quinta-feira, 26 de setembro de 2019

O VIDRO DA JANELA E O VIDRO DO ESPELHO


Missa do 26º. dom. comum. Palavra de Deus: Amós 6,1a.4-7; 1Timóteo 6,11-16; Lucas 16,19-31.

“O que os olhos não veem, o coração não sente”. Tudo aquilo que vemos nos afeta, seja no sentido positivo, seja no sentido negativo. Então, para não sermos afetados, preferimos não ver. Em um mundo onde há muita injustiça e muito sofrimento, é melhor não ver, para não sofrer. Aliás, para nos ajudar a não ver o que se passa à nossa volta, não existe coisa melhor do que o nosso celular: enquanto ficamos com os olhos “grudados” na sua tela, quem sabe ajudados pelo fone de ouvido que nos impede de ouvir o que se passa à nossa volta, estamos “preservados” de sermos atingidos por qualquer situação que esteja acontecendo ao nosso redor.
Eis o grande pecado do nosso tempo e que está contribuindo para a nossa desumanização: a indiferença. Ela é capaz de criar um abismo entre duas pessoas, embora uma estando perto da outra. É o que vemos no Evangelho: do lado de dentro da casa, um homem rico, vestindo roupas finas e elegantes e fazendo festas esplêndidas todos os dias; à sua porta, do lado de fora, um pobre chamado Lázaro, cheio de feridas, sentado no chão, querendo matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. Entre esses dois homens existe um grande abismo; não somente um abismo social, mas um abismo intencional chamado “indiferença”.    
A indiferença faz com que o rico – e cada um de nós – se desumanize: ele está dentro de casa; poucos metros o separa de Lázaro, mas há um abismo entre eles; não há palavras, não acontece nenhuma forma de comunicação entre eles. Estão muito próximos, só os separa uma frágil porta, mas o rico não “vê” o pobre, não lhe interessa sua pobreza, não o olha, não o escuta... Aquele homem rico nunca viu Lázaro como pessoa; ele o considerava menos que um cachorro. O homem rico deixou de ser pessoa humana. Esse abismo de indiferença existe também em muitas casas, muitas famílias, muitos ambientes de trabalho etc.
Atualmente, estamos evitando de mil formas o contato direto com as pessoas que sofrem. Pouco a pouco, vamo-nos fazendo cada vez mais incapazes para perceber a sua aflição. A presença de uma criança mendiga no nosso caminho incomoda-nos. O encontro com um amigo, doente terminal, perturba-nos. Não sabemos o que fazer nem o que dizer. É melhor tomar distância. Voltar quanto antes às nossas ocupações. Não nos deixarmos afetar. Não nos damos conta de que os abismos que a indiferença constrói entre nós e os outros aqui na terra são transpostos para o céu, mas numa ordem invertida: enquanto Lázaro é consolado no seio de Abraão (imagem simbólica do céu), o rico sofre sede na região dos mortos (imagem simbólica do inferno – cf. Lc 16,23-24).  
Com esta parábola, Jesus quer nos alertar para o fato de que depois da morte não tem como mudar as coisas. O tempo de mudança é o tempo presente, esta vida. Se não decidirmos romper com a distância que a indiferença está criando entre nós e as pessoas que sofrem, essa indiferença nos separará de Deus e nos condenará a uma situação de ausência de alegria e de sentido de vida, chamada de “inferno”. Jesus nos convida a abrir a porta da nossa sensibilidade e nos deixarmos afetar pelo que acontece à nossa volta. É fato que cresce cada vez mais o número de portas que nos impedem ver, portas que nos distanciam da fome, do sofrimento, da pobreza, da nudez que há do outro lado. A grande tragédia está no fato de levantar muros, cercas de proteção, portões eletrônicos, que nos impedem ver os rostos dos outros, que nos isolam dos outros, que nos fecham sobre nós mesmos como se ninguém mais existisse.
Todos nós precisamos ser curados da doença da indiferença, a qual está nos tornando pessoas desumanas. Deus se fez pessoa humana em seu Filho Jesus. Através d’Ele, Deus se fez pés para encontrar o ser humano ferido, olhos para vê-lo, coração para amá-lo, mão para tocá-lo, palavra para comunicar-lhe vida. Nosso coração, tornado cada vez mais frio e insensível, precisa receber um choque positivo, ser impactado pela realidade que nos cerca. É preciso que a realidade nos doa no coração. É preciso que a realidade nos comova, isto é, que faça com que nos movamos na direção daquele que precisa de nós. Como discípulos de Jesus, a nossa vida não pode ser uma cuidadosa fuga do sofrimento alheio, um desviar-se da dor do outro. Pelo contrário, trata-se de sermos uma ponte de solidariedade estendida sobre o abismo da indiferença.
Ao encerrar esta homilia, lembro uma parábola oriental... Conta-se que um jovem muito rico foi conversar com um Mestre e lhe pediu um conselho para orientar sua vida. Este o conduziu até a janela e perguntou-lhe: - O que você vê através dos vidros? - Vejo homens que vão e vêm, e um cego pedindo esmolas na rua. Então o Mestre mostrou-lhe um grande espelho e novamente o interrogou: - Olha neste espelho e dize-me agora o que vês. - Vejo-me a mim mesmo. - E já não vê os outros! Repare que a janela e o espelho são ambos feitos da mesma matéria prima, o vidro. Mas no espelho, porque
há uma fina camada de prata colada ao vidro, você não vê nele mais do que a sua própria pessoa. Você deve se comparar a estas duas espécies de vidro. Quando pobre, você via os outros e tinha compaixão por eles. Depois que se cobriu de prata – isto é, tornou-se rico – você vê apenas a si mesmo. Quando você tiver a coragem de arrancar o revestimento de prata que tapa seus olhos, voltará a enxergar os outros e amá-los...  
            Portanto, Jesus nos convida a retirar a fina camada de prata que se colou ao vidro da nossa consciência, modificando assim a nossa atitude de fechamento e de indiferença diante da existência e do sofrimento dos Lázaros de hoje. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi




sexta-feira, 20 de setembro de 2019

LIBERTOS, NÃO "POSSUÍDOS"

Missa do 25º. dom. comum. Palavra de Deus: Amós 8,4-7; 1Timóteo 2,1-8; Lucas 16,1-13.

As três maiores religiões do mundo atual são o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. As três têm em comum a crença num único Deus. Além delas, existem muitas outras religiões que não daria para nomear aqui. O que importa ressaltar é que, apesar da diversidade religiosa dos nossos tempos atuais, e apesar daqueles que não professam fé alguma, isto é, não praticam nenhuma religião, existe uma “religião” que se impõe sobre todos os habitantes da terra: a religião do Mercado, cujo “deus” é o dinheiro. Esse ídolo que tomou o lugar de Deus na consciência e nas atitudes de muitas pessoas é visto como tão essencial que tê-lo significa de certa forma estar “garantido”; não tê-lo significa estar literalmente “perdido”.
No entanto, a Sagrada Escritura nos alerta para as consequências desastrosas do culto ao “deus dinheiro”. Vamos lembrar aqui apenas um desses alertas: “Os que desejam enriquecer, caem em tentação e armadilhas, em muitos desejos loucos e perniciosos que afundam os homens na perdição e na ruína. A raiz de todos os males é a cobiça do dinheiro. Por se terem deixado levar por ela, muitos se extraviaram da fé e se atormentam a si mesmos com muitos sofrimentos” (1Tm 6,9-10). Eis, portanto, algumas consequências na vida de pessoas que têm uma dependência excessiva e doentia em relação aos bens materiais: ansiedade, insônia, depressão, suicídio, separação de casais, terceirização dos filhos, distanciamento dos pais em relação aos filhos, perda de valores como honestidade, fidelidade; inversão de valores (o bem aparente torna-se mais importante que o bem real), corrupção; enfim, a consciência é posta à venda, ou mesmo jogada no lixo.
Jesus quer que nos identifiquemos com o “administrador” que aparece na parábola que acaba de nos contar. Cada um de nós é administrador da própria vida, e embora vivamos num mundo marcado por um forte individualismo, Jesus nos convida a administrar os bens materiais no sentido de ajudar a diminuir as injustiças sociais. Para Jesus, tudo aquilo que acumulamos é fruto de injustiça. Quando entramos na dinâmica de ganhar sempre mais e de viver sempre melhor, o dinheiro termina substituindo Deus em nossa vida e exigindo de nós uma submissão absoluta. Com isso, deixamos de lado a solidariedade e passamos a dar prioridade aos nossos interesses particulares.
Mas, de onde vem essa “necessidade” de possuir mais? Ela nasce da nossa insegurança: queremos nos garantir na vida; queremos assegurar o nosso futuro. Mas cometemos um grave erro: quanto mais coisas possuímos, tanto mais cresce nossa preocupação. Na verdade, nós acabamos nos tornando pessoas “possuídas” pelo medo de perder o que ganhamos ou conquistamos. Então, para nos livrar dessa “possessão”, Jesus nos coloca diante de palavras que nos remetem para o Juízo Final: “Presta contas da tua administração” (Lc 16,2). “Todos nós compareceremos perante o tribunal de Deus” (Rm 14,10), quando, então, Ele nos perguntará como administramos a nossa vida terrena. Portanto, o destino do nosso futuro começa a ser construído agora, na maneira como estamos administrando a nossa vida presente.
Embora muitos desejem garantir seu futuro por meio do acúmulo de bens materiais, Jesus entende o futuro como sendo a nossa salvação. Se é verdade que nenhum homem pode salvar-se a si mesmo, pode, certamente, fazer algo em vista da sua salvação. É no momento presente que precisamos procurar pela nossa salvação futura, quando a morte nos fará passar da administração dos que Deus nos concedeu temporariamente para o bem verdadeiro, que é a Vida eterna, Vida que aparece simbolizada na parábola por uma casa. Quando tivermos deixado nossa casa terrena, necessitaremos ser acolhidos na casa celeste que, segundo Jesus, é a casa daquelas pessoas que nós ajudamos na terra.
Jesus quer que sejamos “espertos” em relação à nossa salvação. Neste sentido, ele nos faz uma provocação: “os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz” (Lc 16,8). Para ganhar dinheiro, algumas pessoas não medem esforços e sacrifícios, enquanto que nós, cristãos, para ganharmos a Vida eterna, parecemos não ter a mesma disposição em nos esforçar e nos sacrificar... Além disso, uma vez que todos nós vivemos num mundo onde o dinheiro é o motor principal da sobrevivência, Jesus nos lança um desafio: “Usem o dinheiro injusto para fazer amigos, pois, quando ele acabar, eles receberão vocês nas moradas eternas” (Lc 16,9). Segundo Jesus, o dinheiro é “injusto” não quando conseguido de maneira ilícita, mas simplesmente por se tratar de dinheiro! Portanto, até para as pessoas honestas o dinheiro é um ídolo: ele prende o homem a seus bens materiais e alimenta seu egoísmo ou seu instinto de dominação. A única maneira de nos livrarmos do perigo das riquezas em relação à salvação é destiná-las às obras de caridade, socorrendo os necessitados.  
Eis, portanto, o alerta de Jesus para nós, que vivemos neste mundo profundamente materialista: todo dinheiro é “injusto” porque convida à posse e ao acúmulo, contrários à vontade do Pai. Assim como acumular nos torna inimigos de Deus e dos irmãos, a redistribuição nos faz amigos de Deus e dos irmãos. Toda pessoa que se dispõe a seguir Jesus não pode fazer qualquer coisa com o dinheiro: há um modo de ganhar dinheiro, de gastá-lo e de desfrutá-lo que é injusto, porque esquece os mais pobres! Lembremos, enfim, dessa verdade anunciada por São Basílio de Cesareia há séculos atrás: “Se cada um tirasse para si o que lhe é necessário e entregasse aos indigentes o que sobra, ninguém seria rico, ninguém seria pobre”.

ORAÇÃO:

Deus Pai, teu Filho Jesus nos ensinou a confiar em Ti, pois o pai sabe aquilo que o filho precisa. Vivendo neste mundo materialista, competitivo, desigual e injusto, quero te pedir principalmente duas coisas: afasta de mim a falsidade e a mentira; não te peço nem riqueza, nem pobreza, mas apenas que me concedas o meu pão de cada dia. Que eu não me torne uma pessoa materialmente tão rica que ache que não precisa de Ti; ao mesmo tempo, que eu não me torne alguém tão pobre e miserável que precise roubar para sobreviver.

Entrego em tuas mãos minhas necessidades materiais, emocionais e espirituais. Livra meu coração do apego exagerado e doentio ao dinheiro. Quero ser como teu Filho Jesus: uma pessoa atenta às necessidades dos pobres, dedicada a fazer a minha parte para que este mundo se torne menos desigual e menos injusto. Enfim, que eu jamais descuide da minha salvação, administrando minha breve vida neste mundo com o meu coração e minha consciência diariamente voltados para Ti e para a tua vontade. Amém!


Pe. Paulo Cezar Mazzi

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

QUANDO UM FILHO SE SUICIDA



            Até onde pode ir o controle dos pais sobre a vida dos filhos, isto é, sobre as escolhas que o filho decide fazer e as decisões que decide tomar? Não há dúvida de que pais que amam seus filhos fazem tudo – dão o sangue, a própria vida – pelo bem dos filhos. No entanto, os filhos aos poucos vão crescendo, ganhando certa independência e exigindo certa autonomia para fazerem suas próprias escolhas e tomarem suas próprias decisões. Nesse caso, o máximo que os pais podem fazer é confiar na educação que deram aos filhos e nos valores que lhes transmitiram, valores que formaram suas consciências e que os ajudarão na vida a escolher o bem e rejeitar o mal.
            A partir da adolescência, as mãos dos pais vão se sentindo pequenas demais para “conter” nelas o filho que foi gerado. São mãos que certamente estarão estendidas para ajudar o filho sempre que ele precisar, mas essas mesmas mãos não têm como funcionar na vida do filho como se fossem uma “redoma de vidro” capaz de reguardá-lo da vida e do mundo, mesmo porque o filho se sentiria sufocado dentro dessa redoma. Portanto, os pais precisam aceitar o fato de que naturalmente o filho saia de suas mãos, e comece a dar passos no caminho da sua própria vida, na construção de si mesmo como pessoa.
            Quando ocorre a tragédia do suicídio, inúmeras perguntam enchem a cabeça e o coração dos pais. Eles poderiam ter evitado que o filho se suicidasse? Eles falharam em alguma coisa em relação a ele? Na verdade, as perguntas que surgem e não param de gritar dentro do coração dos pais são uma tentativa de encontrar uma explicação para o suicídio do filho, uma explicação às vezes muito perigosa e destrutiva, porque pode encher o coração dos pais do veneno de uma culpa e de uma responsabilidade que eles não têm perante as escolhas e as decisões do filho.
            Nenhum filho é resultado daquilo que recebe dos pais, seja positivamente, seja negativamente. Todo filho é resultado daquilo que escolhe fazer com aquilo que recebe dos pais. Isso fica claro quando, de dois filhos, um cai nas drogas, o outro não; um vai para a criminalidade, o outro não; um suporta levar pancadas e não se quebra facilmente, o outro se quebra diante de qualquer abalo que sofre... Cada filho tem sua própria personalidade, sua liberdade e sua consciência...
            Por falar em consciência, eis aí um lugar onde ninguém pode entrar: somente a própria pessoa. Por mais que os pais orientem seus filhos, há em cada filho um espaço sagrado chamado consciência. Ali nós estamos sozinhos, mas ali também ouvimos duas vozes falarem conosco: a voz de Deus e a voz do mau espírito. Enquanto a voz de Deus sempre vai nos sugerir atitudes que favoreçam a vida para nós e para o mundo à nossa volta, a voz do maligno vai nos sugerir o contrário. A decisão final sempre será nossa porque, como afirmou Victor Frankl, “tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto uma coisa: a liberdade de escolher sua atitude em qualquer circunstância da vida”.
            No entanto, existe algo que pode comprometer a liberdade da pessoa: seu estado de saúde mental. O suicídio não é simplesmente um problema de falta de fé, de falta de Deus, mas um problema de saúde mental. Quando uma pessoa está com algum comprometimento na sua saúde mental, sua liberdade de escolha fica afetada, e ela não tem como ser totalmente responsabilizada por seus atos. Como alguém disse: a pessoa que se suicida quer acabar com a dor psicológica que está sentindo, não com a própria vida.
            Pais que tiveram que lidar com essa tragédia do suicídio de um filho precisam lembrar-se dessa palavra de Jesus: As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem. Eu dou-lhes a vida eterna e elas jamais se perderão. E ninguém vai arrancá-las de minha mão. Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai” (Jo 10,27-29). As mãos dos pais nunca terão poder suficiente para impedir um filho de se suicidar, mas os pais cristãos podem confiar a vida de cada filho às mãos de Deus e de seu Filho Jesus, pois ninguém, nem mesmo o mal do suicídio, pode arrancar o filho dessas mãos, mãos que foram crucificadas, mãos que experimentaram a morte, mãos que ressuscitaram, mãos que têm consigo as chaves da morte, mãos às quais cada um de nós é chamado a se confiar diariamente.

Pe. Paulo Cezar Mazzi


quinta-feira, 12 de setembro de 2019

FRANCIS



Por um desígnio que não entendemos, Deus Pai permitiu que você fosse associado literalmente à morte de Seu Filho Jesus. Assim como o Servo Sofredor, você foi fisicamente “esmagado pelo sofrimento” (Is 53,10). Assim como os grãos de trigo são triturados, assim seu corpo o foi, por meio dessa doença que atinge inúmeras pessoas, e você foi oferecido na patena de um leito de hospital como sacrifício vivo. E nós, assim como Jó (40,4), colocamos a mão sobre a boca porque ainda não sabemos verbalizar o significado daquilo que Deus está nos falando por meio da sua Páscoa.
Somos imensamente gratos a Deus pelo dom da sua existência e da sua vocação. O valor de uma vida não está ligado à duração dela, mas àquilo que dela se faz, e você escolheu fazer-se discípulo daquele que comungou profundamente com as dores da humanidade. Somos imensamente gratos pelo seu sorriso, pela sua humildade e simplicidade, pelo seu amor e respeito ao povo de Deus; sobretudo, somos gratos pelo seu testemunho de como lidou com a sua cruz.
Victor Frankl, depois de ficar um bom tempo desmaiado pela fome, pelo frio e pelos ferimentos causados pela violência que sofreu por parte dos soldados nazistas, recobrou a consciência e, ao sentir dor, pensou: “Se estou sentindo dor é porque ainda estou vivo. Se ainda estou vivo, posso continuar lutando pela vida”. Você agora não sente mais dor; suas lágrimas foram enxugadas e seu corpo foi retirado da cruz. Sua luta pela vida terrena terminou. Você pode agora ouvir essas palavras de Jesus: “Muito bem, servo bom e fiel! (...) Vem alegrar-te com o teu Senhor!” (Mt 25,21).   

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

PARA DEUS, NENHUM FILHO SEU ESTÁ PERDIDO PARA SEMPRE


Missa do 24º. Dom. comum. Palavra de Deus: Êxodo 32,7-11.13-14; 1Timóteo 1,12-17; Lucas 15,1-32

            Um pastor tinha cem ovelhas, e uma se perdeu. Uma mulher tinha dez moedas, e uma se perdeu. Um pai tinha dois filhos, e um se perdeu. Quantas pessoas, aos nossos olhos, estão perdidas? Algumas, perdidas nas drogas, no alcoolismo; outras perdidas no erro, na mentira, na corrupção. Além disso, quantas coisas importantes se perderam dentro de nós? Alguns não conseguem encontrar mais dentro de si a fé, a esperança, a alegria, o sentido da vida, o caminho de volta para Deus... Quantas pessoas estão perdidas dentro de si mesmas, sentindo-se como que dentro de um labirinto, sem esperança de encontrar a saída do mesmo?
            As parábolas da ovelha perdida, da moeda perdida e do filho perdido são um resumo da história da salvação: justamente porque ninguém de nós está garantido de não se perder em algum momento da vida, Deus Pai enviou seu Filho Jesus ao mundo com a missão de “procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). Porque o coração do Pai e o coração do Filho são movidos pela misericórdia, eles são corações que ouvem o grito dos perdidos, e não descansam até que aquilo que estava morto volte a viver e aquilo que estava perdido seja reencontrado. Portanto, se é verdade que ninguém está garantido de não se perder, também é verdade que tudo aquilo que está perdido pode ser reencontrado.
“Se um de vós tem cem ovelhas e perde uma, não deixa as noventa e nove no deserto, e vai atrás daquela que se perdeu, até encontrá-la?” (Lc 15,4). Neste mundo massificado em que vivemos, o individualismo, a correria do dia a dia e o excesso de informações podem nos tornar insensíveis à ovelha que se perdeu ou que está se perdendo. Quantas pessoas próximas de nós estão se isolando e dando sinais de que não estão bem, mas nós não temos tempo para percebê-las, para nos aproximar e ouvi-las... E, de repente, acontece o suicídio... Muitos pais passam a maior parte do tempo trabalhando fora para dar o melhor para seus filhos, e não se dão conta de que estão perdendo seus filhos para inúmeros lobos que falam com eles via Internet...
Mas como é possível que um pastor se dê conta de que, num rebanho de cem ovelhas, somente uma esteja ausente?! Esta “uma” ovelha fala da nossa unicidade: no coração de Deus, cada ser humano é único e não tem como ser substituído por outro. Todo ser humano é irrepetível e insubstituível na face da terra. Se hoje inúmeras pessoas sentem que não farão falta se deixarem de existir, precisamos ajudá-las a compreender o valor único que são; precisamos lembrá-las de que cada ser humano é uma palavra única, uma mensagem única de Deus, a ser comunicada ao mundo com a própria existência (cf. Papa Francisco, GE n.24).  
“E se uma mulher tem dez moedas de prata e perde uma, não acende uma lâmpada, varre a casa e a procura cuidadosamente, até encontrá-la?” (Lc 15,8). Dentro da nossa casa interior há coisas que se perderam, seja porque não cuidamos delas, seja porque deixamos que o acúmulo, a desordem, a bagunça interior estejam nos impedindo de achá-las. Quantos de nós estamos precisando acender a luz da nossa consciência, varrer a nossa casa interior e procurar cuidadosamente onde foi que colocamos a fé, a esperança, a fidelidade, a honestidade, o perdão, o diálogo, o sentido da vida etc... Quantos de nós estamos procurando fora o que está dentro; estamos procurando longe o que está perto?
Por fim, o filho mais novo disse ao pai: “Pai, dá-me a parte da herança que me cabe” (Lc 15,12). Se os filhos só repartem a herança após a morte dos pais, para aquele filho seu pai havia morrido. Para quantas pessoas Deus morreu, porque as decepcionou, porque permitiu perdas na vida delas? Ou então, quantas vezes nós já dissemos: “Tal pessoa para mim morreu!”? O personagem central da parábola que Jesus conta não é o filho mais novo, nem o mais velho, mas o pai – retrato vivo de Deus! Quando o filho volta para casa, depois de ter perdido tudo e se tornado um farrapo humano, “seu pai o avistou, quando ainda estava longe, e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos” (Lc 15,20). E como se isso não bastasse, aquele pai “disse aos empregados: ‘(...) Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’” (Lc 15,22.24).
O apóstolo Paulo disse: “Segura e digna de ser acolhida por todos é esta palavra: Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores. E eu sou o primeiro deles!” (1Tm 1,15). Portanto, há um abraço à espera de cada um de nós: o abraço do Pai! Ele sabe onde estamos feridos; sabe onde nos perdemos: “Tu conheces cada um dos passos errados que dei na vida e recolhes cada uma das minhas lágrimas no teu coração” (citação livre do Sl 56,9). Ele enxerga o que está perdido dentro de nós. Cabe a cada um de nós termos a mesma atitude do filho mais novo: “vou me levantar e voltar para meu pai” (citação livre de Lc 15,18). Ao mesmo tempo, se ontem o Pai precisou dos braços, das mãos, dos pés e do coração do Filho Jesus “para procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10), hoje Ele precisa dos nossos! Hoje Deus Pai pergunta à consciência de cada um de nós o que perguntou à consciência de Caim: “Onde está teu irmão?” (Gn 4,9). ‘Onde está aquele que se perdeu? Trabalhe junto comigo para que juntos possamos trazer de volta à vida aquele que morreu e reencontrar aquele que se perdeu!’. Toda Eucaristia é um apelo de Deus, para que reconheçamos que aquele que se perdeu é nosso irmão, e a nossa alegria só será completa quando aquele que está morto voltar a viver, quando aquele que está perdido for encontrado. Por isso, ao comungar hoje, é bom que nos perguntemos: A quem eu devo procurar? Quem precisa ser encontrado por mim? Para quem eu devo ser nesta semana sacramento da misericórdia do Pai?

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sábado, 7 de setembro de 2019

SER UM AUTÊNTICO DISCÍPULO DE JESUS


Missa do 23º. Dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 9,13-18; Filêmon 9b-10.12-17; Lucas 14,25-33

“Este homem começou a construir e não capaz de acabar!” (Lc 14,30). Qual é a construção mais importante a se fazer na vida? A construção de uma casa? De uma profissão? De um relacionamento/casamento? De uma família? De um patrimônio?  A primeira construção a se fazer na vida é a construção de nós mesmos como pessoas. Ora, se temos que nos construir como pessoas, isso significa que não nascemos prontos. Ainda que tenhamos herdado algo dos nossos pais e do ambiente em que nascemos e crescemos, é tarefa nossa nos construir como pessoas, uma tarefa que não podemos transferir para os outros. Construir-se como pessoa é uma responsabilidade que a vida delega a cada um de nós.
            “Este homem começou a construir e não capaz de acabar!” (Lc 14,30). Jesus dirigiu essas palavras às grandes multidões que o seguiam (cf. Lc 14,25). Portanto, o que Jesus está nos dizendo é que muitos começaram a segui-lo com entusiasmo, mas não foram capazes de chegar até o fim. Abandonaram a fé pelo meio do caminho. Por qual motivo? Porque não calcularam “os gastos” dessa construção; porque esperavam que ela fosse menos custosa, que exigisse menos renúncia e sacrifício. Além disso, existe também o fato de que muitas escolhas feitas e muitas decisões tomadas o foram na base da emoção, não da reflexão, e emoção passa. Sendo assim, muitos iniciaram a construção de um relacionamento, de uma família, de uma profissão, de um trabalho voluntário, de uma espiritualidade, de sua própria santificação, mas não foram capazes de chegar até o fim porque não souberam lidar com a cruz que nada mais é do que a comprovação do quanto levamos a sério as nossas escolhas.
Às multidões que seguiam Jesus ontem, e a qualquer pessoa que se propõe a segui-lo hoje, Ele diz: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega... até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo... Qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26-27.33). Da mesma forma que Jesus não se ilude com as multidões, porque Ele quer qualidade e não quantidade, Ele também não nos quer iludidos em relação a Ele. Toda pessoa que se dispõe a segui-Lo e a ser fiel ao Evangelho vai entrar em conflito: ora com as pessoas da sua própria família, ora com os contra-valores do mundo, ora até mesmo com alguns membros da Igreja, cuja necessidade de agradar os outros se torna mais importante do que ser fiel à justiça e à verdade.
A vida cristã não é e não tem que ser um constante martírio, mas o Evangelho de hoje quer nos tornar conscientes de que Jesus comporta enfrentar lutas e ter que lidar com adversários. Além disso, o Evangelho deixa claro que Jesus não aceita ser um remendo em nossa vida, muito menos um detalhe ou um enfeite. Por isso, nossa adesão a Ele tem que ser radical, profunda, inteira. “Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). Muitos iniciaram um caminho de fé com Jesus, mas depois desistiram, porque não aceitaram caminhar atrás de Jesus; queriam caminhar “na frente”, escolhendo por si mesmos o melhor caminho, o mais tranquilo, o menos sofrido. Como disse Pe. Zezinho: “Não querem Jesus, querem a parte suave de Jesus. Não querem o Cristo, querem a parte agradável do Cristo. Não querem a cruz, querem a parte menos dolorosa da cruz... Não querem a Bíblia, querem parte dela: a que prova que estão certos. Assim agem muitos cristãos. Assim talvez nós ajamos” (Cristo aos pedaços).
Jesus convida cada um de nós a fazer um caminho com Ele, o caminho da construção da nossa fé, da nossa cura, da nossa libertação, da nossa salvação, da nossa transformação... Se o alicerce dessa construção for o nosso ego, a busca do nosso constante bem estar, ela está fadada ao fracasso, porque acabaremos rejeitando tudo aquilo que exige de nós renúncia ou sacrifício, isto é, tudo aquilo que vai contra o nosso bem estar. O cristão só se mostra autêntico, verdadeiro, diante de uma situação de cruz, quando ele tem que escolher entre o seu bem estar, os seus interesses, e os interesses do Reino de Deus. Toda pessoa que quiser viver autenticamente segundo a verdade do Evangelho, terá que enfrentar determinados sofrimentos.  
“Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). Assim escreveu Paul Eudokimov, um teólogo ortodoxo: “Os cristãos fizeram todo o possível para esterilizar o Evangelho; dir-se-ia que o submergiram num líquido neutralizante. Tudo o que impressiona, supera ou inverte é amortecido. Assim, uma vez convertida em algo inofensivo, esta religião nivelada, prudente e razoável, o ser humano não pode senão vomitá-la” (O amor louco de Deus). Também como disse Marcel More, “os cristãos encontraram uma maneira de sentar-se, não se sabe como, de modo confortável na cruz”. E quando na Igreja já não brilha mais a vida de Jesus, dificilmente se constata alguma diferença com o mundo. A Igreja “se converte em espelho fiel do mundo”, que ela reconhece como “carne da sua carne”. É em relação a esse perigo que Jesus quer nos alertar.
Carregar a cruz significa aceitar-se, acolher-se como se é, com suas fraquezas e contradições. Carregar a cruz significa assumir as consequências da nossa construção diária como pessoas. Carregar a cruz significa amar até o fim, ser fiel, sustentar até o fim a construção que iniciamos. Numa palavra, carregar a cruz e caminhar atrás de Jesus significa ir até o fim... “Não, não pares. É graça divina começar bem. Graça maior, persistir na caminhada certa, manter o ritmo... Mas graça das graças é não desistir. Podendo ou não podendo, caindo, embora, aos pedaços, chegar até o fim...” (Até o fim, poema de Dom Hélder Câmara).

 Pe. Paulo Cezar Mazzi