sábado, 31 de outubro de 2015

NOSSO CORPO SERÁ "ABRAÇADO" PELA RESSURREIÇÃO DE CRISTO

Missa dos fiéis defuntos. Palavra de Deus: Isaías 25,6a.7-9; Romanos 8,14-23; Mateus 25,31-46.

                        O que existe depois da morte? Segundo Jesus acabou de nos dizer, depois da morte existe um encontro entre nós e Ele. É o momento em que a Luz da Verdade, que é Jesus, clareia toda a nossa história de vida, revelando não somente os nossos atos, mas com qual intenção fizemos aquilo que fizemos. Por isso, o momento depois da morte é também o momento da justiça, o momento do julgamento. Aquela justiça que muitas vezes não encontramos no mundo, devido à corrupção e à impunidade; aquela justiça que tantos esperaram de Deus e “não veio” – e por isso muitos deixaram de crer em Deus – aquela justiça se dará neste encontro de cada ser humano com o Filho de Deus, a quem o Pai concedeu o poder de julgar segundo a verdade e a justiça.
                        Sabemos que Jesus não veio para condenar a humanidade, mas sim para salvá-la. No entanto, cada ser humano pode, na sua liberdade, se condenar ou se salvar, na medida em que rejeita ou acolhe a oferta de salvação que Jesus Cristo nos traz. No entanto, para surpresa nossa, o nosso julgamento não consistirá em verificar se observamos normas, regras ou mandamentos, mas como tratamos o nosso próximo, sobretudo aquele que precisa de nós.
                        Neste Evangelho, Jesus revela que, antes de nos encontrarmos definitivamente com Ele após a morte, esse encontro já se deu inúmeras vezes durante a nossa vida terrena: “Eu tive fome e me destes de comer... Eu tive fome e não me destes de comer...” (Mt 25,35.42). Numa época de forte individualismo e de indiferença para com a dor dos outros, Jesus nos deixa conscientes de que a salvação não é uma questão entre nós e Deus, mas entre nós, o nosso próximo e Deus. Assim como Deus é misericórdia – se deixa afetar pela dor do outro – assim devemos ser misericordiosos. “O julgamento será sem misericórdia para quem não pratica a misericórdia. Mas a misericórdia triunfa sobre o julgamento” (Tg 2,13). Quem pratica a misericórdia não teme o julgamento.
                        Um cuidado devemos ter, quando pensamos na ajuda aos necessitados. Segundo Madre Teresa de Calcutá, a pergunta de Deus para nós, no momento do julgamento, não será: “Quantas coisas boas você fez na sua vida?”, mas será: “Quanto amor você colocou naquilo que fez?”. Também o apóstolo Paulo afirma: “Ainda que eu desse todos os meus bens aos pobres (...), seu eu não tivesse amor, isso de nada me serviria” (1Cor 13,3).
                        Neste dia de Finados, o profeta Isaías nos oferece uma imagem do Céu: ele é como “um banquete de ricas iguarias” (Is 25,6), preparado para todos os povos, porque Deus quer que toda a humanidade seja salva (cf. 1Tm 2,4). A Eucaristia que celebramos neste dia não é apenas para pedir perdão a Deus pelos pecados dos que partiram desta vida, mas, sobretudo, para proclamar a nossa fé n’Aquele que “não é o Deus dos mortos, mas dos vivos, pois para Ele todos vivem” (Lc 20,38), n’Aquele que “eliminará para sempre a morte, e enxugará as lágrimas de todas as faces... Este é o nosso Deus, esperamos nele, até que nos salvou” (Is 25,9).
                        Renovando nosso encontro com Jesus e nossa fé em Deus Pai, nós nos alegramos pelo Espírito Santo que nos foi dado, por meio do qual podemos não somente clamar, mas também proclamar: “Abá, ó Pai!” (Rm 8,15). Assim como Jesus, na proximidade da sua morte, disse aos discípulos: “Eu não estou sozinho; o Pai está comigo” (Jo 16,32), assim o Espírito Santo nos consola com a certeza de que, quer estejamos vivos, quer tenhamos morrido, continuamos a pertencer ao Pai (cf. Rm 14,8); estamos, portanto, guardados pelas Suas mãos e no Seu coração.   
Mesmo que tenhamos que enfrentar “os sofrimentos do tempo presente”, nós os enfrentamos com confiança, sabendo que eles nos abrirão para “a glória futura que será revelada em nós” (Rm 8,18). Se a nossa presença no cemitério nos faz tomar consciência (deveria fazer) de que a nossa fé em Deus nunca nos impedirá de morrer, ela também deve nos tornar mais conscientes ainda do gemido que se encontra no mais profundo do nosso ser, gemido que expressa a nossa pertença a Deus e o desejo do nosso corpo ser abraçado pela ressurreição de Cristo. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

MARCA DE PERTENÇA

Missa de todos os santos. Palavra de Deus: Apocalipse 7,2-4.9-14; 1João 3,1-3; Mateus 5,1-12a.

            No dia a dia, nós recebemos uma série de “cobranças”: ‘Você precisa ter um corpo sarado; ser bonito(a); ser visto(a)! Você precisa conquistar, ser vitorioso(a); ser bem sucedido(a), fazer sucesso, brilhar! Você precisa ser admirado(a)/invejado(a)!’... No entanto, ninguém nos cobra santidade: ‘Você precisa ser santo!’
            Ser santo não é um valor para o mundo atual. Pelo contrário, ser santo é entendido como ser ‘certinho’, ser ‘chato’, ser ‘do contra’, ser ‘ultrapassado’ etc. Jesus tem um outro conceito de santidade, como acabamos de ver no Evangelho. Para ele, essas são as atitudes próprias de quem é santo aos olhos de Deus: a pessoa é pobre em espírito, ou seja, tem a Deus como seu único e verdadeiro bem; a pessoa se aflige, isto é, sofre com a dor do outro; a pessoa é capaz de mansidão, ao lidar com os conflitos; os santos são pessoas que têm fome e sede de justiça; são misericordiosas; são puras de coração; se esforçam em promover a paz. Além disso, são pessoas perseguidas por causa da justiça e de Jesus Cristo.
            Dizendo de outra maneira, sabe aquele jovem que decidiu morar com os avós, que estão bastante idosos e com Alzheimer, para cuidar deles ao invés de colocá-los num asilo? Sabe aquela mulher que passou casada a vida toda com um marido infiel, e agora que ele se encontra doente, cuida dele? Sabe aquela pessoa que por anos e anos carregou consigo uma doença ou uma ferida e nunca reclamou disso com ninguém? São santos de carne e osso!
            Para o Apocalipse, as pessoas santas trazem consigo a marca do Deus vivo. Diferente de uma tatuagem, essa marca não pode ser vista, porque ela se encontra na consciência da pessoa. É uma marca de pertença (cf. Ap 7,2.3): ‘Eu pertenço a Deus. Só n’Ele encontro alegria e paz. Fora d’Ele não encontro nenhum bem. Só quando me deixo conduzir pelo Espírito de Deus é que experimento felicidade, porque a vontade de Deus a meu respeito é a minha felicidade’.
            Mas, de que maneira a marca do Deus vivo é dada às pessoas santas? Por meio de uma grande tribulação (cf. Ap 7,14). Da mesma forma que depois de uma queimadura ou de um corte profundo fica uma marca no corpo da pessoa, assim a marca de pertença a Deus nos é dada depois de termos enfrentado uma dor, um sofrimento, uma luta, uma tribulação. Alguns não querem essa marca, porque ela é vista somente como algo que “mancha” a imagem da pessoa. Mas outros sentem um saudável “orgulho” dela, porque sabem que a luta que enfrentaram serviu para lhes amadurecer, corrigir e santificar. 
              Engana-se quem pensa que as pessoas santas vivem longe dos conflitos do mundo. Pelo contrário. Os maiores conflitos e as grandes perseguições se desencadeiam na vida de quem não aceita tomar a forma do mundo, mas procura viver com sua consciência voltada para Deus. Engana-se também quem pensa que as pessoas santas têm uma fé inabalável e vivem numa constante harmonia com Deus. Madre Teresa de Calcutá viveu um longo período de aridez espiritual que durou 50 anos! Apesar disso, todos os dias ela rezava, adorava Jesus Eucarístico, participava da missa e socorria Jesus na pessoa dos pobres. Questionada, certa vez, se ela um dia seria declarada Santa pela Igreja, respondeu: “Se um dia eu for Santa, serei com certeza a santa da escuridão. Estarei continuamente ausente do Paraíso”.
            “Escuridão” e “ausência do Paraíso” significam que pessoas santas são aquelas que muitas vezes não sentem Deus e, no entanto, passam a vida servindo-O, anunciando-O, lutando com Ele como Jacó (cf. Gn 32,23-33); lutando consigo também, com o seu ego; lutando com um mundo que sistematicamente exclui Deus da política e da economia, mas questiona Sua existência diante das injustiças humanas e das catástrofes naturais.   
            Se você quiser saber se a santidade ainda é um valor para você, pergunte-se: Eu procuro agir de acordo com a minha consciência ou de acordo com a minha conveniência? Eu aceito ser conduzido(a) pelo Espírito de Deus também quando a direção que Ele quer dar à minha vida não é aquela que eu quero? Eu suporto “não sentir” Deus e mesmo assim anunciá-Lo com a minha vida ao mundo? Eu me deixo afetar pela dor do outro? Eu sou solidário com quem sofre porque tenho fome e sede de justiça ou porque tenho fome e sede de ser reconhecido como “bom” e, portanto, ser “promovido”?  

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

NÃO SOMENTE VER COM OS OLHOS, MAS TAMBÉM ENXERGAR COM O CORAÇÃO

Missa do 30º. dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 31,7-9; Hebreus 5,1-6; Marcos 10,46-52.

            Nós vemos, mas nem sempre enxergamos. Todos os dias, uma infinidade de palavras e imagens entra pelos nossos olhos, mas nosso cérebro não consegue processar todas as informações, assim como nosso coração não consegue reconhecer todos os sentimentos. Então, nem tudo o que vemos de fato enxergamos. Além disso, não se trata apenas de ver com os olhos; é preciso enxergar com o coração: “O essencial é invisível para os olhos; só se vê bem com o coração” (Exupéry). Se os nossos olhos enxergam, mas o nosso coração está cego, nós frequentemente batemos com a cabeça na parede.
            Diante de pergunta de Jesus: “O que queres que eu te faça?”, o cego Bartimeu rapidamente respondeu: “Mestre, que eu veja!” (Mc 10,51). Pareceria óbvio que alguém que não enxerga quisesse enxergar. Mas não! Quantos pais não querem enxergar que seu filho é um dependente químico? Quantas pessoas não querem enxergar que estão doentes? Quantos não aceitam enxergar que a relação que vivem é nociva e já passou da hora de romper com ela?
            Por que nós às vezes preferimos não enxergar? Porque quando nos fazemos de cegos podemos vez ou outra receber esmolas de alguém. Bartimeu era cego e mendigo (cf. Mc 10,46). A cegueira nos faz mendigos: dependentes da visão dos outros, das esmolas dos outros. É uma situação que pode nos acomodar: vivo da compaixão dos outros, das esmolas que me dão. Não preciso caminhar: posso permanecer sentado à beira da estrada... Então, é preciso perguntar: quem de nós de fato pediria a Jesus: “Que eu veja!”? ‘Que eu enxergue a saída para essa situação! Que eu enxergue a minha responsabilidade na situação em que me encontro! Que eu enxergue meus erros e me corrija deles!’ Quem de nós pediria isso de coração a Jesus?
            A cegueira também pode, de alguma forma, ser comparada com a fé. Nós não enxergamos Deus, mas cremos n’Ele. Por isso o apóstolo Paulo afirma: “Caminhamos pela fé e não pela visão” (2Cor 5,7). Portanto, aquilo que nos paralisa na vida não é a cegueira, mas a falta de fé. Recobrar a fé significa que eu não vejo a Deus, mas me deixo conduzir por Ele, por sua Palavra, por seu Espírito. Mesmo em meio às lágrimas, quando eu não consigo ver direito, preciso lançar as sementes. Mesmo não enxergando nenhum sinal de chuva, eu preciso confiar que ela virá, e por isso lanço as sementes, como nos ensina o Salmo 126.
            Oração: Deus Pai, quando Agar estava desesperada no meio do deserto, com seu filho pequeno nos braços, o senhor abriu-lhe os olhos e a fez enxergar um poço, ao qual ela deu o nome de “o poço do Deus vivo que me vê” (cf. Gn 16,13; 21,19). Tu és o Deus vivo que não somente me vê, mas que vê muito além do que eu tenho conseguido ou desejado ver. Abre os olhos do meu coração, Pai, para que eu enxergue a mim, aos outros, a vida e a Ti como preciso enxergar. Mesmo não Te vendo, quero deixar-me conduzir por Ti, pela verdade da Tua palavra. Como Jeremias, eu também suplico: “Salva, Senhor, teu povo” (Jr 31,7), desencantado com as Instituições e cada vez mais corrompido em sua consciência. Reconduz nossos cativos, todos os que estão oprimidos por algum tipo de vício ou de situação injusta. Muda, Senhor, a nossa sorte; muda a consciência ou o que ainda resta dela naqueles que nos representam na política. Dá a cada ser humano uma saudável “revolta”, aquela coragem necessária para se levantar, para jogar fora o seu manto, para romper com uma vida que se contentou em viver de esmolas. Assim como Bartimeu, ajuda-nos a gritar, a não nos calar diante das injustiças. Sobretudo, que como ele possamos seguir ao Teu Filho Jesus continuamente pelo caminho da vida, não somente vendo com os olhos, mas também enxergando com o coração. Amém!  

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

RITO DE PASSAGEM

Missa do 29º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 53,10-11; Hebreus 4,14-16; Marcos 10,35-45.

Quanto vale a vida de alguém que você ama? Quanto você estaria disposto(a) a pagar/sofrer para resgatar/trazer de volta aquilo que é mais precioso para a sua vida? Você é capaz de “morrer” para salvar/resgatar/recuperar seu casamento, sua família, seu filho, o ambiente em que trabalha, a igreja que frequenta, o planeta em que vive?
Aceitar ser macerado/esmagado com sofrimentos. Aceitar fazer de sua vida uma expiação/um contínuo pedido de perdão pelos pecados os outros. Aceitar carregar sobre si as culpas dos outros. Só um aceitou viver assim: Jesus, o Servo Sofredor. Embora instintivamente nós fujamos (ou tentemos fugir) da dor, Jesus quis ir ao encontro dela para nos ensinar que não se trata de buscar o sofrimento pelo sofrimento, mas de entrar em comunhão com todo aquele que sofre.
Sim. É verdade que o confronto com a dor, com o sofrimento, nos faz vacilar na fé. Contudo, devemos aprender a permanecer “firmes na fé que professamos” (Hb 4,14), pois não há dor neste mundo que Jesus não tenha conhecido, experimentado, carregado sobre si e redimido. Ele é, diante de Deus, o nosso Intercessor, o “sumo sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb 4,15). Não há culpa/condenação neste mundo que Jesus não tenha absolvido, expiado, perdoado.
Existem expressões bíblicas que precisam ser aprofundadas. Ser “macerado” (Is 53,10) significa ser moído como trigo, esmagado como uva. Há situações que exigem isso de nós: fidelidade, coerência, santidade. Trata-se de moer/esmagar o próprio ego, a tendência a se fechar, a se acomodar, a não ajudar, a deixar morrer algo que podemos impedir que morra. Ser “provado” (Hb 4,15)/experimentado no sofrimento significa tornar-se adulto diante da vida; agir como adulto diante das escolhas que fizemos. É uma espécie de “rito de passagem”. Quem não aceita ser provado/experimentado na dor permanece na infância ou na adolescência de si mesmo, da sua fé, da compreensão da vida; ainda não se tornou adulto, nem como pessoa, nem como cristão.
“Queremos que faças por nós o que vamos pedir... Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda quando estiveres na tua glória!” (Mc 10,35.37). Assim como Tiago e João, nós também queremos a glória, a coroa, a vitória, o troféu, o reconhecimento, o prêmio... Mas ninguém recebe isso sem lutar (cf. 1Cor 9,24-25)! A vida é luta; a fé é luta: luta consigo, com os próprios instintos, com o ego que quer tudo para si e se recusa a não ser o centro, a não ser tratado como príncipe; luta com uma sociedade que busca a sua própria glória à custa do sofrimento dos outros; luta contra a tentação de ser reconhecido como vencedor sem ter tido que lutar.  
Antes de sentar-se na glória, é preciso ter a capacidade de beber o cálice da dor e de mergulhar (batismo) no sofrimento do mundo. Você está disposto(a)? Mais uma vez é importante deixar claro: não se trata de programar seu GPS interior para ir de encontro à dor, mas de aprender a lidar com ela, caso cruze o seu caminho. Trata-se de não desistir dos nossos objetivos ou dos ideais que abraçamos simplesmente porque agora nos deparamos com a dor. “Quando começou a doer, eu larguei, eu desisti”: é assim que você se comporta diante das escolhas que faz na vida?
Jesus afirma que “veio para servir e dar sua vida como resgate para muitos” (Mc 10,45). Todo resgate tem um preço. Eu só aceito pagar o preço do resgate por algo que é por demais precioso para mim. Qual é o preço do resgate? O preço é a doação da vida, o sacrifício de si mesmo. Justamente porque cada ser humano é precioso para Deus, Jesus suportou morrer, isto é, ser moído, esmagado, sofrer, para ter você de volta, para te resgatar, para te salvar. E você, está disposto(a) a fazer o mesmo para salvar aquilo ou aqueles aos quais você ama? 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

DESVENCILHAR-SE DO ANZOL DÓI

Missa do 28. dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 7,7-11; Hebreus 4,12-13; Marcos 10,17-30.

            Dizem que “todo homem tem seu preço”, isto é, todos nós somos passíveis de sermos corrompidos; todos nós colocamos de lado valores como ética e justiça, quando se trata de “ganhar” dinheiro, mesmo que ele seja fruto de desonestidade ou injustiça. O filósofo Nietzsche discordava dessa afirmação. Ele dizia: Todo homem tem seu preço, diz a frase. Não é verdade. Mas para cada homem existe uma isca que ele não consegue deixar de morder” (Nietzsche). Talvez nem todos nós sejamos passíveis de sermos corrompidos, mas, com certeza, ninguém de nós consegue resistir àquela “isca” que nos mantêm presos ao “anzol de ouro” do mundo atual, chamado “dinheiro”.
            Qual “isca” tem cevado você? Em que tipo de anzol sua vida se encontra enroscada? Que tipo de situação “fisga” a sua alma, puxando você para fora da água de que tanto precisa para viver? Como está sua vida financeira? Como anda a sua liberdade diante da propaganda de consumo? Como você lida com o dinheiro? Você é uma pessoa livre ou “possessa”, isto é, possuída por seus bens? (E, consequentemente, atormentada por dívidas?)
            O livro da Sabedoria faz uma comparação a respeito de “valores”: “Preferi a sabedoria... à riqueza (...), pois a seu lado, todo ouro do mundo é um punhado de areia... Amei-a mais que a saúde e a beleza... Todos os bens me vieram com ela” (Sb 7,8-11). Quando você tem sabedoria, discernimento, equilíbrio, liberdade interior, muito pouco é necessário para que se sinta feliz. Mas, quando te falta sabedoria, tudo o que você possa vir a ter, a possuir, a acumular, a construir, arruína, se perde, porque você não tem cabeça: seu coração está fragmentado, você perdeu sua bússola interior.
            Diz Tagore: “Há triunfos que só se obtêm pelo preço da alma, mas a alma é mais preciosa que qualquer triunfo”. Quem se corrompe para se enriquecer, ou não crê na existência da alma, ou ignora quão preciosa ela seja. Por isso, precisamos pedir, como o salmista: “Ensinai-nos a contar os nossos dias e dai ao nosso coração sabedoria!” (Sl 90,12). Precisamos permitir que a Palavra do Senhor penetre em nós “até dividir alma e espírito”, ou seja, até nos tornar conscientes dos “pensamentos” e das verdadeiras “intenções” do nosso coração (cf. Hb 4,12).
            Existe o palco e existem os bastidores. Enquanto os nossos olhos veem aquilo que algumas pessoas ricas ostentam, os olhos de Deus enxergam os “bastidores”, e sabe de onde vem essa ostentação: se ela é fruto de trabalho honesto ou de atitudes corruptas. Além disso, ainda que o dinheiro possa comprar alguns juízes, ele não pode comprar o verdadeiro Juiz, cuja Palavra julgará as atitudes de cada um de nós (cf. Hb 4,13).
            Foi diante dessa Palavra que um homem rico se colocou. Ao que tudo indica, ele tinha um coração bom e caminhava na retidão diante de Deus. Mas Jesus, que conhece o que há no coração do ser humano, percebeu que ele estava preso a um “anzol”, e então lhe disse: “Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!” (Mc 10,21).
            Este é o motivo pelo qual fazemos questão de não silenciar, de não ouvir Deus em nossa consciência ou em nosso coração: temos medo de que Ele nos diga: “Ainda te falta uma coisa”. O que falta para que você seja um ser humano melhor, um cristão melhor? Você está disposto a deixar de morder a isca e se desenroscar desse anzol que te prende à margem do rio da vida, impedindo você de mergulhar em águas mais profundas, de experimentar uma felicidade mais verdadeira?
            Ao se dar conta de que podia ser um ser humano melhor, desvencilhando-se da falsa segurança da sua riqueza, aquele homem “ficou abatido e foi embora cheio de tristeza” (Mc 10,22). Quando você estiver lendo a Bíblia ou ouvindo a Palavra numa celebração e sentir-se triste, angustiado, incomodado, agradeça a Deus! É sinal de que a Palavra penetrou em você e acordou o seu coração, para lhe mostrar que você precisa se abrir mais para Deus, que você precisa dar de si e não dar apenas dinheiro, que você precisa despojar-se da falsa segurança que o dinheiro te dá e ter a consciência de que você precisa ser salvo.
Ao final desse “diálogo” entre a Palavra de Deus e a sua consciência, se você se der conta de que precisa ter uma outra postura diante dos pobres, reflita sobre essas palavras do Papa Francisco: “A verdadeira pobreza dói. Desconfio da esmola que não custa nem dói. A atenção pelos pobres está no Evangelho”

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

TALVEZ ALGO EM VOCÊ PRECISE DE "ATUALIZAÇÃO"

Missa do 27º. dom. comum. Palavra de Deus: Gênesis 2,18-24; Hebreus 2,9-11; Marcos 10,2-16.
           
Uma pergunta para os solteiros: você se casaria? Uma pergunta para os casados: você se casaria com a mesma pessoa com quem se casou? Uma pergunta para os divorciados e para os viúvos: você voltaria a se casar?
Esta é a convicção de Deus: “Não é bom que o homem (ser humano) esteja só” (Gn 2,18). Você compartilha desta convicção ou, devido à convivência estar hoje cada vez mais difícil, você também decidiu optar por ficar só? Se é verdade que “não é bom que o ser humano esteja só” também é verdade que não é bom que o ser humano queira preencher o seu “vazio” com qualquer coisa, de qualquer forma. É importante suportar-se, ouvir-se, conhecer-se. É igualmente importante perceber se o que leva você a buscar alguém é porque quer se sentir feliz ou porque quer fazer esse alguém feliz...
As novas gerações demonstram não só uma decepção/rejeição em relação ao casamento – consequência do que vivem em casa? – como também um medo enorme em fazer uma escolha definitiva. Antes de o ser humano encontrar-se com o outro, ele precisou dar nome aos animais (cf. Gn 2,19). No campo psicológico, isso significa dar nome/reconhecer nossos sentimentos, nossas emoções. Significa também saber por que estão ali e ouvir o que eles estão nos dizendo. Antes de aprender a conviver com o outro, eu preciso aprender a conviver comigo, com a minha delícia e com a minha dor.
A Escritura descreve a mulher em relação ao homem como uma “auxiliar semelhante a ele” (Gn 2,16). Por que “auxiliar”? Por que o peso da vida precisa ser compartilhado. A palavra “cônjuge” – com jugo, com peso – pede que se compartilhe o mesmo peso. Tudo tem seu peso. Decidir casar-se tem um peso, assim como decidir não casar-se tem outro peso. Além disso, esse outro que é meu “auxiliar” é também “semelhante” a mim. Assim como eu, ele tem sua delícia e sua dor, sua força e sua fraqueza, seu lado encantador e seu lado decepcionante...
Onde encontrar o(a) meu(minha) auxiliar? Na internet? No baile funk? Na igreja? Na boca de fumo? Que critérios usar na escolha? Pode ser qualquer um, desde que você não esteja só? Para lhe conceder uma auxiliar semelhante, Deus faz o ser humano cair num sono profundo (cf. Gn 2,21): é ali que sonhamos e é também ali que “ouvimos” o nosso inconsciente. Deus coloca a presença do outro em minha vida não como se ele fosse uma criação minha, mas como ele verdadeiramente é: parte de mim. Somos parte um do outro. E, se somos “parte”, preciso aprender a considerar a parte que é o outro e não somente a parte que sou eu. A superação da crise, a cura, a restauração, a revitalização do relacionamento depende das duas partes, e nunca de uma só.
Para começar um caminho com o outro, eu preciso deixar meu pai e minha mãe, o que supõe que eu alcancei a minha maturidade econômica e emocional. Hoje nós temos inúmeras crianças e adolescentes precocemente “iniciados” na vida sexual, assim como temos inúmeros adultos infantilizados, mal resolvidos na sexualidade e desorganizados na administração das finanças, causa de não poucos divórcios.      
O autor da carta aos Hebreus fez uma afirmação a respeito de Jesus que vale para os nossos relacionamentos: “Pela graça de Deus em favor de todos, ele provou a morte” (Hb 2,9). Hoje é cada vez mais visível a incapacidade ou a rejeição de “morrer” pelo bem da família, do casamento, do vínculo. No entanto, só quem ama verdadeiramente é capaz de “morrer”, de suportar e de enfrentar “momentos de morte”, para que o relacionamento com a pessoa amada possa reviver.
Quando questionado a respeito do divórcio, Jesus deixou claro que ele é resultado da “dureza do coração”, isto é, “eu me recuso a morrer”, a me sacrificar, a renunciar aos meus caprichos (egoísmo) para revitalizar / sanar / recuperar meu relacionamento. Por isso, quando falamos de divórcio, precisamos questionar: Eu fiz tudo o que podia para evitá-lo? Qual foi a minha parcela de responsabilidade neste divórcio? 
Jesus deixa claro que o divórcio não é desejo de Deus: “O que Deus uniu o homem não separe!” (Mc 10,9). Então, aqui também cabem algumas perguntas: Deus esteve junto, no seu relacionamento, desde o início? Quando foi que Ele pôde entrar na sua casa, no seu relacionamento (se é que pôde)? Depois que tudo havia se quebrado? Só em Deus é possível superar as crises de um relacionamento. “Deus é amor” (1Jo 4,8), amor que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera e tudo suporta” (1Cor 13,7). Foi esse o amor que levou você a se unir a alguém? Ou foi somente paixão, tesão, atração física, beleza, emoção, necessidade de sair de casa, de se libertar do “domínio” da mãe e/ou do pai?
Em muitos casamentos, a frustração aparece cedo demais porque idealizamos a outra pessoa e colocamos expectativas irreais no relacionamento. Quanto maior e irreal a expectativa, maior a decepção. Caia na real: nenhum relacionamento sacia por completo a sua sexualidade, nem deleta as suas fantasias, nem elimina a sua solidão, nem preenche aquele lugar em você que só Deus pode ocupar. Case-se; relacione-se; sonhe, mas com os pés no chão.
Recentemente o Papa Francisco nos lembrou de que não existem famílias perfeitas, porque ninguém convive sem se machucar e sem machucar o outro. No entanto, o perdão cura, o amor cura. E, embora a mídia tenha distorcido esse assunto, Francisco recentemente tomou medidas não para “facilitar” a nulidade matrimonial nos casamentos realizados na Igreja, mas para “simplificar” o processo em reconhecer e declarar tal nulidade, a fim de libertar as pessoas que se sentem condenadas a um fardo injusto.
A cena final do Evangelho – Jesus abraçando as crianças e as abençoando (cf. Mc 10,16) – lembra que elas são o “termômetro” da família. As escolas públicas e particulares testemunham como estão as crianças: algumas, agressivas; outras, deprimidas; algumas com a sexualidade aflorada precocemente; outras, desonestas, preguiçosas e egoístas etc. Você ainda consegue abraçar seu filho como “parte” de você, ou vocês já se tornaram “estranhos” um para o outro? Lembre-se: os aplicativos do seu celular precisam de atualizações. Sem elas, deixam de funcionar como devem. Portanto, pergunte-se: Eu tenho atualizado a escolha que fiz da outra pessoa como minha “auxiliar”? Eu tenho atualizado o meu abraço em meu filho? E, por fim, eu tenho atualizado a minha fé?  

Pe. Paulo Cezar Mazzi