sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

O BATISMO NOS CONVIDA A PASSAR PELO MUNDO FAZENDO O BEM

 Missa do batismo do Senhor. Palavra de Deus: Isaías 42,1-4.6-7; Atos dos Apóstolos 10,34-38; Lucas 3,15-16.21-22

               

            No diálogo que teve com Nicodemos, Jesus deixou claro que existem dois tipos de nascimento: um, da terra; outro, do céu; um, de baixo; outro, do alto; um, o nascimento segundo a carne; outro, o nascimento segundo o Espírito (cf. Jo 3,3-6). O apóstolo Paulo, ao falar sobre a ressurreição, isto é, sobre a nossa destinação à vida eterna, afirma que “a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus” (1Cor 15,50). Portanto, todos nós, depois de termos nascido da carne, precisamos de um segundo nascimento, que é o nascimento operado por Deus, através do Espírito Santo. Isso nos faz compreender a absoluta importância do Batismo.

            Hoje, ao celebrarmos a festa do Batismo de Jesus, poderíamos nos perguntar: Por que Jesus precisou ser batizado, se Ele já existia em Deus antes de vir ao mundo e assumir a nossa carne, isto é, a nossa condição mortal? Na verdade, Jesus não precisou ser batizado; Ele quis ser batizado, seja para nos falar da necessidade do Batismo para a nossa salvação, seja para santificar as águas por meio das quais se realiza o Batismo. De fato, São Máximo de Turim afirmou: “Cristo foi batizado não para ser santificado pelas águas, mas para santificá-las”.

            Como o Evangelho de hoje deixou claro, antes de Jesus começar seu ministério já existia um tipo de Batismo: o Batismo de João. No entanto, o próprio João revelou a superioridade do Batismo de Jesus ao afirmar: “Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu... Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo” (Lc 3,16). Aqui podemos lembrar algo muito simples: a água tem o poder de lavar, de limpar, mas o fogo tem o poder superior de purificar. Por exemplo, a prata ou o ouro podem ser lavados o quanto forem, mas somente passando pelo fogo é que ambos perdem todas as suas impurezas. O fogo tem um poder superior ao da água para purificar o ouro e a prata. Além disso, o fogo tem o poder de transformar até mesmo o metal mais duro.

            Quando João Batista compara o seu Batismo na água ao Batismo de Jesus no fogo, ele está falando do Espírito Santo, que nos é dado no Batismo como Aquele que opera em nós o nascimento do alto, Aquele cujo fogo nos purifica, nos santifica e nos transforma, quando nos deixamos conduzir por Ele. De fato, após o Batismo realizado por João, Jesus se colocou em oração, e, “enquanto rezava, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma visível, como pomba” (Lc 3,21-22). O que São Lucas quer nos mostrar é que Jesus não recebeu o Espírito Santo da água, isto é, do Batismo de João, mas do alto, do céu, que se abriu sobre Ele enquanto rezava.

            O Batismo não é algo mágico. Não basta receber o Espírito Santo no batismo e já estamos automaticamente destinados à vida eterna. Como muito bem afirma o apóstolo Paulo, “todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8,14). Paulo poderia ter afirmado: “todos os que são batizados são filhos de Deus”, mas preferiu colocar, no lugar de “ser batizado”, a expressão “ser conduzido” pelo Espírito Santo. Inúmeras pessoas já foram batizadas, mas quantas delas aceitam ser conduzidas pelo Espírito Santo?

Descrevendo para nós a figura do Servo de Deus, o profeta Isaías nos ajuda a perceber se estamos vivendo de acordo com o Batismo que recebemos ou não. Eis as características do Servo de Deus – e da pessoa que vive segundo o seu Batismo: ele não faz barulho, não chama a atenção dos outros para si; não age com brutalidade; enxerga o que ainda há de bom em cada pessoa; é tolerante e tem esperança na possibilidade de mudança de cada pessoa; procura ajudar para que cada um se confronte com a verdade; não desanima, nem se deixa abater, até que a justiça se estabeleça na sociedade... (cf. Is 42,2-4).

Você se reconhece nessas atitudes? Elas dizem o quanto você está vivendo de acordo ou não com o seu Batismo, o quanto você se deixa conduzir ou não pelo Espírito que recebeu no dia do seu Batismo. Também o apóstolo Pedro nos ajuda a rever a nossa postura enquanto batizados, ao mencionar que, depois do Batismo, Jesus “foi ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder. Ele andou por toda a parte, fazendo o bem... (At 10,38). O bem que Deus chama cada um de nós, batizados, a fazer pode ser traduzido nessas palavras: “Eu, o Senhor, te chamei para a justiça; eu te formei para... abrires os olhos dos cegos, tirar os cativos da prisão, livrar do cárcere os que vivem nas trevas” (Is 42,6-7).

            Mas há um outro aspecto muito importante, quando se fala do nosso Batismo: nossa relação com Deus Pai. O fato de Jesus, após o Batismo, se colocar em oração é algo fundamental para a nossa vida de batizados: todo filho de Deus vive numa absoluta dependência espiritual do Pai. É só na oração que podemos voltar a ouvir a voz do Pai nos dizendo: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer” (Lc 3,22). Essas palavras falam da nossa verdadeira origem: ela não é terrena, mas celeste! Nossa referência de vida não é a terra, mas o céu. Quem nos amou primeiro e nos chamou à vida não foram os nossos pais terrenos, mas o nosso Pai do Céu. A força que nos anima e nos faz enfrentar com coragem as dificuldades da vida não está em nossa carne, mas no Espírito que nos habita!

Hoje somos convidados a renovar as promessas do nosso batismo para que o céu, que ainda parece fechado sobre a vida de tantas pessoas, volte a se abrir. Que a água viva do Espírito Santo renove a graça do Batismo que um dia recebemos. Que o Seu fogo queime nossas impurezas e nos transforme na imagem do Filho único de Deus, cuja festa do Batismo celebramos hoje. Assim seja.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

 

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

QUANDO MAIS ESCURIDÃO, MAIS A LUZ QUE É CRISTO DEVE BRILHAR ATRAVÉS DE NÓS!

Missa da Epifania (Manifestação) do Senhor. Palavra de Deus: Isaías 60,1-6; Efésios 2-3a.5-6; Mateus 2,1-12.

 

No dia de Natal, Jesus foi descrito como “a vida que é a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la” (Jo 1,5). “Ele é a luz de verdade, que, vindo ao mundo, ilumina todo ser humano” (Jo 1,9). E hoje a liturgia centra-se mais uma vez no tema da luz: “Levanta-te, acende as luzes, Jerusalém, porque chegou a tua luz, apareceu sobre ti a glória do Senhor” (Is 61,1).

Nós, cristãos, somos chamados a viver como “filhos da luz”, procedendo retamente, segundo a verdade e a justiça, conforme Jesus procedeu. No entanto, a luz só é percebida no contraste com as trevas, com a escuridão. É justamente quando o céu fica escuro, quando anoitece, que a luz das estrelas é percebida com maior nitidez: “Eis que está a terra envolvida em trevas, e nuvens escuras cobrem os povos; mas sobre ti apareceu o Senhor, e sua glória já se manifesta sobre ti. Os povos caminham à tua luz e os reis ao clarão de tua aurora” (Is 61,2-3).

As palavras do profeta Isaías não falam de um privilégio, mas de uma missão. Todo cristão deveria ser uma luz que contrasta com a escuridão do mundo, de modo que as pessoas possam encontrar direção a partir da luz daqueles que vivem segundo o Evangelho, seguindo os passos Jesus, que se definiu como “Luz do mundo” (Jo 8,12). Mas, de novo, é preciso lembrar que ser luz, viver como filhos da luz, exige suportar o contraste com as trevas. Assim como os morcegos se sentem incomodados com a luz, assim aqueles que vivem segundo os contravalores do mundo se sentem incomodados com aqueles que procuram viver segundo os valores do Evangelho.   

“Eis que está a terra envolvida em trevas, e nuvens escuras cobrem os povos” (Is 61,2). As trevas e as nuvens escuras podem ser vistas na desigualdade social que gera violência, injustiça e morte; na disseminação de fake news e na política de desinformação; na desorientação das redes sociais; no mercado que visa o lucro desmedido em detrimento da vida do ser humano; na guerra diária entre traficantes e milicianos pelo controle das favelas; na vivência intimista da fé e da religião, onde não se dá testemunho explícito de Jesus Cristo nem se defende a vida, mas apenas a moral individual; no individualismo que gera indiferença para com o sofrimento alheio etc. Justamente dentro desse contexto é que Jesus desafia cada um de nós: “Seja a minha luz”.

O apóstolo Paulo, que compreendeu a sua vocação como luz que deve brilhar no meio das trevas (cf. At 13,47), entendeu que sua missão principal era levar a luz do Evangelho ao mundo pagão. O motivo está no que ele acabou de nos dizer: “os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho” (Ef 3,6). Isso significa que é missão de cada um de nós incluir os que estão excluídos, seja porque o Evangelho nunca chegou a eles, seja porque a prática pastoral da nossa Igreja ainda está engessada na “manutenção”, sem coragem para lançar-se na missão. Não podemos nos esquecer de que o nosso mundo está muito mais pagão do que na época de Paulo.

“Onde há trevas, que eu leve a luz!” Idosos solitários precisam da nossa luz, assim como crianças expostas à pobreza, à violência e à ausência de referência religiosa dentro de casa. Famílias desestruturadas precisam da nossa luz, assim como famílias onde os bens materiais não conseguem responder à fome de fé, de esperança e de sentido de vida. Inúmeros jovens atingidos pelo desemprego, viciados nas redes sociais, desprovidos de horizonte de vida, anestesiados pela tecnologia, desorientados na própria sexualidade e escravizados pelo consumismo precisam de nossa luz. Cada vez mais pessoas em nosso ambiente de trabalho, não vinculadas a qualquer igreja ou religião, precisam da nossa luz.

Diante de Jesus, o verdadeiro presente de Deus para a humanidade, os magos “abriram seus cofres e ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra” (Mt 2,11). Todo cristão é convidado a oferecer hoje à Igreja e à sociedade humana o seu ouro, isto é, a preciosidade da sua retidão, da sua honestidade, da sua fé e do seu trabalho voluntário. Todo cristão também é convidado a oferecer o seu incenso, isto é, a sua presença sagrada, a força da sua espiritualidade, o perfume que emana da luta pela sua santificação diária. Enfim, todo cristão é convidado a oferecer a sua mirra, o seu dispor-se a estar junto das pessoas que sofrem, colaborando para aliviá-las e consolá-las.    

 

Oração: Meu Deus, eu procuro a Tua face; procuro a Tua verdade. Concede-me uma fé simples e sincera, pois o Senhor sempre se deixa encontrar por quem O procura de coração sincero. Por mais que a minha busca por Ti seja às vezes sofrida, que eu nunca me esqueça de que o Senhor não apenas existe, mas também nunca deixa sem resposta quem Te busca na oração sincera. 

Quero acolher a luz do Teu Filho, acolher o presente que o Senhor oferece a toda a humanidade: a salvação em Teu Filho Jesus. Diante dele dobro meus joelhos, abro o cofre do meu coração e ofereço-me como ouro, incenso e mirra. Ofereço a preciosidade da retidão do meu caráter e do meu serviço, para o bem da Igreja e da sociedade; ofereço a força da minha espiritualidade e o perfume que emana da minha luta em me santificar; enfim, ofereço ao Teu Filho o meu esforço em me colocar como presença cristã junto daqueles que sofrem, para confortá-los e reanimá-los. Amém.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

 

 

 

GRATIDÃO, CONFIANÇA E ESPERANÇA

 Missa Maria Mãe de Deus. Palavra de Deus: Números 6,22-27; Gálatas 4,4-7; Lucas 2,16-21.

 

Quais sentimentos estão dentro do nosso coração, nesta passagem de ano? Gratidão? Arrependimento? Culpa? Ansiedade? Medo? Esperança? Que balanço podemos fazer do ano que termina nesta noite? Ganhamos? Perdemos? Empatamos?

Na verdade, essa forma de avaliar o ano não é correta, pois o sentido da vida não está em somar ou subtrair e festejar porque o resultado final mostra que saímos no lucro. A vida não vale a pena quando os fatos positivos são maiores do que os negativos, mas quando nós conseguimos nos manter fiéis aos nossos propósitos, à nossa missão, respondendo ao que a própria vida nos pede diante de cada situação. Eis porque a celebração desta noite nos faz voltar para a figura de Nossa Senhora: “Quanto a Maria, guardava todos estes fatos e meditava sobre eles em seu coração” (Lc 2,19). O mais importante não é que o ano que termina tenha um saldo positivo de coisas boas, mas que nós tenhamos aprendido a ouvir aquilo que a vida quis nos ensinar em cada acontecimento que marcou este ano.

Algo que o nosso coração precisa meditar nesta noite é a seguinte verdade: “Quando compreendemos que não é um dia a mais, mas sim um dia a menos, começamos a valorizar o que realmente importa” (Cora Coralina). Temos um ano a menos em nossa história de vida! Essa verdade precisa nos ajudar a reavaliar nossas prioridades: quais são nossos valores? Que projetos temos? Quais esperanças nos movem? O que ainda podemos fazer da nossa existência que se torna sempre mais breve neste mundo? Nós já aprendemos a valorizar o que realmente importa? Importa viver e não apenas sobreviver. Importa frear a correria, diminuir a velocidade e compreender que o sentido está no caminho que percorremos e não simplesmente na meta que alcançamos. Não podemos nos contentar em atingir metas e mais metas, enquanto perdemos a nossa alma pelo caminho, enquanto descuidamos do essencial.

O mundo em que vivemos tem se tornado cada vez mais pagão. A maioria das pessoas vive como se Deus não existisse, escrava das superstições, das redes sociais, da tecnologia; escrava do consumismo, dos vícios, da necessidade de aprovação dos outros. O escravo não escolhe nada, mas vive a partir daquilo que escolheram para ele. Jesus, ao nascer de Maria, nasceu sujeito à Lei religiosa que impunha um fardo insuportável: o fardo da condenação, pois ninguém conseguia cumprir tudo que a Lei exigia. Mas Jesus quebrou a corrente da escravidão e nos deu a liberdade de sermos filhos de Deus, de modo que “já não há mais condenação para aqueles que estão em Jesus Cristo” (Rm 8,1).

A diferença fundamental entre ser escravo e ser livre é que o escravo tem sua vida determinada a partir de fora, enquanto que a pessoa livre determina-se a partir de dentro. O escravo sofre uma dependência imposta a partir de fora; a pessoa livre escolhe deixar-se guiar pelo Espírito de Deus. Enquanto a pessoa escrava justifica sua escravidão culpando as situações ruins pela sua infelicidade, a pessoa livre posiciona-se diante de cada acontecimento e procura responder ao que a vida está lhe pedindo, buscando-se manter fiel ao Espírito que a conduz. Como afirmou o apóstolo Paulo, a pessoa que tem consciência de ser filha de Deus carrega dentro de si uma constante oração: “Abbá! Papai!”.

É assim que desejamos acolher o novo ano que está nascendo: como filhos, não como escravos; como pessoas que têm um Pai, não como pessoas orfãs que não têm ninguém por elas. O nosso Pai é o Pai de Jesus, o Pai que está no céu, acima de tudo, maior que tudo, presente em tudo, capaz de fazer com que tudo contribua para o bem daqueles que aceitam caminhar orientados pelo Seu Espírito. O nosso Pai é o Pai que não removerá todos os obstáculos da nossa vida porque Ele deseja o nosso crescimento, o nosso amadurecimento, a nossa superação. A Ele pedimos nesta noite a Sua bênção para o ano que nasce.    

“Que Deus nos dê a sua graça e sua bênção, e sua face resplandeça sobre nós! Que na terra se conheça o seu caminho e a sua salvação por entre os povos. Que o Senhor e nosso Deus nos abençoe, e o respeitem os confins de toda a terra!” (Sl 67,2.3.8). A bênção de Deus não é blindagem contra a dor, mas força para enfrentar a dor; não é garantia de sucesso constante, mas coragem para lidar com os fracassos e sabedoria para aprender com as frustrações; não é ganho incessante, mas capacidade para lidar com as perdas a que todo ser humano está exposto; enfim, a bênção do Pai do céu não é exclusivismo espiritual, mas missão: devemos ser uma bênção para as outras pessoas.

“Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido” (Lc 2,21). A circuncisão era um corte na pele do órgão genital do menino. Nada é mais íntimo a nós mesmos do que a nossa sexualidade. É através dela que nós sentimos, nos expressamos, nos relacionamos com o outro. A questão principal não é a circuncisão de um órgão do corpo, mas do coração: que o centro da nossa vida, que o núcleo da nossa interioridade seja diariamente consagrado a Deus. A circuncisão é uma marca de pertença. Essa marca não nos é mais dada em um órgão do nosso corpo, mas sim em nossa consciência, o lugar sagrado onde Deus habita (cf. Ap 7,3). Cuidemos dessa pertença! Deixemo-nos conduzir pelo Espírito de Deus (cf. Rm 8,14). Protejamos a nossa liberdade de filhos de Deus e não nos tornemos escravos de coisas, de pessoas ou de situações.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

FAMÍLIA: DO DESENCONTRO PARA O REENCONTRO

 Missa da Sagrada Família. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Cl 3,12-21; Lc 2,41-52.

 

O Natal nos leva a olhar para uma família: a família de Nazaré. Nela vemos o retrato de inúmeras famílias, atingidas pela pobreza (cf. Lc 2,7), pelo problema da imigração forçada (cf. Mt 2,14-15), pela ameaça da violência (cf. Mt 2,16-20) e pelos desencontros (Lc 2,43.45). Esses fatos nos ajudam a perceber que nenhuma família na face da terra está poupada de enfrentar problemas, e mesmo as famílias que buscam caminhar em Deus são atingidas por grandes dificuldades. Na verdade, toda família que quiser viver segundo os valores do Evangelho vai enfrentar a hostilidade de um mundo pautado cada vez mais em contravalores.

O primeiro lugar que o Evangelho precisa atingir, enquanto luz, força, conversão, cura, restauração e salvação, é, sem dúvida, a família. Não teria sentido nós, cristãos, sermos “sal da terra” e “luz do mundo” (cf. Mt 5,13.14) na sociedade humana e não o sermos primeiramente dentro de casa. Portanto, a família de cada um de nós é um campo de missão. É dentro dela que mais precisamos viver segundo o Evangelho, assim como também buscar na Palavra de Deus a orientação e a força para lidarmos com os problemas que atingem a nossa família. Se o Papa Francisco afirmou que “não podemos pretender ser pessoas saudáveis vivendo num mundo doente”, isso vale também para a nossa família: nenhuma família pode pretender passar por este mundo sem enfrentar os males que atingem a humanidade como um todo.

O Evangelho de hoje nos fala da perda e do reencontro do menino Jesus: “o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o notassem” (Lc 2,43). “Sem que seus pais o notassem” – com a vida corrida que todos nós levamos, é bem possível que alguém esteja se perdendo dentro da nossa casa, sem que notemos. Nós estamos notando, percebendo, nos dando conta de como cada membro da família está? Será que alguma perda está acontecendo dentro do relacionamento conjugal, ou em relação aos filhos? Mergulhados como estamos nas redes sociais, seja devido ao trabalho, seja devido à distração, nós ainda estamos nos percebendo dentro de casa?

Na parábola do Pai misericordioso, Jesus deixou claro que aquilo que está perdido pode ser reencontrado, assim como aquilo que está morto pode voltar a viver (cf. Lc 15,24.32). Na casa da família de Zaqueu, Jesus afirmou que veio “procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). A primeira questão é tomarmos consciência daquilo que está se perdendo em nossa família. Além disso, é preciso modificarmos nossas atitudes, de modo a recuperar o que se perdeu e fazer viver o que morreu, ao invés de nos conformarmos com a “normalidade” da perda, com a “normalidade” da desestruturação das famílias.

O distanciamento da nossa Igreja em relação às famílias desestruturadas, feridas ou destruídas é um escândalo! Ao invés de cuidarmos das 99 famílias em situação de perda, nós ficamos girando em torno de uma única família que ainda se mantém em pé, justamente aquela que consideramos uma “família tradicional”. Falta-nos coragem e criatividade pastoral para nos fazer próximos, como Igreja, junto a toda família “não tradicional”, porque marcada pela separação, por novas uniões, e, sobretudo, por graves problemas como abuso sexual, violência doméstica, desemprego, doenças, endividamento, abandono escolar, ausência de qualquer referência religiosa etc. Esse imenso campo de missão precisa de todos nós, cristãos, e não somente dos líderes das nossas comunidades. É necessário que famílias evangelizem, amparem, curem e salvem famílias.

O livro do Eclesiástico deixou claro que Deus está onde um cuida do outro, onde pais cuidam dos filhos e filhos cuidam dos pais. Mas, como cuidar, se estamos esgotados, ou então fechados em nós mesmos? Uma atenção especial é pedida pelo Eclesiástico em relação aos idosos. A solidão e a sensação de abandono têm levado alguns idosos ao suicídio! Esse grito desesperado de ajuda precisa chegar aos nossos ouvidos. Para cuidarmos uns dos outros de maneira justa e equilibrada, precisamos nos lembrar de que “por trás de toda pessoa sobrecarregada, há sempre uma outra pessoa folgada”. A saúde emocional da família depende de que cada um faça a sua parte para o bom funcionamento da casa. É por isso que o apóstolo Paulo chama cada membro da família à responsabilidade: o marido, a esposa, os pais e os filhos (cf. Cl 3,18-21).

Retornando ao Evangelho de hoje, como foi que o desencontro se transformou em reencontro? Quando os pais de Jesus voltaram ao Templo: “Três dias depois, o encontraram no Templo” (Lc 2,46). O tempo de três dias é uma clara referência à morte e à ressurreição de Jesus, uma forma de o Evangelho nos dizer que aquilo que morreu pode voltar a viver. Nada está perdido e morto para sempre, quando a família se deixa conduzir por Deus, obedecendo à sua Palavra. O tempo de três dias também significa que há um tempo necessário para que a ferida seja curada, o perdão seja dado, o diálogo seja retomado, a distância seja transformada em proximidade. As coisas mais importantes da vida em família não são recuperadas instantaneamente, mas suportando o tempo necessário para que isso aconteça.

Enfim, consideremos o posicionamento de Jesus diante de seus pais: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?” (Lc 2,49). Aos doze anos de idade, Jesus tomou consciência do seu dever, da sua missão, do sentido da sua vida. Nós somos a geração do “eu quero”, não do “eu devo”. Pessoas imaturas se movem na vida apenas pelo “eu quero”: só fazem aquilo que querem, aquilo que lhes dá algum prazer ou lhes proporciona algum benefício. Pessoas maduras se guiam na vida pelo “eu devo”: não importa se eu estou com vontade ou não, se vou me beneficiar e ter prazer ou não; minha conduta é guiada pelo meu dever, pela minha missão. Quando os membros de uma família se movem apenas pelo “eu quero”, cada um vai numa direção e todos se perdem. Quando, pelo contrário, se guiam pelo “eu devo”, todos chegarão à meta para a qual foram chamados, porque se mantiveram fiéis à missão para a qual nasceram.   

 

 

Oração à Sagrada Família (Papa Francisco, Amoris Laetitia).

 

Jesus, Maria e José, em Vós contemplamos o esplendor do verdadeiro amor, confiantes, a Vós nos consagramos. Sagrada Família de Nazaré, tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração, autênticas escolas do Evangelho e pequenas igrejas domésticas. Sagrada Família de Nazaré, que nunca mais haja nas famílias episódios de violência, de fechamento e divisão; e quem tiver sido ferido ou escandalizado seja rapidamente consolado e curado. Sagrada Família de Nazaré, fazei que todos nos tornemos conscientes do caráter sagrado e inviolável da família, da sua beleza no projeto de Deus. Jesus, Maria e José, ouvi-nos e acolhei a nossa súplica.
Amém.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A NOSSA "CARNE" DEVE COMUNICAR A PALAVRA QUE É DEUS

 Missa de Natal. Palavra de Deus: Is 9,1-6; Tt 2,11-14; Lc 2,1-14 (noite). Is 52,7-10; Hb 1,1-6; Jo 1,1-18 (dia).

 

Toda pessoa que nasce, nasce num tempo determinado e numa situação determinada. Alguns nasceram em meio a guerras; outros, num ambiente de paz. Alguns nasceram numa família estabilizada financeiramente; outros, em meio a muita miséria. Alguns nasceram sendo amados e desejados; outros, sentindo-se fortemente rejeitados. Alguns nasceram no seio de famílias de fé; outros, em ambientes sem nenhuma fé. Alguns nasceram sob o regime da democracia; outros, sob o regime de um ditador...

            Nós não escolhemos em que época, em que tempo, nem em qual família ou contexto social e político nascer. Tudo isso nos foi dado, e cada um de nós foi chamado a se posicionar diante da realidade que marcou a nossa existência, lembrando que ninguém é fruto daquilo que lhe aconteceu; todos nós somos fruto daquilo que decidimos fazer com o que nos aconteceu. Além disso, o momento em que nós nascemos, dentro da história humana, foi o momento em que Deus quis que existíssemos, para deixar no mundo, com a nossa existência, uma palavra Sua para a humanidade.

Qual foi o contexto em que aconteceu o Natal, o nascimento de Jesus? Ele nasceu debaixo da dominação do Império Romano; conheceu a forte violência desse Império diante de qualquer tentativa de rebelião (crucificação, degolamento); cresceu e viveu no meio de um povo endividado (o permanente risco de perda do seu pedaço de terra), tendo que pagar a Roma altos impostos. Jesus nasceu num contexto de forte desigualdade social, com alto número de indigentes e de prostitutas. No âmbito religioso, Jesus viveu distante do Templo de Jerusalém, pois morava muito longe da capital, numa periferia considerada “impura” pelos judeus conservadores – a Galileia. Ali, Jesus alimentou a sua fé frequentando a sinagoga aos sábados, onde ouvia e meditava a Palavra de Deus. Resumindo, Jesus nasceu e viveu sendo ignorado por muito tempo, e quando morreu, foi interpretado como um fracassado.

Por causa das redes sociais, existe hoje uma superexposição da criança logo que nasce. Os pais de classe média e alta postam fotos e vídeos de seus filhos como se fossem “príncipes” e “princesas”, isto é, como se fossem o centro do mundo. Esquecem ou ignoram que “vaidade” significa “vazio”: quanto mais vazia uma carroça, mais barulho ela faz. Quanto mais aparência, menos essência. O grande perigo das crianças filhas da classe média e alta é seus pais lhes darem tudo, menos aquilo que o dinheiro não pode comprar: caráter, honestidade, respeito ao próximo, capacidade de lidar com a dor e com a frustração, fé, conhecimento de Deus...

Por outro lado, muitas crianças nascem em ambientes marcados pela pobreza, pela miséria, onde não apenas faltam condições mínimas de vida, mas também afeto, presença. Uma parte considerável dessas famílias está marcada pela separação, pela ausência do pai, sobretudo, pela violência verbal ou física, pela bebida e pelas drogas (não que isso não aconteça nas outras famílias), pelo desemprego e por uma baixa escolaridade. Tudo isso precisa ser trazido à nossa consciência neste dia de Natal, porque o Menino Jesus está presente em cada criança como possiblidade de superação de todo condicionamento familiar e social.

O nascimento de Jesus foi traduzido pelo evangelista João dessa maneira: “A Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Antes de mais nada, o Deus em quem nós cremos é Palavra: Palavra que orienta, esclarece, liberta, corrige, encoraja, perdoa, cura, julga – no sentido de fazer justiça; principalmente, Palavra que faz passar da morte para a vida. Essa Palavra se fez pessoa humana em Jesus Cristo. Isso significa que “Deus é Jesus”. Nós não podemos saber nada sobre a Pessoa do Pai se não nos aproximarmos da Pessoa do Filho. Só o Filho pode nos revelar o Pai. Qualquer imagem ou ideia que possamos ter de Deus, precisamos confrontá-la com o Jesus histórico, revelado a nós pelos Evangelhos.

Em seu Filho Jesus, Deus veio morar na carne humana. Ao descrever o ser humano como “carne”, a Bíblia fala da fraqueza humana, da sua insuficiência, da sua finitude, da sua tendência ao pecado, da sua necessidade de redenção e de salvação. Tudo o que atinge a “carne” do ser humano atinge Deus. Ele enviou o seu Filho não para salvar “almas”, mas para salvar o ser humano na sua dimensão física, psíquica e espiritual. Um cristianismo que não se importa com a situação da “carne” humana, mas somente com sua dimensão espiritual, não entendeu o sentido do Natal.

Em seu Filho Jesus, o Pai se fez humano. Se o Natal perde cada vez mais o sentido no mundo moderno é porque nós estamos nos desumanizando. Toda pessoa que se desumaniza, afasta-se de Jesus, porque Ele é o Deus humano. Toda pessoa que rejeita sua própria humanidade e se refugia numa espiritualidade desencarnada, não compreendeu quem é Jesus. Toda pessoa que se distancia do ser humano ferido, degradado, injustiçado e tratado de maneira desumana, distancia-se igualmente de Jesus. Cada Natal que celebramos precisa nos questionar se atualmente nós estamos mais humanos ou menos humanos, se nós ainda cremos na possibilidade de recuperação do ser humano.

Se o nascimento de Jesus foi o momento em que “a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14), o Natal precisa nos fazer refletir se a nossa carne – a nossa existência humana – está comunicando a Palavra de Deus às pessoas que convivem conosco. A descrença na Pessoa de Deus e de Jesus Cristo está diretamente ligada a isso: a vida dos cristãos do mundo atual nada diz às pessoas do nosso tempo. Nossa vida precisa se tornar “Palavra” para as outras pessoas. Ninguém escuta o que eu falo, mas todos observam como eu vivo. O meu modo de viver deve “falar” de Deus e de seu Filho Jesus aos outros. Sendo assim, que cada um de nós “consiga identificar a palavra, a mensagem de Jesus que Deus quer dizer ao mundo com a nossa vida... O Senhor a levará ao cumprimento mesmo no meio dos nossos erros e momentos negativos, desde que não abandonemos o caminho do amor e permaneçamos sempre atentos à sua ação sobrenatural que purifica e ilumina” (Papa Francisco, GE n.24). Enfim, não nos esqueçamos de que “para viver o Evangelho, não podemos esperar que tudo à nossa volta seja favorável” (GE, n.91). Que o nosso modo de viver comunique às pessoas do nosso tempo: “Nasceu hoje para vós um Salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lc 2,11).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

VISITA-ME, SENHOR, COM A TUA SALVAÇÃO!

 Missa do 4. dom. advento. Palavra de Deus: Miqueias 5,1-4a; Hebreus 10,5-10; Lucas 1,39-45.

 

       O Evangelho deste último domingo do advento nos fala da “visita” de Maria a Isabel. Nos tempos atuais, as visitas se tornaram escassas, muito raras. Primeiro, porque não temos mais tempo de visitar nossos parentes e amigos. Segundo, porque a própria pandemia nos obrigou a evitar fazer visitas justamente por causa do risco de contaminação do coronavírus. Mas essa “visita” de Maria a Isabel nos oferece a oportunidade de meditar sobre as inúmeras visitas que Deus fez ao seu povo na Sagrada Escritura.

Para falar da cura da esterilidade de Sara, mulher de Abraão, a Escritura diz que “o Senhor visitou Sara, como dissera, e fez por ela como prometera. Sara concebeu e deu à luz um filho...” (Gn 21,1-2). Para anunciar o nascimento de Jesus, nosso Salvador, Zacarias disse: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu seu povo... Graças ao misericordioso coração de Deus, o sol nascente nos veio visitar, para iluminar os que se encontram nas trevas e na sombra da morte estão sentados” (Lc 1,68.78-79). Depois que Jesus ressuscitou o filho da viúva de Naim, o povo louvou a Deus reconhecendo: “Deus visitou o seu povo” (Lc 7,16).

Quantas vezes Deus visitou você, sem que você percebesse? Jesus chorou sobre Jerusalém, lamentando o seu fechamento à salvação, com essas palavras: “Você não reconheceu o tempo em que foi visitada!” (Lc 19,44). Essa é a tragédia de algumas pessoas, cidades ou países: não reconhecerem a visita do Deus que pode lhes trazer a paz, que pode salvá-los da destruição que eles mesmos estão provocando em suas vidas. Por que nem sempre reconhecemos o momento em que Deus nos visita? Porque estamos desligados da nossa própria consciência; porque, ainda que sintamos que Deus está falando conosco por meio de uma situação, não paramos para ouvi-Lo, porque temos que continuar em frente, sem nos dar conta de que estamos indo na direção de um abismo.

Nós também precisamos considerar que a visita de Deus é um momento difícil para nós, porque é o momento de nos confrontar com a verdade: “No dia da minha visita, eu punirei o pecado deles” (Ex 32,34). A visita de Deus também significa o fim da injustiça, da impunidade, o acerto de contas do ser humano com a sua consciência, a hora de Deus retribuir a cada um de acordo com a sua conduta. Por isso, muitas pessoas preferem fugir da visita de Deus; preferem adiar o quanto for possível essa visita, o que é lamentável, porque seria a chance de elas se converterem, de mudarem de comportamento e serem salvas.

O salmo que hoje meditamos também menciona a visita de Deus: “Despertai vosso poder, ó nosso Deus, e vinde logo nos trazer a salvação! (...) Visitai a vossa vinha e protegei-a!” (Sl 80,3.15). Ser visitado por Deus significa ser protegido por Ele, ser defendido contra aquele que ameaça com a destruição. Também o salmo 106,4 pede a visita de Deus: “Lembra-te de mim, Senhor, (...) visita-me com a tua salvação”. Quantas pessoas idosas e enfermas estão esquecidas em suas casas? De quantas pessoas não mais nos lembramos? Visitá-las seria devolver-lhes alegria, vida, esperança, conforto...

A visita de Maria fez com que a criança pulasse de alegria no ventre de Isabel e ela ficasse cheia do Espírito Santo (cf. Lc 1,41). Precisamos visitar nossos familiares, pessoas amigas e, sobretudo, pessoas que vivem sozinhas... Visitar significa romper o silêncio, diminuir a distância, derrubar o muro de separação, desfazer o ressentimento, experimentar o milagre da reconciliação. Quando essa visita acontece, algo que parecia estar morto ganha vida dentro de nós, e dentro da pessoa que visitamos!

Uma palavra a respeito do nosso corpo. Ao visitar Isabel, que está grávida há seis meses, Maria também está grávida. No corpo de uma mulher idosa e estéril, assim como no corpo de uma mulher virgem, dois outros corpos estão sendo gerados: o corpo de João Batista e o corpo de Jesus. Uma criança sente a outra: João Batista pula de alegria no ventre de sua mãe, ao sentir a presença de Jesus no ventre de Maria. Como as mulheres grávidas cuidam do seu próprio corpo? O que os filhos que estão sendo gerados sentem? Acolhida ou rejeição? O que eles recebem: alimentação saudável ou tóxica? Cerca de 30% das crianças em idade escolar estão comprometidas em sua capacidade de aprendizado, porque foram geradas em ventres contaminados pelas drogas que a mãe consumiu durante a gravidez.  

A carta aos Hebreus nos traz uma palavra de Jesus dirigida ao Pai: “Tu não quiseste vítima nem oferenda, mas formaste-me um corpo... Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade” (Hb 10,5.7). Jesus sempre viveu sua espiritualidade a partir do seu corpo e da sua sexualidade. Ele nunca aceitou a distorção – tão comum hoje – de que a alma presta, mas o corpo não presta. Deus nos deu um corpo, e esse corpo é chamado a ser integrado em nossa espiritualidade. Para algumas pessoas, é necessário reconciliar-se com o próprio corpo. Para outras, é preciso compreender e dialogar com sua sexualidade, com seus desejos, e dialogar com aquilo que sente, de modo que seja a consciência a dar a direção ao corpo, e não o contrário – o cavaleiro cavalga montado sobre o cavalo, e não o contrário!

Jesus fez algo belíssimo com o seu corpo: transformou-o numa oferenda a Deus! Ele não teve medo de expor o próprio corpo ao sofrimento, à dor, sempre que isso foi necessário para viver segundo a vontade de Deus. Seu corpo, gerado no ventre de Maria, foi ofertado em sacrifício no altar da cruz: “É graças a esta vontade que somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada uma vez por todas” (Hb 10,10). O corpo de Jesus, assim como o nosso, tinha as suas vontades, os seus desejos, os quais nem sempre coincidiam com a vontade de Deus. Mas Jesus submeteu à vontade de Deus o que o seu corpo sentia. Para isso, é preciso treinar a nossa vontade, torná-la forte, educá-la, de modo que o nosso corpo não nos traia e não nos afaste de Deus.

A hóstia é a “oferenda do corpo de Jesus Cristo” (Hb 10,10). Quando comungamos, nosso corpo entra em comunhão com o corpo crucificado e ressuscitado de Jesus; recebemos em nosso corpo o Corpo que conheceu a dor, a tentação, a fraqueza, a fome, a agressão, a violência, o desprezo do mundo, o Corpo que se sujou com a sujeira da humanidade, o Corpo que lutou para submeter-se à vontade de Deus. Aquele que nos visita tem um Corpo e precisa visitar também o nosso corpo: libertá-lo, curá-lo, ordenar os seus afetos e desejos, torná-lo uma oferenda agradável a Deus...    

 

Oração: “Lembra-te de mim, Senhor, (...) visita-me com a tua salvação” (Sl 106,4). Lembra-te desta pessoa por quem eu oro neste momento, Senhor, ela que se encontra necessitada, numa situação de sofrimento: visita-a com a tua salvação! Lembra-te das famílias, dos que trabalham, dos que estão desempregados, dos doentes, dos idosos solitários em suas casas: visita-os com a tua salvação! Lembra-te dos que estão presos, dos praticam violência e dos que são atingidos por ela, dos que passam fome, dos que estão com seus corpos escravizados pelo vício das drogas: visita-os com a tua salvação! Tu me formaste um corpo. Eu entrego a Ti os meus afetos, os meus desejos, a minha sexualidade. Santifica-me, Senhor. Quero fazer do meu corpo uma oferenda agradável a Ti, sacrificando-me para viver segundo a Tua vontade e também para fazer o bem que for possível a toda pessoa cujo corpo encontra-se atingido por algum sofrimento. Em nome de Jesus, na graça do Espírito Santo. Amém.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

ALEGRIA E ESPERANÇA: POSICIONAMENTO INTERNO PERANTE AS SITUAÇÕES EXTERNAS

 Missa do 3. dom. advento. Palavra de Deus: Sofonias 3,14-18a; Filipenses 4,4-7; Lucas 3,10-18.

 

Nos textos bíblicos de Sofonias, de Isaías e de Paulo, que acabamos de ouvir, há um explícito convite que o Senhor nos faz à alegria: “Canta de alegria, rejubila... Alegra-te e exulta de todo o coração!” (Sf 3,14). “Com alegria bebereis no manancial da salvação” (Is 12,3). “Alegrai-vos sempre no Senhor; eu repito, alegrai-vos” (Fl 4,4).

Essa alegria, à qual o Senhor nos chama, encontra-se estampada de maneira artificial nas fotos que são postadas nas redes sociais. É uma alegria epidérmica, que está só na pele, como maquiagem; é uma alegria superficial, que não atinge o coração; é a alegria criada artificialmente pela propaganda de consumo; uma alegria que depende exatamente da capacidade de consumo. Só quem compra e usufrui de tal produto pode experimentar a propagada alegria.

Mas não é essa a alegria a qual somos chamados a experimentar. Ela não depende de fatores externos, nem de que tudo esteja bem, nem de que não haja qualquer tipo de problema em nossa vida. A alegria à qual Deus nos chama é uma atitude interna perante a vida, o mundo que nos cerca e os acontecimentos. É uma alegria que se traduz num posicionamento: não importa se faz calor ou chove, se estou na abundância ou na carência, se tudo está bem ou se muita coisa não está bem... Nada disso importa. A alegria do cristão está numa certeza: a presença amorosa do Senhor junto dele: “o Senhor... está no meio de ti, nunca mais temerás o mal... Não temas... não te deixes levar pelo desânimo! O Senhor, teu Deus, está no meio de ti, o valente guerreiro que te salva” (Sf 3,15.16.17); “O Senhor está próximo!” (Fl 4,5); “Exultai cantando alegres... porque é grande em vosso meio o Deus Santo de Israel!” (Is 12,3).

A razão da nossa alegria não está em nós mesmos ou em nossa capacidade de não sermos afetados pelas coisas ruins e dolorosas. Ela repousa numa certeza: “Ele está no meio de nós!”, conforme a Sua promessa: “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20). É verdade que existe um véu que nos impede de ver o Senhor, um véu que será retirado somente no dia da Sua revelação (revelar significa “tirar o véu”!). Justamente por isso, se diz que “nós caminhamos na fé, não na visão clara” (2Cor 5,7). Nossa alegria não depende daquilo que vemos, mas daquilo que cremos!!! Cremos na segunda vinda do Senhor Jesus! Cremos na criação de novos céus e de uma nova terra! Cremos que o Senhor, que está no meio de nós, transforma a nossa tristeza em alegria: “Se à tarde vem a tristeza nos visitar, de manhã vem nos saudar a alegria” (Sl 30,6).

Se dificilmente estamos isentos de medo, de preocupação, de dificuldades a enfrentar e de problemas a resolver, mesmo assim podemos manter o nosso coração sereno e confiante, seguindo o conselho do apóstolo Paulo: “Não vos inquieteis com coisa alguma, mas apresentai as vossas necessidades a Deus, em orações e súplicas, acompanhadas de ação de graças. E a paz de Deus, que ultrapassa todo o entendimento, guardará os vossos corações e pensamento em Cristo Jesus” (Fl 4,6-7). Portanto, o lugar dos medos, das preocupações, das dificuldades e dos problemas que nos afligem não é em nossa mente, nem em nosso coração, mas nas mãos do nosso Deus, cuja paz é maior que tudo aquilo que nos aflige.

Até aqui ficou claro que a alegria não é um sentimento, muito menos uma emoção, mas uma atitude perante a vida. A necessidade de termos atitudes aparece no Evangelho de hoje, por meio de uma pergunta que se repete: “Que devemos fazer?” (Lc 3,10.12.14). Enquanto aguardamos o Senhor que vem, o que devemos fazer? Não se aguarda a vinda de Jesus passivamente, muito menos deixando a vida nos levar. O cristão aguarda pelo Senhor Jesus vivendo segundo o Evangelho que Ele nos deixou, o qual se resume em humanizar as nossas atitudes para com as pessoas que convivem conosco: “é preciso sair do nosso egoísmo e aprender a partilhar; é preciso quebrar os esquemas de exploração e de imoralidade e proceder com justiça; é preciso renunciar à violência e à prepotência e respeitar absolutamente a dignidade dos nossos irmãos” (Liturgia Dehonianos).

Ao responder à pergunta “o que devemos fazer?”, João Batista está antecipando algo que Jesus dirá mais tarde: “Há mais alegria em dar do que em receber” (At 10,35). A alegria que o nosso coração busca se encontra quando esquecemos de nós mesmos e nos doamos àqueles que de nós necessitam; quando deixamos de ser egoístas e passamos a ser solidários; quando o mais importante deixa de ser o nosso sucesso pessoal e passa a ser a diminuição da desigualdade social; quando a nossa meta deixa de ser atingir o topo da fama e da falsa segurança material para fazer subir quem está muito abaixo de nós.  

Uma última palavra: “O povo estava na expectativa...” (Lc 3,15). Que expectativas você tem neste momento? Elas são realistas ou fantasiosas? Elas se assentam nos homens ou em Deus? Você trabalha para que elas se concretizem, ou age de modo a sabotá-las? Elas giram em torno do seu individualismo, ou contemplam o próximo, o ambiente à sua volta, a humanidade? Ter expectativa significa “expectar” – a mulher grávida vive o período de gestação na alegre expectativa do nascimento do filho. O cristão é alguém grávido de esperança. Ele vive na expectativa da volta do seu Senhor e Salvador, enquanto trabalha para transformar a tristeza em alegria, a desolação em consolação, o individualismo em solidariedade, o medo em confiança, o desespero em esperança...

 

Oração: Senhor Jesus, quero engravidar de alegria e de esperança. Quero ser habitado(a) pela expectativa da Tua vinda, Tu que tens o poder de transformar nossa tristeza em alegria. Enquanto espero por Ti, lanço sementes, crendo na Palavra que diz: “os que lançam as sementes entre lágrimas, colherão com alegria” (Sl 126,5). Por meio de Ti, confio às mãos do Pai meus medos e angústias, dificuldades e problemas, permitindo que a Sua paz venha guardar minha mente e meu coração. Que eu sinta Tua presença junto a mim em todos os momentos da minha vida, fortalecendo minha fé, sustentando minha esperança e reavivando o amor por todo ser humano, especialmente pelos que não são amados. Amém! Vem, Senhor Jesus!

 

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

DESOBSTRUIR O CAMINHO

 Missa do 2. dom. do advento. Palavra de Deus: Baruc 5,1-9; Filipenses 1,4-6.8-11; Lucas 3,1-6.

 

Viver significa percorrer um caminho ou uma estrada. Se nós pudéssemos escolher como seria o caminho ou a estrada da nossa vida, certamente desejaríamos que fosse uma estrada pavimentada, pista dupla, sem pedágios, sem buracos e sem trechos acidentados. Mas nem sempre a vida é isso: um caminho asfaltado, pista dupla, livre de qualquer obstáculo. Fazem parte de todo caminho de vida trechos esburacados ou de terra, trechos de mão única, com curvas, subidas e descidas...

Da mesma forma como o ser humano percorre um caminho em busca de Deus, de sentido, de felicidade, de realização, Deus Pai, na pessoa de Seu Filho Jesus, escolheu descer e percorrer um caminho terreno, até chegar ao coração de cada ser humano, a quem Ele deseja salvar. A questão é saber se o caminho que possibilita que Deus chegue até cada um de nós está livre ou obstruído. É possível que exista muito entulho na estrada da nossa vida, impedindo Deus de chegar a nós. “Deus resiste aos soberbos, mas dá sua graça aos humildes” (1Pd 5,5). O entulho é símbolo da soberba e da autossuficiência humana. Em um copo cheio não é possível colocar mais nada. No coração de uma pessoa cheia de si não cabe Deus.

A imagem do entulho, do lixo acumulado na estrada nos lembra também dos ressentimentos, das mágoas, das situações não enfrentadas e não resolvidas. Deus não tem como ter acesso ao coração das pessoas que ao longo da vida acumularam mágoa ou raiva d’Ele, justamente por Ele ter permitido que uma perda, uma catástrofe, uma dor entrassem na vida dessas pessoas. Por isso, a única forma dessas pessoas se deixarem encontrar por Deus é reconhecendo e enfrentando a raiva que elas têm d’Ele.  

Mas, além dos entulhos, existem também os buracos, os vales, os abismos que impedem a passagem pelo caminho, pela estrada. “Não, a mão do Senhor não é muito curta para salvar, nem seu ouvido tão duro que não possa ouvir. Antes, foram os vossos pecados que criaram um abismo entre vós e vosso Deus” (Is 59,1-2). Portanto, quando sentimos Deus muito distante de nós, precisamos nos perguntar se há algo que precisa ser colocado em ordem na nossa vida; se o caminho está de fato desobstruído para que Deus possa ter acesso a nós. Reconhecer as atitudes que são contrárias ao que Deus nos ensina na sua Palavra e nos dispor a corrigi-las é fundamental para experimentarmos a presença salvadora de Deus em nossa vida.

Olhamos para os entulhos e para os buracos da estrada da nossa vida a partir de dentro, do nosso estado emocional ou espiritual. É importante também considerá-los a partir de fora, da dimensão comunitária e social. Quantas coisas em nossa vida moderna servem para nos manter distantes das pessoas, do nosso próximo, daqueles que necessitam de nós? Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, o Deus que Se revela a nós na Sagrada Escritura deixa claro que o encontro com Ele passa pelo encontro com o nosso próximo. Desviar-nos do próximo ou ignorá-lo jamais nos fará encontrar Deus. Jesus, na sua cruz, não derrubou apenas o muro de inimizade que separava a humanidade de Deus, mas derrubou também o muro de inimizade que separava os homens entre si. Se não consideramos isso, a celebração do Natal perde seu sentido. Exatamente por isso, Paulo nos ensinou a esperar pela segunda vinda de Cristo desse modo: “Que o vosso amor cresça sempre mais... e assim ficareis puros e sem defeito para o dia de Cristo” (Fl 1,7-8).

Além da imagem do caminho, da estrada, que são centrais na liturgia deste segundo domingo do advento, temos outras duas imagens: a da voz e a do deserto. Deus vem a nós por meio da voz, da sua Palavra que ecoa no deserto da nossa consciência, na solidão do nosso coração: “A palavra de Deus foi dirigida a João, o filho de Zacarias, no deserto” (Lc 3,2). O nosso encontro com Deus não se dá no barulho da cidade, mas no silêncio do deserto. Nós não encontramos Deus perdidos nas coisas supérfluas, mas quando nos voltamos para o essencial. Não existe lugar melhor para encontrar Deus que o deserto, o lugar da verdade, do essencial, da simplicidade, afastados da mentira da nossa superioridade e da nossa vaidade.  

Jesus é a palavra que se fez carne – pessoa humana. Se quisermos nos encontrar com Ele – se quisermos nos deixar encontrar por Ele –, precisamos nos lembrar de que Deus escolheu dirigir sua Palavra não a um político importante da capital do Império Romano, nem a um sacerdote importante do Templo de Jerusalém, mas a um homem no deserto: João Batista. Sempre que nos afastamos das periferias existenciais do nosso tempo, nos afastamos da voz de Deus. Não nos esqueçamos de que o desejo de Deus é salvar todas as pessoas, começando daquelas que mais necessitam, aquelas que estão no luto e na aflição, as que estão sofrendo debaixo de injustiças, aquelas que estão soterradas debaixo dos entulhos do individualismo moderno, aquelas que estão jogadas no fundo dos vales pela economia excludente.

Somente quando todo vale for aterrado e toda montanha for rebaixada, ou seja, somente quando nossa fé cristã se traduzir em conversão pessoal e social, atingindo as estruturas injustas à nossa volta, é que “todas as pessoas verão a salvação de Deus'” (Lc 3,6). Iniciemos esta segunda semana do advento com esta palavra confortadora do apóstolo Paulo: “Tenho a certeza de que aquele que começou em vós uma boa obra, há de levá-la à perfeição até ao dia de Cristo Jesus” (Fl 1,6).

 

Oração: Senhor Jesus, tu vens ao meu encontro para me dar a salvação. Quero desobstruir o caminho, removendo dele o entulho do meu orgulho, da minha arrogância e do meu ressentimento. Quero também tapar os buracos abertos pelos meus pecados, para que tu possas ter pleno acesso ao meu coração. Torna minha consciência capaz de identificar a tua voz e deixar-se guiar pela verdade. Encoraja-me a me fazer presente nas periferias deste mundo, onde se encontram as pessoas mais feridas e mais necessitadas da tua salvação. Que a minha presença junto a elas seja uma presença de fortalecimento, de consolação e de renascimento da esperança. Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

LEVANTADOS PELA FÉ E DE CABEÇA ERGUIDA PELA ESPERANÇA

 Missa do 1. dom. do advento. Palavra de Deus: Jeremias 33,14-16; 1Tessalonicenses 3,12 – 4,2; Lucas 21,25-28.34-36.

 

Prestemos atenção a essas expressões da leitura de Jeremias: “virão dias”, “bens futuros”, “farei brotar”, “fará valer”, “será salvo”, “terá uma população confiante”. Todas elas estão no tempo futuro. Todas elas foram pronunciadas quando o presente do povo de Israel estava marcado por dor, sofrimento, tristeza, angústia, falta de perspectiva de vida.

Sempre que estamos enfrentando uma dificuldade, a nossa tendência é nos fechar naquele momento, como se aquela situação fosse definitiva. Por causa da dor ou do sofrimento que estamos enfrentando, nós nos vemos trancados num quarto escuro, sem porta e sem janela, sem saída, como se fôssemos ficar ali para sempre. Nos esquecemos das palavras que Deus disse ao seu povo: “Existe recompensa para a tua dor... Há esperança para o teu futuro” (Jr 31,16.17).  

“Recompensa”, “esperança”, “futuro”. Enquanto os nossos olhos não conseguem enxergar para além do problema que estamos enfrentando, os olhos de Deus veem além. Nenhuma dor deveria nos tornar incapazes de enxergar além. Nenhum sofrimento deveria nos fazer esquecer de que existe um futuro, um depois, um desdobramento. Nada ficará como está, definitivamente. Nossa vida está inserida no plano de Deus, o qual tem como plenitude o “dia da vinda de nosso Senhor Jesus, com todos os seus santos” (1Ts 3,13). Em outras palavras, Alguém está vindo! Nós aguardamos Aquele que transfigurará o nosso corpo humilhado (cf. Fl 3,20-21), Aquele que disse: “Eis que venho em breve, e trago comigo o salário para retribuir a cada um conforme o seu trabalho (conduta)” (Ap 22,12); Aquele que fará justiça e separará os que fazem o bem daqueles que fazem o mal (cf. Mt 25,31-46; Ap 14,14-20), Aquele que enxugará as lágrimas de todos os rostos e destruirá o mal e a morte para sempre (cf. Ap 21,4).

Estamos iniciando o tempo do advento – a espera por Aquele que vem. Espera tem a ver com esperança. Assim como os sobreviventes dos campos de concentração nazistas não enlouqueceram e não se suicidaram porque tinham esperança de reencontrar algum ente querido quando o holocausto terminasse, assim a esperança é fundamental para conseguirmos suportar o momento presente e confiar que a nossa história não está nas mãos do acaso, mas nas mãos do Senhor Deus, que estabeleceu o Seu Filho como Princípio e Fim (cf. Ap 1,17; 22,5), Aquele que tem a palavra final sobre a história humana.      

Jesus afirmou claramente a respeito da sua segunda vinda: quando as forças do céu e da terra forem abaladas, nós o veremos “vindo numa nuvem com grande poder e glória” (Lc 21,27). Além disso, Ele afirmou que deseja nos encontrar em pé, ou seja, firmes em nossa fé. Lembremos da pergunta que Ele fez: “Quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc 18,8). A fé que Jesus pede de nós é aquela que não se abala diante de tudo o que é abalado à nossa volta. É a fé que não se desespera por causa das dores de parto, mas se mantém firme na esperança da vida nova que está nascendo em meio às dores. Foi por isso que Jesus disse: “Quando estas coisas começarem a acontecer, levantem-se e ergam a cabeça, porque a libertação de vocês está próxima” (Lc 21,28).

“Levantem-se e ergam a cabeça”. Enquanto os problemas tendem a nos puxar para baixo, a fé nos levanta e nos faz olhar para o alto, para Aquele que está acima de todas as coisas. Deus não nos quer derrubados e vencidos, mas em pé, enfrentando aquilo que nos cabe enfrentar, olhando a realidade nos olhos e sabendo que foi exatamente esse o tempo em que fomos chamados a viver e a dar testemunho da nossa fé e da nossa esperança. Como diz a Palavra: “Se nós trabalhamos e lutamos, é porque pomos a nossa esperança no Deus vivo, salvador de todos os homens, sobretudo dos que têm fé” (1Tm 4,10).

Mas, onde encontrar força para manter vivas nossa fé e nossa esperança? Na oração! “Ficai atentos e orai a todo momento, a fim de terdes força para escapar de tudo o que deve acontecer e para ficardes em pé diante do Filho do Homem” (Lc 21,36). É exatamente a força da oração que nos levanta da nossa prostração e nos faz erguer a cabeça diante das situações difíceis. Na verdade, a oração está fortemente ligada à esperança...

“Cada oração é uma expressão de esperança. Uma pessoa que não espera nada do futuro não pode orar. Só pode haver vida e movimento quando você não aceita mais as coisas como são e olha para frente rumo ao que ainda não é... Um homem com esperança não se preocupa em saber como seus desejos serão cumpridos. Assim, sua oração não se dirige à graça, mas Àquele que a proporciona... Sempre que orarmos com esperança, poremos nossa vida nas mãos de Deus. Medo e ansiedade desaparecem, tudo que recebemos e tudo de que somos privados não são nada senão um dedo apontando na direção da promessa de Deus de que vamos viver por completo” (Oração e esperança, Pe. Henri Nouwen).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

ESTE REI DEFENDERÁ OS QUE SÃO POBRES, E A VIDA DOS HUMILDES SALVARÁ

 Missa de Cristo, rei do Universo. Palavra de Deus: Daniel 7,13-14; Apocalipse 1,5-8; João 18,33b-37.

 

A figura do rei é bastante estranha para nós. No mundo atual, há pouquíssimos reis. Mas, no mundo bíblico, ela é uma figura muito forte. O rei ideal é aquele que exerce o domínio sobre seu povo em função de protegê-lo, ampará-lo, defendê-lo, garantindo-lhe vida e paz. No entanto, muitos dos reis que já existiram na terra se corromperam e abusaram do seu poder, tornando-se até mesmo tiranos. Também no mundo bíblico nós temos o registro de muitos reis que governaram o povo de Israel, sendo que somente quatro “fizeram o que agrada aos olhos de Deus”. Todos os demais foram rejeitados por Deus. É por isso que, no livro dos Reis, a frase que mais se repete é: tal rei “fez o que é mau aos olhos de Deus”.

O Salmo 72 nos apresenta o rei ideal como sendo aquele que “libertará o indigente que suplica, e o pobre ao qual ninguém quer ajudar. Terá pena do indigente e do infeliz, e a vida dos humildes salvará. Há de livrá-los da violência e opressão, pois vale muito o sangue deles a seus olhos!” (vv.12-14). O rei ideal é aquele que cuida de quem não é cuidado por ninguém, que valoriza quem o mundo despreza, que se coloca ao lado dos que estão desprotegidos e desamparados. A figura desse rei encontrou em Jesus a sua plena realização.

Jesus é o Rei-Pastor que veio buscar a ovelha perdida, reconduzir a extraviada, curar a que está ferida e restaurar as forças da que está abatida (cf. Ez 34,16). No entanto, Ele não aceitou ser “eleito” rei pelas multidões que encontraram nele uma espécie de “provedor” das suas necessidades. Isso ficou claro após ele ter saciado a fome da grande multidão: “Jesus, sabendo que viriam buscá-lo para fazê-lo rei, refugiou-se de novo, sozinho, na montanha” (Jo 6,15). Jesus não veio nos manter numa atitude infantilizada perante a vida, de quem só espera receber, de quem é mantido na sua condição de dependência. Ele veio nos levantar, nos colocar em pé e nos tornar conscientes das nossas capacidades e responsabilidades.

Se a figura do rei nos lembra o domínio sobre um povo, Jesus é aquele que veio nos libertar do domínio do mal, do domínio da escravidão do nosso pecado, do domínio de toda situação injusta. Ele veio nos devolver a liberdade de exercermos o domínio sobre nós mesmos. Essa é a questão principal e mais difícil: ter domínio sobre si, sobre seus desejos, seus instintos e sua vontade. Jesus não nos quer dominados pelos vícios, pelo consumismo, pelas ideologias políticas, pela submissão ao dinheiro, pela Internet (redes sociais) e também pela religião.

Ao celebrarmos hoje Cristo, Rei do Universo, lembramos que “o Pai entregou ao Filho o poder sobre todo ser humano” (cf. Jo 17,2), o poder de redimir, salvar e dar a vida eterna a todo ser humano. Esse poder foi exercido a partir da cruz. A cruz foi o trono de Jesus. Sua coroa de espinhos indica que ele é o Rei ferido, o Rei que sente a dor de toda pessoa ferida na face da terra. Ele não é o Rei que derrama o sangue dos seus inimigos, mas o Rei que derrama o seu próprio Sangue para reconciliar tudo o que existe no Universo. De fato, Deus Pai quis “reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz pelo sangue de sua cruz” (Cl 1,20).

A questão principal é: como podemos sair do domínio do mal que tudo adoece, arruína e destrói, e passarmos para o domínio de Cristo, que tudo liberta, cura e restaura? Deixemos com que o próprio Jesus nos responda: “Eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37). A única forma de permitirmos que Jesus reine sobre nós é nos confrontando com a Verdade. Para o mundo atual, não existe a Verdade, mas “verdades”: cada um tem a sua verdade; cada um tem a sua cabeça, a sua liberdade e a sua vontade; cada um faz o que quer. No entanto, a Verdade é uma Pessoa, a Verdade é Cristo. Seu Evangelho é a Palavra da Verdade. Somente esta Verdade nos liberta (cf. Jo 8,32).

Muitas pessoas adoecem e vivem submissas a algo ou a alguém que lhes faz mal porque não conhecem a verdade sobre si mesmas. Elas são como aquele elefante que cresceu amarrado a uma corda e não tem consciência de que ele tem força suficiente para arrebentar aquela corda e ser livre. Jesus é a Verdade que nos torna conscientes da força que nos habita. Quando usamos essa força, nos libertamos de muitas coisas que nos aprisionam e nos adoecem. O problema é que não são poucas as pessoas que preferem uma mentira que aprisiona do que a verdade que liberta. São pessoas que não querem responsabilizar-se pela própria vida, mas ter sempre alguém a quem culpar pela sua infelicidade, pelo seu fracasso.  

“Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37). Neste mundo cheio de mentiras, de máscaras, de aparências, de desinformação, de fake news, precisamos educar a nossa consciência para reconhecer a voz da Verdade em nós, voz que continuamente nos convida a sair do domínio daquilo que nos adoece e escraviza para vivermos sob o domínio daquele que é capaz de nos tornar verdadeiramente livres e capazes de autodomínio.

 

Oração: Senhor Jesus Cristo, reina sobre mim! Estende o teu domínio libertador e salvador sobre todo ser humano, especialmente sobre aquele que se encontram dominados pelo mal, pelo sofrimento, pelas injustiças e pelo pecado. Põe tua Verdade em nossos corações; liberta-nos de toda mentira, de todo autoengano. Que cada ser humano conheça a verdade a respeito de si mesmo e não se permita viver aprisionado na mentira que adoece, tira a paz e leva à autodestruição. Reina com tua Verdade e com tua Paz em nossas famílias, ambientes de trabalho, escolas e cidades. Podes reinar, Senhor Jesus! O teu poder teu povo sentirá. Que bom, Senhor, saber que estás presente aqui! Reina, Senhor, neste lugar!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

NO TEMPO DA ANGÚSTIA, TEU POVO SERÁ SALVO!

 Missa do 33. dom. comum. Palavra de Deus: Daniel 12,1-3; Hebreus, 10,11-14.18; Marcos 13,24-32

 

            No mundo em que vivemos, as mudanças não param de acontecer. Devido à tecnologia, o ritmo dessas mudanças está cada vez mais acelerado. Nem nosso cérebro, nem nosso emocional conseguem assimilar todas essas mudanças. Isso nos provoca angústia, insegurança, medo e aflição. Para onde estamos indo? Quem ou o que está  causando essas mudanças? Tudo isso gera em nós um sentimento de desorientação e de impotência.

            Contudo, o profeta Daniel nos oferece uma luz: “Será um tempo de angústia, como nunca houve até então, desde que começaram a existir nações. Mas, nesse tempo, teu povo será salvo” (Dn 12,1). Vivemos um tempo forte de angústia: desemprego, fome, imigração forçada, violência, banalização da vida, desestruturação familiar, suicídio, falta de perspectiva de futuro, doenças físicas e psíquicas, perda de fé, sentimento de ausência de Deus... Como afirmou o Papa Francisco, “nós não podemos pretender ser pessoas saudáveis num mundo doente”. Tudo o que acontece com o Planeta e com a humanidade nos afeta. Enquanto cristãos, somos parte de uma humanidade não somente ferida, mas que tem um estilo de vida que adoece.

Apesar do sentimento de angústia que marca o nosso tempo, confiamos que a nossa história não está nas mãos do acaso ou de um destino cego, mas nas mãos de Deus. Confiamos que, exatamente em meio a essa situação de angústia, “teu povo será salvo”. Essa salvação de Deus não se refere somente a nós, que ainda estamos na face da terra, mas também àqueles que já morreram. Para eles, haverá uma ressurreição que restabelecerá a justiça. Quando Deus faz justiça, Ele separa uma coisa da outra: “Muitos dos que dormem no pó da terra, despertarão, uns para a vida eterna, outros para a humilhação eterna” (Dn 12,2). Jesus confirma isso: “os que tiverem feito o bem, ressuscitarão para a vida; os que fizeram o mal, para o julgamento” (Jo 5,29).

O Evangelho que ouvimos tem um tom apocalíptico. “Apocalipse” significa “revelar”, “fazer ver além do véu”. Ao mencionar os abalos que ocorrerão no céu e na terra, Jesus não está falando do “fim do mundo”, mas do fim de um mundo específico: o mundo injusto, desigual, gerador de sofrimento, violência e morte para os mais fracos. Esse mundo desaparecerá, para dar lugar a um mundo renovado. Diante de tudo o que se abala e desaba, precisamos nos firmar nas palavras de Jesus: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mc 13,31). De fato, “o que nós esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). Diante dessa certeza, cabe-nos levar uma vida orientada pelo Evangelho, aguardando o cumprimento da promessa de Jesus: “Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória” (Mc 13,26).  

O livro do Apocalipse tem no seu horizonte essa segunda vinda de Cristo: “Eis que ele vem com as nuvens, e todos os olhos o verão” (Ap 1,7), até mesmo as pessoas que nunca o conheceram ou que se recusaram a crer nele. Jesus virá como juiz, como aquele que, julgando, separa o trigo das uvas, recolhendo o trigo no celeiro de Deus e esmagando as uvas com os pés, sinal da destruição definitiva do mal sobre a face da terra (cf. Ap 14,14-20). Se no horizonte da história está o encontro de cada pessoa com Jesus, precisamos nos perguntar se estamos cultivando a nós mesmos como trigo (pessoas que praticam o bem e a justiça) ou como uvas (pessoas que praticam o mal e a injustiça). Afinal de conta, “todos nós compareceremos perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba conforme tenha feito durante sua vida no corpo, seja o bem, seja o mal” (2Cor 5,10).     

                Justamente porque vivemos num país acostumado com a impunidade e desacreditado em relação à justiça, precisamos manter nossa consciência viva, desperta, sem nos corromper e sem nos afastar das promessas de Jesus. Precisamos lembrar que nós não somos expectadores de um filme onde se trava um combate entre o bem e o mal. Nós fazemos parte dessa luta e precisamos enfrentá-la com perseverança: “De fato, é de perseverança que vocês necessitam, para cumprirem a vontade de Deus e alcançarem o que Ele prometeu. Porque ainda um pouco, muito pouco tempo, e aquele que vem, chegará e não tardará... Não sejamos como os que abandonam a luta e se perdem, mas homens e mulheres de fé, para a conservação da nossa vida” (citação livre de Hb 10,36-37.39).   

 

            Oração: Senhor Deus, “a angústia cresce em meu coração, tira-me das minhas aflições” (Sl 25,17). Sei que não posso pretender ser uma pessoa totalmente saudável vivendo num mundo doente como o nosso. Forma minha consciência a partir dos valores do Evangelho. Concede perseverança à minha fé e firmeza à minha esperança.

            Senhor Jesus Cristo, eu creio e espero por tua Vinda. Confio na tua promessa de criar novos céus e uma nova terra, onde habitarão a justiça e aqueles que buscam ser justos. Dá-me a graça de cultivar-me como trigo, de não corromper-me no mal e de fazer o bem que estiver ao meu alcance, especialmente aos que sofrem e que são injustiçados. Unindo-me ao Espírito Santo, eu suplico com toda criação e com a Igreja: “Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22,20). Vem e resgata o teu povo de todas as suas angústias! Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

SER SANTO(A): TORNAR-SE A PESSOA QUE VOCÊ FOI CHAMADO(A) A SER

Missa de todos os Santos. Palavra de Deus: Apocalipse 7,2-4.9-14; 1João 3,1-3; Mateus 5,1-12a.

 

            Quais são as metas que o mundo nos propõe? Sucesso, felicidade, dinheiro, segurança, fama (aparecer, ser visto pelos outros), vitória etc. Em contrapartida, deixou de ser importante: honestidade, caráter, fidelidade, retidão, compromisso, amar até o fim. Pior ainda, somos ensinados a evitar: renúncia, sacrifício, frustração, autodomínio, dor e sofrimento.

            A meta dos filhos de Deus é a santidade – tornar-me a pessoa que fui chamado(a) a ser; desenvolver meus talentos; identificar e manter-me fiel à tarefa/missão para a qual nasci; não conformar-me ao mundo (não deformar-me), mas configurar-me ao Filho Jesus; viver a partir da verdade de Deus a meu respeito; passar do fazer somente aquilo que “eu quero” para fazer aquilo que “eu devo”, em sintonia com a minha identidade de filho(a) de Deus.

            A santidade é um processo em nós: ora avançamos, ora retrocedemos, ora estagnamos. Ela exige a participação da nossa vontade: “Busquem a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12,14). Ao mesmo tempo, ela é graça, dom de Deus: “A santidade não é fruto do esforço humano, que procura alcançar Deus com suas forças, e até com heroísmo; ela é dom do amor de Deus e resposta do homem à iniciativa divina” (Missal Dominical, p.1367). A santidade é, no fundo, um diálogo entre a vontade de Deus e a nossa vontade humana, quando entendemos que o que Deus quer para nós nada mais é do que a nossa felicidade. É um processo que avança quando nos colocamos como barro nas mãos do Oleiro, mas que também trava ou retrocede quando nos mantemos distantes dessas mãos (cf. Jr 18,6).

            A santificação é um processo que se inicia em nossa vida terrena. Vivendo em um mundo marcado por contravalores, que “chama o bem de mal e o mal de bem” (cf. Is 5,20), as pessoas que buscam sua santificação recebem em sua fronte “a marca do Deus vivo” (Ap 7,2.3). Se essa marca fosse visível, ela seria motivo de “orgulho” para os cristãos. No entanto, é uma marca invisível, porque se refere à consciência da pessoa. Uma vez que o nosso mundo está cheio de marcas externas, feitas para chamar a atenção sobre a pessoa, a santidade é uma marca interna, e, por isso mesmo, ignorada pelo mundo: “Se o mundo não nos conhece, é porque não conheceu o Pai” (1Jo 3,2). Portanto, só busca a santidade quem compreende que o essencial não é a aparência, mas a essência.

O que significa receber “a marca do Deus vivo”? Essa marca significa “proteção”, mas, sobretudo, “pertença”. É essa pertença que fará com que, após nossa morte, nós estejamos “de pé” (ressuscitados), “diante do trono de Deus e do Cordeiro” (seu Filho Jesus), trajando “vestes brancas” (santidade) e segurando “palmas na mão” (vitória sobre o mal e a morte). Porém, como vivemos em um mundo contrário ao Evangelho, a nossa santificação não se dá sem enfrentar inúmeras tribulações, pois não existe vitória sem luta.    

            As tribulações nos lembram que toda pessoa que busca sua santificação é uma pessoa ferida, porque se posiciona diante da realidade, defendendo os mais fracos e injustiçados. Ser santo significa tomar partido diante da realidade que se nos apresenta: “Sempre tome partido. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado” (Elie Wiesel, escritor judeu, sobrevivente do Holocausto). Por ter tomado partido dos que sofriam, Jesus foi crucificado. Do mesmo modo, toda pessoa que se posiciona diante da realidade, acaba por se “sujar” com o sofrimento que há no mundo, mas ela terá suas vestes lavadas no sangue do Cordeiro.    

Qual é o tempo mais apropriado para buscarmos a nossa santificação? O tempo presente, o aqui e o agora, cada dia, a vida toda: “A vocação do cristão é a santidade, em todo momento da vida. Na primavera da juventude, na plenitude do verão da idade madura, e depois também no outono e no inverno da velhice, e por último, na hora da morte” (São João Paulo II). Toda ocasião é oportuna para a nossa santificação, porque é ali que somos chamados a examinar a nossa consciência e a fazer escolhas ou a tomar decisões a partir da nossa liberdade e da nossa responsabilidade. Toda a nossa vida é um processo de transformação: “Desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele” (1Jo 3,2).

Enfim, o Evangelho de hoje nos apresenta o retrato dos santos na terra, em cuja existência se dá o processo de crucificação e de ressurreição. “Jesus, crucificado e ressuscitado, é a realização das bem aventuranças. Enquanto crucificado, cumpre a primeira parte delas: é pobre, aflito, tem fome e sede de justiça, é puro de coração, pacificador, perseguido; enquanto ressuscitado, cumpre a segunda parte: o Reino é Seu, é consolado, herda a terra, é saciado, encontra misericórdia, vê a Deus, é Filho de Deus. As bem aventuranças são a carteira de identidade do Filho” (Pe. José Pagola). Elas devem se tornar a nossa também.    

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi