sexta-feira, 24 de novembro de 2017

DEUS RESTABELECERÁ A JUSTIÇA NA TERRA

Missa de Cristo Rei. Palavra de Deus: Ezequiel 34,11-12.15-17; 1Coríntios 15,20-26.28; Mateus 25,31-46. 

            Duas afirmações bíblicas nos ajudam a compreender o sentido da festa de hoje, na qual celebramos Cristo Rei. A primeira é de Deus, no Antigo Testamento, ao afirmar: “Quanto a vós, minhas ovelhas, (...) eu farei justiça entre uma ovelha e outra” (Ez 34,17). A segunda é do próprio Cristo, no Novo Testamento, ao afirmar: “Quando o Filho do Homem vier em sua glória..., todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros” (Mt 25,31-32). “Fazer justiça” e “separar uns dos outros” significa “julgar”, e quando Deus julga, Ele restabelece a justiça na terra.
            Para nós, brasileiros, que vivemos num país marcado por injustiça e impunidade, é confortador saber que a palavra final sobre a história da humanidade e sobre a consciência de cada ser humano virá do Filho, Jesus Cristo, a quem o Pai confiou o julgamento sobre todo ser humano, um julgamento que significa o confronto com a verdade que sempre se propôs como verdade que nos liberta. E esta cena do julgamento final, descrita no Evangelho, é confirmada pelo apóstolo Paulo, ao declarar que “todos nós compareceremos perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante sua vida terrena, seja para o bem, seja para o mal” (2Cor 5,10). E ainda: “Todos nós compareceremos perante o tribunal de Deus... Assim, cada um de nós prestará contas a Deus de si próprio” (Rm 14,10.12).
            Talvez essas afirmações bíblicas caiam como uma imposição intolerável da parte de Deus para sobre aqueles que escolheram não crer n’Ele ou não seguir religião nenhuma. No entanto, vale a pena perceber como Jesus nos surpreende neste Evangelho, ao revelar que o julgamento de cada ser humano não terá como critério a sua conduta cristã ou religiosa, mas a sua conduta humana! Jesus, na sua função de Juiz, não questionará o ser humano se ele teve fé, se praticou alguma religião ou se foi fiel à doutrina da sua igreja; Ele questionará todo e qualquer ser humano como ele se comportou diante da necessidade do seu semelhante! Isso é surpreendente e tira de todos nós, que seguimos alguma igreja ou religião, a falsa segurança ou a presunção de que ser uma pessoa religiosa garante por si só a nossa participação no Reino de Deus.
            A separação, no julgamento final, entre os justos e os injustos, entre os “benditos” e os “malditos”, deixa claro que só existem duas atitudes possíveis diante das pessoas que sofrem ou passam por alguma necessidade: ou nós nos compadecemos e ajudamos essas pessoas, ou nós nos desinteressamos pelo que se passa com elas e as abandonamos. Não há neutralidade, e a nossa postura agora diante delas vai refletir no momento do nosso encontro definitivo com Deus, sabendo que o critério para entrar no Reino não será o que cada um de nós fez ou deixou de fazer “para” Deus, mas o que um de nós fez ou deixou de fazer “para” os nossos semelhantes que cruzaram o nosso caminho e que clamaram por nossa presença solidária e compassiva.
            O pano de fundo do julgamento final é o “Reino de Deus”. Segundo os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, o Reino de Deus foi o centro da pregação de Jesus. Já o evangelista João traduziu o Reino de Deus pela expressão “vida eterna”. Portanto, perder o Reino, perder a vida eterna, significa perder tudo; significa falir como ser humano e afastar-se definitivamente da meta que Deus desejou para cada ser humano: a vida plena. Nas palavras do Pe. J.A. Pagola, “o Reino do Pai é a fraternidade entre Seus filhos; é a realização de cada promessa de Deus e de cada desejo do homem; é o fim de toda e qualquer escravidão, egoísmo, tristeza, guerra, inquietação, maldade, dureza etc”.
            Na oração do Pai nosso, Jesus nos ensinou a pedir: “Venha a nós o vosso Reino!” (Mt 6,10). E aqui é importante lembrar que o Reino de Deus não é um lugar, mas uma situação de vida, conforme nos ensina o apóstolo Pedro: “O que nós esperamos, conforme a sua promessa, são novos céus e numa nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). Desejar o Reino é desejar a justiça de Deus que cura, restaura e corrige tudo aquilo que as injustiças dos homens causaram e têm causado de dor, de sofrimento e morte em nosso mundo. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que Jesus também nos convidou a “buscar, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33), e todas as outras coisas nos serão dadas em acréscimo.
            Preocupa-nos, hoje, o nosso descrédito cada vez maior em relação à justiça em nosso país, e a consequente apatia, tolerância e indiferença para com as injustiças e a impunidade. Mas também é preocupante o fato de que muitos de nós estejamos nos corrompendo em nossa consciência e nos permitindo praticar atitudes injustas, apostando na impunidade. Uma pessoa que deixou se corromper deixou de acreditar no céu, deixou de acreditar no julgamento final, deixou de acreditar no Reino de Deus, na vida eterna. Essa verdade se aplica especialmente aos líderes religiosos: todo líder religioso que passou a se corromper, desviando para sua conta particular um dinheiro que foi custosamente doado por seus fiéis, faz isso porque não crê no céu; esqueceu-se – e faz questão de não lembrar – de que um dia ouvirá do Justo Juiz: “Presta contas da tua administração” (Lc 16,2). A Palavra do Senhor hoje é muito clara: Deus fará justiça entre um ser humano e outro. Nada ficará impune, porque tudo tem consequências. Por não acreditarem no céu, as pessoas corruptas favorecem o inferno aqui na terra, o qual se concretiza por meio das inúmeras injustiças que causam sofrimento a muitas pessoas. E pessoas que favorecem o inferno aqui na terra o receberão com consequência natural dos seus atos, conforme está escrito: “O que o homem semear, isso colherá” (Gl 5,17).
             Ao terminar esta reflexão sobre Cristo Rei, lembremos que Deus escolheu a figura do rei para expressar o seu cuidado para com seu povo, um cuidado carinhosamente descrito pelo profeta Ezequiel nestas palavras: “Vou cuidar de minhas ovelhas e vou resgatá-las de todos os lugares em que foram dispersadas num dia de nuvens e escuridão. Vou procurar a ovelha perdida, reconduzir a extraviada, enfaixar a da perna quebrada, fortalecer a doente, e vigiar a ovelha gorda e forte. Vou apascentá-las conforme o direito” (Ez 34,12.16). Ao proclamarmos Jesus Cristo como Rei do Universo, nós professamos a fé no Pai que confiou ao seu Filho o poder de redimir e salvar todo ser humano, o poder de restaurar todas as coisas, de reconciliar tudo o que está no céu e sobre a terra, realizando a paz, restabelecendo a justiça e concedendo-lhes a vida eterna.
           
            Oração: Senhor Deus, eu confio na Tua justiça e no Teu julgamento sobre o mundo e sobre cada ser humano. Eu acredito do Teu Reino, confiando e esperando na Tua promessa de criar novos céus e uma nova terra onde habitará a justiça. Venha a nós o Teu Reino! Estende sobre todo ser humano o Teu cuidado de Pai, especialmente sobre as pessoas que ainda estão sob o domínio do mal e de todo tipo de injustiça e sofrimento. Restaura todas as coisas em Teu Filho Jesus Cristo, Rei do Universo! Amém!
            Senhor Jesus Cristo, quero submeter-me à Tua autoridade, ao Teu poder, ao Teu senhorio. Livra-me de perder o medo de perder o céu. Quero estar consciente do meu julgamento diante de Ti. Quero reconhecer-Te na pessoa do necessitado. Quero passar por este mundo compadecendo-me e ajudando aqueles que precisam, jamais assumindo a atitude de me desinteressar do sofrimento deles e de abandoná-los a si mesmos. Que a Tua palavra continue a orientar a minha consciência diariamente, para que eu possa estar confiante, diante de Ti, no momento do meu julgamento. Podes reinar, Senhor Jesus! O Teu poder Teu povo sentirá! Reina, Senhor, neste lugar! Visita cada irmão, ó meu Senhor, dá-lhe paz interior e razões pra Te louvar. Desfaz toda tristeza, incerteza e desamor. Glorifica o Teu nome, ó meu Senhor!  (Podes reinar).       
             

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

NÃO IGNORE A FORÇA QUE HÁ DENTRO DE VOCÊ

Missa do 33º. dom. comum. Palavra de Deus: Provérbios 31,10-13.19-20.30-31; 1Tessalonicenses 5,1-6; Mateus 25,14-30.

            Conta-se que um homem, ao passar próximo de um circo, viu um elefante do lado de fora, preso por uma frágil corda amarrada em uma de suas patas a uma pequena estaca. Bastava para aquele elefante fazer um pouco de força, romper a corda e caminhar livremente. Mas, por ele ter sido criado assim pelo dono do circo, sempre amarrado a uma corda, desconhecia a sua própria força. Assim são muitas pessoas: elas se permitem passar a vida toda amarradas a uma situação de injustiça, de sofrimento ou de escravidão justamente porque desconhecem a sua própria força. E Jesus está aqui, no Evangelho de hoje, para devolver a cada um de nós a consciência da nossa força, da nossa capacidade, dos nossos talentos...
            Quando observamos as pessoas, percebemos que entre elas existem algumas que são fortes e outras que são fracas; enquanto algumas decidem lutar, outras escolhem se entregar; enquanto algumas tomam atitude diante daquilo que lhes acontece, outras escolhem sofrer passivamente diante dos acontecimentos. Mas essa diferença não é uma questão genética. Na verdade, ninguém nasce forte e capaz, assim como ninguém nasce fraco e incapaz. E embora todo ser humano seja um pouco fruto do ambiente onde nasceu e foi criado, ele sempre carrega consigo a liberdade de escolher o que fazer com aquilo que recebe do ambiente onde se encontra. Portanto, a raiz principal que “explica” a força ou a fraqueza da pessoa está dentro dela, e não fora.
            Jesus quer nos tornar conscientes de que toda pessoa nasceu potencialmente capaz de realizar-se, capaz de fazer o bem a si mesma, aos outros, à humanidade. Cada um de nós precisa tornar-se consciente dos talentos que carrega consigo, talentos que nos foram dados por Deus ao nos criar. Nós não podemos passar pela vida ignorando quem somos, ignorando a nossa capacidade de força, de superação, de realização. Há uma “energia” que pede para crescer em nós, que pede para se expandir e se desenvolver. E, da mesma forma como acontece quando nos exercitamos fisicamente, quanto mais exercitamos nossos talentos, nossas capacidades, mais elas crescem e se fortalecem dentro de nós. Mas o contrário também é verdade: quanto mais nos acomodamos, quanto mais nos deixamos contaminar pela preguiça e pelo comodismo, mais nos atrofiamos física, emocional e espiritualmente.
            Todos nós já nos demos conta de que existe hoje uma espécie de “corpo mole” generalizado. Há uma procura pela acomodação, pela lei do menor esforço. Há uma preguiça, uma má vontade ou uma fraca vontade em crescer, em se desenvolver. Há um nivelamento por baixo. Interessante que o Evangelho se refere ao servo que escolheu enterrar o seu talento, ao invés de fazê-lo crescer, com essas palavras: “Servo mau e preguiçoso” (Mt 25,26). Não nos surpreende aqui a menção da preguiça, mas nos surpreende a menção da maldade! No fundo, Jesus está nos dizendo que quando nós não fazemos o bem de que somos capazes de fazer, acabamos indiretamente fazendo o mal! Quem não faz o bem que tem condições de fazer, acaba por dar ao espaço ao mal para que ele cresça em si e à sua volta. No fundo, o mal é como mato: basta que você não cultive o terreno, deixando de semear diariamente o bem, e o mal começa a crescer e tomar conta do espaço que você deixou de cultivar...
            “(...) escondi teu talento no chão” (Mt 25,25). Por que nós às vezes decidimos não mais crescer, não mais lutar, não mais nos superar? Jesus nos alerta aqui para que tenhamos consciência de que nós podemos nos tornar nosso próprio inimigo, uma espécie de “sabotador de si mesmo”. Temos capacidade, temos força, temos inteligência, temos vontade, mas escolhemos ignorar ou mesmo enterrar tudo isso, e passar a viver na apatia, no desânimo, na passividade, no conformismo, quem sabe esperando receber atenção ou compaixão dos outros. E quando decidimos seguir pela vida desse jeito, o resultado é trágico: “Tirai dele o talento e dai-o àquele que tem dez! Porque a todo aquele que tem será dado mais, e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado” (Mt 25,28-29). Isso significa que quando deixamos de trabalhar pelo nosso crescimento, nós começamos a nos atrofiar como pessoa. A vida é algo dinâmico e não estático. Além disso, ela, a vida, costuma devolver aquilo que lhe damos: quanto mais mesquinhos somos com ela, mais ela é mesquinha conosco; quanto mais somos generosos com ela, mais ela é generosa conosco.
            Enfim, o Evangelho de hoje traz consigo uma verdade muito importante para o nosso desenvolvimento humano e espiritual: “Mover os pés na direção de um ideal não é papel da inteligência, mas da vontade” (Pe. Wellistony C. Viana). Jesus está se colocando em diálogo com a nossa vontade. Só ela pode nos desenterrar; só ela pode desenterrar o melhor que há dentro de nós. Por isso, quando reclamamos de uma determinada situação, quando seguimos pela vida lamentando o que nos acontece, ao invés de nos posicionar ativamente diante daquilo por meio dos talentos, das capacidades que Deus nos deu, precisamos ter a coragem de fazer uma autocrítica e perceber que o problema pode estar simplesmente na nossa falta de vontade. Há um potencial enorme guardado dentro de nós, mas nós nos acostumamos a utilizar apenas o mínimo dele. Como aquele elefante, nós nos acostumamos a viver a vida amarrados a uma estaca, lamentando o nosso destino, quando poderíamos fazer muito mais por nós mesmos, pelos outros, por nossa Igreja, pela humanidade, pelo Reino.
            Jesus veio ajudar a desenterrar o que cada um de nós tem de melhor dentro de si. Esta é uma tarefa que nós também podemos assumir junto das pessoas com as quais convivemos, ajudando-as a reconhecerem seus talentos, suas capacidades e a despertarem sua força de vontade, seu desejo de superação. Sobretudo, que cada um possa desconfiar das razões que costuma apresentar para justificar sua posição de passividade diante da vida, deixando de se esconder atrás de desculpas que não colam, de motivos que não são de fato motivos, e deixando de culpar os outros ou o meio social por sua vida estar num buraco, quando, na verdade, falta um diálogo sincero com a nossa própria vontade, para que ela assuma o seu lugar e ative os talentos que estão adormecidos dentro de nós.   
             
P.S. A pedido do Papa Francisco, celebramos hoje, 19 de novembro, o Dia Mundial dos Pobres. “Não pensemos nos pobres apenas como destinatários duma boa obra de voluntariado, que se pratica uma vez por semana, ou, menos ainda, de gestos improvisados de boa vontade para pôr a consciência em paz. Estas experiências, embora válidas e úteis a fim de sensibilizar para as necessidades de tantos irmãos e para as injustiças que frequentemente são a sua causa, deveriam abrir a um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a uma partilha que se torne estilo de vida... Se realmente queremos encontrar Cristo, é preciso que toquemos o seu corpo no corpo chagado dos pobres, como resposta à comunhão sacramental recebida na Eucaristia. O Corpo de Cristo, partido na sagrada liturgia, deixa-se encontrar pela caridade partilhada no rosto e na pessoa dos irmãos e irmãs mais frágeis.
Portanto somos chamados a estender a mão aos pobres, a encontrá-los, fixá-los nos olhos, abraçá-los, para lhes fazer sentir o calor do amor que rompe o círculo da solidão. A sua mão estendida para nós é também um convite a sairmos das nossas certezas e comodidades e a reconhecermos o valor que a pobreza encerra em si mesma. Este Dia pretende estimular, em primeiro lugar, os crentes, para que reajam à cultura do descarte e do desperdício, assumindo a cultura do encontro. Ao mesmo tempo, o convite é dirigido a todos, independentemente da sua pertença religiosa, para que se abram à partilha com os pobres em todas as formas de solidariedade, como sinal concreto de fraternidade. Deus criou o céu e a terra para todos; foram os homens que, infelizmente, ergueram fronteiras, muros e recintos, traindo o dom originário destinado à humanidade sem qualquer exclusão... Os pobres não são um problema: são um recurso de que lançar mão para acolher e viver a essência do Evangelho” (Papa Francisco).



 Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

CUIDE DA SUA RESERVA DE ÓLEO

Missa do 32º. dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 6,12-16; 1Tessalonicenses 4,13-18; Mateus 25,1-13.

            Quando uma pessoa nasce, dizemos que ela veio à luz. Para nós, cristãos, além do nascimento biológico existe também o nascimento espiritual, quando, no momento do batismo, somos declarados filhos de Deus e recebemos, por meio de nossos pais e padrinhos, a luz da fé, luz que deve nos guiar ao longo de toda a vida, até que nos encontremos definitivamente com o Deus que é luz.
O Evangelho de hoje nos pergunta se estamos cuidando da luz da nossa fé. Tudo aquilo que nós não cuidamos, acabamos perdendo. É a lei da vida. Embora a fé seja um dom de Deus para nós, ela também é uma responsabilidade nossa: cada um de nós é chamado a cuidar da sua própria fé, alimentando-a, protegendo-a, defendendo-a e mantendo-a viva para o encontro com o Senhor. Embora a nossa fé tenha sido inicialmente recebida de outros – pais, padrinhos, Igreja etc. – ela se torna ao longo da vida nossa tarefa pessoal, algo que depende, e muito, do nosso cuidado.
“Dá-nos um pouco de óleo, porque nossas lâmpadas estão se apagando”... “De modo nenhum, porque o óleo pode ser insuficiente para nós e para vós” (Mt 25,8-9). Quando se fala de fé, não dá para pegar carona nos outros; cada um tem que cuidar da sua própria fé. Não tem sentido uma pessoa viver pedindo que os outros orem por ela, quando ela mesma não cuida da sua vida de oração. Não tem sentido uma pessoa dizer que gostaria de ter uma fé mais firme, mas não fazer nada de concreto para fortalecer a sua fé. A fé exige que cada um de nós se posicione diante de Deus e diante da vida, sem tentar se esconder atrás dos outros e sem usar os outros como desculpa para justificar o tipo de fé que nos sustenta neste momento.
            O Evangelho aborda o desafio principal da nossa fé: “O noivo estava demorando” (Mt 25,5). Essa demora do “noivo” significa que nós não podemos dispor de Deus; Ele vem a nós quando e como quer; Ele é livre e soberano na Sua vontade e não se deixa prender nos nossos esquemas, nem mesmo nas expectativas da nossa fé. E o grande risco para a nossa fé é que nós interpretamos essa “demora” de Deus como sinônimo da Sua ausência ou do Seu desinteresse por nós e pela história humana... Uma vez que o noivo estava demorando, as dez jovens “acabaram cochilando e dormindo” (Mt 25,5). Isso nos lembra que inúmeras pessoas hoje perderam o horizonte da sua fé. Elas se esqueceram de que sua vida caminha para uma meta, para o encontro com o Senhor. São pessoas que permitiram que sua consciência fosse anestesiada, distraída, confundida com falsos valores, propostos pelo mundo atual. Elas estão cuidando de muitas coisas, mas descuidando do essencial.
            Se a nós não cabe controlar Deus, cabe cuidar da reserva de óleo da nossa lâmpada. E aqui entra um outro problema, muito comum nos dias atuais: o improviso. Já conhecemos o ditado que diz que “brasileiro deixa tudo para a última hora”. Nós até sabemos o que precisamos fazer, para que não falte óleo nas nossas lâmpadas, mas apostamos na “sorte”; apostamos que, na hora, Deus dará um jeito; na hora, as coisas se resolverão por si mesmas. E, assim, nos tornamos tão inconsequentes quanto o piloto do avião da Chapecoense que, pelo que se sabe, costumava apostar na reserva do combustível do seu avião... Portanto, ter reserva de óleo significa ter consciência de que a nossa fé não pode ser miserável, não pode viver de improviso, de remendo, não pode contentar-se em funcionar mais ou menos. Ter reserva de óleo significa abastecer-se diariamente de Deus para poder enfrentar o embate da vida diária que, com seus fortes ventos, muitas vezes sopra contra a nossa fé.
            O convite de Jesus é claro: “Ficai vigiando, pois não sabeis qual será o dia, nem a hora” (Mt 25,13). Em que sentido Jesus nos convida à vigilância? No sentido de esperá-Lo: “Minha alma espera pelo Senhor, mais do que o vigia espera pela aurora” (Sl 130,6). Assim como a esposa espera pelo seu Esposo, a Igreja/nós, cristãos, esperamos pelo Senhor Jesus. Na verdade, Jesus vem ao nosso encontro todos os dias, na Palavra, na Eucaristia, nos acontecimentos e, sobretudo, na pessoa de alguém que precisa de nós. A nossa fé sempre deve traduzir-se em esperança, pois Jesus Cristo virá “para aqueles que o esperam para lhes dar a salvação” (Hb 9,28). A esperança nos faz não apenas suportar as dificuldades presentes, mas nos ajuda a lidar com elas sem nos deixarmos contaminar pela apatia ou pela indiferença diante da vida, sabendo que nós não estamos aqui por acaso. O nosso destino último é o encontro com Deus e com a salvação em seu Filho Jesus Cristo.
            Pensemos em nossa reserva de óleo... Que tempo temos reservado para cuidar da nossa fé, da nossa espiritualidade? Que tempo reservamos diariamente para a oração, para a meditação da Palavra, para o encontro com Deus em nossa consciência? Que tempo reservamos para cuidar dos relacionamentos que nos são significativos? Tudo na vida se desgasta. Nossos recursos sempre se esgotam, não só os recursos materiais, mas também os emocionais e espirituais. Aquilo que não cuidamos, perdemos. Não teria sentido nós nadarmos, nadarmos, para depois morrermos na praia. Não teria sentido nós caminharmos a vida toda na expectativa do encontro com o Senhor, mas depois abandonarmos essa meta, perdendo-nos d’Ele. Nossa fé não pode se esgotar naquilo que estamos vendo e experimentando agora. Ela precisa se desdobrar em esperança, abrindo-nos para aquilo que Deus tem de surpresa, de mudança para a nossa vida. Quanto mais fica escuro e quanto mais o noivo demora, mais se torna necessário o cuidado com a luz da nossa fé, sustentando-a com o óleo da esperança, pois, como diz a Escritura, “a Ti, Senhor, eu me elevo, ó meu Deus. Eu confio em Ti; que eu não fique decepcionado... Os que esperam em Ti não ficam decepcionados; ficam decepcionados os que abandonam a fé por qualquer motivo” (Sl 25,1-3).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

