quinta-feira, 27 de março de 2014

VOCÊ NÃO CONSEGUE OU NÃO QUER VER?

Missa do 4º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: 1Samuel 16,1b.6-7.10-13a; Efésios 5,8-14; João 9,1-41.

            Alguns aqui não conseguem enxergar uma saída para a sua vida, uma solução para os seus problemas. Alguns aqui não conseguem mais enxergar a bondade, a beleza, o valor da pessoa com quem convivem há anos. Alguns aqui não aceitam enxergar que estão errados, que estão num caminho de autodestruição. Alguns aqui não admitem enxergar o mal que estão fazendo a si mesmos e aos outros. Alguns aqui só enxergam seus próprios interesses. Alguns aqui têm os olhos fixos numa tela de celular, de tablet ou de computador, mas não voltam o seu olhar para os que estão ao seu lado, precisando da sua ajuda ou simplesmente da sua convivência.
           Existe um não poder ver, mas existe também um não querer ver. Às vezes dizemos que não conseguimos ver/entender o que se passa conosco, mas também pode ser verdade que não queiramos ver/entender o que está acontecendo conosco. Ver, enxergar, também significa tornar-se consciente, e quem se torna consciente não tem desculpas para continuar a viver como vítima, nem de si mesmo, nem dos outros. Será que você quer realmente ver, ou prefere continuar vivendo como cego?
         A nossa cegueira pode ser voluntária, intencional: nós nos acostumamos a viver nas trevas. Não queremos, de fato, a luz; não queremos nos curar da nossa cegueira porque ela nos oferece algumas vantagens, aquilo que a psicologia chama de “ganhos secundários”. Vivendo como cego, não preciso tomar decisões: os outros decidem por mim; não preciso lutar pela vida: posso viver das esmolas que os outros me dão; não preciso assumir nenhuma responsabilidade: posso me esconder dos desafios da vida atrás das mesmas desculpas de sempre.
          Jesus disse: “Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo” (Jo 9,5). ‘Enquanto estou na sua vida, Eu sou a luz da sua vida. Mas a questão é: você quer a minha luz, ou prefere continuar a viver escondido e acomodado nas suas próprias trevas?’ O filho da luz vive segundo a bondade, a justiça e a verdade (cf. Ef 5,8-9). No entanto, muitos acham mais vantagem viver segundo a maldade, a injustiça e a mentira, esquecendo-se de que “tudo o que é condenável torna-se manifesto pela luz” (Ef 5,13). Cedo ou tarde, a luz da verdade desmascara as mentiras da nossa falsa cegueira e nos faz ver o que precisamos ver.
         Este é o convite de Deus para cada um de nós, hoje: “Desperta, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá” (Ef 5,14). Desperte! Pare de depender da visão dos outros. Aprenda a enxergar com seus próprios olhos. Não aceite mais ser guiado(a) na vida por pessoas erradas. Lembre-se de que “se um cego conduz outro cego, ambos acabarão caindo num buraco” (Mt 15,14). Como é que um viciado em droga pode ajudar alguém que está querendo sair das drogas? Como é que uma pessoa que vive praticando adultério pode aconselhar positivamente alguém com problemas no seu relacionamento conjugal? Quantos “conselhos” e quantas “ajudas” erradas você recebe de pessoas “cegas”, que todos os dias dão suas opiniões – consideradas “espetaculares” – na mídia?   
           Todos nós passamos por momentos em que não vemos, momentos em que precisamos que alguém nos ajude a enxergar melhor o que está acontecendo conosco. Mas é preciso procurar ajuda com pessoas que tenham o discernimento de Deus, como diz a Palavra: “O homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração” (1Sm 16,7), pessoas que nos ajudem a ver a vida segundo os valores de Deus. Precisamos pedir que o próprio Senhor nos faça ver aquilo que precisamos ver. As primeiras palavras que Deus pronunciou na Escritura são: “Que exista a luz” (Gn 1,3). Você pode pedir que o Senhor pronuncie essas mesmas palavras onde quer que haja escuridão em sua vida.
            No final do Evangelho, Jesus declara: “Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não veem vejam e os que veem se tornem cegos” (Jo 9,39). E, diante dessa pergunta dos fariseus “Porventura, também nós somos cegos?” (Jo 9,40), Jesus respondeu: “Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas, como dizeis ‘Nós vemos’, o vosso pecado permanece” (Jo 9,41). Julga-me, Senhor, segundo a verdade da tua Palavra. Ilumina-me com a luz do teu Evangelho. Faz-me reconhecer em quais situações da minha vida eu me faço de cego, para não assumir minhas reais responsabilidades. Não quero passar minha vida me escondendo atrás de falsas desculpas. Tira o véu dos meus olhos, Senhor Jesus, para que eu não me torne escravo do meu erro, do meu pecado. Unge os meus olhos, também os olhos da minha alma e do meu coração, com a Verdade do teu Espírito, para que eu possa ver segundo Deus. Amém!  

                                          Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 20 de março de 2014

DESOBSTRUIR A FONTE

Missa do 3º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Êxodo 17,3-7; Romanos 5,1-2.5-8; João 4,5-42.

            Todos nós temos sede, e a nossa sede não é somente de água. Alguns têm sede de justiça, de dignidade e de paz; outros têm sede de afeto, de amor e de perdão; alguns têm sede da verdade e de liberdade; outros têm sede de uma chance, de uma oportunidade... Mais do que tudo, o ser humano tem sede de Deus: “Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo” (Sl 42,3). “Minha alma tem sede de ti, meu corpo te deseja com ardor, como terra árida, esgotada, sem água” (Sl 63,2).
            Algumas vezes, a sede é um apelo do Espírito Santo em nós, para que sejamos mais profundos, para que busquemos a verdade. Outras vezes, a sede é uma denúncia do mesmo Espírito, para que reconheçamos que abandonamos Aquele que é a única fonte de água viva e construímos para nós cisternas rachadas, que não conseguem conter água (cf. Jr 2,13-14). Mas pode ser ainda que estejamos com sede porque descuidamos da nossa fonte interior e ela secou: secou em nós o amor, a compreensão, o diálogo; secou em nós a fé, a esperança, a alegria de viver e de trabalhar pelo Evangelho.
            O descuido com a nossa fonte interior pode fazer com que ela se torne seca, árida e dura como uma rocha. É possível que o coração de muitos de nós esteja assim. Mas Deus disse a Moisés: “Eu estarei lá, (...) sobre o rochedo... Ferirás a pedra e dela sairá água para o povo beber” (Ex 17,6). Quando nos tornamos secos, áridos e endurecidos por dentro, precisamos ser “feridos”, sacudidos, tocados firmemente pela Palavra de Deus, para que a nossa fonte interior seja desobstruída. Você já parou para analisar o que pode estar obstruindo a sua fonte interior?   
            A sede indica também o nosso esgotamento. Precisamos nos reabastecer. A questão é: de que forma você se reabastece? De qual poço você tem bebido? Onde você procura saciar a sua sede? Você tem bebido uma água que não te sacia? A água que você bebe é suja, contaminada? Jesus havia dito à samaritana: “Quem beber da água que eu lhe der, esse nunca mais terá sede. E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna” (Jo 4,14). Quando ela, então lhe pediu: “Senhor, dá-me dessa água...” (Jo 4,15), Jesus lhe respondeu: “Vai chamar teu marido e volta aqui” (Jo 4,16). E a mulher reconheceu diante de Jesus que o homem com quem vivia não era o seu marido.   
            Assim como essa samaritana, nós queremos encontrar, sem muito trabalho, uma água que sacie rapidamente a nossa sede; queremos que Deus nos dê respostas para as nossas perguntas, remédios para as nossas dores, cura para as nossas doenças, libertação para os nossos problemas. Mas quem de nós está disposto a corrigir aquilo que na sua vida está errado, em desacordo com a Palavra de Deus, em oposição à Sua verdade? Quem de nós tem coragem de reconhecer que a sua cisterna está rachada, que precisamos abandoná-la e nos voltar de verdade para o Deus vivo, o único que é Fonte de Água Viva, o único capaz de saciar a nossa sede mais profunda?   
            A falta de chuva que atingiu o Sul e o Sudeste, neste início de ano, é consequência do desmatamento da Amazônia. Estão previstas consequências graves para nós. Há um receio quanto ao racionamento de água, mas quem toma a atitude de parar de desperdiçar água? Há um olhar para o céu e pedir chuva, mas quem toma a atitude de plantar uma árvore? Há uma preocupação quanto ao risco de um “apagão”, mas quem toma a atitude de economizar energia? Enquanto não mudarmos nossas atitudes de esgotamento dos recursos da natureza, vamos sofrer cada vez mais os seus efeitos.
            A água da nossa fonte interior precisa ser descontaminada do veneno do nosso egoísmo. A nossa consciência precisa ser sacudida pela verdade do Evangelho, como aconteceu com a samaritana, que disse: “Venham ver um homem que me disse tudo o que eu fiz” (Jo 4,29), o que, traduzido para o nosso contexto, poderia significar: “Venham ver um homem que me disse o que eu precisava escutar, que me fez reconhecer minhas atitudes erradas e me convenceu de que, ou eu mudo, ou a minha fonte interior secará de vez”.     
        O testemunho daquela mulher fez com que muitos samaritanos abraçassem a fé em Jesus, de modo que eles mesmos lhe disseram: “Já não cremos por causa das tuas palavras, pois nós mesmos ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o salvador do mundo” (Jo 4,42). Deixemos com que do nosso interior jorre o testemunho do Evangelho para saciar a sede que as pessoas que convivem conosco têm do Deus vivo e da vida eterna. Desobstruamos a fonte do nosso testemunho cristão, retirando de cima dela o medo, a covardia, o comodismo, a desculpa da falta de tempo para servir a Deus. Há muitas pessoas nos pedindo, de forma consciente ou inconsciente: “Dá-me de beber”. Ofereçamos-lhes a água viva do Evangelho que lava, purifica, refresca e revigora as forças do coração humano. 

                                                                    Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 13 de março de 2014

NOSSAS PALAVRAS E NOSSAS ATITUDES TRANSFIGURAM?

Missa do 2º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 12,1-4a; 2Timóteo 1,8b-10; Mateus 17,1-9.

            Você convive com diversas pessoas, e também se relaciona com um número muito maior delas pela internet. Entre essas pessoas que fazem parte da sua convivência ou dos seus contatos pela internet, quais delas colaboram com a sua transfiguração? Quais colaboram com a sua desfiguração? Diariamente você vê imagens, lê notícias, ouve músicas, entra em contato com novos pensamentos e novas ideias. De tudo isso que você recebe, o quê te transfigura? O quê te desfigura?
            Sim, você pode perguntar: como posso saber quando alguma coisa ou alguém me transfigura ou me desfigura? Tudo aquilo que afasta você da sua verdade e da luz que é Deus, te desfigura; tudo aquilo que aproxima você da sua verdade e da luz que é Deus, te transfigura.  
            Em todo segundo domingo da Quaresma, o Evangelho nos coloca diante da transfiguração de Jesus, porque ela é uma antecipação da Páscoa, razão de ser da nossa caminhada quaresmal. A transfiguração de Jesus é uma antecipação e uma garantia da nossa ressurreição. Enquanto caminhamos neste mundo, nos deparamos com a cruz, seja a nossa, seja a dos outros, e a cruz, por um momento, joga uma sombra escura sobre a nossa vida, como que nos desfigurando. No entanto, a transfiguração de Jesus purifica o nosso olhar e nos ajuda a enxergar a glória de Deus, a luz da Sua presença, a verdade do Seu amor junto a nós, junto a toda pessoa que faz sua experiência de cruz.
  A leitura do Gênesis, narrando a vocação de Abrão, nos revela como a transfiguração começa a se dar em nós: nós temos que sair! Deus disse a Abrão: “Sai da tua terra... e vai para a terra que eu vou te mostrar” (Gn 12,1). A vida de Abrão estava parada, interrompida, envelhecida: ele iria morrer sem terra e sem filhos. A vida de Abrão estava desfigurada, mas Deus lhe lançou um desafio: ‘Sai! Rompe com as tuas velhas seguranças, confie em mim; Eu vou te indicar o caminho; Eu vou ampliar o horizonte da tua existência; Eu vou fazer de você um grande povo e uma grande bênção para a humanidade!’ (citação livre de Gn 12,2-3).  
  Abrão, não tendo nenhuma garantia da parte de Deus de que cumpriria Suas promessas, confiou, teve fé, obedeceu e “partiu, como o Senhor lhe havia dito” (Gn 12,4a). Aqui não só a vida de Abrão, mas a própria história da humanidade começou a se transfigurar, porque aqui começou a história da salvação. Portanto, a transfiguração começa na sua vida quando você confia na Palavra do Senhor, que lhe convida a sair, a partir, a sofrer “por causa do evangelho, fortificado pelo poder de Deus” (2Tm 1,8b), este Evangelho por meio do qual Jesus Cristo faz “brilhar a vida e a imortalidade” (2Tm 1,10) para todo aquele que nele crê.
 “Sai da tua terra...” (Gn 12,1). Uma das insistências do Papa Francisco em relação a nós, que somos Igreja, é sair: “sair em direção aos outros para chegar às periferias humanas... Saiamos, saiamos para oferecer aos outros a vida de Jesus Cristo!... Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 46 e 49). Para que a Igreja possa oferecer aos outros a vida de Jesus Cristo, ela precisa de você, precisa que você abrace a sua vocação, a exemplo do que Abrão fez.
 Já que mencionamos o Papa Francisco, que no dia 13 último completou seu primeiro ano de pontificado, é inegável que suas palavras e suas atitudes têm transfigurado o rosto da nossa Igreja. Contudo, alguém disse que enquanto nós apenas admirarmos o Papa Francisco, a nossa Igreja não vai mudar. Mas, a partir do momento em que nós fizermos o que o Papa Francisco tem nos ensinado, aí então a nossa Igreja mudará.
 A transfiguração de Jesus também nos faz entender que as nossas palavras e nossas atitudes podem transfigurar ou desfigurar as pessoas com as quais convivemos e o meio no qual nos encontramos. Há muita gente perto de nós desfigurada por doenças, conflitos, dificuldades; desfiguradas pelos vícios, pela violência, pela tristeza, pela falta de fé ou pela solidão...  Assim como uma nuvem luminosa envolveu os discípulos e, do meio da nuvem, a voz do Pai disse: “Este é o meu Filho amado... Escutai-o!” (Mt 17,5), assim nossa presença pode fazer com que essas pessoas sintam Deus perto delas e entrem em contato com a palavra de Jesus, Aquele que é a garantia da nossa futura e definitiva transfiguração.
 Nesta segunda semana da Quaresma, assumamos uma atitude concreta de nos fazer presente junto a alguém que se encontra desfigurado, e levemos a essa pessoa a luz da transfiguração de nosso Senhor Jesus. Se de fato for impossível estar junto dessa pessoa, tenhamos momentos profundos de oração por ela...


P.S. Se você deseja tomar uma atitude concreta de transfiguração, a Cáritas Brasileira, órgão da nossa Igreja, está socorrendo as vítimas da guerra civil na Síria. Segundo a Cáritas, “mais de 320 mil pessoas já foram atendidas, com alimentos, água, serviços de saúde, roupas e abrigos. No entanto, mais de 9 milhões de pessoas precisam urgentemente de nossa caridade”. No site da Cáritas, você encontra orientações de como ajudar: www.caritas.org.br

                                                             Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 6 de março de 2014

RESISTIR AO TENTADOR; APROXIMAR-SE DO SALVADOR

Missa do 1º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 2,7-9; 3,1-7; Romanos 2,12.17-19; Mateus 4,1-11.

           Havia um jardim (1ª. leitura), mas agora há um deserto (Evangelho). Havia árvores diversas com frutos saborosos (1ª. leitura), mas agora há somente pedras (Evangelho). O que aconteceu? Aconteceu que o ser humano, tendo sido colocado num jardim repleto das bênçãos de Deus, se deixou enganar pela voz do tentador e passou a acreditar que Deus lhe escondia coisas. Aconteceu que o ser humano, tendo a liberdade de comer de todos os frutos do jardim, caiu na mentira do tentador e desobedeceu à ordem de Deus de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, o que, no fundo, significa: ‘Eu não quero mais viver na dependência de Deus. A partir de hoje, não é mais Deus, e sim eu mesmo quem decido o que é o bem e o que é o mal para mim’. Desse modo, “o pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a morte. E a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5,12).
Para a Sagrada Escritura, Adão e Eva não são os responsáveis pelo jardim ter se deteriorado em deserto e pelo pecado ter afastado a vida da graça em nós. Adão e Eva são apenas um retrato de todos nós: eles retratam a nossa tendência em usarmos mal a nossa liberdade, em cairmos nas armadilhas do tentador, em fazermos o seu jogo, que é o jogo da sedução. No final, o que sobra é a sensação de não suportarmos a nossa própria nudez e as inúmeras tentativas de passarmos a vida tentando nos esconder de Deus e de nós mesmos.    
Se todos nós somos pecadores e desobedientes como Adão, o apóstolo Paulo afirma: “O ato de justiça de um só trouxe, para todos os homens, a justificação que dá a vida. Com efeito, como, pela desobediência de um só, a humanidade foi estabelecida numa situação de pecado, assim também, pela obediência de um só, toda a humanidade passará para uma situação de justiça” (Rm 5,18-19). Assim, compreendemos porque Jesus inicia sua missão salvadora no deserto: para nos lembrar que a nossa vida cristã é sempre um combate espiritual, e esse combate de intensifica na quaresma quando, nos deixando conduzir pelo Espírito Santo ao deserto, para que ali Deus possa falar ao nosso coração (cf. Os 2,16), encontramos também a voz do maligno, que tenta confundir a voz de Deus em nossa consciência.
Algumas pessoas interpretam as suas próprias tentações como obra de algum espírito que está sobre elas, o que as isentaria de responsabilidade perante os seus atos. Contudo, São Tiago nos alerta que “cada um é tentado pela própria concupiscência*, que o arrasta e seduz” (Tg 1,14). As tentações têm o poder que nós lhe damos. Nós não somos joguetes nas mãos do tentador, mas podemos, sim, nos tornar joguetes nas mãos da nossa própria carência, da nossa fragilidade, daquelas necessidades psicológicas não reconhecidas, não aceitas e não resolvidas – ou mal resolvidas – dentro de nós.
Se Jesus jejuou durante seus quarenta dias de permanência no deserto foi para nos dizer que nós podemos recuperar o nosso autodomínio; podemos submeter a força dos nossos instintos à força do Espírito Santo, que penetra em nossa vontade humana para abri-la a uma vontade maior, que é a vontade de Deus. Além disso, o jejum desintoxica o nosso espírito e nos dá discernimento, clareza espiritual para distinguirmos o que é a voz de Deus em nós e o que é a voz do tentador.
Quando Jesus sentiu fome, o tentador aproximou-se dele e lhe propôs transformar as pedras em pães (cf. Mt 4,3). Da mesma forma, quando você está lutando, sofrendo ou renunciando a algo para se manter fiel à vontade de Deus, o tentador diz que você não precisa lutar, nem sofrer, nem se sacrificar. Deus quer você feliz. Você não precisa suportar esse sofrimento. Não lute contra os seus desejos; pelo contrário, entregue-se a eles! Mas a Palavra de Deus diz: “Há uma recompensa para a tua dor!” (Jr 31,16); “Não tenha medo do que terá que sofrer... Seja fiel até à morte, e eu te darei a coroa da vida” (Ap 2,10).
O tentador propôs a Jesus “aproveitar” sua condição de filho amado do Pai, subir na parte mais alta do templo e lançar-se para baixo (cf. Mt 4,5-6). Afinal, Deus disse que não deixaria que nada de ruim acontecesse àquele que a Ele se confiasse (cf. Sl 91). Esta é a imagem da religião vivida como superstição, não como fé. Hoje em dia, muitos tatuam no corpo o nome ou a imagem de JESUS, a imagem de MARIA ou de algum outro SANTO, andam com escapulários ou terços pendurados no pescoço, mas também bebem, se drogam, correm em alta velocidade, se alimentam mal, expõem-se a riscos desnecessários, achando que Deus ou algum santo irá protegê-los. Não entenderam que a religião não existe para “manter o nosso corpo fechado contra o mal” (superstição), mas para que possamos aprender a escolher o bem ao invés do mal, como diz a Palavra: “Sujeitem-se a Deus; resistam ao diabo e ele fugirá de vocês. Aproximem-se de Deus e ele se aproximará de vocês” (Tg 4,7-8).
       Por fim, o tentador apelou com Jesus: “Eu te darei tudo isso se te ajoelhares diante de mim para me adorar” (cf. Mt 4,9). Dizendo de outra forma: ‘Eu te darei uma vida só de vitórias, se você me colocar no lugar de Deus na sua vida’. De fato, algumas pessoas escolheram declaradamente servir ao maligno e não a Deus, porque dizem: ‘Deus demora; o maligno me responde imediatamente’. ‘Deus propõe um caminho longo; o diabo me oferece um atalho’. ‘Deus fala comigo por meio de perguntas difíceis; o demônio me oferece respostas fáceis’. Mas também há pessoas que aparentemente trabalham para Deus e em nome d’Ele, na Igreja. Contudo, no dizer do Papa Francisco, muitas delas são “carreiristas”, “alpinistas sociais”; entraram na Igreja não para realizar um serviço humilde em favor dos pobres, mas para adquirirem cargos e títulos, tentando compensar um sentimento de inferioridade inconsciente e mal resolvido dentro delas. A respeito disso, Jesus alertou que aqueles que, ao invés de buscarem a glória do Deus único, buscam a sua própria glória, são vazios, e a pregação deles não têm crédito diante dos homens (cf. Jo 5,41-44).                     
        Examinemos a nossa vida, a forma como lidamos com as tentações. Vejamos se temos permitido que nossas paixões, nossos instintos e nossos desejos nos arrastem para longe de Deus, da Sua graça e da Sua verdade. Aprendamos com Jesus a enfrentar com coragem e com a cabeça erguida o nosso combate espiritual, contando com o auxílio do Espírito Santo. Resistamos às tentações e o maligno se afastará de nós. Então, sentiremos a presença dos anjos de Deus se aproximando de nós para nos consolar, depois da cada tribulação sofrida na tentação (cf. Mt 4,11).


* Sinônimo de paixões, instintos, desejos.

                                                           Pe. Paulo Cezar Mazzi