quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

FILHOS COM A CONSCIÊNCIA VOLTADA PARA DEUS


Missa da Apresentação do Senhor. Malaquias 3,1-4; Hebreus 2,14-18; Lucas 2,22-32.

            Com quarenta dias de vida, “Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22). Muito diferente de Maria e José, muitos pais hoje estão optando por não levarem o filho recém-nascido à Igreja, não vinculá-lo a nenhuma igreja ou religião. Eles acreditam que é melhor o filho crescer e fazer suas próprias escolhas, do que ser influenciado pela escolha religiosa dos próprios pais. Por outro lado, as famílias mais pobres, atingidas por inúmeros problemas sociais, raramente se sentem motivadas a levarem o filho à Igreja porque essa mesma Igreja vive distante da realidade da família. Apesar dos esforços do Papa Francisco em levar a presença da Igreja para o meio das periferias existenciais, muitos ministros dessa mesma Igreja se mantém distantes dessas periferias, e quando, porventura, uma família carente busca o sacramento do batismo para o filho, se depara com a exigência de leis e de normas em relação às quais naturalmente não se enquadra, o que acaba por bloquear o processo de aproximação família-Igreja.
            A apresentação de Jesus no templo não é o seu batismo. Ela é decorrente da consciência religiosa de seus pais: o filho é um dom de Deus, e como tal, precisa viver na comunhão com a Fonte desse dom desde cedo, desde os primeiros dias de sua existência. Todo filho é um ser humano único, cuja existência guarda uma palavra única de Deus para o mundo. Apresentar o filho a Deus significa colocá-lo em contato com Aquele que é a Palavra que pronunciou sua existência, Palavra que deseja iluminar o seu caminho e revelar o sentido da sua vida. Da mesma forma como a palavra “filho” remete para a palavra “pai”, a existência de cada um de nós, seres humanos, nos remete para o Pai que nos chamou à vida em seu Filho Jesus Cristo, o Pai que deseja habitar em nós por meio do Espírito Santo, o Pai que deseja nos ver inseridos na Sua família chamada Igreja.
            A atitude de Maria e de José de consagrarem Jesus a Deus desde seus primeiros dias nos lembra uma constatação feita pelo psiquiatra Içami Tiba, de que pais que levam seus filhos a uma igreja dificilmente terão que visitá-los um dia na prisão. Em outras palavras, filhos que crescem não apenas fisicamente, mas também espiritualmente; filhos que desde pequenos desenvolvem sua consciência religiosa, acabam por compreenderem a si mesmos e aos outros de uma forma mais humana, tornando-se pessoas mais tolerantes, mais confiantes e mais capazes de amor.
            Certamente muitas pessoas discordam da constatação de Içami Tiba, pois nas igrejas e nas religiões nós também temos pessoas doentes, pessoas que desenvolveram um olhar doentio sobre si mesmas e sobre a vida. No entanto, é uma constatação comprovável que ter uma religião torna o ser humano melhor. Adolescentes e jovens que praticam uma religião têm uma outra forma de lidar com seus problemas e de enfrentar  suas dificuldades. São menos propensos às drogas e ao suicídio.
            Mas, olhando agora para nós mesmos, convém nos perguntar o que a apresentação de Jesus tem a dizer para a nossa vivência cristã. Na medida em que vamos crescendo, precisamos descer do colo dos nossos pais e começar a caminhar na vida com nossos próprios pés, a parar em pé sobre nossas próprias pernas. Portanto, a fé nos pede para nos apresentar a Deus movidos não pela tradição dos nossos pais, mas pelo nosso próprio desejo de sermos de Deus, de nos consagramos livre e conscientemente a Ele. Trata-se de nos deixarmos tocar por Ele como a prata é tocada pelo fogo.     
            Essa é a imagem de Deus utilizada pelo profeta Malaquias: Ele é como o fogo que derrete e purifica a prata. Nossa prática religiosa não pode ser vivida como mera busca de proteção divina, ou como respaldo divino para os nossos planos humanos. Trata-se de permitir que Deus derreta aquilo que em nós é duro e que Ele purifique aquilo que em nós é sujo ou está contaminado. Da mesma forma que o purificador de ouro e de prata os expõe cuidadosamente ao fogo, ficando perto e cuidando para que eles não sejam destruídos, assim Deus permite sermos expostos ao fogo de certas tribulações até derretermos, até deixarmos de ser duros, teimosos, fechados em nosso próprio ego, até nos abrirmos àquilo que a vida quer nos ensinar. Somente quando o purificador de ouro e de prata enxerga seu rosto refletido neles é que sabe que é o momento de retirá-los do fogo. Eis, portanto, a razão de ser da nossa vida espiritual: que possamos refletir em nossas atitudes o jeito de Deus ser, o jeito d’Ele amar as pessoas e cuidar da vida que está no mundo.  
            Por fim, a carta aos Hebreus nos fala da nossa carne e do nosso sangue, do nosso ser perecível e mortal. Ao encarnar-se no seio de Maria, Jesus assumiu a nossa carne e o nosso sangue. Com isso, ele quis nos curar a partir de dentro; ele quis nos livrar dos nossos medos, das nossas prisões, dos nossos enganos. Jesus não veio nos tornar fortes, mas nos socorrer em nossa fraqueza; ele não veio nos tornar imunes à tentação, mas nos ensinar a vencer o tentador; ele não veio eliminar nossas carências, mas ensinar-nos a não sermos escravos delas; ele não veio nos impedir de morrer, mas nos ensinar a não viver a vida a partir do medo da morte. Jesus apresentou a Deus todo o nosso humano, nossa miséria, nosso nada, para ser preenchido, transformado, tornado capaz de transcendência.                
             Uma última palavra. Enquanto o fiel israelita se perguntava em sua consciência: “Com que me apresentarei ao Senhor, e me inclinarei diante do Deus altíssimo?” (Mq 6,6), o profeta Miqueias respondeu: “Já te foi dito, ó homem, o que é bom e o que Deus exige de ti: nada mais do que praticar a justiça, amar a verdade e caminhar humildemente com o teu Deus” (Mq 6,8).

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

domingo, 26 de janeiro de 2020

JESUS NÃO É BOLSONARISTA: PASTORES DISTORCEM A BÍBLIA PARA APOIAR BOLSONARO


Ao interpretarem a Bíblia a bel prazer, religiosos passam a usar Jesus e o evangelho como bandeiras bolsonaristas.