UMA ESCOLHA QUE NOS SEPAROU DO MUNDO

Missa de todos os santos. Palavra de Deus: Apocalipse 7,2-4.9-14; 1João 3,1-3; Mateus 5,1-12a.

            “Minha escolha separou vocês do mundo” (Jo 16,19). Essas palavras de Jesus são importantes para nos deixarmos interpelar pela liturgia de hoje, o dia de todos os santos. Quem é a pessoa santa, aos olhos da Sagrada Escritura? A pessoa santa é aquela que está no mundo, mas tem consciência de não pertencer ao mundo. Como todo e qualquer ser humano, ela vive mergulhada numa realidade onde o bem e o mal, a verdade e a mentira, a graça e o pecado aparecem misturados, sem muitas vezes ter uma diferenciação nítida, clara, entre um e outro. Mas, diferente de tantos seres humanos, a pessoa que busca sua santificação não aceita se comportar na vida como se fosse uma espécie de esgoto, que engole sem discernimento tudo o que o mundo lhe propõe como felicidade. Ao contrário, orientando-se pela Palavra de Deus, ela faz da sua consciência uma espécie de filtro, separando o que presta daquilo que não presta, o que convém daquilo que não convém para a sua verdadeira felicidade, para a sua salvação.
            Ao nos convidar a ser santos, Deus está nos convidando a nos separar de tudo aquilo que nos afasta da nossa própria essência como filhos Seus. Mas a pergunta que fica é: quem de nós quer de fato separar-se de tantas coisas que o mundo de hoje nos apresenta, coisas aparentemente boas, ‘importantes’, quase que ‘essenciais’ para sermos felizes? Quem de nós aceita sofrer e renunciar a um prazer, a um lucro, a um ganho, a uma oportunidade, oferecidos pelo mundo, quando sabe que isso está em contradição com aquilo que o Senhor nos pede na sua Palavra? Aqui precisamos ser muito realistas, sinceros, e reconhecer que nós, embora queiramos pertencer a Deus, também queremos desfrutar de certas coisas que o mundo nos oferece, ainda que nos afastem da santidade do nosso Deus.
            O apóstolo João quer nos tornar conscientes de que a santidade não é um valor para o nosso mundo: “o mundo não nos conhece” (1Jo 3,1); vale dizer: o mundo não reconhece o valor da santidade. Se alguém espera que o seu esforço em viver segundo o Evangelho e se comportar na vida como Jesus se comportou vá ser reconhecido e até mesmo apoiado pelo mundo, está totalmente enganado e vai se frustrar cada vez mais. O mundo simplesmente ignora – quando não, agride e combate – toda pessoa que se esforça em se santificar, da mesma forma como os morcegos preferem a escuridão e fogem da luz, porque se sentem agredidos por ela. Portanto, quem não suporta ser tratado com indiferença pelo mundo, cedo ou tarde abandona sua própria santificação e passa a adaptar-se ao mundo, para ser reconhecido e apoiado por ele.
            Em todas as partes do mundo percebe-se hoje uma tendência ao fundamentalismo e ao conservadorismo: muitas pessoas acharam mais fácil defender-se do mundo do que atuar nele como sal, luz e fermento (cf. Mt 5,13.14; 13,33). Aqui pode nos ajudar o livro do Apocalipse, quando nos lembra que os santos são pessoas que se santificaram passando por uma grande tribulação – sofrendo e enfrentando uma grande tribulação, não sendo poupados dela. São pessoas que permitiram ser marcadas em sua fronte (consciência) com o sinal de pertença ao Deus vivo; pessoas que, se agora estão em pé, ressuscitadas, diante do trono de Deus e do Cordeiro, Jesus Cristo, e vestindo roupas brancas, é porque suas roupas foram lavadas no sangue do Cordeiro enquanto estavam na terra. Portanto, são pessoas que enfrentaram as mesmas lutas que Jesus enfrentou, que sofreram o que Ele também sofreu; pessoas que se depararam com a maldade e as injustiças deste mundo e escolheram diante disso testemunhar a sua fé, e não fugir do confronto com o mundo.
            Jesus deixa claro no Evangelho de hoje que a nossa santificação se dá na terra, entrando em comunhão com a realidade que hoje afeta todas as pessoas, suportando aflições, enquanto esperamos a consolação que vem de Deus; procurando conservar em nós a mansidão, a paciência; sofrendo em nós a fome e a sede de justiça; deixando-nos afetar pela dor dos outros; mantendo em nosso coração o filtro do discernimento; promovendo a paz e aceitando o fato de que sempre sofreremos algum tipo de perseguição quando procurarmos tornar esse mundo mais justo. O apóstolo João, por sua vez, nos recorda que a nossa santificação é um processo que dura a vida toda: já somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que seremos (cf. 1Jo 3,2). Portanto, precisamos ter paciência conosco mesmos e aceitarmos essa espécie de tensão espiritual entre o nosso real – a pessoa que somos – e o nosso ideal – a pessoa que somos chamados a ser em Deus. Neste sentido, há algo que pode nos ajudar: é a convicção de que ser santo não é ser alguém que não queremos ser; ser santo é ser aquilo que fomos chamados a ser, pelo Deus que nos criou e nos disse: “sejam santos, porque Eu sou Santo” (1Pd 1,16).
Uma palavra final. Você é chamado à santidade não fazendo coisas extraordinárias para Deus ou em nome de Deus, mas executando as tarefas ordinárias do seu cotidiano mantendo no coração as palavras de Jesus: Minha escolha separou você do mundo (cf. Jo 15,19). Você está no mundo, mas não deve viver a partir dele; e sim viver a partir da voz de Deus em sua consciência. Assim, a sua santidade será buscada e cultivada no ordinário do seu cotidiano, enquanto você estuda, trabalha, navega na internet, joga bola ou faz algum outro esporte, se diverte nas festas, no lidar com seu corpo, sua sexualidade, sua afetividade, no lutar pela justiça, no opor-se ao mal, ao erro, à injustiça, no usar seu celular, enviando mensagens, no usar o controle remoto da sua TV etc.
Abaixo segue uma reflexão muito oportuna sobre a diferença entre perfeccionismo e santidade...

“O perfeccionista é aquele que pensa que só será amado por Deus, pelos demais e por si mesmo se ele for perfeito. O santo é aquele que se sabe amado por Deus incondicionalmente. O perfeccionista se propõe e se esforça para atingir a perfeição contando unicamente consigo mesmo para eliminar vícios e adquirir virtudes. O santo compreende que a santidade é um dom de Deus, e ele se reconhece dependente de Deus para ser salvo. Para o perfeccionista, o pecado é vivido como uma experiência de fracasso, uma humilhação da sua auto-imagem, uma ruptura com o próprio ideal; as quedas produzem tristeza, desânimo. O santo não se sente humilhado pelo pecado. Ele aceita ser pobre, frágil, limitado, e sabe-se amado em sua pequenez. As quedas não lhe roubam a esperança.             Como não consegue atingir a meta desejada, o perfeccionista se sente constantemente culpado, em dívida, insatisfeito, se condenando. Confiante na misericórdia divina, o santo vive sua fé com alegria e auto-aceitação. Para o perfeccionista, Deus é um juiz mal-humorado. Para o santo, Deus é amor, misericórdia, ternura infinita. A relação do perfeccionista com Deus é marcada pela distância e pelo medo. A relação do santo com Deus é marcada pela proximidade e pela intimidade. A busca da perfeição consiste na subida sofrida de uma escada. A busca da santidade consiste numa descida rumo a uma radical humildade”.
                                                                                                      (José Antonio Netto de Oliveira, SJ, Perfeição ou santidade e outros textos espirituais, Loyola).

                                                                 Pe. Paulo Cezar Mazzi

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

DESTINADOS À RESSURREIÇÃO

Missa de finados. Palavra de Deus: Jó 19,1.23-27a; Romanos 5,5-11; João 6,37-40.

O dia de finados nos convida a nos lembrar daqueles que recentemente ou há muito tempo partiram desta vida. Depois que morrermos, nós seremos lembrados por alguém? Por quanto tempo? Silvia Schmidt escreveu: “Eu tive que aceitar as minhas fragilidades, os meus limites, a minha condição de ser mortal, de ser atingível, de ser perecível. Eu tive que aceitar que a VIDA sempre continuaria com ou sem mim, e que o mundo em pouco tempo me esqueceria” (Eu tive que aceitar). Ao nos fazer lembrar daqueles que morreram, o dia de hoje também nos faz um questionamento: quantos não são mais lembrados por nós, apesar de ainda estarem vivos entre nós? Quantos idosos, solitários em suas casas ou nos asilos, não são lembrados por seus filhos e netos?
Jó acabou de nos dizer: “Gostaria que minhas palavras... fossem escritas e... cravadas na rocha para sempre!” (Jó 19,23-24). Sim, em praticamente todos os túmulos encontramos gravados em placas de metal ou no mármore os nomes de pessoas que faleceram. Mas o que Jó quis que fosse gravado na rocha para sempre é uma certeza de fé que devemos ter, quando tomamos consciência de que um dia vamos morrer: “Eu sei que o meu redentor está vivo e que, por último, se levantará sobre o pó; e depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne verei a Deus” (Jó 19,25-26).
Enquanto nossa vida é feita de inúmeras incertezas, a morte é nossa única certeza. Mas a fé nos convida a olharmos para além da morte, a olharmos para o nosso Redentor, que está vivo, o Senhor Jesus, que nos resgata e nos arranca das mãos da morte. Mesmo que a nossa pele seja destruída na morte, nós veremos a Deus, e O veremos com o nosso corpo, que se tornará um corpo glorificado (cf. Fl 3,20-21). Por isso, disse o salmista: “Espera no Senhor e tem coragem, espera no Senhor!” (Sl 27,14).
Essa espera no Senhor se chama esperança, uma esperança que não decepciona, que não engana, porque Deus derramou o seu Espírito em nossos corações, e o Espírito Santo é a garantia de nossa ressurreição. O apóstolo Paulo esclarece no quê se baseia a esperança que temos em relação à nossa união definitiva com Deus após a morte. Ele diz que nós já estamos justificados pelo sangue de Cristo. Nós já fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho! Esta certeza deve nos encher de esperança: se já estamos reconciliados, seremos salvos!
Quando morre alguém da nossa família, dizemos: “Eu perdi meu pai, minha filha, minha irmã, meu avô...” No entanto, Jesus nos garante que Ele não perderá nenhum daqueles que o Pai confiou aos Seus cuidados. A morte pode arrancar de nossas mãos pessoas que amamos, mas o Pai confiou cada um de nós às mãos e aos cuidados de seu Filho Jesus Cristo que, por ter vencido a morte, nos faz esta promessa: ‘Eu não vou perder nenhum daqueles que o Pai me confiou. Além disso, vou ressuscitá-los no último dia’ (citação livre de Jo 6,39).
Antes que chegue o nosso “último dia”, precisamos rever como temos vivido cada um dos nossos breves dias neste mundo. Dalai Lama disse que o que mais chama a sua atenção é que as pessoas hoje, obcecadas em ganhar dinheiro, “vivem como se nunca fossem morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido”. Já Adélia Prado nos alerta sobre o perigo de morrermos antes da hora, ao escrever: “Eu sei que algum dia alguém terá que me enterrar, mas eu não vou fazer isso comigo”. Da mesma forma, Albert Schweiter disse: “A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva”.
Por meio das nossas preces, queremos agora confiar às mãos de nosso Senhor Jesus ressuscitado todos os nossos irmãos falecidos. Se o apóstolo Paulo disse que é por nosso Senhor Jesus Cristo que recebemos a reconciliação, nós rezamos por todos os que faleceram, para que, reconciliados com o Pai por meio de seu Filho Jesus, recebam a salvação e sejam considerados dignos da ressurreição. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi