quinta-feira, 28 de abril de 2022

RESGATAR O SENTIDO DA PRÓPRIA VIDA

 Missa do 3º dom. Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 5,27b-32.40b-41; Apocalipse 5,11-14; João 21,1-19.

 

            Jesus iniciou sua missão chamando quatro discípulos: Pedro, André, Tiago e João. Por serem pescadores, estavam na praia, lavando/consertando as redes, quando Jesus lhes fez o convite: “Sigam-me, e eu farei de vocês pescadores de homens” (Mt 4,19). Pescar homens significa resgatar pessoas das situações de destruição e de morte.

            O Evangelho de hoje nos surpreende com a decisão de Pedro e de seis outros discípulos de irem pescar – pescar peixes! Ao que parece, os discípulos estão desorientados, após a morte e a ressurreição de Jesus. A desorientação é tão grande que eles voltam ao momento antes de serem chamados por Jesus; voltam a ser pescadores de peixes!

            Como nós estamos em relação à nossa vida: olhando para a frente ou para trás? Estamos sendo fiéis à tarefa que a vida nos confiou ou a abandonamos, para regredir e voltar a fazer coisas que não têm nada a ver com a nossa responsabilidade perante a missão que a vida nos confiou?

            “Eu vou pescar” (Jo 21,3) pode significar a atitude do cristão de voltar a ser um simples ser humano, que vive sua vida reduzida ao físico e ao psíquico, sem abertura ao espiritual; uma vida sem grandes sonhos, sem grandes ideais, reduzida ao sobreviver. E, no entanto, isso não responde mais ao que o coração humano busca. Pedro e os outros discípulos não pescam nada! Assim também, quando abandonamos o caminho que Jesus nos convidou a percorrer com ele, quando fugimos da tarefa à qual ele nos chamou, nossa vida começa a perder o sentido – nossas redes ficam vazias.

            Jesus conhece e respeita nossos momentos de crise, de desencanto, de perda de sentido e de afastamento da nossa própria vocação. Propositalmente, ele toca na ferida das nossas redes vazias, da nossa vida sem sentido: “Vocês têm alguma coisa para comer?” (Jo 21,5). Na verdade, Jesus quer nos levar a uma reflexão: por que será que não estamos mais conseguindo alimentar o sentido da nossa vida? Por que será que, apesar dos nossos esforços em pescar, nossas antigas redes continuam vazias? Não será justamente porque não é mais ali o nosso lugar? Não será porque não é mais aquela a nossa tarefa?

            Para renovar o convite aos seus discípulos a voltarem a crer na missão que lhes foi confiada, Jesus lhes desafia: “Lancem a rede à direita da barca, e vocês acharão” (Jo 21,6). Lançaram, pois, a rede e não conseguiam puxá-la para fora, por causa da quantidade de peixes. Então, o discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: “É o Senhor!” (Jo 21,7).

O discípulo amado reconhece que aquele homem que está na praia falando com eles é o Senhor ressuscitado! Após a sua ressurreição, ele não abandonou seus discípulos, não deixou sua Igreja sozinha no mundo. Ele continua a se preocupar com cada discípulo seu que está perdendo o sentido da sua própria vocação e missão. Ele já fez isso com os dois discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-35) e com Tomé (Jo 20,24-29); agora, Jesus deseja devolver convicção e sentido ao coração de sete discípulos seus que desistiram de resgatar pessoas do mar da destruição e da morte para, simplesmente, pescar peixes.

            O Evangelho centra a atenção em Pedro. Foi ele quem decidiu ir pescar. Foi ele quem parece ter perdido o sentido do chamado que recebeu de Jesus. Ele estava nu – desprovido da sua identidade, desprovido de sentido e de esperança perante sua própria vocação de pescador de homens. Agora, ao se dar conta de que Jesus Ressuscitado está ali, próximo deles, na beira da praia, veste sua roupa – símbolo da retomada da sua identidade de discípulo, de pescador de homens, e mergulha no mar, nadando rapidamente até chegar ao Senhor Ressuscitado.   

            Após a refeição com seus discípulos, Jesus chama Pedro para uma conversa particular. Antes da morte de Jesus na cruz, Pedro o havia negado três vezes, com medo de também ser preso e condenado à morte. Agora, por três vezes, o Senhor Ressuscitado lhe pergunta: “Você me ama?”. Diante da resposta afirmativa de Pedro, Jesus o remete para a sua verdadeira tarefa/missão: “Apascenta os meus cordeiros” (Jo 21,15); “Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21,16); “Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21,16). Apascentar é cuidar. O sentido da nossa vida não está em nós mesmos, em girar em torno do nosso ego, mas está em cuidar de algo ou de alguém que nos foi confiado. Pedro deixou de amar Jesus por medo da cruz. Agora que ele está diante do Ressuscitado, tomou consciência de que amar realmente machuca e faz morrer o nosso ego, mas é exatamente aquilo que dá sentido à nossa vida.

            Hoje a pergunta “Você me ama?” é dirigida a cada um de nós. Nós podemos até ter alguma fé em Jesus e ter a consciência de que necessitamos absolutamente dele, mas quem de nós o ama verdadeiramente? Até mesmo aqueles que não abandonaram a sua tarefa, a sua missão pastoral, quantos desses fazem o que fazem por amor, e não por mera obrigação ou, quem sabe, por simples sobrevivência financeira? Além disso, o nosso amor por Jesus se verifica no cuidado para com as coisas e as pessoas que ele confiou aos nossos cuidados. Essa consciência deveria estar presente quando pensamos em desistir – desistir do matrimônio, da vida consagrada, da própria vocação, da tarefa que a vida nos confia todos os dias. Se não desistimos não é porque ainda compensa nos manter onde estamos, mas unicamente por amor ao Senhor Ressuscitado. Em outras palavras, não cuidamos das ovelhas porque elas merecem tal cuidado, mas porque Jesus, a quem amamos, nos pede para cuidar.

            Uma palavra final – o nosso envelhecimento. Talvez muitos de nós esperem recompensas e garantias de sucesso pelo fato de servirmos ao Evangelho. No entanto, Jesus foi muito realista com Pedro: quando ele envelhecer, “irá para onde não quer ir” (cf. Jo 21,18), ou seja, morrerá de uma morte que não desejaria morrer. Talvez Jesus peça a alguns de nós não apenas uma vida oferecida em sacrifício pela salvação daqueles que ele ama, mas também uma morte sem glória, sem o reconhecimento do mundo, uma morte anônima ou até mesmo “amaldiçoada” aos olhos humanos. Diante desse realismo que parece até mesmo duro da parte de Jesus, volta a soar o seu chamado a cada um de nós: “Segue-me” (Jo 21,29).

            Hoje nós supostamente estamos seguindo Jesus. Não significa que morreremos seguindo-o. Por isso, a cada dia é preciso ter a coragem de nos colocar diante da sua pergunta: “Você me ama?”. “Você acredita que eu estou ressuscitado e acompanhando-o(a) também nas suas pescas fracassadas, nos momentos em que sua vida parece perder o sentido e você desiste da tarefa que lhe foi confiada?”. “Você me amará quando envelhecer, quando se tornar para a Igreja e para o mundo uma pessoa insignificante?”. “Você continuará acreditando que sua vida tem um sentido mesmo quando, devido à velhice, você não puder fazer quase que mais nada, e só sobreviverá daquilo que receber dos outros?”.  

           

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 21 de abril de 2022

SÓ O DEUS FERIDO CURA A HUMANIDADE FERIDA

 Missa do 2º domingo da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 5,12-16; Apocalipse 1,9-11a.12-13.17-19; João 20,19-31.

 

             Vimos no domingo de Páscoa que o primeiro sinal da ressurreição de Cristo é o seu túmulo vazio: “Por que estais procurando entre os mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou!” (Lc 24,5-6). “Ele não está aqui”, sepultado num túmulo. A verdadeira explicação para o fato de o túmulo de Jesus estar vazio não é o roubo do seu corpo, mas a sua ressurreição!

            O sinal do túmulo vazio só pode ser compreendido através de um segundo sinal: as aparições do Ressuscitado aos discípulos. O Evangelho de hoje nos fala de duas dessas aparições: a primeira, na noite do domingo de Páscoa; a segunda, oito dias depois, sendo esta especificamente para fazer uma correção à falta de fé de Tomé que, diante da notícia da primeira aparição, disse: “Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” (Jo 20,25).

            Ninguém de nós duvida de que Tomé esteja dentro de si. Quando consideramos a situação atual da humanidade, ferida por guerras e conflitos, pelo descaso e pela indiferença diante da dor alheia, pela banalização da vida, por uma economia de morte que privilegia os interesses do mercado cuja ganância é desmedida, pelo aumento sempre crescente da violência e de diversas doenças que levam à morte, fica mesmo difícil crer na ressurreição.

É verdade que crer na ressurreição de Jesus não muda o mundo à nossa volta, mas muda a nossa maneira de ver o mundo, de entender a vida e de lidar com aquilo que nos acontece. Só a fé no Cristo ressuscitado, vivo e presente junto a cada um de nós, pode nos tirar das mãos do fatalismo, do pessimismo, do desespero e da falta de sentido para a vida, e nos confiar às mãos da esperança que não decepciona, sabendo que não estamos jogados neste mundo às mãos do acaso, mas fomos confiados por Jesus às mãos do Pai; Ele nos guia e nos sustenta no caminho da vida, destinando cada um de nós a ressuscitar junto com seu Filho Jesus. 

“Se eu não vir, não acreditarei” (Jo 20,25). O Tomé que nos habita precisa ser levado a sério. A questão não é tanto o fato de crermos que Cristo ressuscitou, mas de cremos que a sua ressurreição tenha tornado o nosso mundo melhor. O problema são as feridas que continuam a ser abertas na humanidade e na vida de cada um de nós. Nos parece inconciliável celebrar a ressurreição de Cristo tendo em nós tantas feridas abertas. Mas o Evangelho de hoje centra a nossa atenção exatamente nas feridas de Jesus! Ele ressuscitou. Seu corpo, antes crucificado, está agora glorificado. No entanto, seu novo corpo glorificado ainda carrega em si as feridas da sua crucificação!

Talvez aqui esteja o nosso grande engano: achar que uma vida ressuscitada é uma vida blindada contra feridas. Para nos ajudar a rever essa compreensão errada a respeito da nossa fé, precisamos refletir sobre essas palavras do Pe. Tomás Halík: “Dizem que o próprio Satanás apareceu a São Martinho sob a aparência de Cristo. No entanto, o santo não foi enganado. Ele perguntou: ‘Onde estão as tuas feridas?’ Não acredito em ‘fé sem feridas’, em uma igreja sem feridas, em um Deus sem feridas. Somente o Deus ferido através de nossa fé ferida poderia curar o nosso mundo ferido”. Um Cristo ressuscitado sem feridas é um falso cristo. Se o seu corpo glorioso mantém em si as feridas da cruz é para nos lembrar de que a nossa ressurreição nascerá exatamente das nossas lutas, nas quais nos ferimos para gerar vida e esperança em nosso mundo. 

Jesus fez questão de ter uma conversa pessoal com Tomé e corrigir sua falta de fé: “Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel... Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!” (Jo 20,27.29). Nós consideramos os discípulos de Jesus felizes pelo fato de o terem visto ressuscitado? Jesus afirma que muito mais felizes serão aqueles que terão fé nele sem o terem visto ressuscitado, mas crendo a partir do testemunho dos apóstolos! Nossa fé não tem como ser alimentada por uma visão especial de Jesus ou por um toque sensível nele ou dele em nós. O que a alimenta é a pregação dos apóstolos a respeito do Senhor ressuscitado (cf. Rm 10,17), além do fato de o próprio Ressuscitado partir o pão para nós em cada Eucaristia (cf. Lc 24,30-31). Ali, então, podemos proclamar: “Creio em ti, Ressuscitado, mais que São Tomé, mas aumenta na minh’alma o poder da fé. Guarda a minha esperança; cresce o meu amor! Creio em ti, Ressuscitado, meu Deus e Senhor!”.

Assim como a vida não é algo fixo, estático e previsível, assim acontece também com a nossa fé. Ela passa por altos e baixos, além de ser fortemente questionada pelo mundo atual e por situações novas que a vida nos traz. Nossa fé não pode ser uma plantinha frágil e delicada, que procuramos manter protegida dentro de uma redoma de vidro. Pelo contrário, ela precisa aprender a enfrentar os ventos contrários, de modo que suas raízes se aprofundem no chão da vida e seu tronco se fortaleça, em vista de nos manter em pé diante das dificuldades.

Neste sentido, é muito oportuna esta palavra do Papa Francisco: “Nunca devemos esquecer que uma fé que não nos põe em crise é uma fé em crise; uma fé que não nos faz crescer é uma fé que deve crescer; uma fé que não nos questiona é uma fé sobre a qual nos devemos questionar; uma fé que não nos anima é uma fé que deve ser animada; uma fé que não nos sacode é uma fé que deve ser sacudida” (21/01/22). Que a nossa fé amadureça nos momentos de “tribulação”, de modo a produzir em nós o fruto da “perseverança” em Cristo crucificado e ressuscitado (cf. Ap 1,9).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sábado, 16 de abril de 2022

ESTAMOS DESTINADOS À RESSURREIÇÃO!

 Missa da Ressurreição do Senhor. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 10,34a.37-43; Colossenses 3,1-4; João 20,1-9.

 

“Por que estais procurando entre os mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou!” (Lc 24,5-6). Essas palavras nos foram ditas ontem, na Vigília Pascal. Jesus não se encontra num sepulcro, não está enterrado. O seu túmulo está vazio! Este é o primeiro sinal de que Ele ressuscitou.

Existe hoje uma constante negação da morte. A grande maioria das pessoas vive como se nunca fosse morrer. Mas o pior não é isso; o mais triste é morrer como se nunca tivesse vivido. Jesus viveu sua vida intensamente. “Ele andou por toda a parte, fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo demônio” (At 10,38). O sentido da sua vida estava em fazer voltar à vida aqueles que haviam morrido em sua saúde, em sua liberdade, em sua fé, em sua esperança. Mas, como disse Tim Keller, “Jesus não foi apenas um cara legal que fez o bem no mundo. Você não crucifica caras legais; você crucifica ameaças”. A vida de Jesus foi uma ameaça ao sistema religioso e político da época, sistemas que geravam morte e de alimentavam da morte. E por isso, Ele foi morto.

Após o sepultamento de Jesus, uma grande pedra foi colocada para lacrar o seu túmulo. Essa pedra era como que um ponto final que os inimigos de Jesus tiveram a pretensão de colocar na história da sua vida. Mas o Pai fez rolar a pedra do túmulo de seu Filho. Ao ressuscitar Jesus, o Pai disse “sim” à vida e às atitudes de seu Filho. Ao ressuscitar Jesus, o Pai revelou ao mundo aquilo que o próprio Jesus havia dito aos saduceus, que não acreditavam na ressurreição: “Ele é o Deus dos vivos e não dos mortos; pois para Ele todos vivem” (Lc 20,38).

Para Deus, todos vivem! O nosso lugar, após a morte, não é dentro de um túmulo, mas na casa do Pai, onde há muitas moradas, onde Jesus prepara o lugar para cada um de nós, porque Ele quer que estejamos onde Ele mesmo está (cf. Jo 14,2-3). A garantia de que nós estamos destinados à ressurreição é o Espírito Santo, “penhor da nossa herança” (Ef 1,14); Ele nos marcou com um selo – sinal de pertença a Deus – “para o dia da redenção” (Ef 4,30). O Espírito Santo “geme” dentro de nós, “suspirando pela redenção do nosso corpo” (Rm 8,23). Deus Pai, “que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também aos vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós” (Rm 8,11).

Nossa fé na ressurreição de Jesus depende diretamente dos apóstolos, pois eles comeram e beberam com Jesus após a ressurreição (cf. At 10,41). Ainda que alguns de nós desejassem ver pessoalmente o Senhor ressuscitado, para somente então crer, é preciso nos lembrar da advertência que Ele fez a Tomé: “Você acreditou porque me viu. Felizes aqueles que creram sem me ter visto!” (Jo 20,29). Felizes aqueles que creem na ressurreição de Jesus testemunhada nos Evangelhos pelos discípulos, aos quais Jesus apareceu após a ressurreição. Além disso, lembremos de que a única pessoa a quem Jesus apareceu após sua Ascenção ao céu foi ao apóstolo Paulo, no caminho de Damasco (cf. At 9,5), e ainda assim, não visível corporalmente, mas por meio de uma forte luz.

Não pretendamos ter visões ou revelações particulares para somente então crer que Jesus ressuscitou. Aos discípulos de Emaús Jesus deixou claro que está vivo e ressuscitado caminhando com seus discípulos de todos os tempos, fazendo-se presente na palavra da Escritura e no partir o pão (Eucaristia – cf. Lc 24,13-35). Lembremos também do que o apóstolo Paulo nos disse: nossa vida de pessoas ressuscitadas está escondida com Cristo em Deus. Nós somos como que uma semente: dentro dela há uma vida escondida, que só se manifestará ao ser “sepultada”. Mesmo sendo pessoas habitadas pelo Espírito Santo e, por isso mesmo, destinadas à ressurreição, nosso corpo permanece fisicamente mortal. Somente quando Cristo ressuscitado se manifestar a cada um de nós é que seremos revestidos da sua glória e receberemos dele um corpo glorioso (cf. Cl 3,4; Fl 3,20-21).        

A nós, que cremos na ressurreição de Jesus e em nossa futura ressurreição, é pedido que busquemos “as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus” (Cl 3,1-2). Por acreditarem firmemente na ressurreição, os primeiros cristãos vendiam seus bens e davam aos pobres, de modo que “não havia necessitado entre eles” (cf. At 2,44-45; 4,32-33). Lamentavelmente, muitos cristãos comportam-se como pessoas mundanas, cujo deus é o estômago e cujo sentido da vida é erroneamente buscado nos bens materiais. São pessoas que usam o Evangelho como livro de autoajuda, não se comprometem com nenhum trabalho na Igreja e preferem se manter distantes dos problemas sociais, com uma fé fortemente individualista.     

Buscar as coisas do alto significa colocar Deus verdadeiramente no centro da nossa vida e orientarmos a nossa conduta segundo a sua Palavra, vivendo uma vida simples, socorrendo os necessitados e tendo consciência crítica diante deste mundo materialista, no qual grande parte das pessoas “vive como se nunca fosse morrer e morre como se nunca tivesse vivido” (Dalai Lama). Buscar as coisas do alto significa “buscar o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33), conforme o próprio Jesus nos ensinou. Buscar as coisas do alto significa ouvir o apelo do Espírito, que geme em nós, desejando a nossa união definitiva com Cristo em Deus.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

sexta-feira, 15 de abril de 2022

DEUS NOS FAZ PASSAR!

 Vigília Pascal. Palavra de Deus: Gn 1,1.26-31; Ex 14,15 – 15,1; Isaías 54,5-14; Ezequiel 36,16-17a.18-28; Romanos 6,3-11; Lucas 24,1-12.

 

Por que nesta noite de Páscoa nós recordamos fatos tão antigos, como a história da criação do ser humano, a história da libertação de Israel do país do Egito e a promessa da libertação do exílio na Babilônia? Porque, como disse o apóstolo Paulo, “essas coisas aconteceram com o povo de Israel para servir de exemplo e foram escritas para a nossa instrução, nós que fomos atingidos pelo fim dos tempos” (1Cor 10,11).    

A história da criação nos ensina que Deus fez do ser humano a sua obra mais perfeita. Ele não criou o ser humano com um gênero indefinido, mas os criou homem e mulher; criou o homem com a sua identidade masculina e a mulher com a sua identidade feminina. E os criou capazes de fecundidade. E lhes confiou a tarefa de cuidar (submeter e dominar) do planeta Terra. Para alimentar tanto aos homens como aos animais, Deus criou as plantas que dão semente, as árvores que dão fruto e os vegetais. Portanto, não era necessário derramar de sangue um ser vivo para homens e animais se alimentarem.

Pelo fato de a humanidade ter se afastado do seu Criador, muitas pessoas se sentem órfãs neste mundo, sem um Pai; muitos estão fragilizados na sua identidade; por medo do presente e pelo pessimismo em relação ao futuro, muitos substituíram a fecundidade pela esterilidade; o cuidado pelo Planeta se perverteu em consumismo e em desperdício dos recursos naturais, e o sangue se tornou presente não somente em nossa mesa, mas também na rotina do nosso dia a dia (agressividade, violência, intolerância).

Uma vez que a criação precisava ser redimida, resgatada da destruição e da morte, o Criador se tornou o Redentor da criação. Não abandonando a criação a si mesma, Deus decidiu intervir e libertar o seu povo, escravo no Egito: “Por que clamas a mim por socorro? Dize aos filhos de Israel que se ponham em marcha” (Ex 14,15). Diante das situações difíceis, onde costumamos nos entregar ao desânimo e ao pessimismo, Deus nos convida a nos colocar em marcha, a iniciar uma travessia, a deixar para trás o Egito da nossa aflição e caminhar com Ele na direção da sua promessa. Qual travessia Deus está nos convidando a fazer agora?

Deus nos convida a fazer a passagem da escravidão para a liberdade, da morte para a vida. No entanto, todo processo de libertação enfrenta resistência. Toda libertação envolve luta, esforço, sacrifício. Assim como Israel se deparou com o Mar Vermelho, nós sempre encontramos obstáculos em nosso caminho. Mas durante toda a noite o Senhor fez soprar um vento muito forte, e as águas se dividiram. Naquele dia, o Senhor livrou Israel da mão dos egípcios. Da mesma forma como é o Senhor quem nos faz sair da escravidão, é Ele quem nos faz atravessar os obstáculos e prosseguir em nossa caminhada de libertação. Confiando na força do seu Espírito, simbolizada no vento que abre as águas, nós podemos caminhar na direção daquilo que antes parecia intransponível, porque é o Senhor quem nos abre o caminho, é Ele quem nos faz passar!

Passaram-se alguns séculos, e Israel foi expulso da sua terra e levado para o cativeiro na Babilônia, por causa da sua infidelidade a Deus. Nessa experiência de exílio, Israel se sentia como uma mulher abandonada e de alma aflita, o retrato da humanidade hoje. Mas o profeta Isaías lembrou que Deus é “Esposo” e “Redentor” (cf. Is 54,5) do seu povo. Ele nos fez uma promessa: “Podem os montes recuar e as colinas abalar-se, mas minha misericórdia não se apartará de ti. Longe da opressão, nada terás a temer; serás livre do terror, porque ele não se aproximará de ti” (Is 54,10). Apesar da nossa infidelidade, Deus permanece fiel ao Seu amor por nós. Se as rápidas mudanças e os acontecimentos do mundo estão levando embora todas as nossas certezas e nos jogando na angústia, nosso coração precisa se firmar na promessa de Deus, de que o seu amor por nós não mudará.

A perda da terra e a nova escravidão que Israel vivenciou são um alerta para nós: aquilo que conquistamos com tanto sacrifício, aquela passagem que foi realizada com tanta luta e tanto sofrimento, pode ser cancelada por puro capricho nosso, porque descuidamos de manter nossa fidelidade diária a Deus e nossa obediência à sua Palavra. Mas porque o nosso Deus é rico em misericórdia, Ele nos promete uma nova Páscoa, uma nova passagem: “Eu vos tirarei... eu vos reunirei... eu vos conduzirei... Derramarei sobre vós... Eu vos purificarei... eu vos darei... eu porei em vós... Arrancarei o coração de pedra, darei um coração de carne... Porei o meu espírito em vós... Farei...” (cf. Ez 36). A Páscoa só acontece quando deixamos Deus fazer em nós a passagem, a travessia, a mudança, a transformação que não podemos fazer por nós mesmos.

Nesta noite de Páscoa, o apóstolo Paulo afirma que a força da Páscoa de Cristo nos foi concedida no momento do nosso Batismo. Graças ao Batismo, nós pudemos nos tornar semelhantes a Jesus Cristo na sua morte, para que um dia nos tornemos semelhantes a ele na sua ressurreição. Viver como batizados significa viver como pessoas ressuscitadas, isto é, como pessoas que a cada dia decidem morrer para o pecado e viver para Deus, a exemplo de seu Filho Jesus. Se queremos ressuscitar com Cristo para uma vida nova, primeiro é preciso morrer com Ele, crucificando o nosso pecado. Somente quando aceitamos nos identificar com Cristo por uma morte semelhante à sua é que podemos nos identificar com Ele por uma ressurreição semelhante à Sua. Sem a nossa disposição em fazer morrer o nosso pecado, não podemos experimentar a alegria da ressurreição de Cristo.

Enfim, nesta noite de Vigília Pascal, a Palavra do Senhor se pronuncia sobre a passagem mais difícil de todas, aquela que nenhuma pessoa pode fazer por si mesma: a passagem da morte para a vida. Quando nossas esperanças são sepultadas e uma pedra é colocada sobre elas, para dizer que ali se encerra a nossa busca, a nossa luta, a nossa tentativa de passar; quando precisamos admitir que chegou o fim e é o momento de aceitá-lo, a Palavra do Senhor se pronuncia sobre a nossa morte, também sobre a morte da nossa fé, para remover a pedra e dizer que não devemos procurar entre os mortos aquele que está vivo (cf. Lc 24,5-6), da mesma forma como nunca podemos dar por morta a nossa fé, porque para Deus nenhuma passagem é impossível.

Sim! A passagem mais difícil de todas foi aberta por Deus: a pedra, que nos mantinha a todos fechados em nossos túmulos, aprisionados para sempre na morte, foi retirada. Dentro do túmulo não há mais uma vida que terminou na morte, um sonho de que desfez para sempre, uma luz que se apagou definitivamente, um projeto que não teve como ser concretizado. Dentro do túmulo estão dois homens com roupas brilhantes – símbolo da ressurreição – dizendo que Jesus de Nazaré, que foi crucificado, ressuscitou! Se o Evangelho nos coloca diante de um túmulo vazio é para nos lembrar que crer na ressurreição não significa crer que não vamos morrer, ou que vamos ser poupados de sofrimento, mas significa crer que vamos vencer a morte e o sofrimento. O nosso sofrer e a nossa morte não são a negação da ressurreição, mas o lugar existencial onde experimentaremos a nossa própria ressurreição (cf. 2Cor 5,2-4).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 14 de abril de 2022

RESPONSABILIZAR-NOS POR AQUILO QUE TEMOS QUE ENFRENTAR

 Sexta-feira da Paixão do Senhor: Palavra de Deus: Isaías 52,13 – 53,12; Hebreus 4,14-16; 5,7-9; João 18,1 – 19,42.  

 

Toda propaganda chega a nós por meio da imagem da beleza e da felicidade. No entanto, Deus, muitas vezes, escolhe falar conosco por meio da desfiguração e do sofrimento: “Ei-lo, o meu Servo... tão desfigurado ele estava que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano” (Is 52,13.14). E aí, naturalmente surge a pergunta: “Quem de nós deu crédito ao que ouvimos?” (Is 53,1). Quem de nós consegue ouvir Deus na dor? Quem de nós consegue crer na existência de Deus vendo tanto mal e tanta destruição no mundo? Quem de nós consegue crer que Deus é amor, diante de tantos inocentes que sofrem na face da terra? Toda dor, todo sofrimento desafiam a nossa fé a encontrar Deus no meio do absurdo, da escuridão, da injustiça, da morte... O que mais nos machuca não é o sofrimento, mas o insuportável silêncio de Deus diante do sofrimento.

Deus escolheu falar conosco por meio de seu Servo, “homem coberto de dores, cheio de sofrimentos” (Is 53,3). “E nós pensávamos fosse um chagado, golpeado por Deus e humilhado! Mas ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes” (Is 53,4-5). Quando alguém sofre e morre, nós rapidamente entramos com nossas teorias e explicações. Afinal de contas, alguém ter que ser responsabilizado! Ou foi a pessoa que pecou, ou o Deus em quem cremos tem o estranho hábito de fazer sofrer pessoas boas. Raramente admitimos que nós temos alguma parcela de responsabilidade no mal que existe no mundo: “por causa de nossos pecados”; “por causa de nossos crimes”. “Por causa do pecado do meu povo foi golpeado até morrer” (Is 53,8).

Mas, será mesmo que Deus precisa que um ser humano seja sacrificado, para que Ele acalme sua ira em relação à humanidade??? Não! Se Ele permite que o justo sofra é em vista da redenção de todos os injustos: “Meu Servo, o justo, fará justos inúmeros homens, carregando sobre si suas culpas... Ele, na verdade, resgatava o pecado de todos e intercedia em favor dos pecadores” (Is 53,11.12). A cruz nunca foi invenção de Deus, mas dos homens. O que Deus fez foi transformar um instrumento de maldição em um instrumento de bênção (cf. Gl 3,13-14). Não estamos aqui para celebrar a morte do Filho único de Deus, mas para professar a nossa fé em nossa redenção: “É pelo sangue dele que temos a redenção, a remissão dos pecados” (Ef 1,7). Havia um abismo que nos separava de Deus, um abismo criado com os nossos pecados (cf. Is 59,2). Deus Pai transformou a cruz de Seu Filho numa ponte de reconciliação: “Aprouve a Deus fazer habitar em Cristo toda a sua plenitude, e reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os do céu, realizando a paz pelo sangue de sua cruz” (Cl 1,19-20).   

A cruz de Jesus Cristo nos ensina que somente um desgraçado pode salvar os desgraçados; somente um condenado pode salvar os condenados; somente um Deus ferido pode salvar uma humanidade ferida. Como nos disse a carta aos Hebreus, somente um ser humano provado em tudo como nós pode se tornar um sumo sacerdote capaz de se compadecer das nossas fraquezas. Não existe dor ou fraqueza em nós que Jesus não tenha experimentado em Si mesmo. Sua cruz se tornou o “trono da graça”, o lugar em que podemos nos aproximar sem medo, com toda a confiança, e obter do Pai a misericórdia e o auxílio de que necessitamos.

Mas a cruz de Cristo nos ensina algo importante a respeito da oração. O Deus em quem nós cremos sempre escuta a nossa oração, porque Ele é Pai, o Pai que sempre escuta seus filhos. No entanto, a sua resposta nem sempre vem de encontro àquilo que lhe pedimos. Cristo, o Filho único de Deus, suplicou ser salvo da morte. Mas o Pai não o poupou da morte. Nem sempre Deus nos poupará de sofrer. Isso não significa que Ele não exista, ou que não nos ame. Isso significa que há algo que nós temos que aprender por meio da dor que o Pai permite que nos atinja: “Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu” (Hb 5,8). Diante do “não” de Deus, Cristo “entregou-se”, submetendo sua vontade à vontade do Pai. E somente depois de morrer sentindo-se abandonado por Deus é que sua súplica foi atendida, sendo ressuscitado. Em nossa oração, não devemos jamais negar o que sentimos – repulsa diante da dor –, mas transformar essa repulsa numa entrega confiante à vontade do Pai.   

O Evangelho deste dia nos ensina como lidar com a cruz. No momento da sua prisão, Jesus, “consciente de tudo o que ia acontecer, saiu ao encontro deles” e disse: “Sou eu” (Jo 18,4.5). “Sou eu” significa: “Cabe a mim enfrentar este momento, e não a outra pessoa. É responsabilidade minha a maneira como eu escolho lidar com a dor”. Jesus nos ensina a não fugir da vida, mas a acolher aquilo que a realidade está nos apresentando. Diante da atitude de Pedro de usar de violência para impedir a sua prisão, Jesus o questionou: “Guarda a tua espada na bainha. Não vou beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18,11). Enquanto muitos se perguntam: “Por que comigo?”, Jesus nos ensina a mudar a pergunta: “Por que não comigo?” “Por que os outros podem beber do cálice do sofrimento, mas eu não?”.

Na noite da Paixão, dois homens foram questionados simultaneamente: Pedro e Jesus. Enquanto Pedro negou sua identidade de discípulo de Jesus, para salvar sua pele, Jesus afirmou sua identidade de Filho de Deus diante do sumo sacerdote. Nós temos consciência da nossa identidade de discípulos de Jesus? Neste mundo pagão e até mesmo anticristão, nós aceitamos pagar o preço por sermos cristãos? Com que facilidade negamos a nossa fé, para evitarmos humilhações ou prejuízos – quem sabe – em nossa vida financeira?

Ao ser questionado por Pilatos, Jesus respondeu: “Eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37). O rei é aquele que, antes de exercer domínio sobre os outros, tem domínio sobre si. Somente quem se encontrou com sua verdade e se reconciliou com ela pode ter domínio sobre si mesmo. Quem vive na mentira é dominado pelo medo e precisa esconder-se atrás de diversas máscaras. Num tempo em que postamos nas redes sociais imagens mentirosas de nós mesmos, como estamos em relação à verdade? Quem de nós consegue confrontar-se consigo mesmo, com seus fantasmas, com seus medos?

Ao ser ameaçado por Pilatos, Jesus lhe respondeu: “Tu não terias autoridade alguma sobre mim, se ela não te fosse dada do alto. Quem me entregou a ti, portanto, tem culpa maior” (Jo 19,11). Numa só resposta, Jesus revelou os dois responsáveis por sua morte: Judas e Pilatos. Indiretamente, Jesus lembrou a Pilatos que ele, que o estava julgando, um dia seria julgado por Deus. Diante de pessoas que supostamente têm poder ou autoridade sobre nós, precisamos manter a consciência de que ninguém nos atinge, sem o consentimento do Pai. Além disso, as pessoas têm sobre nós o poder que permitimos que elas tenham.

Estando já crucificado, Jesus entrega sua mãe ao discípulo amado: “Mulher, este é o teu filho”; “Esta é a tua mãe” (Jo 19,26.27). Maria e o discípulo amado representam a Igreja. Jesus quer a Igreja como Mãe que se coloca junto à cruz dos seus filhos. A Igreja, presente no mundo por meio dos discípulos de Jesus, é chamada a estar especialmente presente junto de quem sofre. Nenhum ser humano deveria se sentir órfão, sem Mãe, diante do seu sofrimento.

Segundo o evangelista João, as últimas palavras de Jesus na cruz foram: “Tudo está consumado” (Jo 19,30). Jesus volta para o Pai com a consciência de ter cumprido sua missão, de ter amado até o fim, de não ter perdido nenhum daqueles que o Pai lhe deu, de ter combatido o bom combate, terminado a corrida e guardado a fé. Ele nos ensina que o mais importante na vida é nos manter fiéis à nossa vocação, à missão para a qual nascemos. Morrendo aos trinta e poucos anos, Jesus nos lembra que o valor de uma vida não se mede pelo número de anos que a pessoa viveu, mas por sua fidelidade à palavra de Deus que ela foi chamada a pronunciar ao mundo com sua existência, ainda que breve.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

terça-feira, 12 de abril de 2022

O SENTIDO DA "ENTREGA": O QUE EU TENHO A OFERECER À VIDA?

 Missa da Ceia do Senhor. Palavra de Deus: Êxodo 12,1-8.11-14; 1Coríntios 11,23-26; João 13,1-15.

 

            Nesta noite começamos a celebração da Páscoa. Ela se inicia com a memória da entrega de Jesus, entrega que, antes de se dar na cruz, deu-se numa Ceia: “Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão... ‘Isto é o meu corpo, que é dado por vós’... Depois da ceia, tomou também o cálice e disse: ‘Este cálice é a nova aliança, em meu sangue’” (1Cor 11,23.24.25). De fato, Jesus havia afirmado: “Ninguém tira a minha vida. Eu a dou livremente” (Jo 10,18). Jesus celebra a última Ceia com seus discípulos “entregando-se livremente” porque escolheu viver sua vida a partir de uma pergunta: “O que eu tenho a oferecer à vida”, diferente de muitos hoje em dia, que vivem a partir de uma outra pergunta: “O que a vida tem a me oferecer?”

            “Entrega” tem a ver com “sacrifício”, e sacrifício tem a ver com amor: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Essas palavras resumem a vida de Jesus: amou até o fim. Numa época em que se ama até se decepcionar, até se cansar, até encontrar algo diferente e mais atrativo, Jesus se coloca como modelo de pessoa que ama: “Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,15). Quando desistimos de amar até o fim, a “praga exterminadora” entra em nossa vida e começa a destruir tudo.

            O texto do Êxodo nos convida a fazer memória da primeira páscoa, quando cordeiros foram sacrificados para proteger as famílias dos hebreus por meio do seu sangue, passado nas portas das casas: “Então toda a comunidade de Israel reunida o imolará ao cair da tarde. Tomareis um pouco do seu sangue e untareis os marcos e a travessa da porta... O sangue servirá de sinal nas casas onde estiverdes. Ao ver o sangue, passarei adiante, e não vos atingirá a praga exterminadora (Ex 12,6-7.13). Na primeira páscoa da história da humanidade, o Senhor Deus permitiu que uma praga exterminadora passasse pela terra do Egito, ferindo de morte todo primeiro filho de cada família. No entanto, essa praga “pulou” as casas dos hebreus, protegidas pelo sangue dos cordeiros sacrificados.

            Hoje nossa fé é desafiada a crer no mesmo Deus de Israel, o Deus que permite que a praga exterminadora do câncer entre na casa de pais cristãos, ferindo de morte seu filho único; o Deus que permitiu que a praga exterminadora da Covid 19 ferisse de morte tantos familiares, amigos e conhecidos nossos. É fácil crer em Deus quando Ele faz o mal “pular” a nossa casa. Mas como é difícil crer no Seu amor por nós quando nossa casa não é poupada da dor, da morte, de algum tipo de destruição! Aqui nós precisaríamos nos lembrar das palavras do Salmo 115,10: “Guardei a minha fé mesmo dizendo: ‘É demais o sofrimento em minha vida!’”.

            As famílias dos hebreus foram poupadas da praga exterminadora do Egito, mas nem sempre nós seremos poupados de sofrer. O mesmo Deus que poupou o filho de Abraão do sacrifício não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós: “Como não haverá de nos agraciar em tudo junto com ele?”, pergunta o apóstolo Paulo (Rm 8,32). O sacrifício dos cordeiros em favor das famílias dos hebreus nos pergunta se nós estamos dispostos a nos sacrificar pelo bem daqueles que amamos. O sangue dos cordeiros nas portas das casas nos pergunta se nós estamos nos esforçando em amar até o fim, como Jesus amou.

Voltemos à Ceia de Jesus. O Corpo que Jesus entregou e o sangue que ele derramou na cruz foram antecipadamente entregues aos discípulos com uma recomendação: “Fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24.25). “Memória”, no sentido bíblico, significa “atualização”. Através do seu Corpo e Sangue doados a nós no altar da Igreja, Jesus atualiza a sua presença junto a nós. Seu sacrifício na cruz foi oferecido uma única vez, mas “todas as vezes... que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha” (1Cor 11,26). Todas as vezes que comungamos o Corpo e o Sangue do Senhor, estamos proclamando que Jesus nos amou e se entregou por nós; que Ele está presente em nosso meio, vivo, ressuscitado, e que “Ele virá uma segunda vez... para aqueles que o esperam, para lhes dar a salvação” (Hb 9,28).

A última Ceia foi um momento muito esperado e desejado por Jesus, mas também um momento muito difícil para Ele. Ali Ele revelou a traição de Judas e a negação de Pedro. Ali Ele deixou os discípulos conscientes de que todos eles fugiriam na hora da cruz e o deixariam só, “mas eu não estou só, porque o Pai está comigo” (Jo 16,32). Ali Jesus nos deixou conscientes dessa verdade: “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo” (Jo 16,33). Comungar o Corpo e o Sangue do Senhor não significa sermos poupados de tribulações, mas revestidos de coragem para enfrentá-las, sem deixarmos de crer, amar e esperar até o fim!

Foi exatamente na última Ceia que Jesus disse aos seus discípulos: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve” (Lc 22,27). Ele expressou o seu serviço lavando-lhes os pés! Esse tipo de serviço só era praticado por escravos, na época de Jesus. Propositalmente, Jesus quis se recordado por seus discípulos como escravo, como “aquele que serve”. Como identificar uma pessoa que comunga? Pelo serviço que ela realiza em favor dos outros. Como identificar um discípulo de Jesus? “Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,14-15). Hoje, cada um de nós deve ser perguntar: De quem eu sou chamado(a) a lavar os pés? Qual situação específica está me desafiando a crer, esperar e amar até o fim?

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

quinta-feira, 7 de abril de 2022

QUAL ATITUDE TER DIANTE DA CRUZ?

 Missa de Ramos. Palavra de Deus: Isaías 50,4-7; Filipenses 2,6-11; Lucas 23,1-49.

 

            No ano de 63 aC, os romanos impuseram o seu domínio sobre a Palestina. Para impedir qualquer tipo de revolta contra o Império Romano, “criaram” a crucificação. Durante a dominação romana, inúmeros judeus foram crucificados. A crucificação era um espetáculo de horror, que não visava simplesmente matar, mas torturar, fazer sofrer, fazer morrer aos poucos, por agonia, por asfixia. Normalmente, as crucificações eram feitas num lugar em público. “As vítimas permaneciam totalmente nuas, agonizando numa cruz, num lugar visível” (Pagola, Jesus – aproximação histórica, p.465). Todos os que passavam e viam alguém crucificado, tinha que saber o que esperava aqueles que se opusessem à dominação romana.

            Segundo o historiador Flávio Josefo, morrer crucificado era “a morte mais miserável de todas”, “o suplício mais cruel e terrível” (Cícero). “A crucificação não era uma simples execução, mas uma lenta tortura. Não se danificava diretamente nenhum órgão vital ao crucificado, de maneira que sua agonia podia prolongar-se durante longas horas e até dias” (Pagola, Jesus – aproximação histórica, p.464). Depois que os crucificados morriam, seus corpos serviam de alimento para as aves de rapina e para os cães selvagens. Seus ossos eram jogados numa vala comum, para que seus nomes fossem apagados para sempre da história.

            O que Jesus fez para “merecer” esse tipo de morte? Nada. O próprio Pilatos repetiu por quatro vezes: “Não encontro neste homem nenhum crime” (Lc 23,4); “Não encontrei nele nenhum dos crimes de que o acusais” (Lc 23,14); “Ele nada fez para merecer a morte” (Lc 23,15); “Que mal fez este homem? Não encontrei nele nenhum crime que mereça a morte” (Lc 23,22). Pilatos sabia que Jesus era inocente, mas cedeu à pressão do povo: “Toda a multidão se levantou e levou Jesus a Pilatos” (Lc 23,1); “Toda a multidão começou a gritar: ‘Fora com ele! Solta-nos Barrabás!’” (Lc 23,18). “Pilatos falou outra vez à multidão, pois queria libertar Jesus. Mas eles gritavam: ‘Crucifica-o! Crucifica-o!’” (Lc 23,20-21).

            Você age segundo sua consciência ou segundo a pressão das pessoas à sua volta? Quem age segundo sua consciência, normalmente é criticado e fica isolado. Quem cede à pressão e age “segundo a multidão” é “amigo” do povo, é “dos nossos”. Muitas pessoas sacrificam sua consciência porque não querem perder o afeto dos outros, não querem pagar o preço de serem rejeitadas pela “maioria”.

            Contudo, a multidão é sempre “massa de manobra”. Não sabe – e nem se interessa em saber – o que se passa nos bastidores. Tendo preguiça de pensar e sendo sempre manipulada pela emoção, contenta-se com a política do “pão e circo”. Quem ficava por trás da multidão incitando Herodes e Pilatos a condenarem Jesus à morte eram os chefes religiosos da época: “Os sumos sacerdotes e os mestres da Lei estavam presentes e o acusavam com insistência” (Lc 23,10). Jesus foi rejeitado e combatido pelos líderes da sua própria religião, que encontraram na política (Império Romano) o poder que eles não tinham de condenar Jesus à morte. Desse modo, o sangue fica nas mãos de Pilatos e da multidão, enquanto que os líderes religiosos aparentam terem suas mãos limpas.

            Quantos de nós, cristãos, somos simpatizantes de políticos que matam, que cultuam de maneira doentia a morte? Quantos de nós, cristãos, levantam a voz contra o aborto, mas se calam diante das desigualdades sociais e da violência que provocam inúmeras mortes em nosso País? Quantos de nós, que nos julgamos discípulos de Jesus, somos admiradores ou simpatizantes de Barrabás, de homens assassinos?  

            Antes de ser crucificado, Jesus foi flagelado. Ele conheceu a agressão e a violência brutal que hoje são praticadas em nosso País, comandadas a partir de cima, de quem ter poder. Ele perdeu tanto sangue e ficou tão machucado que não tinha forças para carregar a cruz na qual seria crucificado. Foi por isso que, “enquanto levavam Jesus, pegaram um certo Simão, de Cirene, que voltava do campo, e impuseram-lhe a cruz para carregá-la atrás de Jesus” (Lc 23,26). Onde nós estamos, quando pessoas próximas estão passando por sofrimentos intensos? Qual é a nossa disposição em ajudar essas pessoas com suas experiências de cruz? “O Senhor Deus deu-me a língua de um discípulo para que eu saiba reconfortar pela palavra o que está abatido. Cada manhã ele desperta meus ouvidos para que escute como discípulo” (Is 50,4). O que se espera de todo discípulo de Jesus é presença solidária diante da dor do outro.   

            Pessoas que não foram anestesiadas pela atitude do individualismo e da indiferença, ainda são capazes de sentirem compaixão de quem sofre. Mas Jesus fez este alerta às mulheres que choravam por ele: “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim! Chorai por vós mesmas e por vossos filhos! (...) Porque, se fazem assim com a árvore verde, o que não farão com a árvore seca?” (Lc 23,28.31). Jesus é a árvore verde, isto é, uma pessoa boa, sem qualquer resquício de maldade. Nós, porém, somos árvores secas, pessoas que estão se permitindo secar no amor, na fé, na esperança, na solidariedade; pessoas que estão se tornando sempre mais pessimistas em relação ao ser humano. Se Jesus não foi poupado de sofrer, por que nós o seríamos, nós que algumas vezes provocamos sofrimentos a nós mesmos e/ou aos outros? 

            No momento em que estava sendo crucificado, Jesus orou pelos seus crucificadores: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!” (Lc 23,34). Certamente nós também crucificamos pessoas por ignorar o valor delas, por achar que estamos certos, por nos deixarmos mover pela voz da “multidão” e não por nossa consciência. Também nós precisamos que o Pai nos perdoe por tantos erros cometidos devido à nossa ignorância.   

            Assim como os dois malfeitores, nós também estamos crucificados com Jesus, uma vez que estamos tendo que lidar com nossa própria cruz. E aqui entra uma questão importante: se nem sempre escolhemos qual cruz entrará em nossa vida, sempre podemos escolher como queremos lidar com ela. Um dos malfeitores escolheu revoltar-se e exigir de Jesus uma intervenção divina, que cancelasse sua cruz (cf. Lc 24,39). O outro foi mais humilde e sincero: reconheceu que a sua cruz era consequência de suas atitudes erradas. Quantos de nós precisam passar da atitude do vitimismo para a atitude de responsabilizar-se por suas escolhas e decisões?

            Eis a oração de um condenado que ganhou a absolvição nos últimos instantes da sua vida: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reinado” (Lc 23,42), ao que Jesus lhe respondeu: “Em verdade eu te digo, ainda hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). Pior do que sermos condenados pelos outros, é quando condenamos a nós mesmos; é quando deixamos de ter esperança; é quando decidimos morrer muito antes da hora; é quando nos entregamos ao derrotismo e ao pessimismo. “Não existe mais condenação para aqueles que estão em Jesus Cristo” (Rm 8,1). É importante que todos os condenados do nosso tempo se reconheçam salvos em Jesus Cristo, cujo sangue redentor nos livrou de toda condenação diante de Deus.

            Ouçamos as últimas palavras de Jesus na cruz: “Jesus deu um forte grito: ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’. Dizendo isso, expirou” (Lc 23,46). A questão não é saber quando ou como vamos morrer, mas se vamos morrer com fé, numa entrega confiante às mãos do Pai. Ainda que Jesus tenha sido abandonado por todos, não o foi pelo Pai. É ao Pai que ele se entrega, não à morte. Muitos decidiram se entregar às mãos do desespero, do desencanto e da falta de sentido para a vida. Jesus nos ensina a nos entregar às mãos do Pai, mãos que curam as feridas, que restabelecem o direito e a justiça na terra, mãos que nos retiram da morte e nos levam para a Vida, mãos que nos teceram no seio materno, que nos acompanharam em todos os caminhos da nossa história, que recolheram nossas lágrimas e que agora nos recebem no Paraíso.

 

Venho a ti e sei que não estou mais sozinho. Muitas vozes se elevam para o céu. Venho a ti com aqueles irmãos verdadeiros que comigo dão a ti seus corações. E Tu, que és o Amor, escuta cada prece de dor, de amor. E Tu, que és a paz, dá-nos a esperança em cada momento, Senhor, e abre o Paraíso a nós.

Venho a ti (Gen Rosso).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi