ou seja, gente que vive com menos de 3 reais por dia. Um estudo do Banco Mundial estima que, entre 2015 e 2017, o número de pobres terá crescido 4,7 milhões e o de extremamente pobres aumentará em 3 milhões. (Revista Veja, 01 de dezembro de 2017).

**O Brasil tem o maior número de mortes violentas no mundo, segundo estudo organizado pela entidade Small Arms Survey, divulgado no último dia 07.

                                                                Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

ELE AGE SOBRETUDO NA VIDA DAQUELES QUE NELE ESPERAM

Missa do 1º. dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 63,16b-17.19b; 64,2b-7; 1Coríntios 1,3-9; Marcos 13,33-37.

            Hoje iniciamos em nossa Igreja o tempo do advento. Advento significa “esperar Aquele que vem”. De fato, Jesus é chamado no livro do Apocalipse com esse nome: “Aquele que era, Aquele que é e Aquele que vem” (Ap 1,4.8). Além disso, ele termina o livro do Apocalipse afirmando: “Sim, venho muito em breve!”, e toda pessoa que deseja, espera e se prepara para a volta de Jesus responde: “Amém! Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22,20).
            Quando meditamos, há vinte dias atrás, sobre o Evangelho das dez virgens que esperavam pelo Noivo (cf. Mt 25,1-13), tomamos consciência de que a espera é sempre algo sofrido e desafiador para a nossa fé, pois a “demora” do Noivo acaba sendo entendida por nós como uma total ausência d’Ele ou um desinteresse d’Ele por nós e pelo que se passa conosco. E, como aconteceu com as dez virgens, diante dessa “demora” nós acabamos “cochilando e dormindo” (Mt 25,5), isto é, perdendo a consciência de que a meta final da nossa vida é o encontro com o Senhor Jesus que “virá uma segunda vez... para aqueles que o esperam para lhes dar a salvação” (Hb 9,28).
            Para despertar a nossa consciência, Jesus nos dá o exemplo do porteiro: ele fica vigiando! “Vigiai, portanto, porque não sabeis quando o dono da casa vem... Para que não aconteça que, vindo de repente, ele vos encontre dormindo. O que vos digo, digo a todos: Vigiai!” (Mc 13,35-37). Se “dormir” significa deixar de esperar pelo Senhor e pelo cumprimento das Suas promessas em nossa vida, passando a nos comportar de maneira injusta e contrária ao que Deus nos pede na Sua palavra, “vigiar” significa suportar a noite escura da aparente ausência de Deus, na certeza de que, embora não possamos vê-Lo (controlá-Lo), Ele está conosco, Sua providência está nos conduzindo e a Sua salvação se manifestará no momento certo em nosso favor. Esta era a certeza que animava o profeta Isaías e que deve nos animar também, neste tempo de advento: “Nunca se ouviu dizer nem chegou aos ouvidos de ninguém, jamais olhos viram que um Deus, exceto tu, tenha feito tanto pelos que nele esperam. Vens ao encontro de quem pratica a justiça com alegria, de quem se lembra de ti em teus caminhos” (Is 64,3-4).
            A ação de Deus é percebida na vida de quem n’Ele espera. Quando deixamos de esperar em Deus e por Deus, nós acabamos por fechar a porta da nossa vida à Sua salvação. Para que isso não aconteça, o profeta Isaías nos convida a esperar pelo Senhor praticando a justiça com alegria; com alegria, e não por mera obrigação ou por medo; esperar pelo Senhor lembrando-Se d’Ele em nosso caminho de vida, isto é, orientando o nosso comportamento por aquilo que Ele nos ensina na Sua palavra. E assim como o porteiro cuida da casa do seu Senhor, assim devemos cuidar para que não entre e não se instale em nós pensamentos, sentimentos e atitudes “estranhos”, nocivos e contrários à vontade de Deus a nosso respeito, contrários à esperança que devemos manter no Senhor para não sermos contaminados pelo desespero e pelo pessimismo tão presentes em nosso mundo.
            Não há dúvida de que muitos acontecimentos parecem ter a força de destruir ou de sepultar a nossa esperança. Mas aqui precisamos manter no coração as palavras do apóstolo Paulo: “Deus é fiel; por ele fostes chamados à comunhão com seu Filho, Jesus Cristo, Senhor nosso” (1Cor 1,9). Naquilo que depende de Deus, podemos ter a certeza de que Ele sempre faz tudo para que cada um de nós atinja a meta da sua vida, que é o encontro definitivo com Jesus Cristo e sua salvação. Mas há algo que depende somente de nós: vigiar, manter a nossa consciência orientada para o Evangelho, alimentar a nossa esperança e esperar pelo Senhor não de braços cruzados, de maneira passiva, mas ativa, assumindo a responsabilidade que nos foi confiada e servindo ao Senhor com alegria, porque a certeza de que “o Senhor vem” nos anima e nos encoraja diante das dificuldades e dos momentos de crise.
            Na liturgia deste início de advento, o profeta Isaías nos oferece uma oração muito profunda e significativa. A partir dela, podemos rezar agora por nós e pela humanidade...
1) “Senhor, tu és nosso Pai, nosso redentor; eterno é o teu nome” (Is 63,16). Aquele por Quem esperamos é o nosso “Redentor”, Aquele que nos resgata não só do abismo do nosso pecado pessoal bem como das situações de injustiça social; Ele é o “Eterno”, o Deus que não morre e cujas promessas não apenas não morrem, não apenas não são esquecidas, mas que se realizarão, sobretudo na vida daqueles que esperam em Deus.
2) “Como nos deixaste andar longe de teus caminhos e endureceste nossos corações para não termos o teu temor?” (Is 63,17). Deus respeita profundamente a nossa liberdade. Ainda que, como Pai, Ele sofra ao nos ver trilhando caminhos de destruição, Deus respeita a nossa liberdade de escolha e aposta em nossa capacidade de autocrítica e de arrependimento sincero. Ele confia que a dor e o sofrimento que surgem em nossa vida por causa das nossas atitudes erradas podem nos fazer “acordar”, retomar o bom senso e reconhecer: “nós pecamos” (Is 64,4).
3) “Nós pecamos” (Is 64,4). É muito importante reconhecer quando e onde pecamos. Ao invés de ficarmos reclamando de determinadas situações que nos causam sofrimento, é muito mais importante reconhecer qual tem sido a nossa parcela de responsabilidade (nosso pecado) para que tais situações surgissem em nossa vida pessoal e social.
4) “É nos caminhos de outrora que seremos salvos” (Is 64,4). Não precisamos ter vergonha de voltar, de retroceder, de recuperar valores e atitudes que deixamos de lado porque o mundo passou a considerar isso ultrapassado e sem sentido. O caminho da nossa cura e da salvação da humanidade passa pela recuperação de valores e atitudes que deixaram de ser cultivados e cuidados por nós, em nome da “modernidade”, da “novidade” ou de uma aparente, superficial e momentânea “felicidade”...
5) “Todos nós nos tornamos imundície, e todas as nossas boas obras são como um pano sujo” (Is 64,5). Sobretudo nós, povo brasileiro, nos habituamos com a sujeira da corrupção e da impunidade, incorporando em nossa consciência atitudes cotidianas de desonestidade e mentira, sobretudo na forma como lidamos com o dinheiro... Somos uma geração preocupada por demais com a estética, mas descuidados da ética. Cuidamos da nossa imagem, mas descuidamos do nosso caráter. As pessoas que nos veem externamente, podem até admirar a beleza da nossa aparência, (dos nossos paramentos também!), mas aos olhos de Deus, que vê o nosso coração, somos apenas um “pano sujo”...  
6) “Murchamos todos como folhas, e nossas maldades empurram-nos como o vento” (Is 64,5). Murchamos porque não queremos nos dar ao trabalho de viver uma espiritualidade profunda, em comunhão com Aquele que é nossa única Fonte de água viva (cf. Jr 2,13). Nossas raízes não alcançam essa Fonte porque permitimos nos tornar pessoas superficiais, alimentadas por uma fé superficial, sem profundidade. E a consequência disso é que hoje nos sentimos empurrados pela vida, jogamos de um lado para outro pelos acontecimentos, como uma folha seca é jogada de um lado para outro pelo vento. Bastaria voltar a direcionar as nossas raízes para Deus; bastaria buscá-Lo de maneira mais profunda, e as coisas começariam a mudar em nós, em nossa Igreja, em nosso mundo...
7) “Não há quem invoque teu nome, quem se levante para encontrar-se contigo, escondeste de nós tua face e nos entregaste à mercê da nossa maldade” (Is 64,7). Muitos abandonaram sua vida de oração, ou a reduziram a um rito morto, sem convicção e sem alegria, porque se perguntam: ‘Para que invocar um Deus que parece querer manter-Se tão ausente da minha vida e da vida da humanidade? Para que esforçar-me em buscar o ‘Deus escondido’ (cf. Is 45,15), o Deus que, justamente por ser Deus, não Se deixa controlar por mim e nem aceita Se sujeitar aos meus caprichos ou pressionar por minhas urgências? Para que tentar encontrar o Deus que se esconde dentro de uma realidade marcada pela mistura entre o bem e o mal, a verdade e a mentira, a justiça e a injustiça? Para que continuar a ter fé no Deus que não elimina do ser humano a possibilidade de errar, de se enganar, de pecar e de fazer o mal a si e aos outros?’
8) “Assim mesmo, Senhor, tu és nosso pai, nós somos barro; tu, nosso oleiro, e nós todos, obra de tuas mãos” (Is 64,7). Assim mesmo, apesar de tudo, apesar das nossas falhas individuais, comunitárias e sociais, neste início de advento nós elevamos uma súplica Àquele que é o nosso Pai, o nosso Oleiro. Nós reconhecemos que somos apenas barro, e se Deus, o nosso Oleiro não nos tomar em Suas mãos e nos remodelar, continuaremos a ser “barro”, isto é, uma pessoa inacabada, um vaso deformado, trincado, partido, feito em pedaços. Se Deus é o nosso Oleiro e se nós somos barro, cabe a cada um de nós colocar-se como barro nas mãos desse Oleiro.
Compreender-se como barro significa compreender-se como uma pessoa com potencial para ser mudada, trabalhada, melhorada, curada, transformada. Quando mais nos confiarmos diariamente às mãos de Deus, o nosso Oleiro, mais Ele pode fazer de nós um vaso novo, uma família nova, uma Igreja nova, uma sociedade nova, um país novo, um mundo novo. Confiemo-nos às mãos do Senhor e deixemos Sua palavra orientar a nossa consciência e as nossas atitudes, certos de que nunca se ouviu dizer nem chegou aos ouvidos de ninguém, jamais olhos viram que um Deus, exceto o nosso Oleiro, tenha feito tanto pelos que n’Ele esperam, pelos que Se confiam verdadeiramente às Suas mãos!          

Todo teu (Eros Biondini) 

                                                                   Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

DEUS RESTABELECERÁ A JUSTIÇA NA TERRA

Missa de Cristo Rei. Palavra de Deus: Ezequiel 34,11-12.15-17; 1Coríntios 15,20-26.28; Mateus 25,31-46. 

            Duas afirmações bíblicas nos ajudam a compreender o sentido da festa de hoje, na qual celebramos Cristo Rei. A primeira é de Deus, no Antigo Testamento, ao afirmar: “Quanto a vós, minhas ovelhas, (...) eu farei justiça entre uma ovelha e outra” (Ez 34,17). A segunda é do próprio Cristo, no Novo Testamento, ao afirmar: “Quando o Filho do Homem vier em sua glória..., todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros” (Mt 25,31-32). “Fazer justiça” e “separar uns dos outros” significa “julgar”, e quando Deus julga, Ele restabelece a justiça na terra.
            Para nós, brasileiros, que vivemos num país marcado por injustiça e impunidade, é confortador saber que a palavra final sobre a história da humanidade e sobre a consciência de cada ser humano virá do Filho, Jesus Cristo, a quem o Pai confiou o julgamento sobre todo ser humano, um julgamento que significa o confronto com a verdade que sempre se propôs como verdade que nos liberta. E esta cena do julgamento final, descrita no Evangelho, é confirmada pelo apóstolo Paulo, ao declarar que “todos nós compareceremos perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante sua vida terrena, seja para o bem, seja para o mal” (2Cor 5,10). E ainda: “Todos nós compareceremos perante o tribunal de Deus... Assim, cada um de nós prestará contas a Deus de si próprio” (Rm 14,10.12).
            Talvez essas afirmações bíblicas caiam como uma imposição intolerável da parte de Deus para sobre aqueles que escolheram não crer n’Ele ou não seguir religião nenhuma. No entanto, vale a pena perceber como Jesus nos surpreende neste Evangelho, ao revelar que o julgamento de cada ser humano não terá como critério a sua conduta cristã ou religiosa, mas a sua conduta humana! Jesus, na sua função de Juiz, não questionará o ser humano se ele teve fé, se praticou alguma religião ou se foi fiel à doutrina da sua igreja; Ele questionará todo e qualquer ser humano como ele se comportou diante da necessidade do seu semelhante! Isso é surpreendente e tira de todos nós, que seguimos alguma igreja ou religião, a falsa segurança ou a presunção de que ser uma pessoa religiosa garante por si só a nossa participação no Reino de Deus.
            A separação, no julgamento final, entre os justos e os injustos, entre os “benditos” e os “malditos”, deixa claro que só existem duas atitudes possíveis diante das pessoas que sofrem ou passam por alguma necessidade: ou nós nos compadecemos e ajudamos essas pessoas, ou nós nos desinteressamos pelo que se passa com elas e as abandonamos. Não há neutralidade, e a nossa postura agora diante delas vai refletir no momento do nosso encontro definitivo com Deus, sabendo que o critério para entrar no Reino não será o que cada um de nós fez ou deixou de fazer “para” Deus, mas o que um de nós fez ou deixou de fazer “para” os nossos semelhantes que cruzaram o nosso caminho e que clamaram por nossa presença solidária e compassiva.
            O pano de fundo do julgamento final é o “Reino de Deus”. Segundo os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, o Reino de Deus foi o centro da pregação de Jesus. Já o evangelista João traduziu o Reino de Deus pela expressão “vida eterna”. Portanto, perder o Reino, perder a vida eterna, significa perder tudo; significa falir como ser humano e afastar-se definitivamente da meta que Deus desejou para cada ser humano: a vida plena. Nas palavras do Pe. J.A. Pagola, “o Reino do Pai é a fraternidade entre Seus filhos; é a realização de cada promessa de Deus e de cada desejo do homem; é o fim de toda e qualquer escravidão, egoísmo, tristeza, guerra, inquietação, maldade, dureza etc”.
            Na oração do Pai nosso, Jesus nos ensinou a pedir: “Venha a nós o vosso Reino!” (Mt 6,10). E aqui é importante lembrar que o Reino de Deus não é um lugar, mas uma situação de vida, conforme nos ensina o apóstolo Pedro: “O que nós esperamos, conforme a sua promessa, são novos céus e numa nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). Desejar o Reino é desejar a justiça de Deus que cura, restaura e corrige tudo aquilo que as injustiças dos homens causaram e têm causado de dor, de sofrimento e morte em nosso mundo. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que Jesus também nos convidou a “buscar, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33), e todas as outras coisas nos serão dadas em acréscimo.
            Preocupa-nos, hoje, o nosso descrédito cada vez maior em relação à justiça em nosso país, e a consequente apatia, tolerância e indiferença para com as injustiças e a impunidade. Mas também é preocupante o fato de que muitos de nós estejamos nos corrompendo em nossa consciência e nos permitindo praticar atitudes injustas, apostando na impunidade. Uma pessoa que deixou se corromper deixou de acreditar no céu, deixou de acreditar no julgamento final, deixou de acreditar no Reino de Deus, na vida eterna. Essa verdade se aplica especialmente aos líderes religiosos: todo líder religioso que passou a se corromper, desviando para sua conta particular um dinheiro que foi custosamente doado por seus fiéis, faz isso porque não crê no céu; esqueceu-se – e faz questão de não lembrar – de que um dia ouvirá do Justo Juiz: “Presta contas da tua administração” (Lc 16,2). A Palavra do Senhor hoje é muito clara: Deus fará justiça entre um ser humano e outro. Nada ficará impune, porque tudo tem consequências. Por não acreditarem no céu, as pessoas corruptas favorecem o inferno aqui na terra, o qual se concretiza por meio das inúmeras injustiças que causam sofrimento a muitas pessoas. E pessoas que favorecem o inferno aqui na terra o receberão com consequência natural dos seus atos, conforme está escrito: “O que o homem semear, isso colherá” (Gl 5,17).
             Ao terminar esta reflexão sobre Cristo Rei, lembremos que Deus escolheu a figura do rei para expressar o seu cuidado para com seu povo, um cuidado carinhosamente descrito pelo profeta Ezequiel nestas palavras: “Vou cuidar de minhas ovelhas e vou resgatá-las de todos os lugares em que foram dispersadas num dia de nuvens e escuridão. Vou procurar a ovelha perdida, reconduzir a extraviada, enfaixar a da perna quebrada, fortalecer a doente, e vigiar a ovelha gorda e forte. Vou apascentá-las conforme o direito” (Ez 34,12.16). Ao proclamarmos Jesus Cristo como Rei do Universo, nós professamos a fé no Pai que confiou ao seu Filho o poder de redimir e salvar todo ser humano, o poder de restaurar todas as coisas, de reconciliar tudo o que está no céu e sobre a terra, realizando a paz, restabelecendo a justiça e concedendo-lhes a vida eterna.
           
            Oração: Senhor Deus, eu confio na Tua justiça e no Teu julgamento sobre o mundo e sobre cada ser humano. Eu acredito do Teu Reino, confiando e esperando na Tua promessa de criar novos céus e uma nova terra onde habitará a justiça. Venha a nós o Teu Reino! Estende sobre todo ser humano o Teu cuidado de Pai, especialmente sobre as pessoas que ainda estão sob o domínio do mal e de todo tipo de injustiça e sofrimento. Restaura todas as coisas em Teu Filho Jesus Cristo, Rei do Universo! Amém!
            Senhor Jesus Cristo, quero submeter-me à Tua autoridade, ao Teu poder, ao Teu senhorio. Livra-me de perder o medo de perder o céu. Quero estar consciente do meu julgamento diante de Ti. Quero reconhecer-Te na pessoa do necessitado. Quero passar por este mundo compadecendo-me e ajudando aqueles que precisam, jamais assumindo a atitude de me desinteressar do sofrimento deles e de abandoná-los a si mesmos. Que a Tua palavra continue a orientar a minha consciência diariamente, para que eu possa estar confiante, diante de Ti, no momento do meu julgamento. Podes reinar, Senhor Jesus! O Teu poder Teu povo sentirá! Reina, Senhor, neste lugar! Visita cada irmão, ó meu Senhor, dá-lhe paz interior e razões pra Te louvar. Desfaz toda tristeza, incerteza e desamor. Glorifica o Teu nome, ó meu Senhor!  (Podes reinar).       
             

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

NÃO IGNORE A FORÇA QUE HÁ DENTRO DE VOCÊ

Missa do 33º. dom. comum. Palavra de Deus: Provérbios 31,10-13.19-20.30-31; 1Tessalonicenses 5,1-6; Mateus 25,14-30.

            Conta-se que um homem, ao passar próximo de um circo, viu um elefante do lado de fora, preso por uma frágil corda amarrada em uma de suas patas a uma pequena estaca. Bastava para aquele elefante fazer um pouco de força, romper a corda e caminhar livremente. Mas, por ele ter sido criado assim pelo dono do circo, sempre amarrado a uma corda, desconhecia a sua própria força. Assim são muitas pessoas: elas se permitem passar a vida toda amarradas a uma situação de injustiça, de sofrimento ou de escravidão justamente porque desconhecem a sua própria força. E Jesus está aqui, no Evangelho de hoje, para devolver a cada um de nós a consciência da nossa força, da nossa capacidade, dos nossos talentos...
            Quando observamos as pessoas, percebemos que entre elas existem algumas que são fortes e outras que são fracas; enquanto algumas decidem lutar, outras escolhem se entregar; enquanto algumas tomam atitude diante daquilo que lhes acontece, outras escolhem sofrer passivamente diante dos acontecimentos. Mas essa diferença não é uma questão genética. Na verdade, ninguém nasce forte e capaz, assim como ninguém nasce fraco e incapaz. E embora todo ser humano seja um pouco fruto do ambiente onde nasceu e foi criado, ele sempre carrega consigo a liberdade de escolher o que fazer com aquilo que recebe do ambiente onde se encontra. Portanto, a raiz principal que “explica” a força ou a fraqueza da pessoa está dentro dela, e não fora.
            Jesus quer nos tornar conscientes de que toda pessoa nasceu potencialmente capaz de realizar-se, capaz de fazer o bem a si mesma, aos outros, à humanidade. Cada um de nós precisa tornar-se consciente dos talentos que carrega consigo, talentos que nos foram dados por Deus ao nos criar. Nós não podemos passar pela vida ignorando quem somos, ignorando a nossa capacidade de força, de superação, de realização. Há uma “energia” que pede para crescer em nós, que pede para se expandir e se desenvolver. E, da mesma forma como acontece quando nos exercitamos fisicamente, quanto mais exercitamos nossos talentos, nossas capacidades, mais elas crescem e se fortalecem dentro de nós. Mas o contrário também é verdade: quanto mais nos acomodamos, quanto mais nos deixamos contaminar pela preguiça e pelo comodismo, mais nos atrofiamos física, emocional e espiritualmente.
            Todos nós já nos demos conta de que existe hoje uma espécie de “corpo mole” generalizado. Há uma procura pela acomodação, pela lei do menor esforço. Há uma preguiça, uma má vontade ou uma fraca vontade em crescer, em se desenvolver. Há um nivelamento por baixo. Interessante que o Evangelho se refere ao servo que escolheu enterrar o seu talento, ao invés de fazê-lo crescer, com essas palavras: “Servo mau e preguiçoso” (Mt 25,26). Não nos surpreende aqui a menção da preguiça, mas nos surpreende a menção da maldade! No fundo, Jesus está nos dizendo que quando nós não fazemos o bem de que somos capazes de fazer, acabamos indiretamente fazendo o mal! Quem não faz o bem que tem condições de fazer, acaba por dar ao espaço ao mal para que ele cresça em si e à sua volta. No fundo, o mal é como mato: basta que você não cultive o terreno, deixando de semear diariamente o bem, e o mal começa a crescer e tomar conta do espaço que você deixou de cultivar...
            “(...) escondi teu talento no chão” (Mt 25,25). Por que nós às vezes decidimos não mais crescer, não mais lutar, não mais nos superar? Jesus nos alerta aqui para que tenhamos consciência de que nós podemos nos tornar nosso próprio inimigo, uma espécie de “sabotador de si mesmo”. Temos capacidade, temos força, temos inteligência, temos vontade, mas escolhemos ignorar ou mesmo enterrar tudo isso, e passar a viver na apatia, no desânimo, na passividade, no conformismo, quem sabe esperando receber atenção ou compaixão dos outros. E quando decidimos seguir pela vida desse jeito, o resultado é trágico: “Tirai dele o talento e dai-o àquele que tem dez! Porque a todo aquele que tem será dado mais, e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado” (Mt 25,28-29). Isso significa que quando deixamos de trabalhar pelo nosso crescimento, nós começamos a nos atrofiar como pessoa. A vida é algo dinâmico e não estático. Além disso, ela, a vida, costuma devolver aquilo que lhe damos: quanto mais mesquinhos somos com ela, mais ela é mesquinha conosco; quanto mais somos generosos com ela, mais ela é generosa conosco.
            Enfim, o Evangelho de hoje traz consigo uma verdade muito importante para o nosso desenvolvimento humano e espiritual: “Mover os pés na direção de um ideal não é papel da inteligência, mas da vontade” (Pe. Wellistony C. Viana). Jesus está se colocando em diálogo com a nossa vontade. Só ela pode nos desenterrar; só ela pode desenterrar o melhor que há dentro de nós. Por isso, quando reclamamos de uma determinada situação, quando seguimos pela vida lamentando o que nos acontece, ao invés de nos posicionar ativamente diante daquilo por meio dos talentos, das capacidades que Deus nos deu, precisamos ter a coragem de fazer uma autocrítica e perceber que o problema pode estar simplesmente na nossa falta de vontade. Há um potencial enorme guardado dentro de nós, mas nós nos acostumamos a utilizar apenas o mínimo dele. Como aquele elefante, nós nos acostumamos a viver a vida amarrados a uma estaca, lamentando o nosso destino, quando poderíamos fazer muito mais por nós mesmos, pelos outros, por nossa Igreja, pela humanidade, pelo Reino.
            Jesus veio ajudar a desenterrar o que cada um de nós tem de melhor dentro de si. Esta é uma tarefa que nós também podemos assumir junto das pessoas com as quais convivemos, ajudando-as a reconhecerem seus talentos, suas capacidades e a despertarem sua força de vontade, seu desejo de superação. Sobretudo, que cada um possa desconfiar das razões que costuma apresentar para justificar sua posição de passividade diante da vida, deixando de se esconder atrás de desculpas que não colam, de motivos que não são de fato motivos, e deixando de culpar os outros ou o meio social por sua vida estar num buraco, quando, na verdade, falta um diálogo sincero com a nossa própria vontade, para que ela assuma o seu lugar e ative os talentos que estão adormecidos dentro de nós.   
             
P.S. A pedido do Papa Francisco, celebramos hoje, 19 de novembro, o Dia Mundial dos Pobres. “Não pensemos nos pobres apenas como destinatários duma boa obra de voluntariado, que se pratica uma vez por semana, ou, menos ainda, de gestos improvisados de boa vontade para pôr a consciência em paz. Estas experiências, embora válidas e úteis a fim de sensibilizar para as necessidades de tantos irmãos e para as injustiças que frequentemente são a sua causa, deveriam abrir a um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a uma partilha que se torne estilo de vida... Se realmente queremos encontrar Cristo, é preciso que toquemos o seu corpo no corpo chagado dos pobres, como resposta à comunhão sacramental recebida na Eucaristia. O Corpo de Cristo, partido na sagrada liturgia, deixa-se encontrar pela caridade partilhada no rosto e na pessoa dos irmãos e irmãs mais frágeis.
Portanto somos chamados a estender a mão aos pobres, a encontrá-los, fixá-los nos olhos, abraçá-los, para lhes fazer sentir o calor do amor que rompe o círculo da solidão. A sua mão estendida para nós é também um convite a sairmos das nossas certezas e comodidades e a reconhecermos o valor que a pobreza encerra em si mesma. Este Dia pretende estimular, em primeiro lugar, os crentes, para que reajam à cultura do descarte e do desperdício, assumindo a cultura do encontro. Ao mesmo tempo, o convite é dirigido a todos, independentemente da sua pertença religiosa, para que se abram à partilha com os pobres em todas as formas de solidariedade, como sinal concreto de fraternidade. Deus criou o céu e a terra para todos; foram os homens que, infelizmente, ergueram fronteiras, muros e recintos, traindo o dom originário destinado à humanidade sem qualquer exclusão... Os pobres não são um problema: são um recurso de que lançar mão para acolher e viver a essência do Evangelho” (Papa Francisco).



 Pe. Paulo Cezar Mazzi