Um dos maiores desafios que se impõem aos teólogos e pastores do cristianismo evangélico é enfrentar no campo das ideias as mirabolantes distorções que afetam a doutrina e a prática cristã. Antes, essa tarefa envolvia combater heresias (nome dado pela teologia aos ensinos heterodoxos) que afetavam apenas o meio evangélico, com distorções já graves das sagradas escrituras. Hoje, as consequências do não enfrentamento contínuo desses ensinos ultrapassam os arraiais evangélicos e causam danos a toda população, independente de fé ou ausência de fé.
Destaco como uma das maiores perversões do evangelho a teologia da prosperidade. Essa teologia foi a semente que se transformou em uma grande árvore, produzindo toda sorte de frutos podres. Ela nega a realidade do sofrimento humano como consequência das condições naturais, contrariando o que Jesus diz em Mateus 5:45 quando assevera que “…Ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos”. Nega que a desigualdade é resultado da ganância dos homens e de perversões de governos que nada fazem para diminuir o abismo das diferenças sociais na população.
Esse ensino raso defende que o pobre é pobre por sua falta de fé, que o doente é doente também por sua falta de fé. A vítima se transforma no algoz, sem nenhuma reflexão de conjuntura ou contexto em que estes problemas ocorrem. Acreditam que a solução é individual e que responsabilizar a falta de condições iguais é “vitimismo”.
Essa teologia ressoa de maneira retumbante nas palavras do atual presidente quando diz que não existe fome no Brasie, por isso, repudia políticas compensatórias que diminuam desigualdades sociais históricas, como as dos negros, por exemplo. Para Bolsonaro e outros adeptos dessa teologia, a concentração de riqueza não tem relação com a pobreza. Ao contrário, os ricos são “abençoados” por Deus e devem, por isso, ter a atenção do estado com subsídios e redução de impostos.
Aliás, o acúmulo de bens deve ser algo a ser perseguido como resultado das “bênçãos” de Deus. Tudo isso aplaudido por cristãos que negam o evangelho de Cristo por puro individualismo e egoísmo. O mesmo evangelho no qual Jesus diz que “a vida do homem não consiste na abundância de bens que possui” (Lucas 12:15) e que não devemos acumular tesouros na terra (Mateus 6:19).
Jesus contrariou esse individualismo claramente. Um dos exemplos está registrado nos evangelhos. Ele ensinou a multidões o dia todo, e a multidão (mais de 10 mil pessoas) estava faminta. Os discípulos foram a Jesus com uma solução individualista: “Manda embora o povo para que possa ir aos campos e povoados vizinhos comprar algo para comer” (Marcos 6:36), ou seja, que se virem cada um por si. Jesus, querendo mostrar o verdadeiro teor do evangelho, disse aos seus discípulos para que eles dessem de comer ao povo (v. 37). Eles ficaram horrorizados com a proposta.
Jesus, então, perguntou quantos pães e quantos peixes havia para dividir com a multidão. Com apenas cinco pães e dois peixes em mãos, ordena que a multidão se sente sobre a grama verde em pequenos grupos (v. 39). De maneira coletiva e jamais individual, o milagre aconteceu e todos se fartaram, sobrando 12 cestos cheios, um para cada discípulo que duvidava dessa estratégia (v. 42 e 43). Jesus nos ensina que parte da felicidade pessoal está em saciar a necessidade do próximo, algo impensável em uma teologia individualista. Mas, como eu disse, essa teologia gerou frutos, e esses frutos se espalharam de maneira rápida em nosso país, atingindo a maioria dos grupos evangélicos.
O tsunami herético neopentecostal foi de tão grande intensidade que conseguiu atingir líderes de igrejas históricas, que orientaram, em carta pública, que os crentes votassem em candidatos que tenham “uma visão cristã de mundo”, “refreiem a representação de ideologias anticristãs em nossos parlamentos” e ainda “repudiem qualquer ideologia que se oponha à mensagem e aos ensinamentos da Bíblia”, reavivando a sepultada (acreditava-se assim) heresia do teonomismo, que é a crença de que a Bíblia, incluindo as leis judiciais do antigo testamento, devem ser cumpridas por toda a sociedade, independente de sua fé. Essa heresia pressupõe que tenho de votar em quem defende a visão cristã de mundo.
O mais interessante é que os que assinam a carta se intitulam “liberais” no sentido político da palavra, o que é um contrassenso porque o liberalismo rechaça que princípios religiosos se misturem com política, além de respeitar toda e qualquer crença e lutar por sua existência. Esses pastores, supostos liberais, advogam que os princípios cristãos devem ser seguidos por toda a sociedade de maneira impositiva, atuando nas três esferas de poder a fim de que sua visão particular seja hegemônica e suplante as demais.

LUTA ANTIGA

Lembro-me que no fim da década de 1980, o Christian Research Institute, dos Estados Unidos, abriu uma representação no Brasil: o Instituto Cristão de Pesquisas (ICP). Sua finalidade era combater essas heresias, portanto, criou-se um cadastro de seitas e amplo material apologético a fim de combatê-las uma a uma. O instituto fez um grande trabalho para o público interno das igrejas, denunciando grupos que se intitulavam de fé cristã, mas que tinham práticas totalmente contrárias ao cristianismo.
Destaco um exemplo do trabalho apologético do ICP, que foi o combate ao grupo religioso denominado Testemunhas de Jeová, denunciando seu ensino de proibição de doação de sangue, que é resultado de uma interpretação tosca de versículos isolados da Bíblia. O ICP publicou amplo material, divulgado em todos os meios, inclusive em jornais e revistas, mostrando claramente que essa prática não tinha a ver com o cristianismo e que poderia provocar muitas mortes, inclusive de crianças.
Infelizmente, a defesa teológica do ICP e de outros institutos não foi forte o bastante para combater os primeiros ensinos importados dos EUA e trazidos pelas incipientes igrejas neopentecostais. Enquanto esses erros afetavam apenas o meio evangélico, o dano era controlado. Mas agora as consequências dessas doutrinas transpuseram a barreira evangélica e passaram a atingir a população como um todo em uma onda de anacronismo cultural jamais vista no Brasil.
A teologia do domínio, derivação mais simples do teonomismo, se baseia no pressuposto de que o domínio da terra foi usurpado do homem pelo diabo desde o pecado de Adão. Assim, é tarefa da igreja, dos cristãos, tomarem esse domínio de volta. A estratégia para essa tomada é ter domínio em áreas de influência da sociedade (política, educação, cultura, judiciário, etc), a fim de estabelecer o domínio de Jesus na terra.
Um exemplo inequívoco dessa estratégia de poder foi a criação da Anajure, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos, que tem como um de seus objetivos defender na sociedade os valores do cristianismo, discutindo os projetos de lei em tramitação no congresso. Recentemente, essa associação conseguiu o compromisso de Augusto Aras, promotor indicado por Bolsonaro e aprovado pelo Senado para ser o procurador-geral da República, com sua carta de princípios que incluem o compromisso com a pauta moral e conservadora cristã da associação.
O objetivo é claro: “cristianizar” a sociedade por meio da influência nos órgãos públicos, hoje à mercê de ingerências religiosas por orientação de Bolsonaro, que já disse que seu próximo indicado ao STF será alguém “terrivelmente evangélico”.

O ‘EUVANGELHO’

A gravidade da situação é tamanha que o evangelho de Jesus foi totalmente subvertido e, em seu lugar, foi criado um evangelho apócrifo que chamo de Euvangelho, um neologismo que aplico para classificar um ensino em que o individualismo, o egoísmo e a vitória pessoal estão acima do bem- estar coletivo e do respeito aos mais simples predicados de humanidade. Tudo isso usando a Bíblia como base, com uma interpretação bastante oportunista, malversada e descontextualizada.
Essa subversão do evangelho simples de Cristo é substanciada na ideia de que devemos escolher um presidente por suas propostas que beneficiem o meu grupo particular e não o conjunto da população. Dessa forma, os evangélicos acabam sendo orientados a votar em quem irá defender suas pautas religiosas e morais, sem observar que essa defesa em nada irá contribuir para diminuir o sofrimento dos mais de 43 milhões de brasileiros que vivem na pobreza. É mais importante ver a igreja ampliando seu domínio sobre o país do que vê-la apoiando projetos que visam diminuir a fome e a miséria.
Lembro de uma situação que ilustra bem esse “euvangelho” como prática nas igrejas. Eu estava pastoreando uma igreja em Balneário Camboriú, norte de Santa Catarina. Um jovem evangélico, aproveitando a grande quantidade de evangélicos na cidade, se dispôs a disputar a prefeitura. Nessa época, eu fazia um trabalho de assistência às crianças que ficavam trancadas dentro de casa, pois as mães tinham de trabalhar e não havia vagas em creches. Sem opção, as mães mantinham seus filhos trancafiados dentro de suas casas a fim de protegê-los dos perigos das ruas. Algumas vezes, cheguei nessas casas, e a criança estava sem comer e não tínhamos como entrar. Tentávamos passar alimentos por baixo da porta ou por alguma outra greta, a fim de, ao menos, minorar a situação de fome dessas crianças.
Pois bem, o candidato evangélico tratou de reunir os pastores da cidade para ouvir suas reivindicações e obter apoio. Nenhuma das reivindicações tratava do problema da falta de vagas de creche para as crianças. Pediam desde calçamentos para a rua da Igreja até ajuda financeira para a “marcha para Jesus” e o fim da “parada gay” na cidade. Levantei meu dedo e falei das creches. Um pastor de uma tradicional e rica igreja na cidade defendeu que “creches apenas ajudam a desagregar a família” pois com creche “a mulher não cumpre seu papel de mãe”.
Esse é o euvangelho que alçou à presidência um governante com o único fim de defender os interesses individuais da massa evangélica, preocupada com “parada gay” e despreocupada com o drama da falta de investimento em educação pública para todos. Diferentemente do evangelho de Jesus que reparte e não busca seus próprios interesses, esse euvangelho quer juntar para si e apenas busca seus próprios interesses. Um exemplo desses interesses egoístas, capitaneado pelos mercantilistas da fé, foi a exoneração do secretário da Receita Federal Marcos Cintra, após este defender a criação de um imposto sobre as igrejas. Outro exemplo claro do servilismo do governo Bolsonaro aos interesses mesquinhos dos euvangélicos foi a destinação de dinheiro público, cerca de 153,7 milhões de reais por ano, às comunidades terapêuticas religiosas (maioria evangélicas). Para se ter uma ideia desse disparate, esse é quase o mesmo valor gasto anualmente com os 331 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) que contam com equipe multiprofissional (com psiquiatras, psicólogos, enfermeiros e outros profissionais de saúde), bem diferente das comunidades terapêuticas que nem sempre têm estrutura profissional.
A fim de frear a incipiente força do neopentecostalismo, que já trazia de berço essa doutrina egoísta e individualista, em 1974, mais de 2,4 mil líderes evangélicos de cerca de 150 países se reuniram em Lausanne, na Suíça, para discutir a evangelização do mundo. Como resultado desse congresso, foi elaborado o pacto de Lausanne, um documento em que a igreja se arrepende de excluir da evangelização a atividade social, pois isso faz parte de seu dever como igreja e que a mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação. Defende também que, nós cristãos, não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam. Com essa carta de princípios, os signatários estavam declarando que o evangelho não poderia ser egoísta e centrado nas necessidades da igreja e, sim, nas necessidades do próximo.
Para dar um exemplo de como esses ensinos anti-cristãos pularam o muro das igrejas neopentecostais e trouxeram reflexos em toda a sociedade, evangélica e não evangélica, cito uma carta de felicitação pela eleição de Jair Bolsonaro, escrita por um pastor de uma igreja histórica, Mauro Meister, que afirmou sem ruborizar que é a favor da pena de morte para condenados, do direito à autodefesa (uso de armas pela sociedade civil) e que foi “a mão de Deus” que colocou Bolsonaro na presidência, em mais uma interpretação descontextualizada de Romanos 13, texto que foi escrito para uma igreja que vivia sob o jugo do cruel império romano, onde o mínimo sinal de insurgência por parte de qualquer cristão significaria sua morte, sendo esta a preocupação de Paulo.
Será que o citado pastor concorda com a interpretação literal de Romanos 13:3 onde Paulo diz que só quem pratica o mal deve temer a autoridade e quem pratica o bem não tem o que temer? Como explicar a condenação de Jesus à morte? Jesus praticou o mal? E o diácono Estevão, morto apedrejado pelos judeus com a permissão explícita das autoridades de Roma? Ele também praticou o mal? E Bonhoeffer, pastor germânico condenado à morte por Hitler também praticou o mal?
Textos antigos descontextualizados da história e fora de contexto são meros pretextos. Se foi a “mão de Deus” que alçou Bolsonaro à presidência, não estaria o nobre pastor dando um caráter de “ungido de Deus” a Bolsonaro, semelhante aos reis do antigo testamento, que o imunizaria de ser criticado por quem o elegeu, sua base eleitoral cristã?
De onde vocês acham que ele tira esses conceitos? Da Bíblia, óbvio. Pelo menos, da parte em acordo com a interpretação que lhe convém. Como protestante, eu defendo o livre exame das Escrituras Sagradas por todos os cristãos. Essa é uma das bases da Reforma Protestante. Mas não confundamos livre exame com livre interpretação. São ações distintas. A interpretação da Bíblia deve seguir as regras gerais de interpretação de qualquer livro antigo e não sofrer interferências de minhas próprias convicções e, sim, das palavras de Jesus nos evangelhos.
Observe que eu citei as palavras de um teólogo oriundo de uma igreja histórica séria e com excelente formação acadêmica. Aliás, tenho mais convergências com ele do que divergências. Isso mostra o tamanho do problema e do desafio que está diante de nós. O que fazer?
Entendo que de nada adianta que pessoas alheias ao meio evangélico tentem desconstruir esses conceitos. Infelizmente, na mentalidade do povo, a figura do carteiro tem igual ou maior importância que a mensagem contida na carta que ele quer entregar. A voz dessa pessoa, por mais capacitada e bem fundamentada que seja, não encontrará ouvidos aptos a recepcionar seus argumentos. Pelo menos não entre os evangélicos.
O mesmo pensamento tenho de pastores e teólogos conhecidos como “liberais” ou “universalistas”. O teólogo liberal é tido como um eterno relativista dos princípios bíblicos, e o universalista diminui o valor da doutrina da morte expiatória de Cristo na cruz, que é cara ao cristianismo, pois acredita que todos os homens são intrinsecamente bons e, portanto, todos serão salvos ao final, fazendo com que a necessidade de Jesus morrer por nossos pecados seja tacitamente nula. Estes, de igual forma, também não serão ouvidos pela grande massa evangélica.

COMO RECUPERAR O EVANGELHO DE JESUS?

Pensando nisso, alguns pastores de pensamento teológico ortodoxo que tem apreço à democracia e acreditam na laicidade do estado, dentre os quais me incluo, estão formando grupos a fim de criar iniciativas de combate a esses ensinos pseudo-escriturísticos. Essas heresias têm forma de purismo teológico, mas seu conteúdo é anticristão, contrário ao puro e simples evangelho de Jesus.
Ensinos oriundos de pastores de massa, como o pastor Lucinho Barreto que, em vídeo, faz apologia ao uso da força letal pela polícia com visível alegria; ou como o pastor Augustus Nicodemus que defende de maneira aberta que o cristão pode usar da violência para se defender, contrariando explicitamente o que diz em Mateus 5:39, onde Jesus contraria todo o senso comum da época (e parece que de hoje também) e defende que “…se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra”; ou outro como o pastor Franklin Ferreira, um dos mais ferrenhos defensores das teses da extrema direita cristã conservadora comemorando a vitória de Bolsonaro como presidente porque este representaria o conservadorismo cristão e o liberalismo econômico, mesmo sabendo dos discursos anti-cristãos de Bolsonaro a favor de extermínio de criminosos e penas cruéis.
E como se dará esse combate? Usando a mesma base usada pelos que subvertem a sã doutrina: a Bíblia. Fazendo isso, jogamos no mesmo campo e com a mesma bola que eles usam. E qual a estratégia de ação? Está sendo criada uma rede de blogs, canais no YouTubepodcasts e contas em redes sociais a fim de mostrar as incongruências dessas crenças sem jamais desprezar, ferir, humilhar ou depreciar a fé do povo evangélico.
Acredito piamente que, se conseguirmos ao menos desconstruir os gigantes da teoria do domínio (versão neopentecostal) e do teonomismo (versão dos ditos reformados), já valerá o esforço. Por quê? Pelo simples fato de que todos são livres para ter sua fé pessoal. Todos podem crer naquilo que quiserem crer. Como cristãos, podemos crer que o matrimônio é para sempre, na castidade pré-nupcial e, inclusive, na condenação eterna da alma. Isso é direito fundamental de toda sociedade democrática. Mas jamais podemos trabalhar, desejar, lutar ou planejar que esses princípios de fé pessoal cristã sejam impostos, à força, mediante ascensão de um governo “cristão”, assumidos pelo conjunto da população, composta por variadas crenças, culturas e até o democrático direito de ausência de crença. O verdadeiro cristão acredita que o Reino de Deus e seus princípios são recepcionados de maneira voluntária, por aquele em quem o Espírito Santo trabalhou na alma, tal qual disse o profeta Zacarias: “Não por força nem por violência, mas sim pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos”. (Zacarias 4:6).

Pastor Alexandre Gonçalves

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

SAIA DO CENTRO; CAMINHE NA DIREÇÃO DAS PERIFERIAS EXISTENCIAIS!

Missa do 3º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 8,23b–9,3; 1Coríntios 1,10-13.17; Mateus 4,12-23.

Há uma passagem necessária, um movimento necessário em nossa vida. O Evangelho nos indica isso. A primeira passagem que vemos nele é a de João Batista para Jesus: no momento em que João é preso e sua voz é, de certa forma, silenciada, Jesus entende que é o seu momento de falar, de pronunciar sua palavra de vida e de esperança para a humanidade. Mas a passagem de João Batista para Jesus aponta para um movimento: “Jesus escolhe iniciar sua atividade longe da Judeia, de Jerusalém, do templo, das autoridades religiosas. Ele elegeu o seu ‘lugar’ entre os mais pobres e excluídos, vítimas daqueles que se faziam donos dos lugares” (Pe. Adroaldo).  
Este é o movimento que destrava a vida; mais ainda, que resgata o sentido da nossa vida: sair do centro e ir para as periferias. Constantemente, o mundo nos incentiva a olhar para o centro, a viver a partir do centro. O centro é o poder, o ter, o consumir; o centro é a importância, a fama, o aparentar; o centro é a vida agitada, o barulho, o automatismo, a indiferença, o individualismo... Todos correm para o centro, todos querem encontrar o seu lugar no centro, e não se dão conta de que o centro tem o poder de nos adoecer, de nos despersonalizar, de nos manter escravos de coisas que nos fazem mal. O centro é um horizonte estreito que nos impede de ver melhor quem nós somos e qual é a nossa missão, qual é o sentido da nossa vida.
Jesus nos desafia a romper com a mesmice, com a rotina, com o “sempre foi assim”. Ele nos convida a tomar sua mão e a nos deixar conduzir para lugares novos, para situações novas, onde iremos reencontrar o sentido da nossa vida, onde iremos ampliar o horizonte da nossa existência e compreender a importância da nossa missão. “Jesus descentralizou o mundo a partir da periferia. Em Jesus, Deus não só se fez homem, mas também se fez ‘margem’. Todos tinham os olhos voltados para o centro. No entanto, Jesus começou a falar a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica” (Pe. Adroaldo). Também o Papa Francisco nos faz o mesmo convite: “O discípulo-missionário é um des-centrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais. A posição do discípulo-missionário não é a de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias”.
Quem está nas periferias? O que de nós tem ficado na margem, ignorado, descuidado, por termos dado exclusividade ao centro? Muitos de nós estamos esperando e desejando mudanças em nossa saúde física ou psíquica, em nossos relacionamentos, em nossa vida profissional, ou ainda em nossa experiência com Deus, mas essas mudanças só começarão a acontecer quando tivermos a coragem de nos desprender do centro e nos aproximar das margens, daquilo que nós mesmos jogamos para a margem porque consideramos sem importância, não essencial, sem sentido, quando justamente ali está a resposta que procuramos.   
Ampliar a compreensão de nós mesmos, da vida e da nossa missão depende desse movimento: sair do centro e ir para as margens, o que Jesus resume nessas palavras: “Convertam-se, porque o Reino dos Céus está próximo” (Mt 4,17). Só é possível experimentar Deus quando nos convertemos, quando mudamos a direção da nossa vida, das nossas atitudes. O apelo bíblico à conversão é sempre um apelo à nossa liberdade e à nossa responsabilidade. Converter-se significa compreender que nada muda se eu não decidir mudar. Portanto, a mudança mais difícil e mais necessária é a interna, não a externa.
Para nos mostrar o quanto as mudanças são possíveis e necessárias, Jesus, andando “à beira do mar da Galileia” (Mt 4,18) – portanto, visitando as margens, as periferias existenciais –, encontra dois irmãos pescadores e os desafia: “Sigam-me, e eu farei de vocês pescadores de homens” (Mt 4,19). Aqui se dá um novo movimento, uma nova mudança: “Eles, imediatamente deixaram as redes e o seguiram” (Mt 4,20). A primeira palavra de Jesus a cada um de nós, discípulos seus, é esta: “Siga-me!”. Somos chamados a segui-Lo ouvindo sua palavra e observando suas atitudes, de modo a nos tornarmos semelhantes a Ele. “Siga-me!” também significa: “torne-se uma luz, como eu sou Luz, e faça com que sua luz chegue às periferias existenciais, pois é preciso que a minha Luz resplandeça sobre aqueles que ainda hoje se encontram nas sombras da morte” (cf. Is 9,1; Mt 4,16).   
            Na medida em que nos dispomos a seguir Jesus, o horizonte da nossa vida vai se alargando e se aprofundando: a missão, o sentido da nossa vida, não está em pescar peixes, mas em pescar homens, em resgatar o ser humano que está se afogando no mar da destruição e da morte. O sentido da nossa vida não está em viver em função de nós mesmos, mas em fazer da nossa vida um serviço, uma causa em prol de algo ou de alguém que precisa ser defendido, resgatado ou salvo. As margens reclamam a nossa presença. As periferias existenciais clamam por nossa ajuda. Os que estão perdidos nas sombras da morte suplicam pela Luz que nos habita. Que resposta daremos ao chamado de Jesus?

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

POR QUE PRECISAMOS DE UM CORDEIRO?


Missa do 2º dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 49,3.5-6; 1Coríntios 1,1-3; João 1,29-34.

            Existem duas formas de entendermos a nossa existência nesse mundo. A primeira, como sendo fruto do puro acaso: nascemos acidentalmente, estamos onde estamos por mera coincidência e nossa existência não tem nada a dizer à humanidade. A segunda maneira é entender que nascemos por uma escolha divina: “o Senhor – ele que me preparou desde o nascimento para ser seu Servo” (Is 49,5). Nossa existência não é resultado do acaso, mas da vontade divina: Deus nos quis. Além disso, não existimos em função de nós mesmos; existimos “para”. Existe uma finalidade em nosso existir – “que eu recupere Jacó para ele e faça Israel unir-se a ele” (Is 49,5). Portanto, não estamos onde estamos por acaso. A época em que nascemos, o lugar onde nos encontramos e a pessoa que somos tem algo a dizer ao mundo do nosso tempo. Como afirma com frequência o Papa Francisco, cada um de nós, com sua existência única, é uma missão, ou seja, nossa vida tem uma palavra única de Deus a ser comunicada à humanidade.
            É preciso valorizar a nossa presença no mundo e na Igreja. Depois de nós, eles terão se tornado melhores? Nossa presença e nossas atitudes terão ajudado o mundo e a Igreja a serem espaços de cura e de salvação, espaços onde as pessoas puderam encontrar-se com Deus e com sua salvação? Nossa existência terá feito a diferença ou apenas reproduzido estruturas injustas e doentias, tanto no mundo quanto na Igreja? É verdade que nenhuma pessoa tem o poder, sozinha, de mudar essas estruturas, mas cada um de nós pode tornar diferente o pequeno mundo à sua volta.
            No momento em que o profeta Isaías compreendia a sua existência apenas em função da salvação do seu povo (Israel), Deus alargou o horizonte de compreensão da sua vocação: “Não basta seres meu Servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel: eu te farei luz das nações, para que minha salvação chegue até aos confins da terra” (Is 49,6). Nosso maior desafio é nos manter abertos ao que Deus quer de nós. Embora tenhamos a constante tentação em nos instalar e em nos cercar de seguranças, Deus muitas vezes permite que uma forte tempestade nos desenraíze e nos transporte para lugares e para junto de pessoas onde nunca imaginaríamos estar: é ali que somos chamados a germinar, florescer, frutificar, continuando a responder o nosso “Eis-me aqui” ao Deus que nos quer ali como sinal vivo do seu amor e do seu desejo em salvar todas as pessoas.  
            João Batista havia se tornado um forte líder espiritual em seu tempo. No entanto, quando Jesus se tornou adulto, foi batizado e iniciou a sua missão, João soube conduzir as pessoas para Jesus, afirmando: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). Todo líder espiritual que conduz as pessoas para si mesmo, e não para Jesus, erra gravemente. Assim como João Batista, nós não somos o Caminho, mas a seta que indica o Caminho; nós não somos a Luz, mas a lâmpada chamada a se tornar portadora da Luz; nós não somos a Palavra, mas a voz chamada a fazer com que a Palavra chegue aos corações, especialmente daquelas pessoas que aguardam por uma palavra de consolo da parte de Deus.  
            Mas, que sentido hoje tem para as pessoas do nosso tempo anunciar Jesus Cristo como “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29)? Aqui precisamos recuperar o sentido bíblico do “cordeiro”. No momento principal da história de Israel – a noite da sua libertação do Egito – cordeiros foram sacrificados e o sangue deles foi passado nas portas das casas dos hebreus, para livrá-los da praga exterminadora, conforme lemos em Êxodo 12,1-14. Aqueles cordeiros eram uma prefiguração de Jesus, o Cordeiro de Deus que foi morto na cruz no exato momento em que os cordeiros eram preparados para se celebrar a Páscoa dos judeus.
Mas Jesus não é apenas um “Cordeiro”; ele é o Cordeiro “de Deus”. Numa época em que o povo de Israel lamentava: “não há mais nem chefe, nem profeta, nem príncipe, nem holocausto, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso, nem lugar onde oferecermos as primícias diante de ti para encontrarmos misericórdia” (Dn 3,37-39), Deus ofereceu seu Filho como Cordeiro para resgatar a humanidade do abismo do seu pecado. Assim como providenciou um cordeiro para o lugar de Isaac, o filho único de Abraão (cf. Gn 22,13), Deus permitiu a morte de seu Filho na cruz para nos livrar da morte eterna a que o pecado nos condena.
Falar de Jesus como “Cordeiro de Deus” significa entender que nós precisamos ser salvos. Todo ser humano precisa ser salvo; salvo não só dos outros, não só das estruturas sociais injustas, não só do pecado social, mas também salvo de si mesmo, salvo do seu próprio pecado. Todo pecado gera morte, morte pessoal e social. E aqui está a grande diferença entre o sangue dos cordeiros, sacrificados sem saberem o por quê, e o sangue de Jesus: Ele ofereceu-se livre e conscientemente para tirar os pecados do mundo (leia Hebreus 9). Portanto, o sangue de Jesus é o sangue consciente do Filho de Deus que se oferece para resgatar a humanidade da condenação à morte por causa do pecado, pois “sem derramamento de sangue não há remissão” (Hb 9,22); sem alguém que me salve, eu não posso ser salvo; sem a mão do Filho estendida para mim, que me encontro no fundo do abismo do meu pecado, eu não posso, sozinho, subir desse abismo.  
            Uma última palavra. Jesus não tirou o pecado do mundo anulando em nós a liberdade ou possibilidade de pecar. Mesmo depois da morte redentora de Jesus na cruz, a humanidade continua livre para seguir o caminho que bem entender. A diferença é que nós agora podemos escolher romper com o círculo vicioso do pecado; nós agora podemos guiar nossa consciência pela voz do Filho e não mais pela voz do maligno. Como o próprio Jesus afirmou: “quem comete o pecado, é escravo (do maligno). Ora, o escravo não permanece sempre na casa, mas o filho aí permanece para sempre. Se, pois, o Filho vos libertar, sereis, realmente, livres” (Jo 8,34-36).

            PROFISSÃO DE FÉ NO CORDEIRO DE DEUS

            Creio em Deus Pai, que desde o ventre materno me chamou para a missão de resgatar e salvar pessoas para Ele. Abraço conscientemente a minha missão de “Servo(a) do Senhor”, na esperança de que minha presença no mundo e na Igreja faça com que ambos se tornem lugares de cura e de salvação, espaços onde Deus seja experimentado como Redentor de todo ser humano.
            Creio em Jesus Cristo, “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Creio no sangue redentor de nosso Senhor, o sangue que o Filho derramou conscientemente para livrar todo ser humano da condenação à morte por causa do seu pecado. Agarro-me à mão de Jesus, estendida na minha direção para retirar-me das profundezas do abismo do meu pecado.
Creio no Espírito Santo, força do Pai e do Filho que vem socorrer a minha fraqueza na luta contra o pecado. Entendo que “sem derramamento de sangue não há remissão” (Hb 9,22); sem alguém que me salve, eu não posso sê-lo. Escolho seguir Jesus Cristo, na força do Espírito Santo, encontrando n’Ele a verdadeira libertação e conduzindo para Ele todos aqueles que ainda precisam ser libertos e salvos. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

DO BATISMO RECEBIDO ONTEM PARA A MISSÃO ABRAÇADA HOJE


Missa do Batismo do Senhor. Palavra de Deus: Isaías 42,1-4.6-7; Atos dos Apóstolos 10,34-38; Mateus 3,13-17.

            Água. Sem ela, não existe vida; sem ela, nada do que vive sobrevive. Embora muitas pessoas dentre nós relativizem o problema do desmatamento na Amazônia, intensificado agressivamente a partir do início do novo governo, o qual, por sua vez, cumpre uma promessa de campanha de flexibilizar as leis de fiscalização ambiental, o desmatamento na Amazônia interfere diretamente na regulação das chuvas em nossa região. Sem a Amazônia, nossa região seria um imenso e triste deserto.
Água é vida. Sem ela, não apenas não existe vida, como também não existe cura. Enquanto o organismo de muitas pessoas está intoxicado com refrigerante ou bebida alcoólica, o que abre espaço para o surgimento de diversas doenças, a água nos desintoxica; ela devolve saúde ao nosso organismo, colaborando para: 1) regular a temperatura corporal; 2) combater acne, estrias e celulite; 3) melhorar o funcionamento dos rins; 4) prevenir o aparecimento de pedras nos rins; 5) facilitar a digestão; 6) diminuir o inchaço; 7) melhorar a circulação sanguínea; 8) ajudar a emagrecer.
Mas a cena do Batismo de Jesus nos fala de outra água; uma água “ungida” pelo Espírito de Deus; uma água capaz não apenas de lavar o corpo, mas de purificar o coração; uma água capaz de lavar a sujeira da nossa alma, de penetrar nas raízes mais profundas no chão árido da nossa vida e nos devolver fecundidade, isto é, despertar em nós a força adormecida da nossa fé, da nossa alegria e da nossa esperança, ajudando-nos a compreender que o sentido da vida não está no cimento da artificialidade de um mundo que exige de nós o cuidado doentio com a aparência, mas no chão descoberto da nossa essência, onde o Espírito Santo escolheu habitar, onde Deus cavou no mais profundo de nós e fez brotar ali a água viva da Sua presença, da Sua força, do Seu amor.
            Para a grande maioria de nós, o batismo se deu num momento da nossa vida onde não tínhamos ciência do que estava acontecendo. Não foi uma escolha nossa receber o batismo, mas dos nossos pais (ou avós?) e padrinhos: eles acreditaram que, apesar dos seus cuidados humanos para conosco, nós precisávamos ser confiados aos cuidados de Deus. Assim, eles quiseram que, desde pequenos, fôssemos mergulhados na água viva do Espírito de Deus, para que, desde os primeiros meses da nossa vida terrena, uma voz ressoasse em nossa consciência e nos acompanhasse por todos os dias, a mesma voz que Se pronunciou no batismo de Jesus: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus o meu agrado” (Mt 3,17).
            A maior importância do nosso batismo, contudo, não está em lembrar-se de como ele se deu, mas do não esquecer-se do quê ele nos deu: a verdade da nossa filiação divina! Somos pessoas dignas de serem amadas pelo Pai! Antes de qualquer atitude nossa, antes de qualquer escolha ou decisão que pudesse nos tornar sujos, imundos, ou até mesmo indignos de sermos amados, Deus derramou a água pura do batismo sobre a nossa cabeça, para nos tornar conscientes de que Ele escolheu nos amar incondicionalmente. Antes de escrevermos qualquer palavra ou frase no livro da nossa vida terrena, Deus escreveu: “Você é meu filho amado”, “Você é minha filha amada”. Nenhuma atitude nossa tem força suficiente para apagar do livro da nossa vida esta verdade, nem mesmo a decisão que muitos, por estarem decepcionados com a Igreja, tomaram de rejeitar o próprio batismo, afirmando publicamente: “Não em meu nome!”.  
            Apesar da importância absoluta do batismo em nossa vida, ele não é um ponto final ou um ponto de chegada, mas um ponto de partida. A água do batismo, que foi derramada em nossa cabeça, pede para continuar a escorrer pelo chão da nossa existência. Com efeito, o apóstolo Paulo afirma que “todos os que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8,14). Portanto, o que torna verdadeiro e comprovado o nosso batismo não é o seu registro em um livro da Igreja, mas a sua vivência no livro da nossa vida diária; é aquela decisão nem sempre fácil de ser tomada: “quero conduzir minha vida a partir da voz do Espírito Santo em minha consciência e não a partir da voz do meu ego”. Viver segundo o Espírito que recebemos no batismo significa viver como Jesus: ele “foi ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder (no momento do batismo. A partir daí...). Ele andou por toda a parte, fazendo o bem...” (At 10,38).
Tomar consciência do próprio batismo significa tomar consciência da própria missão. Assumir a verdade do nosso batismo significa assumir nosso lugar na vida, na história da salvação. A voz do Espírito Santo nos convida a cada dia a assumir nossa missão, que é única e intransferível. Assim como o Servo de Deus, mencionado no texto do profeta Isaías, nossa missão consiste em “promover o julgamento” (Is 42,1), lembrando que “julgar” significa “separar”: o batizado tem consciência de que precisa aprender a separar, a distinguir a verdade da mentira, a justiça da injustiça, o que convém à sua salvação e o que não convém.
A atitude do batizado é a de não quebrar uma cana rachada nem apagar um pavio que ainda fumega; mas promover o julgamento para obter a verdade (cf. Is 42,3). Trata-se de agir com paciência e misericórdia, tanto consigo quanto com os outros, sobretudo com aqueles que “demoram” para se corrigir dos seus erros. Isso, porém, não significa não ter pulso, não ser firme e, muito menos, permitir que a pessoa continue a prejudicar os outros com suas atitudes. Toda intervenção de um batizado é sempre no sentido de fazer prevalecer a verdade, ainda que ela “machuque” ele mesmo ou aquele que está errando.
Enfim, consciente de que ele vive num mundo com valores invertidos, um mundo que diz crer em Deus, mas rejeita a verdade da sua Palavra, o batizado tem consciência de que sua missão será marcada pela ingratidão, pelo sofrimento e pela oposição de pessoas que não querem se confrontar com a verdade. Ciente disso, ele é convidado pelo Espírito de Deus a não desanimar, não se deixar abater, até que restabeleça a justiça no meio em que se encontra (cf. Is 42,4). Foi essa a consciência de Jesus em insistir em ser batizado por João: “nós devemos cumprir toda a justiça!” (Mt 3,15). Eis, portanto, a meta existencial de cada batizado: configurar-se ao Filho de Deus, esforçando-se diariamente em viver como uma pessoa justa, isto é, uma pessoa que deseja “ajustar-se” à vontade do Pai que convida cada filho Seu a viver segundo a verdade, o direito e a justiça.

ORAÇÃO: Deus Pai, em comunhão com Teu Filho Jesus humildemente me coloco diante do céu aberto do Teu coração, para suplicar pela água viva do Teu Espírito! Banha-me, Pai, nas Tuas águas! Aviva-me de novo! Derrama sobre o chão árido da minha existência a água viva do Espírito Santo.
Que a Sua graça desobstrua a minha fonte interior e faça voltar a jorrar a água viva da fé, da alegria e da esperança em minhas atitudes. Pronuncia mais uma vez a verdade do Teu amor para comigo e para com cada ser humano – “Tu és o meu Filho amado!”.
Quero assumir a verdade do meu batismo, deixando-me conduzir pelo Espírito Santo e assumindo o meu lugar na história da salvação. Quero abraçar a missão de restaurar a vida que se encontra ferida à minha volta, permanecendo firme na luta diária pelo restabelecimento da verdade e da justiça em nosso mundo. Por Jesus Cristo, Teu amado Filho, na comunhão com o Espírito Santo. Amém!  

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

A LUZ DE CADA UM DE NÓS PODE VOLTAR A BRILHAR!



Missa da Epifania. Palavra de Deus: Isaías 60,1-6; Efésios 3,2-3a.5-6; Mateus 2,1-12.

            “Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo” (Mt 2,2). Onde encontrar Deus? Em qual igreja? Em qual religião? A “religião” que mais cresce no Brasil e no mundo é a das pessoas “sem religião”. Os adolescentes e jovens são o retrato mais fiel disso: a maioria deles não se identifica com nenhuma igreja ou religião. O motivo não é apenas a rejeição àquilo que é institucional; trata-se de algo muito mais sério: é a rejeição a uma Igreja mais preocupada em defender-se enquanto Instituição do quem em anunciar o Evangelho de modo que ele fale ao coração das pessoas do nosso tempo.
            Se hoje são poucas as pessoas que ainda se perguntam “Onde está Deus?” é porque muitos de nós cristãos deixamos de viver segundo o Evangelho; deixamos de ser uma estrela que brilha forte no céu escuro do materialismo, do consumismo, da massificação e da indiferença para com quem sofre. Enquanto a luz daquela estrela atraiu os magos do Oriente, a luz de muitos líderes religiosos hoje causa repulsa nas pessoas. Homens que pregam o espiritual, mas vivem como mundanos causam repulsa; pastores que transformam “pequenas igrejas em grandes negócios” causam repulsa; padres que dão prioridade ao seu bem estar e não cuidam do rebanho que lhes foi confiado causam repulsa; padres que desviam dinheiro de suas paróquias para suas contas particulares causam repulsa.
            O Documento de Aparecida, publicado há quase onze anos, pediu que nossas paróquias se transformassem em “centros irradiadores de vida”, mas algumas paróquias de nossa Diocese irradiam apatia, escândalo, contra-testemunho, agressão verbal àqueles que a frequentam, porque seus párocos estão doentes e perdidos dentro de si mesmos, sendo que alguns deles descuidaram do sentido da própria vocação e a Igreja se tornou para eles apenas um meio de sobrevivência; outros encontram na Igreja o espaço ideal para exercerem sua natural arrogância, sempre avessos à simplicidade de vida e à humildade propostas por Jesus e vividas por Francisco; outros, ainda, colocam em segundo plano o cuidado pastoral de suas paróquias e em primeiro plano o gosto pela fofoca, pela intriga e pela disputa suja de poder, cujo veneno produz tristeza e desencanto em nosso Clero – o que também explica o “apagamento” da própria estrela (sentido do ministério) na vida de alguns.
            “Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer?” (Mt 2,2). Onde se encontra Jesus e a luz do seu Evangelho? Ele se encontra em toda pessoa, igreja ou religião que vive segundo a vontade de Deus; Ele se encontra “em Belém, na Judeia, pois assim foi escrito pelo profeta: ‘E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá um chefe que vai ser o pastor de Israel, o meu povo’” (Mt 2,5-6). “Assim como Deus escolheu Israel por ser o menor dentre os povos (cf. Dt 7,7), assim escolheu Davi, o menor entre os irmãos (cf. 1Sm 16,11). Deus escolhe as coisas que não são ‘para reduzir a nada aquelas que são’ (1Cor 1,28). Para encontrar o Senhor é preciso olhar onde ele se encontra. Ele se encontra na pessoa do ‘menor dos irmãos’ – Mt 25,40.45 (Pe. Pagola). Jesus se encontra na vida de todos aqueles que lutam por uma Igreja segundo a verdade e a justiça do Evangelho, a Igreja de Francisco. Jesus se encontra em todos aqueles que estão machucados por pessoas da nossa Igreja que vivem o oposto do que nos ensina o Evangelho. Jesus se encontra, sobretudo, naquelas pessoas e situações onde nenhuma igreja ou religião tem interesse em se fazer presente, e se queremos encontrá-Lo, precisamos mover os nossos pés na direção dessas pessoas e situações que pedem a nossa presença cristã.   
“Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram uma alegria muito grande” (Mt 2,10). Vivendo em meio a muita escuridão – apagamento da fé, da esperança e do amor, em muitos corações; apagamento do sentido da vida, dos valores e dos ideais que um dia sustentaram sonhos e lutas por uma família melhor, por uma educação melhor, por um país melhor – somos chamados a fazer brilhar a luz do Evangelho em nossas atitudes, sabendo que nossa luz não depende de fatores externos, mas de disposições internas; mais do que isso, de uma convicção interna, ligada à nossa existência e à nossa vocação de cristãos: “Eu fiz de ti uma luz para as nações, para que a minha salvação chegue aos confins da terra” (Is 49,6; At 13,47).
Ao se distanciarem do palácio de Herodes – lugar das trevas –, os magos voltaram a ver a estrela e se encheram de alegria. Muitos filhos podem voltar a sentir alegria se a luz da fé voltar a brilhar no coração de seus pais; muitas escolas e ambientes de trabalho podem voltar a sentir alegria se a luz da esperança, da verdade e do bem voltar a brilhar naqueles que ali são líderes. A luz pode voltar a brilhar em cada um de nós sempre que recuperamos e voltamos a cultivar nossos valores, sempre que voltamos a ser fiéis à nossa própria origem e missão, sempre que nos permitimos ser inundados pela luz que é o próprio Deus: “Eis que está a terra envolvida em trevas, e nuvens escuras cobrem os povos; mas sobre ti apareceu o Senhor, e sua glória já se manifesta sobre ti. Os povos caminham à tua luz e os reis ao clarão de tua aurora” (Is 60,2-3). Não desprezemos a luz que somos! Não desacreditemos do poder da luz que nos habita, luz que deve chegar aos outros pela nossa conduta, muito mais do que pelas nossas palavras!  
Eis como se encerra o encontro dos magos com Jesus: “Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele, e o adoraram. Depois abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra” (Mt 2,11): ouro, porque Jesus é rei; incenso, porque Ele é Deus; mirra, porque Ele é humano. Outra forma de entendermos esses presentes: “O ouro, riqueza visível, representa aquilo que a pessoa tem; o incenso, invisível como Deus, representa aquilo que a pessoa deseja; a mirra, unção que cura as feridas e preserva da corrupção, representa aquilo que a pessoa é” (Pe. Pagola). Diante desses presentes, podemos nos perguntar: em relação a quem eu devo me fazer presente neste novo ano? Quais pessoas necessitam daquilo que eu tenho, daquilo que eu desejo e daquilo que eu sou?
Uma palavra final, a respeito da atitude dos magos de adorar Jesus; “O ser humano atual tem se tornado ‘incapaz de Deus’, incapaz de adoração. Deus foi reduzido ao ‘útil’. O que nos interessa é um deus que sirva aos nossos projetos individualistas. Assim Deus se converte num ‘artigo de consumo’ do qual eu disponho segundo as minhas conveniências. Para adorar a Deus é necessário sentir-se criatura infinitamente pequena diante d’Ele, mas infinitamente amada por Ele. A adoração é admiração. É amor e entrega. É abandonar nosso ser a Deus e permanecer em silêncio agradecido e alegre diante d’Ele, admirando seu mistério a partir de nossa pequenez... Os magos retornam ‘por outro caminho’, não mais pelo caminho de quem não conhecia o que buscava, mas pelo caminho de quem encontrou Aquele que procura o ser humano para salvá-lo. Eles, que antes olhavam para o céu, agora levam consigo um novo céu e uma nova terra, e os levarão para onde forem” (Pe. Pagola). 

Pe. Paulo Cezar Mazzi