domingo, 30 de junho de 2019

FÉ PARA ALÉM DO ESCÂNDALO

                        Vivemos uma época de muitos escândalos, seja no campo da política (corrupção), seja no campo da moral (adultério, promiscuidade), seja no campo da religião (contra testemunho). Por serem muitos e praticamente cotidianos, os escândalos já não nos escandalizam mais; tornaram-se parte da nossa rotina, como se a exceção se tornasse regra. Contudo, justamente ao falar à sua Igreja, Jesus fez um alerta muito sério a respeito dos escândalos: “Caso alguém escandalize um destes pequeninos que creem em mim, melhor seria se lhe pendurassem ao pescoço uma pedra pesada e fosse precipitado nas profundezas do mar. Ai do mundo por causa dos escândalos! É necessário que haja escândalos, mas ai do homem pelo qual o escândalo vem!” (Mt 18,6-7).
                        O que Jesus entende por “escândalo”? Escândalo não é aquele acontecimento ou fato que deixa você admirado(a) ou chocado(a), mas aquilo que pode destruir sua fé. No caso específico do capítulo 18 de São Mateus, Jesus tem como preocupação as pessoas que estão na Igreja e ainda têm uma fé frágil, não amadurecida, não provada na crise, uma fé que pode facilmente quebrar-se, desencantar-se, decepcionar-se. Neste caso, Jesus adverte as pessoas que estão há mais tempo na Igreja e, logicamente, aqueles que ocupam nela alguma função de liderança: se nossas atitudes erradas forem conscientes e intencionais, e mesmo depois de sermos corrigidos, continuarmos a errar de modo a provocar a perda de fé em outras pessoas, seria muito melhor para nós sofrermos um acidente e morrermos tragicamente do que ter que responder perante Deus pela perda da fé do nosso irmão.   
                        Dentro desse contexto, Jesus faz uma afirmação muito séria: “É necessário que haja escândalos, mas ai do homem pelo qual o escândalo vem!” (Mt 18,7). Nós podemos entender este “é necessário” de dois modos: primeiro, no sentido de que é impossível que não haja escândalos quando se trata de pessoas. Todo ser humano tem seu ponto fraco e ninguém está garantido de nunca cair. Mas há também um segundo sentido: todo escândalo que envolve pessoas de igreja provoca uma crise de fé e esta crise é necessária para que a fé se comprove como madura e verdadeira e não como ingênua e do tipo “fogo de palha”. Neste sentido, diante do escândalo da divisão na Igreja de Corinto, Paulo afirma: “É preciso que haja até mesmo cisões entre vós, a fim de que se tornem manifestos entre vós aqueles que são comprovados (na fé)” (1Cor 11,19).
                        É muito interessante quando o evangelista Marcos narra para nós a visita de Jesus a Nazaré, o lugar onde ele cresceu. Enquanto Jesus, na sinagoga, faz uma espécie de homilia, interpretando aquilo que ele entendeu da Sagrada Escritura, Marcos diz: “E estavam chocados (escandalizados) por sua causa” (Mc 6,4), escandalizados não pelo que Jesus falava, mas por ser quem era: como se diria hoje, um “comedor de feijão e arroz” como eles. Ou seja, os nazarenos estavam escandalizados pelo fato de o Filho de Deus ser um deles, alguém que não aparentava nada de extraordinário. E Marcos termina seu relato afirmando que Jesus “admirou-se da falta de fé deles” (Mc 6,6). Em outras palavras, a nossa exigência de sinais espetaculares para crer é tão alta que Jesus chega a se escandalizar com a imaturidade da nossa fé!
                         Na verdade, os discípulos se escandalizaram algumas vezes com Jesus, principalmente quando ele falou da necessidade de passar pelo sofrimento de cruz. Pedro foi o primeiro a se escandalizar com isso (cf. Mc 8,32), mas, depois, todos os outros discípulos também ficaram escandalizados com Jesus (cf. Mc 9,32). Esse escândalo foi registrado também pelo evangelista João: “A partir daí, muitos dos seus discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele” (Jo 6,66). E foi justamente no momento em que Jesus foi preso que “todos os seus discípulos, abandonando-o, fugiram” (Mt 26,56). Esta é uma verdade muito séria, sobre a qual precisamos refletir: a Cruz nos escandaliza; o Crucificado nos escandaliza; a Igreja crucificada nos escandaliza, e tudo isso acontece porque nossa fé não é uma fé amadurecida; é uma fé que não suporta crise.   
                        A palavra “crise” está ligada ao “crisol”, objeto que é submetido a altas temperaturas para derreter metais e também para purificar a prata e o ouro que são colocados dentro dele. Portanto, todo metal que passa pelo crisol sai dele purificado. Eis porque o livro do Eclesiástico diz: “pois o ouro se prova no fogo, e os eleitos, no cadinho (ou crisol) da humilhação” (Eclo 2,5). Uma fé que não passa por crise é como uma árvore que cresceu sem enfrentar nenhum vento contrário: seu tronco é frágil e ela tomba com a maior facilidade, quebrando-se por quase nada. A grande e profunda crise pela qual Jó passou praticamente destruiu todas as imagens que ele tinha de Deus, de modo que, depois da crise e tendo amadurecido na sua fé, ele disse a Deus: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos te veem” (Jo 42,5), ou seja, Jó só conseguiu ter uma compreensão mais profunda e real de Deus depois de ter enfrentado um longo período de crise de fé.  
                        Tudo o que foi escrito aqui não é para que você aceite os escândalos como algo totalmente normal, mas para que evite cair em dois tipos de erro: o primeiro é abandonar seu caminho de santificação e se tornar também causa de escândalo, levando alguém a perder a fé por causa de algum contra testemunho seu; o segundo erro é você acabar jogando fora o bebê junto com a água do banho, o que significa generalizar, concluindo que ninguém presta e que o melhor a fazer é pular fora do barco. Se nossa Igreja, por ter pessoas à sua frente, tem sido machucada por alguns escândalos, lembre-se de que Jesus, ao falar com São Francisco de Assis por meio da imagem do Crucificado, no século XII, disse-lhe: “Reconstrua a minha Igreja, pois ela está em ruínas”, e o disse numa época em que representantes dessa mesma Igreja estavam sendo motivo de escândalo. Jesus poderia ter dito a São Francisco: “Pule fora desse barco; saia dessa Igreja”, mas não; Ele disse: “Reconstrua a minha Igreja”. É o que hoje Ele está dizendo a mim e a você.

                        Pe. Paulo Cezar Mazzi       

quinta-feira, 27 de junho de 2019

RECONSTRUIR A IGREJA DE CRISTO OU PULAR FORA DESTE BARCO?

Missa de São Pedro e São Paulo. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 12,1-11; 2Timóteo 4,6-8.17-18; Mateus 16,13-19.

            Hoje, festa dos apóstolos São Pedro e São Paulo, é um dia muito oportuno para refletirmos sobre aquilo que professamos em nossa fé: “Creio na santa Igreja católica”. Muitas pessoas hoje se recusam a afirmar que a Igreja católica é “santa”, justamente por causa dos muitos escândalos que são noticiados, ora com relação à conduta moral de alguns de seus representantes, ora com relação às acusações de desvio de dinheiro e enriquecimento pessoal dos mesmos. Como afirma muito bem o Pe. José Pagola, nós vivemos hoje uma inversão de papéis: de uma Igreja que julga (e, muitas vezes, condena) o mundo, passamos a um mundo que julga (e, muitas vezes, condena) a Igreja.
            Por que nós, católicos, ainda afirmamos que cremos “na santa Igreja católica”? Porque “Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de purificá-la com o banho da água e santificá-la pela Palavra, para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa, sem mancha nem ruga, ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5,25-27). A santidade da nossa Igreja não vem dela mesma, isto é, não vem do fato de que nós, católicos, sejamos pessoas isentas de erros e de pecados, mas do fato do único sacrifício de Cristo na cruz em favor da humanidade e da sua própria Igreja: “somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada uma vez por todas” (Hb 10,10).
            Voltemos, então, para esta afirmação: de uma Igreja que julga e condena o mundo, passamos para um mundo que julga e condena a Igreja. Mas aqui também podemos afirmar outra mudança: de uma Igreja que julgava estar acima do bem e do mal, passamos a uma Igreja que hoje está tendo que reconhecer seus erros, suas doenças e, sobretudo, a omissão e a conivência de alguns de seus líderes em relação a padres e bispos que, apesar de terem um dia sido consagrados a Deus, se portam dentro da Igreja como padres e bispos mundanos. Neste sentido, precisamos lembrar as sábias palavras de Santo Agostinho: “Há pessoas que estão dentro (da Igreja), mas vivem como se estivessem fora; há pessoas que estão fora (da Igreja), mas vivem como se estivessem dentro”.
            Em matéria de escândalos, não há como tapar o sol com a peneira, mas também é preciso lembrar o que Jesus disse justamente à sua Igreja: “É necessário que haja escândalos, mas ai do homem pelo qual o escândalo vem!” (Mt 18,7). Quando Jesus afirma “é necessário” está dizendo que “é impossível” que não haja escândalos, quando se trata do ser humano. Ou seja, todos nós somos passíveis de erro, de pecado e de provocar escândalos, lembrando que, para Jesus, escândalo é toda atitude nossa que leve uma pessoa a perder a fé (cf. Mt 18,6).
Ora, cada vez que o mundo divulga a notícia de um “escândalo” em nossa Igreja, nós, católicos, precisamos analisar como reagimos a isso: somos capazes de distinguir entre a Igreja e a pessoa que erra, ou temos o hábito de jogar fora o bebê junto com a água do banho? Além disso, precisamos estar atentos a outra verdade: o mundo, enquanto pessoas que têm interesses e condutas totalmente opostos ao Evangelho, tem a clara intenção de desacreditar a Igreja, justamente porque ela, enquanto presença profética, denuncia tudo aquilo que nas sociedades atuais fere a vida e a dignidade do ser humano, colabora para a destruição do meio ambiente, para a inversão de valores, para a desestruturação das famílias etc.   
            O Evangelho de hoje nos convida a olhar para as raízes da nossa Igreja: ela não nasceu da vontade de um homem; não nasceu da decisão que uma pessoa tomou de “abrir”, de “fundar” uma igreja ou de “criar” uma religião; ela nasceu da escolha que Jesus fez de Pedro e dos demais apóstolos: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la” (Mt 16,18). O apóstolo Paulo, por sua vez, nos ensina que a nossa Igreja nasceu da vontade do Pai, do sacrifício do Filho e da ação do Espírito Santo, ao aconselhar os presbíteros de Éfeso: “Cuidem de vocês mesmos e de todo o rebanho: nele o Espírito Santo constituiu vocês como guardiães, para apascentarem a Igreja de Deus, que ele adquiriu para si pelo sangue do seu próprio Filho” (At 20,28). Portanto, nossa Igreja nasceu da cruz, do sacrifício do Filho, do fato de o Pai permitir que Jesus morresse na cruz “para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos” (Jo 11,52).
            Portanto, quem somos nós, católicos? Segundo o apóstolo Paulo, nós somos membros da família de Deus. Estamos edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, do qual é Cristo Jesus a pedra principal. A meta é que todos nos tornemos habitação de Deus, por meio do Espírito Santo (cf. Ef 2,19-22). Individualmente, cada um de nós é chamado a combater o bom combate da fé, a terminar o caminho que iniciamos, de seguimento de Jesus Cristo, e a guardar, isto é, a manter viva e firme a nossa fé (cf. 2Tm 4,7). No entanto, enquanto Igreja, nós temos duas missões: uma interna e outra externa. A missão interna é nos reconhecer como membros do Corpo de Cristo, no sentido de que, “se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele” (1Cor 12,26); se um membro se afasta e corre o risco de esfriar na fé, devemos ir em busca dele (cf. Mt 18,12), pois não é da vontade do Pai que nenhuma dessas pessoas, cuja fé está fragilizada, se perca (cf. Mt 18,14).
            Por fim, enquanto católicos, temos uma missão externa. A razão de ser da nossa Igreja não é ela mesma, mas a salvação da humanidade. Jesus não fundou a nossa Igreja sobre os apóstolos para que ela fosse reverenciada pelo mundo, mas para ser sacramento de salvação para uma humanidade ferida e desorientada como a nossa hoje em dia. Justamente por isso, o Papa Francisco insiste que a nossa Igreja deve ser sempre uma “Igreja em saída”: “A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai” (EG 47)... Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49). Cabe a cada um de nós, católicos, fazer da nossa Igreja “um hospital de campanha após a batalha” (Papa Francisco, setembro de 2013), uma Igreja dedicada em cuidar das feridas de seus fiéis e sempre disposta a sair para encontrar os que foram machucados, excluídos ou que se afastaram. Se nós, católicos, não estamos dispostos a ser uma presença de cura, um Evangelho vivo para aqueles que estão fora da nossa Igreja, não há razão alguma para continuarmos a nos identificar como católicos.   
            Uma palavra final, para aqueles que estão decididos a abandonar a Igreja católica por causa dos escândalos de alguns de seus líderes: Jesus, ao falar com São Francisco de Assis por meio da imagem do Crucificado, no século XII, disse-lhe: “Reconstrua a minha Igreja, pois ela está em ruínas”. É o que hoje Ele está dizendo a mim e a você...

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 21 de junho de 2019

VOCÊ É CAPAZ DE DAR SENTIDO À SUA CRUZ?

Missa do 12º. dom. comum. Palavra de Deus: Zacarias 12,10-11; 13,1; Gálatas 3,26-29; Lucas 9,18-24.

            Crise: palavra que suscita em nós uma espécie de repulsa, porque entendemos “crise” como algo totalmente desagradável, negativo e indesejado. No entanto, todo ser humano passa por momentos de crise. Ouvimos falar de crise financeira, crise política etc., mas a crise principal e que pede a nossa atenção é a crise existencial, ou a crise de sentido de vida. Jesus teve que enfrentar essa crise e nós também temos.
            Quando estamos vivenciando uma crise existencial ou de sentido de vida, nos fazemos perguntas do tipo: É este o caminho que eu devo seguir? Vale à pena este sacrifício? Devo mudar minhas escolhas? Que sentido tem esse sofrimento? Não estaria na hora de abandonar tudo isso e ir atrás da minha felicidade? A vida tem algum sentido? A cruz tem algum sentido? Embora nem sempre temos respostas para todas essas perguntas, Santo Inácio de Loyola nos oferece uma indicação muito importante: quando não estamos bem, não devemos tomar decisões importantes, porque normalmente estamos sendo aconselhados pelo mau espírito, pela tristeza, pelo cansaço, pelo esgotamento, pelo pessimismo etc. Se tomarmos alguma decisão que mude fortemente a direção da nossa vida, podemos vir a nos arrepender mais tarde, e talvez não haja mais como desfazer o erro que cometemos.
            Jesus, como qualquer ser humano, passou por momentos de crise, de questionamento a respeito de quem ele era e de qual era a sua missão, de qual era o sentido da sua vida. Onde ele foi buscar resposta? Em Deus, na oração: “Jesus estava rezando num lugar retirado, e os discípulos estavam com ele. Então Jesus perguntou-lhes: ‘Quem diz o povo que eu sou?’” (Lc 9,18). Essa pergunta de Jesus revela a crise interior que ele estava vivenciando. Seu coração estava cheio de questionamentos. E Jesus entendeu que ninguém melhor que o Pai para ouvi-lo; ninguém melhor que o Pai para ajudá-lo a entender o que estava se passando com ele.
            Após ouvir o Pai na oração, Jesus quis ouvir seus discípulos, tanto a respeito de como o povo o via, como a respeito de como os próprios discípulos o viam. Aqui o Evangelho nos oferece uma pista muito importante: as únicas pessoas que podem nos ajudar a nos manter fiéis à nossa própria verdade são aquelas que nos conhecem mais intimamente. Quando nos sentimos perdidos, precisamos tomar muito cuidado com quem conversamos, isto é, quem procuramos para nos orientar e para nos ajudar a reencontrar nossa bússola ou o nosso GPS interior. A Internet atualmente está cheia de “gurus”, de “conselheiros” que são guias cegos, pessoas com claros sinais de problemas mentais, mas que se acham capazes de opinar corretamente sobre política, religião e vida afetiva, e são seguidas fanática e cegamente por milhões, nas redes sociais.     
            Quando Jesus questionou seus discípulos a respeito de como o viam, Pedro disse: Tu és “o Cristo de Deus” (Lc 9,20). Ótimo! A resposta de Pedro veio de encontro ao que Jesus havia entendido na sua oração: Ele é o Ungido de Deus, o Salvador de todo ser humano. No entanto, imediatamente após a resposta de Pedro, “Jesus proibiu-lhes severamente que contassem isso a alguém” (Lc 9,21) porque, enquanto Pedro e os outros discípulos entendiam a missão de Jesus como destinada ao brilho, à fama, ao sucesso e a uma vitória bombástica, Jesus havia entendido, no seu diálogo com o Pai, que o seu caminho seria marcado por dor, sofrimento, rejeição, violência, morte e, somente depois, ressurreição. Eis a grande diferença entre Jesus e a maioria das pessoas: enquanto Jesus busca, na sua espiritualidade, encontrar-se com a sua verdade, a maioria busca uma espiritualidade da fuga de si mesmo, do não confronto com seus medos, seus traumas e suas feridas. Enquanto Jesus busca em Deus força para lidar com a sua cruz, nos buscamos anestésicos cada vez mais potentes para não sentirmos a dor que a nossa cruz nos causa.
            Jesus jamais aceitou ser uma droga que nos mantenha inconscientes a respeito daquilo que somos chamados a enfrentar. Jesus nunca admitirá que nós transformemos seu Evangelho em livro de autoajuda, em receita barata de felicidade egoísta e individualista, em manual de como se livrar de todo tipo de dor, de sofrimento e de cruz. É por isso que ele diz: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9,23-24).
                 Seria Jesus um masoquista, uma pessoa que sente prazer em sofrer? Seria Deus Pai um sádico, alguém que sente prazer em causar sofrimento aos seres humanos. Não! Se há alguém doente nessa história não é Jesus, nem o Pai, mas a nossa sociedade, que insiste em rejeitar a vida com suas perdas, dores, sofrimentos e cruzes, para tentar criar um mundo onde não haja nenhum tipo de perda, de dor, de sofrimento, de cruz. O sentido da vida não está em não sofrer, mas em dar um sentido ao sofrimento que cabe somente a nós enfrentarmos. Jesus entendeu, na sua oração, que cabia somente a ele dar sentido à cruz que deveria enfrentar, e isso dissipou o mal estar que sua crise estava lhe causando.
Eis, portanto, o convite de Jesus a cada ser humano: não fuja de si mesmo; vá de encontro à sua verdade; não se faça de vítima, implorando que as pessoas sintam pena de você; não viva reclamando, achando que isso fará a vida “pegar mais leve” com você; acolha a vida com tudo o que ela tem de alegria e tristeza, vitória e derrota, luz e sombra, perda e ganho, altos e baixos; não se desvie da dor ou da cruz que cabe somente a você enfrentar, porque aquilo diz respeito justamente ao seu crescimento, ao seu amadurecimento, à sua redenção e à sua libertação.    

            Oração: Deus Pai, dentro de cada um de nós há uma pergunta existencial que pede para ser respondida: “Que sentido tem a vida?”, ou então: “Que sentido tem essa cruz, esse sofrimento?” Hoje eu entendo que o Senhor nunca aceitou ser um remendo em nossa vida, uma resposta fácil para perguntas que são sérias e dolorosas, porque estão em nós para nos abrir à Tua verdade e nos revelar o sentido verdadeiro da nossa existência.
            Principalmente quando temos que lidar com algum tipo de cruz, é ali que Teu Filho nos pergunta: “Quem eu sou para você? O que você espera de mim?”. Peço-Te a graça de não me acovardar diante da minha cruz e de não fugir daquelas perguntas que são essenciais para que eu viva conscientemente a minha vida e saiba dar sentido à minha própria dor.
Que a graça do Teu Espírito me liberte de todo tipo de vitimismo, de autopiedade, e me ajude a compreender que, se eu nem sempre posso escolher o tipo de cruz que atravessa o meu caminho, sempre posso escolher a maneira como lidar com essa cruz, e é essa liberdade de escolha que faz de mim sujeito da minha história, a exemplo de Teu Filho Jesus. Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quarta-feira, 19 de junho de 2019

JESUS – CORPO DOADO, SANGUE DERRAMADO



Palavra de Deus: Gênesis, 14,18-20; 1Coríntios 11,23-26; Lucas 9,11b-17

Todo ser humano sente fome, porque todo ser humano depende de “algo” que está fora dele para viver. A fome nos diz que ninguém de nós é autossuficiente e que nós precisamos uns dos outros para viver. O alimento que sacia a nossa fome só chega à nossa mesa porque inúmeras pessoas que nunca iremos conhecer trabalharam para que a nossa fome fosse saciada. Mas a fome que o ser humano carrega dentro de si não é só de pão. A própria Escritura diz: “O homem não vive somente de pão” (Dt 8,3; Mt 4,4). Alguns têm fome de justiça, outros têm fome de paz; alguns têm fome de saúde, de alegria, de esperança; outros têm fome de um lugar no mercado de trabalho; alguns têm fome de perdão; outros têm fome de se sentirem amados. Além disso, da mesma forma, assim como existem crianças e adultos subnutridos, existem também crianças e adultos bem alimentados, mas “subnutridos” no que diz respeito à educação, à maneira de tratar os outros, à falta de sensibilidade para com a dor dos outros...
Jesus sempre foi alguém capaz de compaixão, isto é, ele deixava-se afetar pelo sofrimento do outro. No entanto, nós temos a tendência a agir como os discípulos, que disseram a Jesus: “Despede a multidão, para que possa ir aos povoados e campos vizinhos procurar hospedagem e comida, pois estamos num lugar deserto” (Lc 9,12), ao que Jesus respondeu: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9,13). Se Jesus nos manda dar de comer a quem tem fome, é para nos lembrar de que o problema da fome não é a falta de alimento, mas o desperdício de alimento. O Brasil é o quarto produtor mundial de alimentos, produzindo 25,7% a mais do que necessita para alimentar a sua população (FAO). Além disso, por ano são jogadas no lixo 41 mil toneladas de alimentos em nosso país (http://www.bancodealimentos.org.br/o-desperdicio-de-alimentos-no-brasil/). Isso nos faz lembrar as palavras do Papa Francisco, “A comida que se joga fora é como se fosse roubada aos pobres”.
O desperdício de comida no Brasil mostra que não é verdade que “só temos aqui cinco pães e dois peixes” (Lc 9,13). Assim como é verdade que no Brasil não faltam recursos – o que falta é vontade política, assim também é verdade que não nos faltam recursos para agir com compaixão para com quem sofre – o que nos falta é vontade; o que nos falta é olhar a vida para além do nosso umbigo ou da tela do nosso celular; o que nos falta é tirar os fones de ouvido, ainda que seja por um momento, para ouvir o pedido de socorro de pessoas à nossa volta; o que nos falta é nos permitir sentir um saudável sentimento de culpa pela fome que também existe perto de nós.
“Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão. Todos comeram e ficaram satisfeitos” (Lc 9,16-17). Os cinco pães e os dois peixes nos dizem que Deus nos dá diariamente os recursos de que precisamos para nos ajudar mutuamente, para resolvermos os nossos problemas, inclusive dentro de casa, no relacionamento com as pessoas. Na verdade, não falta pão, falta doação; falta a vontade de tomar a decisão de “partir” e de “distribuir” aos outros aquilo que temos a tendência de guardar somente para nós. 
            As mesmas mãos que se abrem e se estendem para receber o Corpo de Cristo precisam se abrir e se estender para o irmão que cruza o nosso caminho. Se na Eucaristia nós comungamos o “corpo entregue” de Jesus e o seu “sangue derramado”, isso significa que, assim como Jesus, devemos viver também para o bem dos outros, como se Jesus continuamente nos dissesse: “Eu me dou a você para que você possa continuar dando-se aos outros”. Em outras palavras, cada um de nós, que comunga do Corpo e do Sangue de Cristo, é chamado a ter a disposição de oferecer-se a Deus como Seu Filho se ofereceu, vivendo sua vida neste mundo como Jesus viveu a d’Ele: como “corpo doado” e “sangue derramado” em favor da salvação da humanidade.
            Enfim, lembremo-nos de que o pão nasce do “sacrifício” dos grãos de trigo que se entregam para serem triturados, assim como o vinho nasce do “sacrifício” das uvas que se entregam para serem esmagadas. Pão e vinho, Corpo e Sangue de Jesus, alimento de vida eterna, convite a não fugirmos daqueles sacrifícios que são necessários serem abraçados, enfrentados, em vista da nossa edificação e do bem da família, da Igreja e da sociedade humana.

Pe. Paulo Cezar Mazzi



quinta-feira, 13 de junho de 2019

TRÊS PESSOAS, NÃO UMA; PONTES, NÃO MUROS; COMUNHÃO, NÃO ISOLAMENTO


Missa da Santíssima Trindade. Palavra de Deus: Provérbios 8,22-31; Romanos 5,1-5; João 16,12-15.


            O que nós, seres humanos, temos construído mais: muros ou pontes? Nós construímos muros quando nos sentimos ameaçados, quando queremos nos proteger, nos distanciar, nos isolar, não sermos incomodados, perturbados etc. Nós construímos pontes quando queremos nos aproximar, criar laços, conviver, estar com os outros, nos envolver com o que acontece à nossa volta. Se pararmos para observar o mundo em que vivemos, o mundo que estamos ajudando a construir, vamos perceber que nele há muito mais muros do que pontes: há muito mais medo do que confiança, muito mais separação e isolamento do que convivência e comunhão, muitos mais ódio do que tolerância, muito mais inimizade do que amizade, muito mais indiferença do que compaixão para com quem sofre...
            Onde estão esses muros? Eles estão, em primeiro lugar, dentro das casas, no seio das famílias: pessoas que habitam sob o mesmo teto, mas não dialogam, não partilham seus sentimentos, não se dão conta do que se passa com o outro, cada um com o olhar hipnotizado na tela de um celular, computador, smartfone etc. Além disso, esses muros estão em nosso ambiente de trabalho, onde tentamos sobreviver em meio a antipatias, inimizades, armadilhas, trapaças etc. Esses muros estão em nossa própria comunidade de fé, onde não nos importamos em saber quem é e como está a pessoa que se sentou ao nosso lado. Esses muros estão até mesmo nas redes sociais, lugar onde expressamos nosso ódio e nossa intolerância em relação àqueles que pensam diferente de nós.
            Embora muitas pessoas estejam convencidas de que, para sobreviver no mundo de hoje, muros são muito mais necessários do que pontes, profissionais da saúde (médicos, psiquiatras, psicólogos etc) e pessoas que lidam com o espiritual (padres, pastores etc) constatam que nunca como hoje as pessoas estiveram tão doentes: depressivas, ansiosas, com distúrbios mentais, sem esperança e sem sentido para a vida. Em outras palavras, os muros favorecem o surgimento de doenças em nós, ao passo que as pontes podem nos trazer cura.
            Os textos bíblicos que ouvimos hoje nos falam da “casa” de Deus, uma casa onde habitam três Pessoas; o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Nesta “casa” não existem muros, nem fora, muito menos dentro dela; pelo contrário, nela só existem pontes. Em primeiro lugar, há uma ponte eterna que sempre ligou o Pai ao Filho e o Filho ao Pai: uma ponte chamada Espírito Santo. O Pai ama o Filho; o Filho ama o Pai, e o amor que os une, que os mantém em comunhão, é o próprio Espírito Santo, amor que, como afirma hoje o apóstolo Paulo, foi derramado em nossos corações! (cf. Rm 5,5).
            Deus nunca foi muro; Ele sempre foi ponte. Deus nunca foi só; Ele sempre foi Pai que nos criou, Filho que nos salvou e Espírito Santo que nos sustentou. Justamente por isso, ao criar o ser humano, Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gn 1,26), e não “Faço... à minha imagem...” (Ele usou o plural, não o singular). Além disso, Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Não é bom quando deixamos de construir pontes e passamos a construir muros. Não é bom quando nos isolamos, nos mantemos distantes das pessoas, nos fechamos em nosso quarto, em nossa casa, em nosso mundo virtual, como se não fizéssemos parte da humanidade e como se estivéssemos totalmente protegidos do que acontece lá fora.
            Justamente pelo fato de Deus ser ponte e não muro, Ele enviou seu Filho ao mundo, para procurar e salvar todo ser humano que estava perdido. O Filho, por sua vez, após ter concluído a obra da redenção do ser humano, voltou para o seio do Pai e de lá nos enviou o Espírito Santo, para ser o nosso Consolador, Aquele que nos sustenta com Sua força, até que possamos concluir o nosso caminho na terra, atravessar a ponte e chegar à “casa” celeste, onde habitam o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Portanto, segundo o apóstolo Paulo, essa é a nossa condição atual: apesar das tantas tribulações que temos neste mundo, “estamos em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo” (Rm 5,1). Por isso, podemos entender essas tribulações como um processo de amadurecimento espiritual, “sabendo que a tribulação gera a constância, a constância leva a uma virtude provada, a virtude provada desabrocha em esperança; e a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,3-5).
            Assim como a Sagrada Escritura nos revelou que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, ela também nos revelou que a história da salvação, na qual estamos incluídos, é feita de três etapas ou três tempos: no Antigo Testamento encontramos a revelação do Pai, o tempo em que o Pai fala com a humanidade a partir do povo de Israel; no Novo Testamento encontramos a revelação do Filho, o tempo em que o Filho forma a Igreja a partir dos apóstolos, para dar continuidade à Sua obra de redenção em favor da humanidade. Por fim, ainda no Novo Testamento, após a volta de Jesus ao Pai (Ascensão), temos a revelação do Espírito Santo e o início do tempo em que Ele atua na Igreja e no mundo, para completar a obra que o Pai e o Filho começaram em cada um de nós. É neste sentido que Jesus afirma que o Espírito Santo nos “conduzirá à plena verdade” (Jo 16,13). Nós já conhecemos a verdade do Evangelho, mas a “plena” verdade daquilo que somos chamados a ser só nos será revelada quando pudermos contemplar a face do Pai, do Filho e do Espírito Santo na eternidade (cf. 1Cor 13,12).
Ao final desta reflexão sobre a Santíssima Trindade, contemplemos esta representação simbólica dela e procuremos nos perceber no seio da mesma:

    
                       
A Trindade Misericordiosa envolve a criatura humana por todos os lados. O sentimento do Pai é de ternura e cuidado, seu rosto se aproxima e beija o rosto inerte da pessoa ferida. Ele revela seu amor misericordioso no calor do abraço, que acolhe e regenera o ser humano. O Filho revela o Deus Amor-serviço, que se põe aos pés da humanidade decaída para restaurá-la, e revela o caminho do serviço como caminhada para a vida. Em Jesus, Deus se abaixa para estar mais perto da miséria do ser humano. O Espírito Santo, figura que desce do alto e se aproxima do ferido, tanto pode ser a figura de uma pomba, de chamas ou de mãos que trazem vida. Beija a pessoa e lhe transmite o Sopro de vida. A Pomba de fogo voa sobre o ser humano caído e o aquece.

            Pe. Paulo Cezar Mazzi

terça-feira, 11 de junho de 2019

AFETIVIDADE E EUCARISTIA


AFETIVIDADE E EUCARISTIA
Pe. Timothy Radcliffe o.p.

Afetividade não implica só a capacidade de amar, mas também nossa forma de amar como seres sexuados, dotados de emoções, corpo e paixões. Deus, Ele próprio, se fez corporal no meio de nós, um ser humano como nós. Jesus nos deu o sacramento de seu Corpo e prometeu a ressurreição de nossos corpos. Temos que aprender a amar os seres sexuados e apaixonados – às vezes um pouco desordenados – que somos, ou não teremos nada que dizer sobre Deus, que é amor.

As palavras centrais da última ceia foram “Este é meu corpo e o dou a vocês”. A Eucaristia, como o sexo, se centram no dar o corpo. Para nossa sociedade é muito difícil entender isso porque tendemos a ver nossos corpos simplesmente como objetos que nos pertencem. Mas o corpo não é simplesmente uma coisa que possuo, sou eu, é meu ser recebido como presente de meus pais, e de seus pais antes deles, e em última instância, de Deus. Por isso, quando Jesus disse ‘Este é meu corpo eu o entrego a vocês’, não está dispondo de algo que lhe pertence, está passando aos demais o dom que Ele é. Seu ser é um dom do Pai que Ele está transmitindo.

Geralmente a ética sexual cristã é vista como restritiva quando comparada com os costumes contemporâneos. A Igreja diz exatamente o que não é permitido fazer! Na realidade, a base da ética cristã é a aprendizagem de como viver relações de entrega mútua. Chegar a ser gente madura, que ama, significa que nos encontraremos com crises inevitáveis. Podemos atravessar várias crises de afetividade durante a nossa vida. Um beneditino irlandês chamado Mark Patick Hederman escreveu: “O amor é o único ímpeto suficientemente transbordante para forçar-nos a abandonar o confortável refúgio de nossa bem armada individualidade, despojarmo-nos da impenetrável concha de autossuficiência, e sair engatinhando desnudos para a zona de perigo que está mais além, o ponto purificador onde a individualidade é purificada para fazer-se pessoa”. Só o amor rompe nossa dureza de coração e nos dá um coração de carne.

Amar é perigoso! Abrir-se ao amor é muito perigoso. A gente pode se machucar. Diz C.S. Lewis: “Amar em qualquer caso é ser vulnerável. Ama algo e teu coração certamente estará partido e possivelmente rasgado. Se queres ter certeza de mantê-lo intacto, não deves entregar teu coração a ninguém, nem sequer a um animal. Envolve-o cuidadosamente em hobbies e pequenos luxos; evita todo envolvimento amoroso; encerra-o com segurança na urna ou no ataúde do teu egoísmo. Mas nesta urna - segura, escura, imóvel, sem ar - mudará. Não se quebrará; se tornará irrompível, impenetrável, sem salvação. A alternativa à tragédia, ou ao menos ao risco de tragédia, é a condenação. O único lugar além do céu onde podes estar perfeitamente a salvo de todos os perigos e perturbações do amor é o inferno”.

Quais são as fantasias com que o desejo pode nos apanhar? Eu sugiro duas: Uma é a tentação de pensar que a outra pessoa é tudo, tudo o que buscamos a solução a todas as nossas aspirações. Isso é um capricho passageiro. A outra tentação é não ver a dimensão humana da outra pessoa, fazendo-a simplesmente carne de consumo. Isso é luxúria. Essas duas ilusões não são tão diferentes como parece à primeira vista, uma é o reflexo exato da outra.

Suponho que todos nós já conhecemos momentos de total teimosia, quando alguém se converte no objeto de todos os nossos desejos e no símbolo de tudo o que havíamos sonhado, na resposta a todas as nossas necessidades. Se não chegarmos a ser um com essa pessoa, nossa vida não tem sentido, está vazia. A pessoa amada chega a ser para nós a resposta a esse poço de necessidade grande e profunda que descobrimos dentro de nós. Pensamos nesta pessoa todo dia. Divinizamos a pessoa amada e a colocamos no lugar de Deus. Talvez quase todo amor verdadeiro passe por esta fase obsessiva. A única cura para isso é viver dia a dia com a pessoa amada e ver que não é Deus, mas só uma filha, um filho. O amor começa quando somos curados de nossa ilusão e estamos cara a cara com uma pessoa real e não com uma projeção de nossos desejos.

O que buscamos com os nossos afetos? O desejo de intimidade. É o desejo de ser totalmente um, de acabar com os limites entre mim e a outra pessoa, para perder-se na outra pessoa, para buscar a comunhão pura e total. Mas o sonho de comunhão plena é um mito, que leva alguns religiosos a desejarem ser casados, e a muitos casados a desejarem estar com uma pessoa diferente. A intimidade verdadeira e feliz só é possível se aceitamos as limitações da intimidade. 

O poeta Rilke entendeu que não poderia ter verdadeira intimidade entre um casal até que se deem conta de que cada um, de certa forma, permanece só. Cada ser humano conserva solidão, um espaço ao seu redor que não pode ser eliminado. Nenhuma pessoa pode oferecer-nos a plenitude de realização que desejamos. Isso só se encontra em Deus, como nos lembra Jean Vanier: “A solidão é parte do ser humano, porque não existe nada que possa encher completamente as necessidades do coração humano”.

Quando nos deixamos levar pela luxúria, isto é, pela força cega do erotismo, fazemos da outra pessoa um simples objeto, algo com que satisfaço minhas necessidades sexuais. A luxúria nos torna caçadores, predadores que veem no outro algo para devorar. Queremos simplesmente um pouco de carne, algo que possa devorar. Justamente por isso, a castidade é um convite a viver no mundo real. A castidade nos abre os olhos para ver que o que está diante de nós é efetivamente um corpo bonito, mas este corpo é alguém. Este corpo não é um objeto e sim um sujeito.

O primeiro passo para superar a luxúria não é suprimir o desejo, mas restaurá-lo, descobrir que o desejo é por uma pessoa e não por um objeto. Não somos nem divinos, nem um pedaço de carne. Ambos somos filhos de Deus. Temos nossa história. Fizemos votos e promessas. O outro tem compromissos, talvez com uma esposa, um esposo. Nós como religiosos ou sacerdotes nos entregamos à nossa Diocese. É assim como estamos, comprometidos e ligados a outros compromissos, que podemos aprender a amar com corações e olhos abertos.


Pe. Paulo Cezar Mazzi – Texto resumido

quinta-feira, 6 de junho de 2019

VEM SOBRE NÓS, ESPÍRITO SANTO!

Missa de Pentecostes. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 2,1-11; 1Coríntios 12,3b-7.12-13; João 20,19-23.      
     
            Pentecostes: uma festa celebrada pelos judeus cinquenta dias após a Páscoa. Foi neste dia que o Pai, por meio do Filho, enviou o Espírito Santo sobre os discípulos (cf. At 2,1.4). Passados alguns anos, o apóstolo Paulo perguntou a alguns cristãos, assim que chegou à cidade de Éfeso: “Vocês receberam o Espírito Santo quando abraçaram a fé?”, ao que eles responderam: “Mas nem ouvimos dizer que existe um Espírito Santo” (At 19,2). Quantos de nós desconhecemos o Espírito Santo? Se muitos têm um relacionamento com o Pai e com o Filho, quem de nós tem algum relacionamento com o Espírito Santo? Afinal, quem é o Espírito Santo? Como imaginá-Lo? Onde encontrá-Lo? Como experimentá-Lo?      
            Através do profeta Ezequiel, Deus havia feito uma promessa: “Eu darei a vocês um coração novo... Porei no íntimo de vocês o meu espírito... Porei o meu espírito em vocês e vocês viverão” (Ez 36,26.27; 37,6). Esta promessa foi feita também por meio do profeta Joel: “Derramarei o meu espírito sobre todo ser humano” (Jl 3,1). Na verdade, o Espírito de Deus já havia sido mencionado desde o início da criação, quando Ele pairava como vento sobre as águas (cf. Gn 1,2). Depois, Ele se manifestava no momento em que um rei era ungido com óleo (cf. 1Sm 16,13) ou um homem era escolhido para ser profeta (cf. Is 42,1; 61,1). João Batista, o último dos profetas, afirmou que Jesus nos batizaria com o Espírito Santo e com fogo (cf. Mt 3,11). No momento em que Jesus foi batizado, o Espírito Santo foi visto descer e permanecer sobre Ele como se fosse uma pomba (cf. Mt 3,16). Desse modo, Ele se reconheceu como o Ungido do Senhor (cf. Lc 4,18), sendo chamado de Cristo (Ungido). Finalmente, como vimos domingo passado, no momento da Ascensão de Jesus ao céu, Ele prometeu enviar o Espírito Santo sobre seus discípulos como força do alto (cf. At 1,8).
            Ao descrever a presença misteriosa do Espírito Santo como vento, a Bíblia nos ensina que, se Deus retirar de nós Seu espírito, nós morremos: “Retiras o teu sopro e eles morrem. Envias o teu sopro e eles renascem” (citação livre de Sl 104,29-30). Desse modo, Jesus ressuscitado comunica o Espírito Santo aos discípulos soprando sobre eles. Este sopro é vida interior, é força que nos anima a partir de dentro, é vento que sopra sobre nós e nos vivifica, nos põe em pé (cf. Ez 37,10) e nos reanima. Foi este vento que encheu a casa onde os discípulos estavam no dia de Pentecostes (cf. At 2,2).
            Se o vento ou o sopro não podem ser vistos, mas apenas sentidos, o Espírito Santo se mostrou visível no dia de Pentecostes em “línguas como de fogo”. O fogo exprime a força purificadora e transformadora do Espírito Santo. Assim como o fogo tem o poder de derreter o metal mais duro, assim o Espírito Santo pode dobrar a dureza do nosso coração ou transformar nosso caráter. Assim como o fogo purifica o ouro e a prata, assim o Espírito Santo remove nossas impurezas e nos santifica. Se esse fogo toma a forma de “línguas” é porque o Espírito Santo nos dá a capacidade de comunicar palavras de conforto a toda pessoa abatida, palavras de reconciliação e de perdão, palavras de fé, de esperança e de orientação.
            Jesus chamou o Espírito Santo de “força do alto”. Quando alguns homens piedosos se puseram a reconstruir o Templo em Jerusalém, Deus lhes disse: “Não pelo poder, não pela força, mas sim pelo meu espírito” (Zc 4,6). Existem situações em nossa vida e na vida do mundo que não podem ser mudadas pelo nosso poder e força humanos, mas unicamente pela graça do Espírito Santo. Além disso, devemos nos lembrar mais uma vez que “Deus não nos deu um espírito de medo, mas um espírito de força...” (2Tm 1,7). Desse modo, o Espírito Santo sempre nos impulsiona para enfrentar os desafios e os problemas, e nunca para fugir deles. Por sua vez, o apóstolo Paulo nos lembra hoje que “a cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum” (1Cor 12,7). Ninguém recebe o Espírito Santo para si, mas para fazer algo pelo bem e pela salvação dos outros. Portanto, toda pessoa que age movida pelo Espírito Santo, trabalha pela unidade e pela comunhão, jamais pela divisão ou separação dentro da Igreja (cf. 1Cor 12,4-6.12-13).  
            Jesus gostava de chamar o Espírito Santo de “Espírito da Verdade” (Jo 15,26; 16,13), porque somente Ele pode penetrar no mais íntimo do coração humano e livrá-lo das suas mentiras, dos seus erros; somente a Verdade do Espírito Santo pode nos convencer a abandonar o pecado e a desejar caminhar segundo a vontade de Deus. No entanto, o apóstolo Paulo afirma que nós precisamos nos deixar conduzir pelo Espírito de Deus (cf. Rm 8,14). Ele não nos obriga a nada; Ele não nos violenta e não Se impõe, mas Se propõe a nós. Por Ele sempre visar o nosso bem, o bem que Deus quer para nós (cf. Rm 8,27), a melhor coisa que temos a fazer é entrar neste rio de água viva e deixar-nos levar calma e confiantemente pela sua correnteza, ao invés de ficarmos nadando contra a corrente e nos desviando da direção certa, do desígnio que Deus tem para nós.
                O apóstolo Paulo afirma que o Espírito Santo atesta, isto é, comprova que somos filhos de Deus; somente Ele faz nascer em nós uma súplica espiritual, uma palavra que dirigimos a Deus proclamando-O como nosso Abbá, nosso Papai (cf. Rm 8,15-16). Ora, ao mesmo tempo em que declaramos que não somos órfãos e que nossa vida não está nas mãos do acaso, mas do Papai, Jesus nos ensina que a coisa mais importante que nós, filhos de Deus, podemos pedir ao nosso Papai é o Espírito Santo (cf. Lc 11,13); pedir Aquele que nos enche de ânimo, de força e de esperança; pedir Aquele cujo amor tudo cura e restaura, cujo perdão reconcilia, reaproxima, recria comunhão; pedir Aquele cujo fogo tudo transforma e cuja água é viva e tudo vivifica; pedir Aquele que é a própria unção que nos consagra como pessoas que pertencem a Deus, Aquele cujo bálsamo cura nossas feridas e cuja graça transforma nosso coração de pedra em coração de carne; enfim, pedir Aquele que renova a face da terra...

Pe. Paulo Cezar Mazzi

Antigo hino ao Espírito Santo

Vinde, Santo Espírito, e do céu mandai luminoso raio. Vinde, Pai dos pobres, doador dos dons, luz dos corações. Grande defensor, em nós habitais e nos confortais. Na fadiga, pouso; no ardor, brandura e na dor, ternura. Ó luz venturosa, que vossos clarões encham os corações. Sem vosso poder, em qualquer vivente nada há de inocente. Lavai o impuro e regai o seco, curai o enfermo. Dobrai a dureza, aquecei o frio, livrai do desvio. Aos vossos fiéis que oram com vibrantes sons dai os sete dons. Dai virtude e prêmio e no fim dos dias eterna alegria. Amém.

Hino – Vésperas de Pentecostes – Liturgia das Horas

Ó, vinde, Espírito Criador, as nossas almas visitai e enchei os nossos corações com vossos dons celestiais.  Vós sois chamado o Intercessor, do Deus excelso o dom sem par, a fonte viva, o fogo, o amor, a unção divina e salutar. Sois doador dos sete dons e sois poder na mão do Pai, por Ele prometido a nós, por nós seus feitos proclamai. A nossa mente iluminai, os corações enchei de amor, nossa fraqueza encorajai, qual força eterna e protetor. Nosso inimigo repeli, e concedei-nos vossa paz; se pela graça nos guiais, o mal deixamos para trás. Ao Pai e ao Filho Salvador por vós possamos conhecer que procedeis do seu amor fazei-nos sempre firmes crer. Amém!