sábado, 31 de agosto de 2019

ENXERGAR A VIDA PARA ALÉM DO DESESPERO DO SUICÍDIO



“Agora basta, Senhor! Retira-me a vida, pois não sou melhor que meus pais” (1Reis 19,4). “Pereça o dia que me viu nascer, a noite que disse: ‘Um menino foi concebido! (...) Por que não morri ao deixar o ventre materno, ou pereci ao sair do ventre de minha mãe? (...) Porque foi dada a luz a quem o trabalho oprime, e a vida a quem a amargura aflige, a quem anseia pela morte que não vem, (...) a quem se alegraria em frente do túmulo, e exultaria ao encontrar a sepultura?’” (Jó 3,3.11.20.22). “Maldito o dia em que nasci! O dia em que minha mãe me gerou não seja abençoado!” (Jeremias 20,14).
Essas palavras nos colocam diante do profeta Elias, de Jó e do profeta Jeremias, três homens deprimidos, profundamente machucados no corpo e na alma, três figuras bíblicas que nos falam indiretamente do suicídio, isto é, do desejo de morrer, de não suportar mais viver. Nenhum deles se suicidou, mas os três nos revelam o quanto às vezes a vida se torna insuportável e, embora em todos nós exista um forte instinto de sobrevivência, às vezes o nosso emocional se desestrutura e adoece a tal ponto que passamos a procurar a morte como sinônimo de descanso, de alívio, de saída ou de libertação, em relação a um sofrimento psíquico que não suportamos mais enfrentar.
Não há explicações simples para o suicídio e as “razões” para tal atitude extrema são inúmeras. O que se sabe é que a pessoa que chega ao ponto de tirar sua própria vida não consegue mais distinguir-se do problema que está enfrentando, de modo que ela conclui que acabar consigo mesma é acabar com o problema. Ora, não existe vida sem problemas. Nenhum ser humano atravessa esta vida terrena sem ter que lidar com dor, tragédia, perda, sofrimento, frustração etc., e se não quisermos nos tornar pessoas suicidas, precisamos ter muito claro que uma coisa é eu ter um enorme problema, outra coisa é eu me ver como um enorme problema: todos nós temos problemas a serem resolvidos, mas ninguém de nós deve se ver como um problema a ser eliminado.
Victor Frankl, um judeu psiquiatra, foi levado pelos nazistas para um campo de concentração, assim como inúmeros outros judeus. Devido ao sofrimento humanamente insuportável nos campos de concentração, algumas pessoas ficavam loucas, enquanto outras se suicidavam. Mas Frankl começou a se perguntar: o que faz com que algumas pessoas aqui, apesar de todo o sofrimento a que são expostas, não enlouqueçam e não se matem? Aos poucos, ele foi descobrindo que essas pessoas tinham uma razão para se manterem vivas: elas tinham esperança de sobreviver a tudo aquilo e reencontrar alguém da família que não estava no campo de concentração. Em outras palavras, quando a nossa fé não se alimenta de esperança, nem mesmo ela suporta lidar com o sofrimento e corre o risco de perder o sentido.
Victor Frankl percebeu algo importantíssimo: nós nem sempre escolhemos que tipo de sofrimento entrará em nossa vida, mas sempre podemos escolher a maneira de lidar com ele. Em outras palavras, as circunstâncias externas podem ser extremamente desfavoráveis para mim: doença, desemprego, fim de um relacionamento, perda de alguém querido, violência, guerra, fome etc., mas nada fora de mim pode anular a minha liberdade de escolha e a minha responsabilidade perante a vida. Sempre caberá a mim escolher entre assumir o papel de vítima dos acontecimentos ou o papel de sujeito da minha história, enxergando naquele problema uma oportunidade para eu crescer, amadurecer, superar meus próprios limites e alargar a minha compreensão a respeito de mim mesmo e da própria vida.   
Jesus foi profetizado por Isaías não só como um “homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento” (Isaías 53,3), mas mesmo como um homem “esmagado pelo sofrimento” (Isaías 53,10). E como foi que ele lidou com tudo isso? Ele disse: “Minha alma está agora conturbada. Que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome” (João 12,27-28). Olhando a maneira como Jesus lidou com o sofrimento, entendemos que ninguém nasce para sofrer, mas sofrer faz parte da vida de qualquer ser vivo. Ninguém nasce para viver a vida toda frustrado, mas enfrentar momentos ou situações de frustração é algo que acontecerá na vida de qualquer pessoa, independente da sua condição social ou da sua religião. Por isso, quando estamos diante de um problema ou desafio a ser enfrentado, a melhor coisa a fazer é dizer como Jesus: “foi precisamente para esta hora que eu vim”. Em outras palavras, trata-se de olhar a vida nos olhos e enfrentar aquilo que cabe a nós enfrentar. O sentido da vida não está em não sofrer, mas em dar sentido ao sofrimento que cabe somente a nós enfrentar. Se para uma pessoa que não crê, a vida só tem sentido se for plena de felicidade e isenta de qualquer tipo de sofrimento, para nós que cremos sempre será possível encontrar um sentido para nos manter vivos, apesar de todo e qualquer sofrimento que tenhamos que enfrentar.

Termino esta reflexão com algumas frases de Victor Frankl sobre as quais nos fará muito bem refletir:  
1. “Tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto uma coisa: a liberdade de escolher sua atitude em qualquer circunstância da vida”.

2. “Quando a circunstância é boa, devemos desfrutá-la; quando não é favorável devemos transformá-la e quando não pode ser transformada, devemos transformar a nós mesmos”.

3. “Nada proporciona melhor capacidade de superação e resistência aos problemas e dificuldades em geral do que a consciência de ter uma missão a cumprir na vida”.

4. “Você não é produto das circunstâncias, você é produto das suas decisões”.

5. “Cada vez mais, as pessoas têm os meios para viver, mas não têm uma razão pela qual viver”.

Pe. Paulo Cezar Mazzi


quinta-feira, 29 de agosto de 2019

FAZER A DIFERENÇA NO MUNDO DA INDIFERENÇA

Missa do 22º. dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,19-21.30-31; Hebreus 12,18-19.22-24a; Lucas 14,1.7-14.

            Comecemos nossa reflexão sobre a Palavra de hoje acolhendo um conselho do apóstolo Pedro: “Revistam-se todos de humildade em suas relações mútuas, porque Deus resiste aos soberbos, mas dá sua graça aos humildes” (1Pd 5,5). Por que “Deus resiste aos soberbos”? Porque num copo que já está cheio não é possível colocar mais nada. Pessoas arrogantes, orgulhosas e cheias de si não têm espaço para acolher Deus e sua Palavra. Sendo assim, Deus “concede sua graça aos humildes” porque no coração deles há espaço para Deus habitar; na consciência deles, há espaço para Deus falar. Enquanto os soberbos acham que “já sabem”, os humildes estão abertos a aprender; enquanto os soberbos presumem que “já chegaram”, os humildes têm consciência de que estão fazendo um caminho; enfim, enquanto os soberbos prestam culto a si mesmos, os humildes prestam culto a Deus.
            O primeiro ensinamento de Jesus no Evangelho de hoje é a respeito da HUMILDADE. Tendo sido convidado para uma refeição na casa de um dos chefes dos fariseus, “Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares” (Lc 14,7). Então nos deu este conselho: “Quando você for convidado, vá sentar-se no último lugar... Porque quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado” (Lc 14,10-11). A palavra “humildade” vem de “húmus”, terra, o que significa que a pessoa humilde tem os pés no chão. Ela conhece as suas raízes; tem consciência das suas forças e das suas fraquezas, da sua luz e da sua sombra. Por ter aprendido a amar aquilo que ela é, não se enche de angústia e não desperdiça seu tempo comparando-se com os outros. Ela não vive numa busca doentia de ser reconhecida e valorizada pelos outros, pois sabe da sua importância e do seu valor para Deus.
            Enquanto a humildade nos cura e nos liberta, a soberba e a arrogância nos adoecem e nos aprisionam. Inúmeras pessoas, por não terem resolvido dentro de si seu sentimento de inferioridade, gastam sua energia emocional, seu tempo e seu dinheiro tentando projetar-se acima dos outros. Afastando-se das suas próprias raízes, elas escolhem viver como folhas secas que vivem flutuando no vento da superficialidade. Mascaram sua insegurança sendo autoritárias; mascaram sua tristeza sustentando uma imagem superficial de felicidade; seu coração desconhece a serenidade, por estar sempre tomado pela ameaça de perder “o primeiro lugar”, ou de não alcançá-lo. “Para o mal do orgulhoso não existe remédio, pois uma planta de pecado está enraizada nele, e ele não compreende” (Eclo 3,30). “Pecado” significa “passar ao lado do alvo, estar fora de seu eixo”. O orgulhoso, soberbo ou arrogante, vive na ilusão em relação a si mesmo.  
            Eis, portanto, o conselho do Eclesiástico: “Na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade, e assim encontrarás graça diante do Senhor. Muitos são altaneiros e ilustres, mas é aos humildes que ele revela seus mistérios” (Eclo 3,20). Em 2013, o cantor Elton John disse a respeito do Papa Francisco: “O Papa Francisco é para a Igreja Católica a melhor notícia dos últimos vários séculos. Este homem, sozinho, foi capaz de reaproximar as pessoas dos ensinamentos de Cristo. Os não católicos, como eu, se levantam para aplaudir de pé a humildade de cada um dos seus gestos. Francisco é um milagre da humildade na era da vaidade”. Seja você também “um milagre da humildade na era da vaidade”. Lembre-se: “A humildade não te faz melhor que ninguém, mas te faz diferente de muitos”; “Ser humilde não é ser menos que alguém. É saber que não somos mais que ninguém” (frases anônimas).
            Depois de nos convidar à humildade, Jesus nos dá uma sugestão: “Quando você der uma festa, convide os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. Então você será feliz! Porque eles não podem lhe retribuir. Você receberá a recompensa na ressurreição dos justos” (Lc 14,13-14). Enquanto a maioria dos relacionamentos hoje é marcada pelo interesse, pela expectativa da retribuição, Jesus nos aponta o caminho da GRATUIDADE, ensinando-nos que “há mais felicidade em dar do que em receber” (At 20,35). Ele próprio escolheu colocar-se junto com aos que não tinham lugar nos banquetes do mundo, porque Deus, apesar de amar a todos e não excluir ninguém, Ele tem um amor especial por aqueles que não têm lugar neste mundo.
Se você olhar com mais atenção ao seu redor, perceberá que há inúmeras pessoas que nunca são convidadas, que “não contam”; pessoas não somente excluídas do Mercado, mas às vezes até mesmo ignoradas pelas igrejas. Diante dessa “globalização da indiferença”, o Papa Francisco nos alerta: “A cultura do bem estar nos faz insensíveis ao grito dos demais”. O deus do nosso mundo é o Mercado, para o qual não interessam as necessidades dos pobres, mas unicamente a ganância dos mais ricos. No entanto, diz a música: “No banquete da festa de uns poucos, só rico se sentou. Nosso Deus fica ao lado dos pobres, colhendo o que sobrou”.
Exemplo concreto – No dia 16 de fevereiro deste ano, Ana Paula Meriguete e Victor Ribeiro, de Guarapari (ES), se casaram. Cinco dias após o matrimônio, eles ofereceram um jantar festivo a 160 pessoas carentes, entre crianças e seus familiares. A inspiração veio durante uma missa em que se entoou “O meu Reino tem muito a dizer“, de J. Thomaz Filho e Frei Fabreti. Um trecho do canto, inspirado no Evangelho de hoje, recorda: “Se uma ceia quiseres propor não convide amigos, irmãos e outros mais. Sai à rua a procura de quem não puder recompensa te dar, que o teu gesto lembrado será por Deus”. Se no começo o casal encontrou resistência de amigos que achavam a ideia “uma loucura”, cada vez mais pessoas se prontificaram a ajudá-los à medida que o tempo passava e eles se sentiam inspirados pela iniciativa. Victor comenta: “A gente começou a somar forças. Amigos levaram a música ao vivo, uma empresa emprestou as cadeiras, outra emprestou as toalhas, a decoração levou voluntários. Conseguimos pessoas para ajudar a preparar o jantar. No final, conseguimos algo muito melhor do que esperávamos”.
           
            ORAÇÃO: Cristo Jesus, nas festas e nos banquetes deste mundo não há lugar para inúmeras pessoas. Ensina-me a fazer como o Senhor fez: escolher colocar-me junto dessas pessoas; desintoxicar-me do veneno da soberba e da arrogância; tornar-me uma pessoa verdadeiramente humilde. Livra-me da angústia de não ser quem eu gostaria de ser. Concede-me a alegria de reconhecer, acolher e amar a pessoa que eu sou, com sua força e sua fraqueza, com sua luz e sua sombra. Que a minha relação com as pessoas não seja movida pelos interesses do meu egoísmo, mas por uma sincera gratuidade, procurando levar um pouco de felicidade àqueles que quase nunca a experimentam. Que os meus olhos enxerguem aqueles que o mundo ignora; que os meus braços abracem aqueles que o mundo rejeita; que os meus pés me aproximem daqueles em relação aos quais o mundo se mantém distante; que a minha breve vida neste mundo faça a diferença na vida daqueles que são diariamente tratados com indiferença. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi


quinta-feira, 22 de agosto de 2019

DO QUÊ OU DE QUEM VOCÊ PRECISA SER SALVO(A)?

Missa do 21º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 66,18-21; Hebreus 12,5-7.11-13; Lucas 13,22-30

            No mundo em que vivemos, só os mais fortes vencem; só os mais preparados conquistam os melhores lugares; só alguns “privilegiados” têm acesso àquilo que a ciência, a medicina ou a tecnologia têm para oferecer. A imensa grande maioria fica para trás: os mais fracos, os “incapazes”, os “preguiçosos”, os “não-privilegiados” etc. Essa estranha regra “quem pode mais, chora menos” parece não apenas ser aceita por Deus, mas inclusive incentivada por seu Filho Jesus no Evangelho que ouvimos: “Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita. Porque eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão” (Lc 13,24).
            Essas palavras de Jesus constituem a resposta a uma pergunta: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?” (Lc 13,23). Primeiro, é preciso perguntar: quem de nós se preocupa verdadeiramente com a sua salvação? Segundo: em relação ao quê precisamos ser salvos? A primeira coisa que fala em nós não é a alma, mas o corpo; não é a vida eterna, mas a vida presente. Sendo assim, nossos esforços geralmente estão concentrados em nossa sobrevivência, o que faz com que procuremos nos salvar da violência, do desemprego, das doenças etc. Além disso, procuramos nos salvar da solidão, do sentimento ruim de sermos ignorados pelo mundo – as redes sociais que o digam! – das pessoas que nos fazem mal ou que consideramos serem nossas inimigas etc.
            Ao mesmo tempo em que buscar salvar-se é um instinto de sobrevivência em cada um de nós, precisamos nos perguntar: em relação ao quê eu preciso ser salvo? Eu preciso ser salvo apenas dos outros ou também de mim mesmo? Não é da nossa própria covardia e do nosso “corpo mole” que precisamos ser salvos? Não é das nossas desculpas esfarrapadas e da nossa mania de nos fazer de vítimas que precisamos ser salvos? Não é dos nossos vícios e dos nossos pecados que precisamos ser salvos? Não é da nossa dependência afetiva e do nosso sentimento de inferioridade, os quais nos tornam escravos da aprovação e do reconhecimento dos outros, que precisamos ser salvos?       
Jesus não responde se são muitos ou se não poucos os que se salvam. Sua preocupação é provocar em nós um outro questionamento: eu realmente me esforço para entrar pela porta estreita? Em outras palavras, existe seriedade em mim quando eu reclamo das coisas que me fazem sofrer, mas eu não mudo minhas atitudes, esperando que as coisas mudem por si mesmas? Eu aceito a verdade de que posso não ser responsável pelo sofrimento que atravessa a minha vida, mas sou totalmente responsável pela maneira como decido lidar com ele?
Se pudéssemos resumir o Evangelho de hoje numa única frase, seria esta: não existe salvação sem esforço, sem sofrimento. A porta da salvação é estreita, sim, mas ainda está aberta, e por ela entrarão somente aqueles que se desacomodam, que não fazem corpo mole, que não se comportam na vida como crianças mimadas que exigem que tudo lhes seja dado na mão ou que exigem serem carregadas no colo. Além disso, Jesus deixa claro que existe um grande risco quando falamos de salvação: a presunção. Ela aparece nessas palavras: “Nós comemos e bebemos diante de ti, e tu ensinaste em nossas praças!” (Lc 13,26). As igrejas estão cheias de cristãos presunçosos, que se consideram salvos, assim como o nosso país está cheio de pessoas que se consideram “pessoas de bem”, pessoas que, exatamente como o governador do Rio de Janeiro e como o Presidente da República, “vibraram de alegria” quando um atirador de elite matou “aquele vagabundo” (fala própria do Presidente) que sequestrou um ônibus na última terça-feira, dia 20.
Jesus declara para todos os cristãos presunçosos, para todas as pessoas convencidas de serem “gente de bem”, isto é, de não serem como “aquele vagabundo”: “Não sei de onde sois. Afastai-vos de mim todos vós que praticais a injustiça!” (Lc 13,27). Afastem-se de mim todos vocês que, embora se digam cristãos, “vibram de alegria” com o assassinato de um ser humano; afastem-se de mim todos vocês que chamam jovens desempregados de “vagabundos”, mas criam seus próprios filhos como tais, como pessoas que, além de serem literalmente vagabundas, são arrogantes e prepotentes, julgando-se a salvo das problemáticas sociais do País.      
            Se esse alerta de Jesus a respeito do perigo da presunção nos parece excessivamente duro, lembremos das palavras da carta aos hebreus: “Meu filho, não desprezes a educação do Senhor, não te desanimes quando ele te repreende; pois o Senhor corrige a quem ele ama e castiga a quem aceita como filho” (Hb 12,6). Se a tendência dos pais atuais é a de tirar todas as pedras do caminho da vida dos filhos, Deus entende que é importante que Seus filhos aprendam a caminhar entre as pedras. Se muitos pais hoje têm como objetivo facilitar a vida dos filhos, Deus permite que certas dificuldades surjam na vida dos Seus filhos para torná-los fortes, maduros, capazes de suportar adversidades. Além disso, só a experiência da dor faz com que sejamos pessoas humildes, com os pés no chão, humanas, capazes de nos compadecer dos que sofrem.
            Se cresce no meio de nós o número de pessoas que desistem da fé, da esperança e da bondade, pessoas que abandonam os valores do Evangelho e passam a acreditar na força da violência cega e injusta para colocar “ordem na casa”; se nós mesmos às vezes nos perguntamos se vale a pena continuar a seguir Jesus e a trabalhar pela salvação nossa e da humanidade, guardemos e meditemos no coração essas palavras: “‘firmai as mãos cansadas e os joelhos enfraquecidos; acertai os passos dos vossos pés’, para que não se extravie o que é manco, mas antes seja curado” (Hb 12,13).

            ORAÇÃO:
                        Senhor Jesus Cristo, tu és a porta estreita da salvação. Teu Evangelho não é uma droga que nos mantém anestesiados diante da dor que afeta a humanidade, mas um alerta para despertar a nossa consciência e nos convidar a cuidar da salvação nossa, das outras pessoas e do nosso Planeta. Torna-nos conscientes em relação ao quê devemos ser salvos. Salva-nos da ironia, do cinismo e da indiferença em relação ao desmatamento da Amazônia. Salva-nos de nos tornarmos desumanos, cristãos adeptos da violência e da injustiça contra aqueles que a desigualdade social do nosso País empurra para a marginalidade. Concede-nos um coração que aceite ser corrigido pelo Pai, um coração fortalecido na fé, na esperança e no amor, e que os nossos passos sejam reconduzidos no caminho da salvação. Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

TUDO O QUE DEUS RECOLHE NA TERRA, TRANSFORMA NO CÉU

Missa da Assunção de Nossa Senhora. Palavra de Deus: Apocalipse 11,19a; 12,1-6a.10ab; 1Coríntios 15,20-26.28; Lucas 1,39-56

A liturgia de hoje nos coloca diante do dogma da Assunção de Nossa Senhora. Dogma não é uma afirmação bíblica, mas uma afirmação da Igreja com base em princípios bíblicos. Ao afirmar o dogma da Assunção de Nossa Senhora, nossa Igreja crê que Maria foi elevada em corpo e alma ao céu após a sua morte, não tendo o seu corpo sido corrompido, como acontece com o nosso, após a morte. Essa declaração não se baseia nos méritos de Maria, mas no fato de o corpo dela ter sido o “sacrário” que gerou Jesus Cristo para o mundo, um corpo que possibilitou a Encarnação. Ora, aquilo que gera o Sagrado torna-se também sagrado, e o sagrado pertence a Deus e não à terra.
            Enquanto “ascensão” significa subir por conta própria, pelos seus esforços ou méritos, “assunção” significa ser elevado, ser levantado. Portanto, “assunção” aponta para a ação de Deus em nossa vida, para a Sua intervenção na história de todo aquele que n’Ele crê. A nossa fé nunca é um subir até Deus pelo nosso próprio esforço, mas é sempre um proclamar a intervenção desse mesmo Deus em nossa história, que desce até nós e nos eleva até Ele; que “derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes” (Lc 1,52). Maria, aquela que disse “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38), nos convida a nos deixarmos elevar e conduzir até Deus pela força da Sua graça.  
            A elevação de Maria em corpo e alma ao céu nos ajuda a repensar a relação com o nosso corpo. Enquanto 820 milhões de pessoas passam fome no mundo atual, segundo dados da Onu, inúmeras outras recorrem a cirurgias plásticas por estarem insatisfeitas com o próprio corpo. A estética tomou o lugar da ética: as pessoas se sacrificam para modificar alguns traços do corpo, mas não se dispõem a modificar alguns aspectos do seu caráter e do seu comportamento. Ora, lembrar que o nosso corpo um dia será decomposto na terra pode nos ajudar a sermos mais humildes, a rever os nossos valores e a nos convencer de que aquilo que nos eleva junto a Deus não é a nossa estética, mas a ética de um coração que se preocupa com quem sofre e que faz algo de concreto para amenizar esse sofrimento. “Quando descobrimos que absolutamente nada é definitivo, inclusive a vida, compreendemos a inutilidade do orgulho, a tolice das disputas, a estupidez da ganância e a incoerência das tolas mágoas” (Alexsandra Zulpo).
Olhemos para a cena de Apocalipse 12. O dragão que pára diante da mulher, que está para dar à luz, pronto para devorar o seu Filho logo que nasça (cf. Ap 12,4) é uma realidade concreta em nossos dias, pois a vida hoje é ameaçada de muitas formas. Mulheres que defendem o direito ao aborto, por exemplo, têm como lema “meu corpo, minhas regras”, um lema que ignora a verdade de que o filho que está sendo gerado não é um órgão que pertence ao corpo da mulher, mas uma vida, uma pessoa, que depende absolutamente da mãe para viver. Outro problema gravíssimo é o feminicídio. A cada duas horas, uma mulher é morta no Brasil (Em 2018, 1.173 mulheres foram assassinadas por seus “companheiros” em nosso País). Esse “dragão” do feminicídio nasce a partir da incapacidade de muitos homens em lidar com a perda, com o fim do relacionamento, com o “não”. Nesta semana, tivemos em nosso país uma nova manifestação desse dragão por meio da lei da liberdade econômica, a qual “abre espaço para que a folga semanal do trabalhador seja em outros dias da semana, desde que o empregado folgue um em cada quatro domingos” (Agência Brasil EBC), o que acaba levando à fragilização do convívio entre pais e filhos ao menos uma vez por semana.
Se nós, cristãos, não queremos deixar de lutar pela vida e pela esperança, precisamos nos lembrar do que disse Santa Madre Teresa de Calcutá: “Aquilo que você levou anos para construir pode ser destruído de uma hora para outra. Construa assim mesmo... O bem que você faz pode não ser o suficiente. Faça o bem assim mesmo”. Nós não podemos nos resignar diante dos dragões do nosso tempo. Por mais que tenhamos a sensação de que muitas das nossas lutas e dos nossos esforços para defender a vida e a esperança em nosso mundo pareçam não sobreviver ao dragão do mal, o Apocalipse revela que Deus combate a nosso favor: Ele recolhe o Filho junto de Si e leva a Mulher para um lugar seguro, onde esteja a salvo do dragão. Esta cena não se refere apenas a Maria, que gera Jesus, o qual é resgatado da morte pelo Pai por meio da ressurreição e levado para junto de Si no momento da Ascensão. Esta cena se refere a cada um de nós: aquilo que geramos com tanto custo, em meio a tantas lágrimas, e que está ameaçado pelo dragão da violência, da doença, do sofrimento, do absurdo e da morte, será recolhido por Deus. E tudo aquilo que Deus recolhe Ele também transforma.
Assim como o Pai recolheu o corpo de seu Filho morto na cruz e o transformou num corpo glorificado na ressurreição, assim como Ele recolheu Maria em corpo e alma ao céu, segundo o dogma da Assunção que celebramos hoje, assim Deus recolherá as nossas lutas, os nossos sonhos, as nossas lágrimas, e os transformará numa vida nova, como diz a Escritura: “Cristo ressuscitou dos mortos como primícias (primeiros frutos de uma colheita) dos que morreram... Em Cristo todos reviverão” (1Cor 15,20.22). É por isso que o salmista proclama: “Já contaste os meus passos errantes, recolhe minhas lágrimas em teu odre!” (Sl 56,9), o que significa que cada lágrima do justo terá sua recompensa no céu (cf. Is 25,8; Ap 7,17).  
            Não há dúvida de que a luta contra o Dragão do mal é sentida de forma mais intensa na vida de pessoas que procuram andar no caminho de Deus e manter a fé em Jesus Cristo. Contudo, devemos confiar na vitória final de Cristo: todos os inimigos da vida e da esperança serão postos debaixo dos pés de Jesus, sendo que “o último inimigo a ser destruído é a morte. Com efeito, Deus pôs tudo debaixo de seus pés” (1Cor 15,26-27). Que à semelhança de Nossa Senhora cada um de nós, no seio da sociedade humana, possa proclamar a força do braço do nosso Deus, que recolhe o suor da nossa luta, do nosso esforço, e as lágrimas da nossa dor para tornar o mundo melhor, e transforma tudo isso segundo o Seu desígnio de vida e de salvação para a humanidade.
            Neste terceiro domingo de agosto, mês vocacional, celebramos o dia do(a)s Religioso(a)s, das pessoas que não se casaram por causa do Reino dos céus (cf. Mt 19,12), homens e mulheres cuja afetividade não foi direcionada para alguém em particular, mas para amar a todos, especialmente os que não se sentem ou de fato não são amados em nosso mundo. Assim como Maria, elevada em corpo e alma aos céus, o(a)s religioso(a)s são um sinal a nos lembrar que o desejo último de cada um de nós é nos unir definitivamente a Deus na sua Glória, como Maria está. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi


quinta-feira, 8 de agosto de 2019

A IMPORTÂNCIA DA ESPERANÇA

Missa do 19º. dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 18,6-9; Hebreus 11,1-2.8-19; Lucas 12,32-48.

            Prestemos atenção a esses textos bíblicos: “A noite da libertação... foi esperada por teu povo, como salvação para os justos e como perdição para os inimigos” (Sb 18,6.7). “A fé é um modo de já possuir o que ainda se espera” (Hb 11,1). “Foi pela fé que Abraão... residiu como estrangeiro na terra prometida, morando em tendas... pois esperava a cidade alicerçada que tem Deus mesmo por arquiteto e construtor” (Hb 11,8.9.10). “Sejam como pessoas que estão esperando seu senhor voltar (...), para lhe abrirem, imediatamente, a porta, logo que ele chegar e bater... Porque o Filho do Homem vai chegar na hora em que vocês menos o esperarem” (Lc 12,36.40).
            Todos eles têm uma palavra em comum, ou melhor, uma atitude em comum: a atitude da espera, a atitude de quem vive a partir de uma força interior chamada “esperança”. O contrário da esperança é o desespero, é a atitude de uma pessoa que desistiu de esperar; ela não espera por nenhuma mudança, por nenhuma transformação; sua vida se fechou no problema ou no sofrimento que ela está enfrentando e ela não crê nem espera pela possibilidade de qualquer saída daquela situação. Quem desiste de esperar, desiste de viver, desiste de sonhar, de desejar, de se abrir para algo novo que possa surgir em sua vida.
            A Palavra de Deus quer hoje despertar a nossa esperança, quer abrir os nossos olhos para que possamos nos dar conta de que a vida não é só aquilo que estamos vivenciando neste momento. Assim como nos campos de concentração só não enlouqueciam e não se suicidavam as pessoas que tinham esperança de sobreviver a todo aquele sofrimento, porque esperavam reencontrar alguém que estava fora dali, assim a esperança é absolutamente necessária para não morrermos antes da hora, para não nos entregarmos ao pessimismo ou ao desespero, diante dos sofrimentos ou das dificuldades que estamos enfrentando. Somente quem tem esperança no amanhã suporta sofrer hoje; somente quem tem esperança de mudar suporta o sofrimento de enfrentar seus fantasmas numa terapia; somente quem tem esperança de cura suporta o sofrimento de um tratamento médico. Assim como Abraão, somente quem espera pela cidade futura, construída por Deus, suporta morar em tendas neste mundo, isto é, suporta a insegurança e a transitoriedade de tudo aquilo que é terreno.
            Mas a esperança nunca é uma espera passiva. Nada muda por si mesmo; as coisas começam a mudar quando nós, movidos pela esperança, nos desacomodamos, nos mexemos e nos dispomos a enfrentar o que precisa ser enfrentado, para que a nossa esperança nos leva aonde desejamos chegar. Neste sentido, o Evangelho é muito claro: o bom servo não espera pelo seu senhor comendo, bebendo e embriagando-se, mas trabalhando corretamente, isto é, fazendo aquilo que lhe compete fazer. Uma pessoa que diz ter esperança em mudar sua vida, mas não toma nenhuma atitude que possibilite tal mudança ou, pior ainda, tem atitudes contrárias à mudança que deseja, é uma sabotadora da sua própria esperança; é alguém que nem tem como ser levado a sério.
            Justamente neste dia em que comemoramos o dia dos pais, a carta aos Hebreus nos fala da fé e da esperança de Abraão, uma fé e uma esperança que provocaram nele uma miraculosa transformação: “de um só homem, já marcado pela morte, nasceu a multidão ‘comparável às estrelas do céu e inumerável como a areia das praias do mar’” (Hb 11,12). Abraão não apenas teve fé em Deus, mas também precisou aprender a esperar em Deus; ele esperou 25 anos pelo cumprimento da promessa de ter um filho! “Ele, esperando contra toda esperança (humana), teve fé e assim tornou-se pai de muitos povos” (Rm 4,18). Esperar contra toda esperança humana significa que nossa esperança não se apoia em nossa inteligência, ou em nossa força, ou em nossos recursos, mas em Alguém que é maior do que nós e que pode mudar nossa situação! Portanto, nós, cristãos, não temos esperança em algo, mas em Alguém; nós não esperamos por algum acontecimento, mas por uma Pessoa: esperamos por Jesus.
            Como está o coração do pai? É um coração carregado de esperança ou povoado pelo desespero? Assim como Abraão, o pai é “um homem marcado pela morte”, um homem que tem seus medos e suas fraquezas, seus erros e seus pecados. Sobretudo no mundo de hoje, o pai é um homem fragilizado, agredido pela violência, exposto a situações injustas, seduzido pela corrupção, sugado pelo consumismo etc. Se existem pais que encontraram em Deus seu suporte, seu fundamento, há inúmeros outros que acabaram se escorando na bebida, nas drogas e num estilo de vida destrutivo, de modo a se ausentarem da família e da vida dos filhos. Contudo, a figura do servo, no Evangelho, nos fala da importância do pai como cuidador dos bens do Senhor. Hoje não se pode mais pensar no pai como única força de sustento de uma casa, mas sua presença, sem dúvida, faz muita diferença no seio de uma família e na estrutura emocional dos filhos.    
Que você, pai, à semelhança de Abraão, de disponha a caminhar com Deus, mesmo quando não entende para onde Ele está conduzindo sua vida. Que você aprenda a crer e a esperar sempre em Deus, pois “Quem confiou no Senhor e ficou desiludido? Ou quem perseverou no seu temor e foi abandonado? Ou quem clamou por ele e ele o desprezou?” (Eclo 2,10), pergunta o autor do Eclesiástico. E ainda: “Os que esperam em ti não ficam envergonhados, ficam envergonhados os que negam por um nada a sua fé” (Sl 25,3), declara o salmista. Que Jesus, ao voltar, encontre você, pai, vivendo fielmente sua vocação de cuidador daqueles que a vida lhe confiou. Enfim, que você se deixe cuidar pelo Pai do Céu, que o colocou na terra para ser a própria presença d’Ele junto da sua família e que, apesar das suas limitações humanas, escolheu sua figura de pai para expressar o amor, a proteção e o cuidado d’Ele para com cada ser humano.  

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

PARA ALÉM DA VAIDADE


Missa do 18º. dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiastes 1,2; 2,21-23; Colossenses 3,1-5.9-11; Lucas 12,13-21 
           
Um homem constrói um “império”, se torna rico e famoso, mas quando está no auge da carreira, descobre que tem um câncer e, seis meses depois, está morto. Todo o seu dinheiro, toda a sua riqueza não foi capaz de curar seu câncer e impedir que ele morresse... O mundo moderno está cheio de histórias de pessoas que pareciam inabaláveis, inatingíveis, pessoas que estavam no centro do palco da fama e do sucesso, e que, de uma hora para outra, desapareceram não só desse palco, mas também da face da terra. Elas não existem mais.
Como constata o autor bíblico: “Tudo é vaidade... Um homem que trabalhou com inteligência, competência e sucesso, vê-se obrigado a deixar tudo em herança a outro que em nada colaborou. Também isso é vaidade e grande desgraça” (Ecl 1,2; 2,21). Embora nós vivamos na era da aparência, onde a imagem é tudo, onde a vaidade é fundamental, a Sagrada Escritura nos faz descer das nuvens, colocar os pés no chão e nos dar conta de que construir a vida sobre o frágil alicerce da vaidade é tornar-se uma pessoa sem consistência interna. Nós estamos rodeados de pessoas assim: esteticamente muito belas, fisicamente “saradas”, exibindo músculos e corpos bem delineados, mas totalmente inconsistentes no que diz respeito ao próprio emocional. São pessoas que se quebram diante da menor pancada que levam da vida; são pedras de gelo que derretem rapidamente quando expostas ao calor. Constantemente preocupadas com a aparência, elas não se dão ao trabalho de cuidar da própria essência. Elas “aparentam” ser felizes, mas “toda a sua vida é sofrimento, sua ocupação, um tormento. Nem mesmo de noite repousa o seu coração” (Ecl 2,23).
O Evangelho de hoje nos traz uma cena muito atual: “Alguém, do meio da multidão, disse a Jesus: ‘Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo’” (Lc 12,13). Quantos pais ou avós idosos estão abandonados ou esquecidos dentro da própria casa ou num asilo, sem receberem visitas frequentes dos filhos e dos netos? No entanto, assim que a pessoa falece, esses mesmos filhos e netos começam a disputar a “herança” da pessoa que faleceu, como abutres disputam os restos mortais de um animal... Jesus se recusa a assumir o papel de mediador de conflitos a respeito de herança, mas aproveita para fazer um alerta a todos nós: “Atenção! Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens” (Lc 12,15).
Talvez muitos não se vejam, ou nem mesmo sejam, pessoas gananciosas. No entanto, sabemos perfeitamente o quanto o dinheiro exerce um fascínio sobre todo ser humano. Sobretudo no mundo atual, ter dinheiro significa ter a sobrevivência garantida. Jesus não está questionando nossa necessidade de sobrevivência; o que ele está questionando é o fato de entrarmos na dinâmica de que “o que é demais nunca é o bastante”. E aí, tudo é sacrificado em vista de ganharmos mais dinheiro: família, casamento, filhos, saúde, espiritualidade etc. Nós nos tornamos como o homem da parábola contada por Jesus: aumentamos cada vez mais nossos celeiros, para guardar tudo o que podemos comprar com nosso dinheiro, e não nos damos conta de que, quando menos esperarmos, seremos recolhidos deste mundo e nada levaremos conosco. Aliás, a única coisa que poderemos “levar” conosco é aquilo que fizemos para ajudar os outros, para tornar o mundo menos desigual, menos injusto, menos desumano.    
Dois homens não-cristãos entenderam perfeitamente o ensinamento de Jesus no Evangelho de hoje. Um foi Ghandi, quando sabiamente afirmou: “Na terra há o suficiente para satisfazer as necessidades de todos, mas não para satisfazer a ganância de alguns”. Apesar de inúmeros apelos da comunidade científica, alguns governos continuam sendo indiferentes à questão ambiental e permitindo a exploração gananciosa, e não racional, de recursos naturais. Neste sentido, o Brasil tem dados sérios e graves passos para trás, a ponto de que o desmatamento na Amazônia aumentou 88% desde que Bolsonaro assumiu a presidência (Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Dalai Lama, por sua vez, afirmou de maneira brilhante: “O que mais me surpreende é o homem, pois perde a saúde para juntar dinheiro, depois perde o dinheiro para recuperar a saúde. Vive pensando ansiosamente no futuro, de tal forma que acaba por não viver nem o presente, nem o futuro. Vive como se nunca fosse morrer, e morre como se nunca tivesse vivido”. Portanto, se quisermos evitar esse erro, precisamos fazer uma sincera oração ao Senhor, como fez o salmista: “Ensinai-nos a contar os nossos dias, e dai ao nosso coração sabedoria! (...) Saciai-nos de manhã com vosso amor, e exultaremos de alegria todo o dia! Que a bondade do Senhor e nosso Deus repouse sobre nós e nos conduza! Tornai fecundo, ó Senhor, nosso trabalho” (Sl 90,12.14.16-17).
Uma palavra final. Quando eu e os seminaristas de nossa Diocese visitamos a Unidade de Emergência do HC de Ribeirão Preto, em junho deste ano, conhecemos uma enfermeira que trabalha na ala de cuidados paliativos, exercendo o seu “sacerdócio” juntos os pacientes com câncer, em estágio terminal. Dando testemunho do seu trabalho como cristã e católica, ela nos disse que muitas pessoas se preocupam em preparar-se para o futuro, mas se esquecem de se preparar para morrer, sendo que a única coisa que temos como certa no futuro é que um dia iremos morrer. Quando temos a coragem de aceitar a realidade da morte, mudamos nossa maneira de entender a vida e de lidar com os bens materiais; deixamos de nos iludir com toda a vaidade deste mundo e passamos a valorizar aquilo que verdadeiramente importa, porque nos torna mais humanos e nos ajuda a humanizar o nosso mundo.   

Pe. Paulo Cezar Mazzi

PRECISA-SE DE JOVENS QUE DESEJEM SE TORNAR PADRES... COM UM MÍNIMO DE DECÊNCIA E COERÊNCIA



Numa época de corrupção religiosa, onde os filhos do sacerdote Eli “eram homens vagabundos” (1Sm 2,12), que “se deitavam com as mulheres que permaneciam à entrada da tenda da reunião” (1Sm 2,23), Deus chamou Samuel para ser profeta em Israel (cf. 1Sm 3,1-21). Numa época em que muitos pastores de Israel, ao invés de apascentarem o povo que lhes foi confiado, tornaram-se “pastores de si mesmos”, não mais se dedicando em restaurar o vigor das ovelhas abatidas, curar as que estavam doentes e ir em busca das que se extraviaram, além de dominar sobre elas com dureza e violência (cf. Ez 34,2-4), Deus fez uma promessa a Israel: “Eu vos darei pastores segundo meu coração, que vos apascentarão com conhecimento e prudência” (Jr 3,15).
  Numa época em que alguns líderes da nossa Igreja levavam uma vida moral promíscua, distante dos pobres, indiferentes aos sofredores e corrompidos pelo dinheiro, Jesus, na sua imagem enquanto Crucificado, disse ao jovem Francisco, de Assis: “Reconstrua a minha Igreja, que está em ruínas”. Igualmente hoje, numa época em que chegamos ao absurdo de, em algumas paróquias, as ovelhas terem que se defender dos seus próprios pastores, que se comportam em relação a elas como lobos, maltratando-as, provocando divisões, usando sua pseudo autoridade espiritual para ameaçá-las, além de roubarem suas paróquias, Jesus procura por jovens que não tenham sua consciência corrompida, jovens que sejam capazes de compaixão e desejem cuidar de Suas ovelhas, tanto daquelas que não têm pastor, como daquelas que estão sendo machucadas emocional e espiritualmente por maus pastores (cf. Mt 9,36-38).
Numa época como a nossa, em que alguns padres e bispos têm como objetivo principal seu próprio bem estar, gastando tempo e dinheiro com a ornamentação das suas igrejas e com seus paramentos, enquanto se mantêm distantes dos pobres, dos desempregados e dos que sofrem, Jesus procura por jovens que aceitem o desafio de dedicar sua própria vida como médicos de corpos e de almas; jovens que estendam suas mãos para serem ungidas pelo Espírito Santo e, desse modo, se tornem capazes de tocar nas feridas das pessoas; jovens que, a exemplo do próprio Jesus, sejam homens misericordiosos, cujo coração é sempre guiado pela miséria dos que sofrem.
Numa época como a nossa, onde não poucos “ministros de Deus” não têm a coragem de enfrentar e resolver seus próprios conflitos sexuais e, com isso, acabam por envolver pessoas nas suas próprias feridas, causando traumas, provocando escândalos, levando à perda da fé e manchando a imagem da nossa Igreja, Jesus procura por jovens que aceitem o desafio de fazer um caminho sofrido, mas libertador, de autoconhecimento, ordenando seus afetos e fazendo da sua própria sexualidade uma oferenda ao Pai a serviço da salvação da humanidade, como o próprio Jesus fez, ao dizer: “Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, formaste-me um corpo... Por isso eu digo: Eis-me aqui... Eu vim, ó Deus, para fazer tua vontade” (Hb 10,5.7).
            Enfim, numa época em que bispos da nossa Igreja agem como muitos pais hoje em dia que, por medo de perderem o afeto de seus filhos, não os corrigem com firmeza, mesmo sabendo dos estragos que provocam em si mesmos e nos outros; numa época em que bispos não têm pulso firme para interditar aqueles que precisam ser interditados (cf. Mt 18,15-17), uma vez que estão destruindo a fé de muitos paroquianos; numa época em que bispos, por serem fracos, acabam por alimentar nos maus padres a sensação de impunidade – bispos que agem como médicos que, por terem pena de seus pacientes com câncer, lhes receitam “melhoral infantil” ao invés de quimioterapia –, Jesus procura por jovens que aceitem se tornar verdadeiros profetas, homens de pulso firme, a exemplo de Samuel, a exemplo de Paulo de Tarso, a exemplo de Francisco de Assis, a exemplo do Papa Francisco, para devolverem à Igreja credibilidade e decência.
           
Pe. Paulo Cezar Mazzi