sexta-feira, 26 de outubro de 2018

O GRITO DA FÉ

Missa do 30º. Dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 31,7-9; Hebreus 5,1-6; Marcos 10,46-52.

            Bartimeu, cego e mendigo, sentado à beira do caminho para Jerusalém, ouve dizer que Jesus está passando por ali e grita: “Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim!” (Mc 10,47). O grito de Bartimeu não é um grito de desespero; é um grito de fé! Quando foi a última vez que você gritou por Deus? Quantas pessoas, por deixarem de ter fé, também deixaram de gritar por Deus? Bartimeu é a imagem de todos nós: em nossa oração, clamamos ao Deus que não podemos ver, justamente porque a Escritura diz: “Tu és um Deus que se esconde, ó Deus de Israel, o Salvador” (Is 45,15). Não é que Deus se esconda de nós! O sentido é outro: Ele não pode ser visto, enquadrado nos limites da nossa compreensão humana; Ele não pode ser controlado ou manipulado por nós. No entanto, mesmo Ele sendo o Deus invisível aos nossos olhos, a Escritura diz que “Ele está perto de todos aqueles que O invocam de coração sincero” (Sl 145,18); “Ele se revela aos que não lhe recusam a fé” (Sb 1,2).
            O grito de Bartimeu a Jesus – um grito de fé – é um sério questionamento à nossa vida de oração. Mesmo não vendo a Deus, mesmo quando não O sentimos na oração, continuamos a gritar por Ele? Num primeiro momento, o grito de Bartimeu foi sufocado pela multidão: “Muitos o repreendiam para que se calasse” (Mc 10,48). De quem é aquela voz que frequentemente nos convida a deixar de gritar a Deus, a deixar de orar? De quem é aquela voz que nos pergunta: “Para quê orar a um Deus que não existe?”, ou então, “Para quê orar a um Deus que não se importa com você?” Nós conseguimos identificar essa voz como sendo a voz do maligno, aquele que nos quer fazer desistir de orar? Se é verdade quem “aquele que procura, encontra” (Mt 7,8), é igualmente verdade que aquele que deixa de procurar, não encontrará jamais. Quem se convence de que não vale a pena gritar por Deus acaba por jogar fora a sua fé, e sem a fé, não há como Deus entrar e agir em nossa vida.
            Bartimeu não permitiu que as pessoas à sua volta o calassem: “Ele gritava mais ainda: ‘Filho de Davi, tem piedade de mim!’” (Mc 10,48). Assim como Bartimeu, nós não podemos permitir que o maligno nos convença a desistir da oração! Pelo contrário, devemos orar como o salmista: “Senhor, ouve a minha prece, que o meu grito chegue a ti! Não escondas tua face de mim no dia da minha angústia; inclina o teu ouvido para mim, no dia em que te invoco, responde-me depressa!” (Sl 102,2).
E foi graças ao grito persistente de Bartimeu que “Jesus parou e disse: ‘Chamai-o’. Eles o chamaram e disseram: ‘Coragem, levanta-te, Jesus te chama!’” (Mc 10,49). O grito persistente de Bartimeu atravessou toda aquela multidão e foi ouvido por Jesus! O grito de Bartimeu parou Jesus! Quando o nosso grito por Deus na oração é mais alto e mais persistente do que a voz do maligno que tenta nos fazer desistir de orar, nosso clamor é ouvido por Deus e Ele se volta para nós. É por isso que a Escritura diz: “Aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe e que recompensa os que o procuram” (Hb 11,6). A fé que sustentava o grito de Bartimeu e que precisa sustentar a nossa oração é essa: Deus existe! Eu não posso vê-Lo, e nem sempre O sinto junto a mim, mas sei que Ele existe. Além disso, sei que Ele recompensa os que O procuram, isto é, sei que Ele não deixa sem resposta quem clama por Ele!
Depois que o grito de Bartimeu o colocou diante de Jesus, este lhe perguntou: “O que queres que eu te faça?” Bartimeu respondeu: “Mestre, que eu veja!” (Mc 10,51). Parece muito natural, e mesmo lógico, que uma pessoa que não enxerga peça a Jesus para poder ver. Mas, será verdade mesmo que nós queremos ver? Nós estamos dispostos a ver o que precisamos ver? Nós estamos dispostos a olhar com outros olhos a realidade à nossa volta? Não há dúvida de que nós precisamos pedir a Jesus que cure a nossa cegueira, o nosso olhar viciado, para que enxerguemos de uma maneira mais profunda as pessoas que convivem conosco...
“Mestre, que eu veja!” (Mc 10,51). Precisamos pedir a Jesus que cure a humanidade da cegueira chamada ‘indiferença para com o próximo’: “Fechar os olhos diante do próximo nos torna cegos diante de Deus” (Bento XVI, Deus é amor, n.16). No mundo em que vivemos, ninguém enxerga ninguém. Cada vez mais pessoas estão com seus olhos fixos na tela de um celular e não enxergam ninguém à volta delas. Além disso, precisamos pedir a Jesus que nos liberte das imagens erradas que temos a respeito de Deus. Pior do que não podermos enxergar Deus é vê-Lo de uma maneira errada, é ter d’Ele uma imagem distorcida, que não corresponde ao que Ele verdadeiramente é. Somente o Filho, imagem visível do Deus invisível (cf. Cl 1,15), pode nos revelar (tirar o véu dos nossos olhos para podermos ver) o Pai.
Enfim, diante do clamor de Bartimeu, “Jesus disse: ‘Vai, a tua fé te curou’. No mesmo instante, ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho” (Mc 10,52). Bartimeu não é apenas modelo de discípulo, mas, sobretudo, modelo de fé, porque a fé não se assenta no “ver”, mas no “ouvir”: assim como Bartimeu, nós não vemos a Deus, mas ouvimos a sua Palavra; nós não vemos Jesus, mas ouvimos o seu Evangelho. E é diante do Evangelho que devemos gritar a Jesus, isto é, declarar-Lhe a verdade da nossa fé. Como disse o apóstolo Paulo, nós, cristãos, “caminhamos pela fé, não pela visão clara” (2Cor 5,7). O que nos faz levantar e não ficar sentados à beira do caminho, lamentando a nossa miséria e esperando que os outros nos deem esmolas de compaixão, não é aquilo que vemos, mas aquilo que cremos! Como Bartimeu, nós hoje nos dispomos a seguir Jesus não porque vemos à nossa volta que tudo está bem, mas porque cremos que, ao nos deixar orientar por Jesus, passamos a enxergar a vida de uma maneira nova, e ao nos propormos viver como Ele viveu, um novo horizonte se abrirá para nós e para a humanidade.
Como Bartimeu, peçamos...  
Filho de Davi (Pe. Fabio de Melo) 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

QUAL LUGAR VOCÊ ESCOLHE OCUPAR?

Missa do 29º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 53,10-11; Hebreus 4,14-16; Marcos 10,35-45.

            Existe uma pergunta no coração de cada pessoa: “Qual é o meu lugar neste mundo?” Ou então: “Há um lugar para mim neste mundo?” Por que carregamos essa pergunta conosco? Porque temos medo de ser ignorados; temos medo de não ser reconhecidos. Então, procuramos lugares de destaque, lutamos para alcançar os primeiros lugares, fazemos de tudo para não ficar por último, para trás, esquecidos ou ignorados por todos.
            Jesus, no Evangelho de hoje, faz outra pergunta a cada um de nós: “Que lugar você gostaria de ocupar, neste mundo, como meu discípulo?” Ou então: “Que lugar você, como meu discípulo, escolhe ocupar neste mundo?” Enquanto Jesus escolheu ocupar o lugar do serviço, o lugar da humildade e da simplicidade, Tiago e João pediram-Lhe permissão para ocuparem o lugar do poder: “Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!” (Mc 10,37). Enquanto Jesus escolheu descer do alto para se colocar junto de toda pessoa humilhada e rebaixada, Tiago e João queriam que Jesus os colocasse no alto, acima de todos; portanto, distantes de tudo o que é pequeno, humilde, baixo e insignificante aos olhos do mundo.
            Ora, onde é o lugar de todo e qualquer discípulo de Jesus? Junto de toda pessoa abatida e humilhada. O lugar de todo discípulo de Jesus é junto de quem precisa de proteção, de ajuda, de compaixão, de justiça. Assim como o lugar do médico é junto da pessoa enferma, o nosso lugar como discípulos de Jesus é junto das pessoas ignoradas pela nossa sociedade; especialmente, junto das pessoas oprimidas e injustiçadas por aqueles que exercem o poder de maneira injusta e desumana.
            Ao vir ao mundo, Jesus fez uma escolha; ele escolheu servir e dar a sua vida em resgate por muitos. A vida toda de Jesus foi um serviço em favor do bem, do resgate, da recuperação e da salvação de muitas pessoas. O sentido da vida de Jesus estava nisso: em servir, em ajudar, em doar-se pelo bem dos outros. Portanto, cada um de nós, discípulos de Jesus, precisa hoje se perguntar: “Eu estou prestando algum serviço em favor da humanidade?” “A maneira como eu vivo tem ajudado alguém a ser resgatado do sofrimento, da injustiça, do erro, da autodestruição, do desespero, da descrença?” “Será que eu estou vivendo apenas em função de mim mesmo, exigindo que as pessoas que estão à minha volta me sirvam?”
            Há algo preocupante nas novas gerações: a maioria das crianças e adolescentes tem se comportado como pessoas que nasceram para serem servidas. É uma geração egocêntrica, para a qual o mundo tem que girar em torno dela e dos seus caprichos. São incapazes de servir porque são incapazes de enxergar o outro e as suas necessidades. Neste sentido, os pais e educadores têm um grande desafio: ajudar as crianças e adolescentes do nosso tempo a descerem do pedestal em que foram colocados desde pequenos, a não olharem os outros de cima para baixo, a se darem conta de que ninguém é melhor do que ninguém, a compreenderem que o sentido da vida está em servir, em fazer da própria existência um serviço para o bem das outras pessoas.  
            Ao rejeitar o poder e ao escolher o serviço, Jesus quis nos fazer um alerta: todo poder corrompe, inclusive o poder religioso. Aqui nós precisamos lembrar mais uma vez que a Eucaristia que comungamos é pão sem fermento, porque Jesus foi uma pessoa que não se deixou corromper pelo poder; Jesus nunca se tornou alguém inchado de orgulho, de arrogância e de poder. Portanto, o que se espera de nós, que comungamos a Eucaristia – pão sem fermento –, é que sejamos homens e mulheres não inchados, não arrogantes nem orgulhosos, cristãos que não olhem as pessoas de cima para baixo, que não esperem ser servidos, mas que façam de sua própria vida um serviço para o bem daqueles que foram chamados a resgatar.        
            Hoje é o Dia Mundial das Missões. Aqui é oportuno lembrar, mais uma vez, as palavras do Papa Francisco: “Eu sou uma missão nesta terra e por isso estou neste mundo” (A alegria do Evangelho, n.273). O sentido da nossa vida não está em subir num pedestal e esperar que as pessoas nos admirem, ou sentar-se num trono e esperar que as pessoas nos reverenciem e nos sirvam. O sentido da nossa vida está em realizar a missão que fomos chamados a realizar, em servir as pessoas que fomos chamados a servir, em resgatar as pessoas que fomos chamados a resgatar com a nossa existência única e original.
            Segundo o Papa Francisco, a existência única de cada um de nós “é um projeto do Pai que visa refletir e encarnar, em um momento determinado da história, um aspecto do Evangelho” (Alegrai-vos e Exultai, n.19). Isto significa que onde quer que nos encontremos, ali devemos nos colocar a serviço, testemunhando a presença viva do Evangelho d’Aquele que veio servir e dar sua vida em resgate por muitos. E o Papa Francisco afirma: “Deus permita que você consiga identificar a palavra, a mensagem de Jesus que Deus quer dizer ao mundo com a sua vida... O Senhor a levará ao cumprimento mesmo no meio dos seus erros e momentos negativos, desde que você não abandone o caminho do amor e permaneça sempre atento à Sua ação sobrenatural que purifica e ilumina” (Alegrai-vos e Exultai, n.24).
            Deus abençoe a missão que você é e que o Espírito Santo o(a) configure a Jesus Cristo, que “não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45). Que a sua existência seja expressão desse serviço capaz de resgatar para Deus todas as pessoas que, por algum motivo, se encontrem perdidas d’Ele.    

Oração: Deus Pai, às vezes me vejo perguntando pelo meu lugar no mundo, por causa do medo de não ser reconhecido(a) ou amado(a). Ajuda-me a ocupar o lugar que o Senhor preparou para mim, o lugar onde sou chamado(a) a ser um sinal vivo do Evangelho de teu Filho Jesus.
Senhor Jesus Cristo, retira de mim todo fermento de orgulho, de arrogância e de busca pelo poder. Quero fazer da minha existência um serviço em favor daqueles que precisam ser recuperados, resgatados, reencontrados. Assim como o Senhor, eu quero passar por este mundo fazendo o bem e deixar, com a minha vida, uma mensagem de fé, de esperança e de amor para as outras pessoas.
Espírito Santo, leva-me aonde as pessoas necessitem da palavra do Evangelho, aonde elas necessitem de força para viver, aonde falte a esperança, aonde haja alguém que necessite ser resgatado. Torna-me consciente da missão que eu sou e fiel em relação ao serviço que sou chamado(a) a realizar pelo bem e pela salvação de cada ser humano. Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

QUEM PODE SER SALVO DA SEDUÇÃO DO DINHEIRO?

Missa do 28º. dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 7,7-11; Hebreus 4,12-13; Marcos 10,17-27. 

            Conta-se que, à beira da morte, Alexandre Magno teria convocado seus generais para lhes fazer três pedidos: 1. Que seu caixão fosse transportado pelos melhores médicos da época. 2. Que todos os tesouros conquistados (ouro, prata, pedras preciosas etc.) fossem espalhados ao longo do percurso, até o seu túmulo. 3. Que suas mãos fossem deixadas fora do caixão, à vista de todos, balançando no ar. Admirado com desejos tão estranhos, um dos seus generais lhe perguntou o que ele queria dizer com isso. Alexandre Magno respondeu: 1. “Quero que os médicos carreguem o meu caixão para ficar claro que eles não têm poder sobre a morte”. 2. “Quero que o chão seja coberto pelos meus tesouros para que todos entendam que os bens materiais aqui conquistados aqui também permanecem”. 3. “Quero que minhas mãos balancem ao vento para que se veja que de mãos vazias viemos ao mundo e de mãos vazias partiremos dele”.
            O que você costuma pedir a Deus, na sua oração? Se você pudesse fazer-Lhe um único pedido, qual seria? Acontece algo estranho com a nossa oração: nós costumamos pedir coisas que, aos nossos olhos, são aparentemente importantes, essenciais, mas que, aos olhos de Deus, não são de fato essenciais. Nós costumamos pedimos a Deus a cura de uma doença, mas não pedimos para nos libertar de um pecado; costumamos pedir pelo sucesso do filho na faculdade ou na vida profissional, mas não pedimos por sua vida espiritual; costumamos pedir a Deus uma pessoa que nos ame, mas Lhe não pedimos um coração capaz de amar os que não se sentem amados à nossa volta (homilia do 25º. dom. comum).
            O livro da Sabedoria nos traz o exemplo de uma oração séria e agradável aos olhos de Deus: “Orei, e foi-me dada a prudência; supliquei, e veio a mim o espírito da sabedoria” (Sb 7,7). Para o nosso mundo, nada é mais importante do que o dinheiro: quem tem dinheiro, tem todas as portas abertas diante de si. Para a Sagrada Escritura, todo o dinheiro que há no mundo é “um punhado de areia”, é apenas uma poça de “lama” (cf. Sb 7,9). Ter um coração sábio, um coração que saiba separar o bem real do bem aparente, um coração que perceba claramente a diferença entre aquilo que vale para o meu interesse pessoal e aquilo que vale por si mesmo, ainda que não atenda aos meus interesses pessoais – quem tem um coração assim, terá em suas mãos “uma riqueza incalculável” (Sb 7,11).
            O Evangelho nos fala de um homem que procurou Jesus para lhe fazer um pedido que sua alma considerava mais importante do que tudo na vida: “Que devo fazer para ganhar a vida eterna?” (Mc 10,17). Esse homem era muito rico (cf. Mc 10,22). Se ele estivesse doente, pediria a Jesus a cura para a sua doença; se ele estivesse vivendo uma situação de injustiça social, pediria a Jesus que lhe fizesse justiça. Contudo, ainda que esse homem muito rico supostamente tivesse uma vida tranquila e poupada de inúmeros sofrimentos pelos quais passa a maioria das pessoas em nosso mundo, ainda assim o pedido dele nos serve de questionamento: Quem de nós hoje está preocupado com a vida eterna? Quem de nós hoje, ao se colocar em oração, pede por sua salvação? Quem de nós hoje, ao orar, consegue enxergar a vida para além do aqui e agora, e se dar conta de que, muito mais importante do que apenas sobreviver ou se dar bem neste mundo, trata-se de ter a nossa existência destinada à salvação eterna? 
            Jesus conhecia aquele homem e sabia que ele tinha um coração reto e bom; era, de fato, uma pessoa “de Deus”. No entanto, “Jesus olhou para ele com amor, e disse: ‘Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!’” (Mc 10,21). Prestemos atenção a esta palavra de Jesus: “Uma coisa te falta”... O que falta em mim, pra que eu seja verdadeiramente uma pessoa de Deus? O que falta em mim, para que a verdade de Deus habite em minha alma? Quem de nós tem a coragem de fazer essa pergunta a Deus, na sua oração: ‘Senhor, o que ainda me falta, para que eu verdadeiramente seja salvo(a)’? Além disso, quem de nós, ao fazer essa pergunta, tem a coragem de silenciar a sua consciência e esperar pela resposta de Deus?     
            A resposta de Jesus decepcionou profundamente aquele homem: “(...) quando ele ouviu isso, ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico” (Mc 10,22). Uma das coisas que eu particularmente admiro em Jesus é a sua liberdade diante de nós, a liberdade de ser coerente com a sua consciência e de ser verdadeiro conosco, não se preocupando se a sua Palavra vai nos decepcionar ou não. Jesus nunca se moveu na vida pelo desejo de não desagradar ninguém ou pelo medo de que alguém ficasse decepcionado com a verdade do Evangelho. Por isso, além de não voltar atrás no que ele disse ao homem rico, ele aproveitou a reação daquele homem para nos ensinar algo extremamente importante: todos nós estamos presos a algo que está nos tirando o foco na vida eterna. Não há um ser humano na face da terra a que não falte algo a ser revisto e corrigido, se verdadeiramente deseja ser salvo.
            Eis as palavras de Jesus: “Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (Mc 10,24-25). Muitas tentativas foram feitas – por pregadores não preocupados em obedecerem ao Espírito da Verdade, mas preocupados em não perder fiéis em suas igrejas – para tornar essa palavra de Jesus menos dura, menos escandalosa. Alguns tentaram dizer que o camelo é, na verdade, uma corda; outros, que a agulha é, na verdade, uma porta estreita. São manipulações irresponsáveis e mentirosas, que visam tirar do texto bíblico a exigência que ele faz a todos nós: exigência de conversão, exigência de levar a sério a verdade de que todo dinheiro tem o poder de nos corromper, de roubar a nossa alma de Deus.
            O Evangelho termina falando da reação dos discípulos: eles “ficaram muito espantados ao ouvirem isso, e perguntavam uns aos outros: ‘Então, quem pode ser salvo?’” (Mc 10,26), isto é, qual ser humano pode resistir à sedução do dinheiro? “Jesus olhou para eles e disse: ‘Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível’” (Mc 10,27). Em outras palavras, a salvação sempre foi e sempre será fruto da graça de Deus na alma humana, e jamais resultado do seu esforço em “ganhar”, conquistar ou merecer tal salvação.
            Concluindo, diante da verdade da Palavra de Deus, verdade que decepcionou aquele homem rico e deixou os discípulos de Jesus espantados (escandalizados), resta a cada um de nós tomar uma decisão: ou rejeitar tal Palavra, ou permitir que ela penetre em nós, revelando o que há em nossa alma e em nosso coração (cf. Hb 4,12), deixando em nossa consciência a incômoda mas fundamental pergunta: o que ainda me falta para que a minha existência não caminhe para a falência, mas para a salvação, para a vida eterna?

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

RELACIONAMENTOS: ENTRE O SONHO E O PESADELO

Missa do 27º. dom. comum. Palavra de Deus: Gênesis 2,18-24; Hebreus 2,9-11; Marcos 9,2-16.

            “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Todo ser humano tem necessidade de comunhão, de conviver, de estar junto. A nossa saúde emocional pede comunhão, convivência, vínculos afetivos. Mas porque conviver é algo que nos desafia, uma vez que não se trata de colocar juntas peças que se encaixem perfeitamente umas nas outras, mas de enxergar a beleza de um mosaico colorido, onde justamente a diferença das cores e das “peças” é o que dá sentido e beleza ao mosaico, cada vez mais pessoas concluem que é melhor viver sozinho, ficar sozinho.
            Se o texto bíblico a respeito da criação do homem e da mulher descreve simbolicamente que ela nasceu dele enquanto este dormia um sono profundo (cf. Gn 2,21), compreendemos que na alma de todo ser humano há um sonho: sonho de comunhão, de encontrar alguém que lhe seja semelhante, no sentido de compartilhar das suas alegrias e tristezas, angústias e esperanças. No entanto, muitos casamentos infelizmente deixaram de ser vividos como sonhos e passaram a ser vividos como pesadelos, e o caminho encontrado para acordar desse pesadelo foi o divórcio.
            Cada casamento que termina em divórcio tem sua própria história, e há separações que foram necessárias para se salvar a integridade das pessoas daquela família, como afirma o Papa Francisco: “É preciso reconhecer que há casos em que a separação é inevitável. Por vezes, pode tornar-se até moralmente necessária, quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela prepotência e a violência, pela humilhação e a exploração, pela alienação e a indiferença” (A alegria do amor, n.241). No entanto, precisamos reconhecer também que muitos divórcios foram ou são consequência de egoísmo e imaturidade da nossa parte: “Tornou-se frequente que, quando um cônjuge sente que não recebe o que deseja, ou não se realiza o que sonhava, isso lhe pareça ser suficiente para colocar fim ao matrimônio... Às vezes, para decidir que tudo acabou, basta uma desilusão, a ausência num momento em que se precisava do outro, um orgulho ferido” (Francisco, A alegria do amor, n.237).
Para uma geração como a nossa, que não aceita sofrer e quem tem aversão a qualquer tipo de dor, o divórcio tem se tornado uma solução rápida e prática, sempre que surge a menor dificuldade ou algum tipo de desgaste no relacionamento. No entanto, se o divórcio resolve rapidamente uma convivência difícil, ele também é responsável por abrir sérias feridas na alma de muitos pais e filhos, além de provocar feridas em nossa sociedade. Um estudo realizado com 1.500 jovens entre 12 e 18 anos que cometeram delitos na cidade de São Paulo, entre 2014 e 2015, revelou que 42% desses infratores, além de não viver com o pai, não tinham nenhum contato com ele (Folha Uol, 17/06/2016). Isso não significa que a mulher sozinha seja um fracasso na condução de uma família. Significa, antes, que a saúde emocional e a formação do caráter do filho precisam do contato afetivo com uma figura feminina e uma figura masculina.  
            Falando ainda sobre os filhos, é muito importante cuidar para que, numa eventual separação, eles continuem a ter uma convivência afetiva com o pai e com a mãe, e jamais sejam influenciados a escolher um e rejeitar outro. Numa separação, os filhos não podem ser usados como arma de ataque pelos pais, em seus enfrentamentos. Como se costuma dizer: existe ex-marido e ex-mulher, mas não existe ex-pai, nem ex-mãe. Esse cuidado com a integridade física, emocional e espiritual dos filhos está expresso no Evangelho pela atitude de Jesus de abraçar crianças no exato momento em que ele é questionado a respeito do divórcio (cf. Mc 10,13.14.16).
Para Jesus, o divórcio é consequência do endurecimento do coração humano (cf. Mc 10,5). Um coração endurecido é um coração que se decepcionou, que foi ferido ou profundamente agredido em seu esforço em amar e em sua necessidade de ser amado. Mas não só. Um coração endurecido é sinônimo de um coração egoísta, que só pensa em si e usa os outros unicamente para seus propósitos egoístas. Não há como construirmos um vínculo duradouro com alguma pessoa, se nos deixamos influenciar por uma cultura que nos incentiva a colocar o nosso interesse egoísta como princípio orientador do nosso comportamento, além de ter como objetivo principal de vida a satisfação de todos os nossos desejos.
 No lugar desse egoísmo doentio e destruidor, Jesus nos propõe abraçar o ideal de Deus para todo ser humano: “O que Deus uniu, o homem não separe!” (Mc 10,9). Muitos casais que receberam o sacramento do matrimônio (casaram-se na Igreja) encontram-se separados atualmente. Aqui seria o caso de se perguntar: Esses casais pediram para Deus abençoar sua união; pediram para Deus uni-los. Eles também se dispuseram a trabalhar na mesma direção de Deus, para que aquilo que foi unido não viesse a ser separado? Quantos de nós, com uma das mãos, pedimos algo a Deus, mas com a outra mão nos mantemos agarrados a situações que favorecem justamente o contrário daquilo que estamos pedindo a Deus?
Quando eu assisto a um casamento, no momento da colocação das alianças costumo lembrar ao casal aquela parábola oriental do jovem que colocou uma borboleta minúscula em uma de suas mãos, e, com ambas as mãos nas costas, perguntou a um velho sábio oriental: “Eu tenho uma borboleta em uma das minhas mãos. Se o senhor é realmente um homem sábio, quero que me responda se a borboleta que tenho na mão está viva ou está morta”. O jovem já havia traçado um plano: se o sábio dissesse que a borboleta estava viva, o jovem apertaria a mão e mostraria a borboleta morta; se o sábio dissesse que ela estava morta, o jovem abriria a mão e a borboleta voaria. Para surpresa daquele jovem, o sábio olhou profundamente nos seus olhos e respondeu: “Depende de você, se a borboleta está viva ou está morta”.
Quando um casal se casa, nós perguntamos: “Esse casamento será bem-sucedido ou mal sucedido? Esse relacionamento sobreviverá às crises pelas quais passa todo relacionamento, ou fracassará?” A resposta está nas alianças, isto é, nas mãos do homem e da mulher que se casam. Um relacionamento bem sucedido não depende somente da bênção de Deus; depende também das mãos, isto é, das atitudes diárias que ele e ela terão um para com o outro e ambos para com o relacionamento conjugal. Tudo aquilo que não cuidamos, perdemos. Tudo aquilo que não cultivamos, morre.

Encerro esta reflexão retomando algumas sábias palavras do Papa Francisco:
1) “Não é possível prometer que teremos os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projeto comum estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, e viver sempre uma rica intimidade. O amor que nos prometemos supera toda a emoção, sentimento ou estado de ânimo, embora possa incluí-los. É um querer-se bem mais profundo, com uma decisão do coração que envolve toda a existência (A alegria do amor, n.163).
2) “Não se vive juntos para ser cada vez menos feliz, mas para aprender a ser feliz de uma maneira nova, a partir das possibilidades que abrem uma nova etapa. Cada crise implica uma aprendizagem, que permite incrementar a intensidade da vida comum ou, pelo menos, encontrar um novo sentido para a experiência matrimonial. É preciso não se resignar de modo algum a uma curva descendente, a uma inevitável deterioração, a uma mediocridade que se tem de suportar” (A alegria do amor, n.232).
3) “Os divorciados novamente casados deveriam questionar-se como se comportaram com os seus filhos, quando a união conjugal entrou em crise; se houve tentativas de reconciliação; como é a situação do cônjuge abandonado; que consequências têm a nova relação sobre o resto da família e a comunidade dos fiéis; que exemplo oferece ela aos jovens que se preparam para o matrimônio. Uma reflexão sincera pode reforçar a confiança na misericórdia de Deus que não é negada a ninguém” (A alegria do amor, n.300).
4) “Um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas... Lembremo-nos de que um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades” (A alegria do amor, n.305).
5) “Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de modo algum deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimônio, o projeto de Deus em toda a sua grandeza... A compreensão pelas situações excepcionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano” ( A alegria do amor, n.307).
6) “Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada... Jesus espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura” (A alegria do amor, n.308).
7) “A família foi desde sempre o ‘hospital’ mais próximo. Prestemo-nos cuidados, apoiemo-nos e estimulemo-nos mutuamente, e vivamos tudo isto como parte da nossa espiritualidade familiar... Querer formar uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de sonhar com Ele, a coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta história de construir um mundo onde ninguém se sinta só” (A alegria do amor, n.322).

Pe. Paulo Cezar Mazzi