sexta-feira, 27 de abril de 2018

PERMANECER: UMA RESPONSABILIDADE PESSOAL

Missa do 5º. dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 9,26-31; 1João 3,18-24; João 15,1-8.

Ao começar a preparar a sua despedida, Jesus disse aos discípulos: “Permaneçam em mim e eu permanecerei em vocês. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vocês não poderão dar fruto, se não permanecerem em mim” (Jo 15,4).
Como estão os ramos da nossa vida afetiva e profissional? Como estão os ramos da nossa vida espiritual? Eles estão produzindo frutos? Os frutos que estamos produzindo são saudáveis e saborosos, ou estão doentes, estragados? Como você está se sentindo nesse momento: uma pessoa fecunda, com vitalidade interior, ou uma pessoa sem seiva, sem vitalidade, uma pessoa que, apesar dos seus esforços, não produz aquilo que desejaria produzir?
Estamos no outono, uma estação que nos fala de perda, de adormecimento: muitas árvores perdem suas folhas; ficam, de certa forma, “feias”, parecendo mortas; mas, na verdade, não estão mortas; estão adormecidas. Dentro delas existe seiva, existe vida. Elas despertarão na primavera, voltarão a florescer e produzirão frutos novamente. Da mesma forma, nossa vida é feita de estações: não existe apenas a primavera, existe também o outono. Precisamos acolher as estações, as mudanças, a perda das nossas folhas. O importante é manter nossas raízes em Deus; o importante é manter nosso relacionamento pessoal com Jesus, pois é d’Ele e somente d’Ele que recebemos a seiva do Espírito Santo, que nos devolve fecundidade, que nos faz florescer e frutificar, mesmo quando à nossa volta existe deserto e aridez.
O que nos chama a atenção nessas palavras de Jesus é a sua insistência conosco: “permaneçam”; “permaneçam em mim”. Atitude desafiadora essa de “permanecer”! No mundo do trabalho já não se permanece no mesmo emprego por muito tempo, assim como no campo afetivo muitas pessoas não permanecem por muito tempo no mesmo relacionamento. Até mesmo no campo da fé já não há permanência: muitos não permanecem na mesma igreja, na mesma religião. Desse modo, é muito comum nós vermos muitas pessoas sendo levadas pela vida como folhas secas empurradas pelo vento. São pessoas que não foram habituadas a criar raízes, e pessoas sem raízes tombam com facilidade; pessoas sem raízes são superficiais: vivem uma fé superficial, relacionamentos superficiais e são superficiais inclusive em relação a si mesmas, não cultivando a sua própria interioridade.
            “Permaneçam em mim”, nos diz Jesus. ‘Aprofundem o relacionamento de vocês comigo. Não sejam superficiais na vida espiritual. Direcionem as raízes de vocês para mim. Independente da “estação” em que vocês estão vivendo, mesmo que suas folhas estejam caindo e não seja época de encontrar frutos em seus ramos, permaneçam em mim; confiem na fecundidade do meu Espírito que está escondida dentro de vocês e que fará com que vocês produzam frutos, independente das condições externas! Permaneçam em mim, com a convicção de que Eu sou absolutamente necessário para vocês, independente se vocês estão produzindo frutos ou não. Relacionem-se comigo de maneira profunda e não superficial, pois só quando suas raízes forem profundas é que seus frutos serão abundantes’.
            Quando comparamos a humanidade a uma imensa floresta, ficamos assustados com a quantidade de árvores secas, doentes, estéreis, árvores que se tornaram incapazes de produzir bons frutos, homens e mulheres que “secaram” no amor conjugal, pais que desenvolveram um relacionamento superficial com seus filhos, criando-os também como pessoas superficiais, pessoas sem raízes, adolescentes e jovens que tombam diante do vento de qualquer dificuldade, de qualquer frustração. Neste sentido, vale a pena resgatar a importância da poda: “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que em mim não dá fruto ele o corta; e todo ramo que dá fruto, ele o limpa (poda), para que dê mais fruto ainda” (Jo 15,1-2). A grande maioria dos pais hoje não tem a coragem de “podar” seus filhos, seja porque não querem ter conflitos com eles, seja porque não querem frustrá-los. Com isso, nós temos uma geração que esbanja beleza e saúde física, mas é totalmente fraca, emocional e espiritualmente, uma geração desprovida de seiva interior, uma geração que quebra diante de qualquer vento que sopre contrário.   
            Mas não só os adolescentes e jovens! Todos nós temos nos tornado avessos às podas. Embora Jesus tenha comparado Deus Pai a um agricultor, nós não admitimos que esse Agricultor interfira na maneira como conduzimos nossa vida afetiva e profissional, na maneira como usamos nossa liberdade e lidamos com nossa sexualidade. E ao rejeitarmos a “interferência” de Deus em nossa vida, nós crescemos de qualquer jeito, como uma árvore selvagem, nunca podada, e que, justamente por falta de poda, produz frutos de baixíssima qualidade, isso quando produz algum fruto...
“Eu sou a videira e vocês são os ramos. Aquele que permanece em mim, e eu nele, esse produz muito fruto; porque sem mim vocês não podem fazer nada” (Jo 15,5). Jesus fala do “permanecer” como uma necessidade vital: sem alimentar um relacionamento profundo com Ele, nossa fé morre; se não nos esforçamos para nos manter junto d’Ele e do seu Evangelho, nós murchamos, secamos e morremos, como um ramo que se desprendeu do tronco da videira. “Permanecer” na comunhão com Jesus é responsabilidade nossa. Somos responsáveis por criar um espaço diário em nossa vida onde nos voltamos para as nossas raízes, onde cultivamos a nossa comunhão com o Senhor por meio da oração e da meditação da sua Palavra. A oração raramente nasce em nós como algo espontâneo; nós só encontramos tempo para a oração quando estamos convencidos acerca do que Jesus disse: “Sem mim vocês não podem fazer nada” (Jo 15,5). Se hoje mais do que nunca estamos tendo a sensação de que corremos muito e cada vez mais rápido, mas não chegamos a lugar algum, é hora de nos voltarmos para Jesus como nossa única fonte de vitalidade, de fecundidade. Só d’Ele procede o nosso fruto.          
            Olhemos para as nossas raízes. Perguntemos a nós mesmos se somos pessoas profundas ou superficiais; se buscamos a Deus com profundidade ou de maneira superficial; se O buscamos diariamente, convencidos de que a oração vale por si mesma, independente se “produz” algo em nós ou não. Se porventura nossos ramos estão murchos, secando, perdendo a vitalidade, voltemos a nos enxertar em Jesus; voltemos a nos alimentar da seiva da sua Palavra e da sua Eucaristia. “Permanecer” na comunhão com Jesus não é uma atitude automática em nós, mas uma decisão diária, um desejo da nossa vontade, uma vontade consciente de que, sem Ele, nada podemos, nada construímos, nada alcançamos. Enfim, “permanecer” em Jesus é algo que depende da minha decisão pessoal; sou eu que me empenho em alimentar meu relacionamento com Ele, não mais movido pelo meu cônjuge, por minha mãe ou por qualquer outra pessoa, mas movido pela consciência de que, sem Ele, eu nada posso e nada sou.

Oração
Deus, nosso Pai, Tu és o nosso Agricultor. É de Ti que procede o nosso fruto. Toca nas nossas raízes! Devolve-nos fecundidade! Toca nos nossos ramos e poda aquilo que precisa ser podado em nós, para produzirmos frutos melhores, para nos tornarmos pessoas melhores.
Senhor Jesus Cristo, temos consciência de que, sem Ti, nós nada podemos. Cura os nossos ramos doentes, ensina-nos a ter uma vida de oração profunda. Queremos lançar as nossas raízes em Ti, para não tombarmos diante das dificuldades. Revigora-nos com a seiva do Espírito Santo, para que possamos frutificar também no tempo da dificuldade e da aridez.
Espírito Santo de Deus, precisamos da Tua seiva. Derrama a benção da fecundidade sobre a nossa vida afetiva, familiar, profissional e espiritual. Concede-nos uma fé profunda, uma comunhão profunda com o Pai e o Filho. Fecundados por Tua graça, poderemos produzir o fruto da justiça, da paz e do bem onde quer que a mão do Divino Agricultor nos plante. Amém!  

Pe. Paulo Cezar Mazzi    

sexta-feira, 20 de abril de 2018

O CUIDADO: NECESSIDADE E TAREFA DE TODOS NÓS

Missa do 4º. dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 4,8-12; 1João 3,1-2; João 10,11-18.

            O Evangelho nos coloca diante de três imagens: a imagem do verdadeiro Pastor (o “bom” Pastor), a imagem do falso pastor (o “mercenário”, aquele que trabalha tendo como foco de interesse não o bem das ovelhas, mas o dinheiro) e a imagem da ovelha. Esta última imagem tem atualmente uma conotação negativa, pois ser “ovelha” significa, aos olhos da sociedade atual, ser uma pessoa “dirigida”, “guiada”, “conduzida” por alguém, e isso parece ferir a liberdade e a autonomia que hoje o ser humano tanto reivindica para si. De fato, muitas pessoas se afastaram de qualquer tipo de igreja e de religião por não admitirem ser “domesticadas”, “conduzidas”. Porém, é cada vez maior o número de pessoas que caminham na vida perdidas, desorientadas, fazendo mal a si mesmas e aos outros, por terem se afastado da voz de Deus em sua própria consciência. São pessoas que descartaram da construção da sua vida a pedra principal, a “pedra angular” (Sl 118,22).
            O que é a pedra angular? É uma pedra que, sendo retirada da construção de uma obra, faz com que toda a obra desmorone, vindo abaixo. No sentido espiritual, descartar a pedra angular significa descuidar, tratar com descaso, abandonar aquilo que é essencial, aquilo que é o mais importante na vida. O apóstolo Pedro disse claramente que Jesus Cristo é a pedra angular (cf. At 4,11). Muitos decidiram “jogar fora” a pessoa de Jesus; outros, se não chegaram a jogá-Lo fora, decidiram não mais alimentar seu relacionamento com Ele; são pessoas que descuidaram ou mesmo abandonaram sua relação com Jesus. A consequência disso é que elas se tornaram pessoas que desabam com facilidade diante dos problemas, pessoas cuja construção de vida desmorona e arruína, por não estarem assentadas/fundamentadas sobre um alicerce sólido.         
            Ao se referir a si mesmo como “o bom Pastor” e ao falar de cada um de nós como “ovelha”, Jesus quer nos lembrar que todo ser humano depende de algo ou de alguém. Ninguém é autossuficiente. Quando escolhemos não depender de Deus, passamos a depender do mundo; quando escolhemos não viver sob o domínio do verdadeiro e bom Pastor, acabamos nos deixando dominar pelos lobos do nosso tempo; quando não aceitamos viver sob o domínio do bom Pastor, acabamos por viver sob o domínio de mercenários, de pessoas e situações que não se importam verdadeiramente com o nosso bem, mas visam unicamente lucrar conosco, ganhar dinheiro em cima da nossa fragilidade, da nossa ignorância, da nossa carência.
A ovelha simboliza toda pessoa que precisa ser cuidada. Quem cuida de você? Você se deixa cuidar por Deus? Além disso, quais pessoas estão hoje sob os seus cuidados? Você cuida delas segundo o modelo do “bom Pastor”, dando a vida e se sacrificando pelo bem dessas pessoas, ou cuida delas segundo o antimodelo do “mercenário”, negando-se a se sacrificar pelo bem dessas pessoas ou, pior, fazendo do seu aparente cuidado uma cortina de fumaça: enquanto elas pensam estar sendo cuidadas por você, você as está roubando, lucrando com a ignorância religiosa dessas pessoas, que confiam em você quase que cegamente?
Não há como negar que nós estamos vivendo num tempo de grande carência de bons pastores e de multiplicação de mercenários, de pessoas que fazem o mínimo, que oferecem ao seu rebanho apenas o básico, o arroz com feijão, porque seu coração de pastor está num outro lugar, pulsando não por suas ovelhas em geral, mas apenas por uma em particular. Também não há como negar que existe hoje um forte desencanto pelos pastores, e esse desencanto tem gerado desconfiança, medo, afastamento e dispersão no rebanho. Mas aqui precisamos recordar as palavras do salmista: “É melhor buscar refúgio no Senhor, do que pôr no ser humano a esperança; é melhor buscar refúgio no Senhor, do que contar com os poderosos deste mundo!” (Sl 118,8-9). Nossos olhos precisam se manter fixos em Jesus, o bom Pastor, e não se perder na desilusão que possamos ter com os pastores humanos.
“Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas” (Jo 10,14-15). Jesus mantém com cada uma das suas ovelhas uma relação única, especial, pessoal; Ele conhece os seus sofrimentos, dramas, sonhos e esperanças. Cada um de nós é chamado a aprofundar o seu relacionamento pessoal com Jesus porque só n’Ele encontramos salvação, como disse claramente Pedro, cheio do Espírito Santo: “Em nenhum outro há salvação, pois não existe debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12). Aqui é importante repetir: só em Jesus Cristo encontramos a salvação porque Ele é a pedra principal da construção da nossa vida: quando descartamos essa pedra, todo o edifício da nossa vida desaba.
Ao se declarar como bom Pastor desse imenso rebanho que é a humanidade, Jesus também disse: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir; escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16). Essas palavras nos falam da nossa missão de cristãos, de pessoas chamadas a cuidar das ovelhas que a vida coloca próximas de nós. Tudo o que existe e vive precisa ser cuidado para continuar a existir e a viver: uma planta, um animal, uma criança, um idoso, o planeta Terra... Sem cuidado, deixamos de ser humanos. Sem cuidado, deixamos de ser bons pastores e nos tornamos mercenários, pessoas que só agem por interesse. Santo Agostinho, no século IV, escrevia: “Jesus diz a Pedro: Apascenta as minhas ovelhas, e não as tuas ovelhas: apascenta-as como minhas e não tuas”. Que o nosso cuidado para com as pessoas leve isso em conta.
Hoje é o Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Em sua mensagem para este dia, o Papa Francisco nos fala da importância de escutar, discernir e viver segundo a vocação que recebemos de Deus. Somos chamados a “escutar” o Senhor que nos fala muitas vezes “de forma silenciosa e discreta, sem Se impor à nossa liberdade”, afirma Francisco. Deus fala conosco especialmente na dor e na dispersão das Suas ovelhas, convidando-nos a cuidar delas como bons pastores. Porém, como vivemos num tempo marcado por muito barulho, precisamos “discernir” a voz do Senhor, essa voz que nos ajuda a “fazer as opções fundamentais” que nos configuram a Jesus Cristo, o profeta de Deus. “Como um vento que levanta o pó, o profeta perturba a falsa tranquilidade da consciência que esqueceu a Palavra do Senhor, discerne os acontecimentos à luz da promessa de Deus e ajuda o povo a vislumbrar, nas trevas da história, os sinais duma aurora”, explica Francisco. Por fim, somos chamados a abraçar a nossa vocação e a “viver” de modo digno da mesma. “A vocação é hoje! A missão cristã é para o momento presente! E cada um de nós é chamado – à vida laical no matrimônio, à vida sacerdotal no ministério ordenado, ou à vida de especial consagração – para se tornar testemunha do Senhor, aqui e agora”, diz Francisco.

Oração: Senhor Jesus, Tu és a pedra angular da construção da minha vida. Sem apoiar-me em Ti eu nada posso; sem orientar-me pela Tua palavra, o edifício da minha vida desaba. Sejas Tu, Senhor, o meu fundamento, o meu alicerce. Ampara-me sobre a rocha da Tua verdade, para que a construção da minha vida resista às tempestades desse mundo. Tu és, Senhor, o meu Pastor, por isso nada em minha vida faltará!  
Sou Tua ovelha, Senhor; pertenço ao Teu rebanho. Concede-me um coração capaz de ouvir, reconhecer e obedecer Tua voz. Livra-me do engano e das mentiras dos mercenários, daqueles que falam de Ti, mas têm o coração longe do Teu Evangelho, aqueles cujo coração está corrompido pela ganância do dinheiro. Protege-me dos lobos, Senhor; protege-me daqueles que atacam e agridem a minha vida física, emocional e espiritual. Concede-me discernimento para que eu não me deixe enganar por aqueles que, na política ou na religião, são lobos disfarçados de cordeiros. Tu és, Senhor, o meu Pastor, por isso nada em minha vida faltará! 
Muitos se desencantaram com os Teus pastores, Senhor Jesus. Muitos foram feridos em seu corpo e em sua alma por pastores pedófilos, que não roubaram apenas a inocência de crianças e adolescentes, mas roubaram-lhes também a fé! Visita, Senhor, todas as pessoas que estão machucadas em sua fé. Devolve-lhes a confiança em Ti. Que elas sejam curadas pela força do Teu amor de bom Pastor. Livra a nossa Igreja dos maus pastores e suscita no meio de nós pastores segundo o Teu coração! Tu és, Senhor, o meu Pastor, por isso nada em minha vida faltará! 
Pastorear significa cuidar. Cuida de cada um de nós, Senhor, e ajuda-nos a cuidar de todos aqueles que se encontram à nossa volta. Configura cada pai, mãe, educador, cada líder político e religioso ao Teu coração de bom Pastor. Toma em Teus braços cada ovelha que se encontra perdida, extraviada, doente, machucada, ameaçada em nosso mundo. Ensina-nos a dialogar com as outras igrejas e as outras religiões, para que, juntos, possamos agir na defesa e no resgate da vida de cada ovelha desse imenso rebanho que é a humanidade. Congrega-nos a todos no Teu único rebanho! Amém! Tu és, Senhor, o meu Pastor, por isso nada em minha vida faltará!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 13 de abril de 2018

COMO EU LIDO COM O MEU "É PRECISO"?

Missa do 3º. Dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 3,13-15.17-19; 1João 2,1-5a; Lucas 24,35-48.

            Não é uma tarefa fácil devolver vida a quem desistiu de viver, assim como não é uma tarefa fácil devolver saúde a quem se habituou a viver como uma pessoa doente – pior ainda, a se identificar com sua doença. Na verdade, o nosso grande desafio, como testemunhas do Senhor ressuscitado, é ajudar as pessoas do nosso tempo – muitas delas mortas em sua fé e em sua esperança – a recuperarem o sentido da própria vida, a desejarem voltar a viver a partir da sua fé e da sua esperança.
            O Evangelho que acabamos de ouvir nos mostra que Jesus encontrou muita resistência no coração dos discípulos em relação a crer na Sua ressurreição. Eles estavam tomados pelo medo, pelas preocupações e pelas dúvidas. Assim como os discípulos, nós vivemos num mundo onde os sinais da ressurreição, os sinais da vitória da vida sobre a morte, são muito pequenos – até mesmo insignificantes – diante dos sinais da morte que parece sempre sobrepor-se à vida. Se a cada domingo nós celebramos a nossa comunhão com a Palavra e com a Eucaristia do Senhor ressuscitado, durante a semana temos que lidar com acontecimentos que parecem negar a ressurreição, como por exemplo uma doença, um problema, um conflito, sem falar das más notícias como as guerras, os acidentes, as injustiças, a corrupção etc. São fatos que, se não chegam a diluir a nossa fé na ressurreição de Jesus, parecem diluir a nossa fé e a nossa esperança em viver como homens e mulheres ressuscitados e capazes de gerar ressurreição em nossa sociedade.    
            Mas este terceiro domingo da Páscoa nos mostra a preocupação e o esforço de Jesus em acordar os discípulos e retirá-los do sono da morte, do desânimo, da apatia, do pessimismo e do derrotismo, como se Ele lhes dissesse: ‘É inconcebível um cristão sem fé e sem esperança! É inconcebível um discípulo meu entregue ao desânimo! “Vede minhas mãos e meus pés!” (Lc 24,39). Se eu venci o sofrimento e a morte, vocês podem vencê-los também! Se eu abracei a minha hora de cruz permanecendo fiel à missão que o Pai havia me confiado, vocês também podem fazer o mesmo! Se eu consegui amar até o fim, vocês também conseguirão! Não permitam que o mundo enterre a fé e a esperança de vocês!’
            Depois de ter comido um pedaço de peixe assado com os discípulos, para mostrar-lhes que ele não era um espírito ou um fantasma, mas um corpo ressuscitado, Jesus lhes disse: “(...) era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24,44). Há uma carga teológica muito grande nessa expressão de Jesus, tão cara ao evangelista Lucas: “era preciso”. Ela significa que nada na vida de Jesus foi acidental ou obra do acaso. Tudo o que aconteceu com Jesus – sobretudo o fato de ele ter sido rejeitado pelos homens e morto numa cruz – foi previsto pelo Pai. Deus Pai não só previu, mas também permitiu o sofrimento de seu Filho, revertendo tal sofrimento para a salvação da humanidade. Mas, sobretudo, o Pai reabilitou seu Filho diante da humanidade, confirmando cada palavra sua e cada gesto seu ao ressuscitá-lo dos mortos e estabelecê-lo como Juiz e Senhor de cada ser humano (cf. At 10,42).
            Na vida de todo cristão, na vida de cada um de nós, também existe um “é preciso”. “É preciso passar por muitas tribulações para entrar no Reino de Deus” (At 14,22). Por quê? Porque mesmo depois que Jesus venceu a morte e ressuscitou, o mundo continua a ser um lugar marcado pela cultura de morte, pela violência, pelo descaso para com a vida, um mundo que prioriza o mercado em detrimento do ser humano, um mundo que ataca a família, rejeita Deus, opõe-se à Igreja, combate o Evangelho e produz destruição para si mesmo. Nós, cristãos, precisamos estar conscientes de que este mesmo mundo que feriu Jesus também nos ferirá, na medida em que procurarmos viver como Jesus viveu. Portanto, cada um de nós precisa assumir aquilo que diz respeito ao seu “é preciso”.
            Para cada um de nós existe um “é preciso”: É preciso enfrentar o mal que há no mundo; é preciso combater o bom combate; é preciso aceitar o fato de que o Reino de Deus ainda está em processo; é preciso aprender a suportar as dores de parto, até que a ressurreição de Cristo possa gerar a vida nova em cada pessoa que convive conosco; é preciso enfrentar o medo, as preocupações e as dúvidas que às vezes falam mais alto em nós do que a verdade da ressurreição; é preciso testemunhar Cristo ressuscitado não só para aqueles que O desconhecem, mas também para aqueles que O rejeitam; é preciso sofrer pela causa do Evangelho, lutar e sofrer para restabelecer a verdade e a justiça na terra, sabendo em quem depositamos a nossa fé.
            Sofrendo por causa do Evangelho, o apóstolo Paulo disse: “sei em quem depositei a minha fé” (2Tm 1,12). Nós devemos saber em quem colocamos a nossa fé: no Senhor ressuscitado, que a cada domingo se coloca junto a nós, como se colocou junto aos seus discípulos, para nos falar a partir das Escrituras e partir o pão para nós. Nós colocamos a nossa fé no Senhor Jesus, que está junto do Pai como nosso Defensor: ainda que em nossa fraqueza possamos cometer algum pecado, Ele nos liberta da condenação do pecado e nos concede o Seu perdão (cf. Lc 24,47; 1Jo 2,2). Nós colocamos a nossa fé no Cristo ressuscitado que hoje abre a nossa inteligência para que possamos entender as Escrituras (cf. Lc 24,45) e termos a consciência de que o sofrimento que atinge a nossa fé e a nossa esperança não é um sofrimento inútil, mas necessário para a ressurreição nossa e de toda a humanidade.

Oração: Senhor Jesus, seguindo o teu exemplo, quero abraçar o meu “é preciso”. Se for preciso sofrer pela causa do teu Evangelho, se for preciso sofrer para ajudar as pessoas à minha volta a ressuscitarem, quero abraçar esse sofrimento com alegria, na certeza de que ele será acompanhado pela tua graça, pela consolação do Espírito Santo em mim. Abra a minha inteligência, Senhor! Concede-me o entendimento da Sagrada Escritura. Faz-me acolher com fé sincera e profunda a verdade do teu Evangelho, que é força de salvação para todo aquele que crê. Tua Palavra é espírito e vida, Palavra de vida eterna, portadora de ressurreição, Palavra que faz passar da morte para a vida aquele que a acolhe na fé. (cantando) Tu que abres as portas, Tu que abres os caminhos, Tu que abres os mares, abre também pra mim! Tu que amas os fracos, Tu que encontras os perdidos, Tu que dissipas a morte, vem dissipá-la em mim! Vem dissipá-la em mim, Senhor. Vem dissipá-la em mim. Vem dissipá-la em mim, Senhor. Vem dissipá-la em mim... Ressuscita-me, Senhor! Ressuscita-me, Senhor! Ressuscita-me, Senhor, pelo poder do Teu amor! Ressuscita-me, Senhor! Ressuscita-me, Senhor! Ressuscita-me! Ressuscita-me, Senhor! (Pe. Fabio de Melo, Abrindo mares).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 5 de abril de 2018

FERIDAS QUE GERAM RESSURREIÇÃO PARA A HUMANIDADE

Missa do 2º. dom de Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 4,32-35; 1João 5,1-6; João 20,19-31.

            No domingo de Páscoa, Jesus encontrou seus discípulos atrás de portas fechadas, tomados pelo medo. É uma imagem muito atual e que expressa o estado de espírito de muitos de nós: portas fechadas, por causa do medo. Sem dúvida, o medo da violência tem nos levado a fechar as portas das nossas casas. Mas há um outro fator que tem feito muitas pessoas fecharem a porta do seu coração para Deus: a falta de fé. Por terem enfrentado uma situação de cruz, ou pelo fato de Deus não intervir para impedir uma determinada situação de cruz na humanidade, muitas pessoas fecharam a porta para a fé: para elas, não tem sentido crer num Deus que não impede a cruz na história humana.
É possível que muitos de nós também hoje estejamos com nossas portas fechadas, trancados em nosso medo, cansaço, desgaste, abatimento ou desânimo. Mas é consolador saber que as nossas portas fechadas não são impedimento para que o Senhor ressuscitado entre e nos diga: “A paz esteja convosco!” (Jo 20,19). Jesus, ao dizer isso, mostrou suas mãos e o seu lado, feridos na cruz. Suas mãos e o seu coração lutaram e se feriram, para devolver ao ser humano a vida, a justiça e a paz que vêm de Deus. E as nossas mãos, como estão? São mãos que lutam para que o mundo se torne mais justo? Quem luta em favor da vida, da justiça e da paz tem sua vida marcada por conflitos...
“A paz esteja convosco!” (Jo 20,19). O primeiro dom da Páscoa é a paz, a paz daquele que lutou e venceu o mundo, a paz daquele que tem em seu Corpo ressuscitado as marcas da cruz, mas esse mesmo Corpo se encontra agora transfigurado, glorificado, para nos dizer que mesmo quando nos ferimos ao promover ou defender a vida, essas feridas se converterão em fonte de ressurreição para a humanidade. O segundo dom da Páscoa é o Espírito Santo: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22). O Espírito Santo é a promessa da nossa ressurreição, a força do Alto que nos envia para a missão de testemunhar Jesus Cristo ressuscitado e o seu Evangelho como força de salvação para todo aquele que crê. Jesus ressuscitado quis que o Espírito Santo se colocasse junto a cada um de nós como Defensor e Consolador.
            Quando o Senhor ressuscitado teve seu primeiro encontro com os discípulos, Tomé não estava presente, e ao ouvir falar que Jesus havia ressuscitado, duvidou: “Se eu não vir..., não acreditarei” (Jo 20,26). Quais são as condições que nós costumamos impor a Deus para crer? Na verdade, Tomé simboliza a necessidade que cada um de nós tem de fazer uma experiência pessoal com o Senhor ressuscitado. Sua fé, enfraquecida pela cruz, é o retrato da nossa fé, muitas vezes cansada, desgastada, uma fé até mesmo humilhada e ridicularizada pelo mundo atual. Jesus fez questão de encontrar Tomé oito dias depois da Páscoa, não somente por causa dele, mas por causa de cada um de nós, que também vacilamos em nossa fé. E foi pensando em cada um de nós que Jesus disse a Tomé: “Acreditaste, porque me viste? Felizes os que creram sem terem visto!” (Jo 20,29).
Feliz aquele que não reduz a sua fé àquilo que pode ver, tocar, sentir e comprovar. Feliz aquele que não duvida do testemunho daqueles que comeram e beberam com o Senhor após a sua ressurreição (cf. At 10,40-41). Feliz aquele que escolheu sustentar-se na vida não a partir das coisas que vê, mas a partir daquilo que crê. Feliz aquele que, mesmo não tendo todas as perguntas respondidas, continua a caminhar. Feliz aquele que, mesmo não tendo todos os problemas resolvidos, continua a confiar. Feliz aquele que acolhe o Evangelho como palavras que foram escritas na fé do evangelista e para suscitar a fé no coração daquele que lê, fé na pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus, o único no qual temos Vida (cf. Jo 19,31).    
Segundo o apóstolo João, nossa vida cristã sempre será vivida dentro de um combate com o mundo, um combate onde ou vencemos o mundo ou somos vencidos por ele. O “mundo” é tudo aquilo que trabalha contra a vida, a justiça e a paz que Deus quer para a humanidade. Em primeiro lugar, precisamos aceitar o fato de que a nossa fé sempre será uma luta, um combate, e quem trava esse combate sairá vitorioso, mas também ferido. Em segundo lugar, nossa fé precisa ser defendida diante de um mundo que a combate e a deseja eliminar. Não nos esqueçamos de que “a vitória que vence o mundo é a nossa fé” (1Jo 5,4): sem a força da fé, “a vida facilmente se torna um arco cuja corda está arrebentada e do qual nenhuma flecha pode ser lançada” (Henri Nouwen).  
Por fim, neste segundo domingo da Páscoa, somos convidados a ter como exemplo a comunidade dos primeiros cristãos, cujas mãos aprenderam a trabalhar na direção oposta à do mundo, não acumulando, mas partilhando: “Entre eles ninguém passava necessidade” (At 4,34). Tudo o que eles possuíam “era distribuído conforme a necessidade de cada um” (At 4,35). As mãos dos primeiros cristãos estavam construindo um mundo diferente porque o coração deles era movido pela fé na ressurreição do Senhor Jesus. Que assim também as nossas mãos testemunhem a nossa fé no Senhor ressuscitado e nos ajude a viver a vida presente sob a luz da nossa futura ressurreição.

Oração: “Senhor Jesus, entra em minha vida, mesmo quando as portas estiverem fechadas pelo meu medo diante do mundo e pela minha descrença na tua ressurreição. Dá-nos a tua paz, que é a vitória sobre o mundo. Segura minhas mãos com as tuas mãos feridas, para que as minhas tenham a coragem de se abrirem para partilhar e, se preciso for, de se ferirem na luta em favor de um mundo mais justo. Infunde em mim a força do teu Espírito diante dos conflitos, para que eu possa experimentar a força da fé que me faz vencer o mundo e não ser vencido(a) por ele. Quero viver a minha vida como o Senhor viveu a sua, isto é, trabalhando pela ressurreição da humanidade. Creio em ti, Ressuscitado, mais que São Tomé, mas aumenta na minh’alma o poder da fé! Guarda a minha esperança, cresce o meu amor. Creio em ti, Ressuscitado, meu Deus e Senhor!

Pe. Paulo Cezar Mazzi