quinta-feira, 25 de abril de 2019

NÃO SEJA UMA PESSOA INCRÉDULA, MAS TENHA FÉ!


Missa do 2º. dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 5,12-16; Apocalipse 1,9-11a.12-13.17-19; João 20,19-31.

A manhã do domingo de Páscoa nos colocou diante do túmulo vazio de Jesus, o primeiro sinal da sua ressurreição. Já o Evangelho de hoje, nos fala de duas aparições de Jesus ressuscitado aos discípulos: uma, na noite do domingo de Páscoa; outra, oito dias depois, novamente no domingo, “no dia do Senhor” (Ap 1,10). Por duas vezes, o Evangelho menciona que as portas do lugar onde os discípulos se encontravam estavam fechadas (vv.19.26). O Papa Francisco tem insistido que as portas da Igreja devem estar sempre abertas, seja para acolher aqueles que a procuram, seja para ir atrás daqueles que dela se afastaram ou que dela nunca se achegaram. Quando nos fechamos numa atitude defensiva em relação a um mundo que direta ou indiretamente ataca os valores do Evangelho, corremos o risco de falhar em nossa missão: “Sem experimentar o Senhor Ressuscitado entre nós, vivemos como uma igreja fechada, com medo do mundo... Com as ‘portas fechadas’ não se pode ouvir o que acontece lá fora. Não é possível captar a ação do Espírito no mundo... Uma Igreja sem capacidade de dialogar é uma tragédia, porque a missão de todo discípulo de Jesus é realizar o diálogo de Deus com o ser humano” (Pe. J.A. Pagola).
            Mas o foco principal do Evangelho de hoje é o encontro de Jesus com Tomé, o discípulo que impôs uma condição para crer na ressurreição: “Se eu não vir... não acreditarei” (Jo 20,25). Como anda a sua fé? Você também costuma impor condições para crer em Deus, para crer na sua Palavra? Vivemos numa época em que inúmeros acontecimentos vão contra a nossa fé, porque destroem todas as imagens que temos de Deus – o Deus que se revela na Sagrada Escritura como Amor, Misericórdia, Bondade, Compaixão, Justiça, Providência... Muitas pessoas têm desistido de crer, seja por causa de certos acontecimentos dolorosos, sofridos, absurdos, seja pela maneira como Deus é: misterioso, inacessível, não enquadrado nos nossos esquemas, não cabível nas nossas medidas, um Deus a Quem não podemos de forma alguma ver, no sentido de controlar, mas apenas escutar, no sentido de obedecer. É por isso que a fé se apresenta como algo que nos desafia. A fé, quando autêntica, me coloca no espaço correto da relação com Deus, o espaço da obediência, não do controle.
“Se eu não vir... não acreditarei” (Jo 20,25). Assim como Tomé, às vezes nos colocamos nesta atitude: ‘Se Deus não se revelar a mim como eu espero, não terei mais fé n’Ele. Se Deus não remover todas as pedras do meu caminho, se não curar todas as minhas feridas, se não eliminar todos os meus inimigos e se não responder a todas as minhas perguntas, não acreditarei mais n’Ele’. Esse tipo de atitude torna-se uma sabotagem contra nós mesmos, uma vez que, sem a força da fé “a vida facilmente se torna um arco cuja corda está arrebentada e do qual nenhuma flecha pode ser lançada” (Henri Nouwen, O sofrimento que cura, p.25).
Esta imagem do arco que se tornou incapaz de lançar uma flecha – imagem de uma pessoa que decidiu seguir pela vida sem a força da fé – contrasta com a imagem de Moisés, lembrado como exemplo de fé para nós na carta aos Hebreus: “Foi pela fé que (Moisés) deixou o Egito, sem temer o furor do rei (o exército do Faraó que se pôs a persegui-lo), e resistiu, como se visse o Invisível” (Hb 11,27). A fé é isso: você caminha na vida por aquilo que crê, não por aquilo que vê; você caminha na vida como se visse o Invisível, resistindo às pancadas que leva, às ameaças que sofre, não se deixando vencer por aquilo que tenta te convencer de que você está caminhando na direção do nada.
Jesus hoje diz a cada um de nós o que disse a Tomé: “Não sejas incrédulo, mas tenha fé” (Jo 20,27). Mesmo diante de tantos acontecimentos que parecem enterrar na morte tudo o que você faz em favor da vida, Jesus lhe diz: “Não tenhas medo. Estive morto, mas agora estou vivo para sempre. Eu tenho comigo as chaves da morte e da região dos mortos” (Ap 1,17-18). ‘Mesmo se você trancar a porta da sua vida para a fé, mesmo se decidir morrer para a sua fé, Eu tenho as chaves e posso tirar você de dentro da morte da sua fé. Ainda que você não possa Me ver, lembre-se de que “felizes (são) os que creram sem terem visto” (Jo 20,29). Felizes os que, mesmo enfrentando tribulações por causa da Palavra de Deus e do testemunho de fé em Mim, perseveraram na sua fé (cf. Ap 1,9). Felizes os que, meditando a cada dia no Evangelho, acreditaram em Mim e, crendo, receberam uma nova vida em Meu nome (cf. Jo 20,31)’.
Ao encerrarmos esta reflexão, lembremos que a fé vem da pregação da palavra de Cristo (cf. Rm 10,17), isto é, a fé nasce em nós a partir dos ouvidos e não dos olhos. Neste sentido, o próprio João termina seu Evangelho afirmando que tudo aquilo que ele escreveu “foi escrito para que vocês acreditem que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenham a vida em seu nome” (Jo 20,31). Para a nossa geração, habituada com inúmeras imagens, vale o alerta de Jesus a Tomé: “Acreditaste porque me viste? Felizes os que creram sem terem visto!” (Jo 20,29). O que mantém a minha fé viva não é a imagem que eu vejo, mas a Palavra que eu leio, escuto e medito. Além disso, é a Palavra de Deus, lida ou ouvida e meditada, que me ajuda a interpretar aquilo que eu vejo, percebendo a presença escondida de Deus nos acontecimentos do dia a dia.     
Com a nossa Igreja, coloquemo-nos diante de Jesus Misericordioso e clamemos hoje: ‘Senhor Jesus, entra em minha vida, mesmo quando as portas estiverem fechadas pelo meu medo diante do mundo e pela minha descrença na tua ressurreição. Dá-nos a tua paz, que é a vitória sobre o mundo. Segura minhas mãos com as tuas mãos feridas, para que as minhas tenham a coragem de se envolverem e, se preciso for, se machucarem na luta em favor de um mundo mais justo. Infunde em mim a força do teu Espírito diante dos conflitos, para que eu possa experimentar a força da fé que me faz vencer o mundo e não ser vencido(a) por ele. Como o Senhor passou pelo mundo fazendo o bem, que eu possa viver minha vida trabalhando junto com todas as pessoas que, independente de cor, raça ou religião, trabalham pela ressurreição da humanidade. Amém!’ (cantemos) “Creio em Ti, Ressuscitado, mais que São Tomé, mas aumenta na minh’alma o poder da fé! Guarda a minha esperança, cresce o meu amor. Creio em Ti, Ressuscitado, meu Deus e Senhor!”

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 19 de abril de 2019

SEMEADOS FRACOS E MORTAIS, RESSUSCITAREMOS FORTES E IMORTAIS


Missa da Ressurreição do Senhor. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 10,34a.37-43; Colossenses 3,1-4; João 20,1-9

            Em um momento crítico de sua história, quando o povo de Israel dizia: “a nossa esperança está desfeita. Para nós está tudo acabado” (Ez 37,11), Deus lhe fez uma promessa: “Eis que abrirei vossos túmulos e vos farei sair dos vossos túmulos... Então sabereis que eu sou o Senhor, quando abrir os vossos túmulos e vos fizer subir de dentro deles, ó meu povo” (Ez 37,12-13).
                No dia de Páscoa, dia em que celebramos a ressurreição de nosso Senhor Jesus, o Evangelho não nos coloca, ao menos por enquanto, diante do Cristo ressuscitado, mas apenas diante do seu túmulo vazio. Por que o túmulo está vazio? Porque, como interpretou erroneamente Maria Madalena, “retiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o colocaram” (Jo 20,2)? Não! O túmulo de Jesus está vazio porque nós não podemos procurar entre os mortos Aquele que vive! (cf. Lc 24,5).
            Na verdade, encontrar o túmulo de Jesus vazio no dia de Páscoa é mais importante do que encontrá-lo ressuscitado, porque crer na ressurreição não significa crer que vamos ser poupados de sofrimento ou que não vamos morrer, mas significa crer que vamos vencer o sofrimento e a morte. O nosso sofrer e a nossa morte não devem ser interpretados por nós como negação da ressurreição, mas sim como a situação existencial onde experimentaremos a nossa própria ressurreição, como afirmou o apóstolo Paulo: “Incessantemente e por toda parte trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus (sua morte), a fim de que a vida de Jesus (sua ressurreição) seja também manifestada em nosso corpo” (2Cor 4,10).
            A fé no Cristo ressuscitado nunca poderá se transformar em blindagem, isto é, em proteção absoluta contra a dor, o sofrimento e a morte, mas como garantia de vitória contra tudo aquilo que hoje fere a nossa vida e a vida da humanidade. Mais uma vez é o apóstolo Paulo quem nos ajuda a compreender isso: “conhecer o poder da sua ressurreição e a participação nos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte, para ver se alcanço a ressurreição de entre os mortos” (Fl 3,10-11). Assim como a vida que está escondida dentro da semente só desabrocha quando ela morre, ou seja, é enterrada, assim também a nossa ressurreição só se dará a partir da nossa própria morte.
            Por outro lado, a fé no Cristo ressuscitado deve provocar mudanças em nós agora, neste momento: mudanças em nossa maneira de enxergar a vida, de interpretar os acontecimentos, e também mudanças em nossas atitudes, em nossa forma de lidar com os acontecimentos. Eis porque o apóstolo se dirige a nós neste dia de Páscoa com essas palavras: “Se ressuscitastes com Cristo, esforçai-vos por alcançar as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus; aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres” (Cl 3,1-2). Um cristão que crê verdadeiramente que Cristo ressuscitou não anda olhando para baixo, mas para o alto; não caminha na vida vencido pelo peso das preocupações e dos problemas, mas como uma pessoa que confia na presença do Ressuscitado que caminha com ele e o ajuda a enfrentar com coragem as preocupações e os problemas, pois Ele mesmo disse: “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33).
            Ao ressuscitar, Cristo venceu o mundo, mas esta vitória não está visível nem explícita em toda parte; ela só pode ser vista na vida de quem crê na ressurreição de Jesus e na sua própria ressurreição. Aliás, o apóstolo Paulo deixa claro como é a vida dos cristãos que creem na ressurreição: “vós morrestes, e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus. Quando Cristo, vossa vida, aparecer em seu triunfo, então vós aparecereis também com ele, revestidos de glória” (Cl 3,3-4). Uma pessoa que crê no Cristo ressuscitado não está revestida de glória aqui e agora; pelo contrário, ela é chamada a não comungar, não compactuar com aquilo que no mundo produz injustiça e cruz, e saber que sua vida de pessoa ressuscitada está escondida com Cristo em Deus, da mesma forma que uma semente carrega escondida dentro de si a vida de uma grande árvore capaz de produzir inúmeros frutos. Como aconteceu com Cristo, assim acontecerá com aqueles que creem na Sua ressurreição: “semeado mortal, o corpo ressuscita imortal; semeado desprezível, ressuscita cheio de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,43-44).
                                  
            Oração: Senhor Jesus, neste dia de Páscoa olho para o teu sepulcro vazio, o primeiro sinal da tua ressurreição. Também eu, muitas vezes, entro e me fecho no sepulcro do medo, do desânimo, da tristeza, da falta de fé e de esperança. Chama-me para fora do meu sepulcro, Senhor, como chamaste Lázaro. Que eu não me escandalize com o sofrimento e a cruz que tenho que lidar neste mundo, sabendo que é a partir dali que nascerá a minha própria ressurreição. Como o apóstolo Paulo, eu também quero entrar em comunhão com os teus sofrimentos na esperança de um dia entrar em comunhão com a tua ressurreição. Sei que a minha vida de pessoa ressuscitada está escondida contigo no céu, da mesma forma que uma semente carrega escondida em si a fecundidade de uma vida que aguarda para nascer. Enquanto caminho neste mundo, quero aprender a olhar para o alto, quero buscar as coisas do alto, procurando florescer aonde a tua mão me plantou, crendo que eu também fui semeado(a) mortal para um dia ressuscitar imortal; fui semeado(a) desprezível para um dia ressuscitar cheio de glória; fui semeado(a) fraco(a) para um dia ressuscitar cheio(a) de força; fui semeado(a) pessoa carnal para um dia ressuscitar pessoa espiritual.   

Cantemos:

Novo dia surgiu e o povo que andava nas trevas viu uma intensa luz, Teu clarão, Tua glória a resplandecer. Novo povo a trilhar um caminho aberto por Tuas mãos. Obra nova, enfim, já podemos ver nova criação. Somos nós este povo alcançado por Tua luz, fruto da Tua obra na cruz. O Senhor nosso Deus que merece o louvor, todo nosso amor, é o Rei que venceu. Ao Cordeiro a vitória, poder, honra e glória! (bis) Ressuscitou! Ressuscitou! Ressuscitou!


Pe. Paulo Cezar Mazzi

SÓ ELE NOS FAZ PASSAR; SÓ ELE NOS FAZ RESSUSCITAR!


Vigília Pascal. Palavra de Deus: Gênesis 1,26-31a; Gênesis 22,1-18; Êxodo 14,15 – 15,1; Isaías 55,1-11; Romanos 6,3-11; Lucas 24,1-12.

“Eu espero, Senhor, eu espero com toda a minha alma, esperando tua palavra; minha alma aguarda o Senhor mais que os guardas pela aurora” (Sl 130,5-6). Estas palavras do salmista revelam o significado desta noite: estamos em Vigília, estamos participando da Mãe de todas as vigílias, esperando pela Palavra da ressurreição; estamos esperando pelo Senhor ressuscitado mais do que os vigias esperam pela aurora, isto é, pelo fim da noite e pelo nascimento do novo dia.
Caminhando em meio a inúmeros túmulos, túmulos onde estão enterradas pessoas mortas pelas guerras, pela fome, pelas doenças, pelos acidentes, pelas tragédias, pela violência das nossas cidades, pelos traficantes, pelos milicianos, pelo suicídio, pela causa do Evangelho etc., além daquelas que morreram na sua fé, na sua alegria ou na sua esperança, estamos como as mulheres do Evangelho que acabamos de ouvir, levando perfumes conosco, na esperança de que o bom cheiro desses perfumes afaste para longe de nós o mau cheiro da morte.
O salmista dizia: “Eu espero, Senhor, eu espero com toda a minha alma, esperando tua palavra” (Sl 130,5). E a Palavra do Senhor vem como luz que aos poucos vai clareando a noite escura da nossa vida, a noite que ficou mais escura ainda porque determinados acontecimentos apagaram em nós a chama da fé, da esperança, da alegria e do amor. E a primeira luz que o Senhor nos acende é a narrativa da criação: homem e mulher criados à imagem e semelhança de Deus, cuidando da Terra como se cuida de um jardim, alimentando-se de sementes, plantas e frutos, sem derramamento de sangue. “E Deus viu tudo quanto havia feito, e eis que tudo era muito bom” (Gn 1,31). A luz desta Palavra está direcionada para o futuro, pois o Senhor diz: “Eu conheço os desígnios que formei a respeito de vocês – desígnios de paz e não de desgraça, para dar-lhes um futuro e uma esperança” (Jr 29,11).
No entanto, os desígnios do Senhor às vezes se tornam incompreensíveis para nós, de modo que Aquele que quer nos dar um futuro e uma esperança pede que Lhe sacrifiquemos justamente aquilo que é a garantia do nosso futuro e da nossa esperança. Desse modo, a segunda luz que se acende nesta noite é a leitura do sacrifício de Isaac. Ela fala da noite escura da provação de Abraão, a mesma provação que passamos quando Deus permite que a vida tire de nós aquilo que mais amamos. É o momento em que a imagem que tínhamos de Deus se quebra, o momento em que Deus parece esconder de nós o Seu rosto e nos abandonar a nós mesmos. Mas essa noite escura é necessária para o amadurecimento da nossa fé, porque cada um de nós precisa responder a si mesmo: Eu confio em Deus apenas por causa das consolações que recebo d’Ele ou continuaria a confiar mesmo que Ele retirasse da minha vida todas as Suas consolações?
A noite da provação é uma noite longa, mas se quisermos fazer a nossa páscoa, a passagem do medo para a fé, da escravidão para a liberdade, da tristeza para a alegria, precisamos nos colocar a caminho, confiando que o Senhor nos conduzirá a um lugar melhor. Esta é a terceira luz que se acende nesta noite. Diante das situações que nos escravizam ou nos adoecem, o Senhor pergunta a cada um de nós: ‘Você quer verdadeiramente se libertar? Eu sou o Senhor que faço você sair da escravidão do Egito, faço você atravessar o mar Vermelho e faço você entrar na Terra Prometida, mas você precisa se dispor a caminhar comigo, você precisa deixar-se conduzir pelo meu Espírito, pois é a força d’Ele que fará você passar em meios aos obstáculos e prosseguir o seu caminho rumo ao futuro e à esperança que preparei para você’.   
Só existe páscoa (passagem) porque o Senhor abre uma passagem onde ela não existe, e nos faz passar ali. Mas também é preciso que se diga que só existe passagem porque nós decidimos confiar no Senhor e passar. É por isso que o Senhor declara: “Ouçam-me e você terão vida” (Is 55,3). ‘Quem está com sede, venha para as águas! Quem está com fome, venha comer! Não é necessário pagar pela bebida, nem pela comida, porque a minha salvação é dom, é graça, e não mérito de alguma pessoa!’ Eis, portanto, a quarta luz desta noite: “Busquem o Senhor, enquanto pode ser achado; invoquem por Ele, enquanto está perto” (Is 55,6). ‘Façam a páscoa, enquanto a passagem está aberta! Se a vida travou e a passagem não está acontecendo, certamente é porque os pensamentos e os caminhos de vocês se desviaram dos pensamentos e dos caminhos do Senhor. Portanto, coloquem em ordem a vida de vocês!’
São Paulo apóstolo nos traz a quinta luz desta noite. Ele nos lembra que nenhum de nós participou da passagem pelo mar Vermelho, mas todos nós passamos por outra água, a água do Batismo. Graças ao Batismo, nós pudemos nos tornar semelhantes a Jesus Cristo na sua morte, para que um dia nos tornemos semelhantes a Ele na sua ressurreição. Contudo, o Batismo não é algo mágico: não basta ter sido batizado; é preciso esforçar-se por viver como uma pessoa batizada, o que significa decidir morrer para o pecado e viver para Deus a cada dia, a exemplo de seu Filho Jesus.  
Por fim, a Palavra do Senhor nos traz luz sobre a passagem mais difícil de todas, aquela que nenhuma pessoa pode fazer por si mesma: a passagem da morte para a vida. Quando nossas esperanças são sepultadas e uma pedra é colocada sobre elas, para dizer que ali se encerra a nossa busca, a nossa luta, a nossa tentativa de passar; quando precisamos admitir que chegou o fim e é o momento de aceitá-lo, a Palavra do Senhor se pronuncia sobre a nossa morte, também sobre a morte da nossa fé, para remover a pedra e dizer que não devemos procurar entre os mortos Aquele que está vivo (cf. Lc 24,5-6), da mesma forma como nunca podemos dar por morta a nossa fé, porque para Deus nenhuma passagem é impossível. Portanto, diante do túmulo vazio de Jesus, cada um de nós pode suplicar ao Deus que abre os mares, que abra-os a cada um de nós também; que o mesmo Deus, que dissipou a morte de seu Filho, dissipe a morte de cada um de nós também; enfim, que o mesmo Deus que ressuscita os mortos, ressuscite a cada um de nós também!

Cantemos:
   
Quando o mar Vermelho em minha vida impedir a travessia, quando a morte ameaçar invadir a Terra Prometida, por Teu Nome eu irei clamar. Quando as portas se fecharem para mim, quando a tranca eu não puder quebrar, gritarei por Teu auxílio, meu Senhor. Tuas mãos irão me sustentar, me sustentar.

Tu que abres as portas, Tu que abres os caminhos, Tu que abres os mares abre também pra mim! Tu que amas os fracos, Tu que encontras os perdidos, Tu que dissipas a morte vem dissipá-la em mim! Vem dissipá-la em mim, Senhor. Vem dissipá-la em mim. Vem dissipá-la em mim, Senhor. Vem dissipá-la em mim.
Ressuscita-me, Senhor. Ressuscita-me, Senhor. Ressuscita-me, Senhor pelo poder do Teu amor! (bis)

Abrindo mares (Pe. Fábio de Melo)

Pe. Paulo Cezar Mazzi


terça-feira, 16 de abril de 2019

TODA SITUAÇÃO PODE TORNAR-SE LUGAR DE SALVAÇÃO

Adoração da cruz. Palavra de Deus: Isaías 52,13 – 53,12; Hebreus 4,14-16 – 5,7-9; João 18,1 – 19,42. 

     Um tipo de crime está, infelizmente, se tornando comum em nosso país: o feminicídio – homens que, por não aceitarem o fim do relacionamento, matam sua companheira. Por trás dessa não aceitação do fim do relacionamento está o problema de não saber lidar com a frustração. Aliás, esse não saber lidar com a frustração parece também motivar crimes absurdos como atentados em escolas, e o Brasil lamentavelmente começou a importar esse tipo de crime, como vimos recentemente acontecer numa escola em Suzano (SP).
     Que geração é essa que não aceita ser frustrada? De onde estão nascendo essas pessoas que são aceitam ouvir um “não”? Elas estão nascendo das nossas famílias. Mas o problema não está na genética e sim na educação, no sentido de preparar essas pessoas para a vida. Nós não apenas estamos criando pessoas incapazes de lidarem com frustrações, como também estamos nos tornando pessoas assim, incapazes de lidar com algum tipo de sofrimento. Nunca houve uma geração tão bem informada como a nossa, tão presenteada com tecnologias e objetos de consumo que nos favorecem uma vida de bem-estar. Mas também nunca houve uma geração tão avessa ao sofrimento como a nossa, tão melindrada e tão incapaz de suportar frustração como a nossa. Em resumo: nunca houve uma geração que tenha repulsa da cruz como a nossa.
     Victor Frankl, um médico judeu, foi forçado a viver num campo de concentração, como milhares de outros judeus. Ali ele começou a ser perguntar: Por que algumas pessoas enlouquecem ou se suicidam diante do sofrimento a que são submetidas, enquanto outras conseguem suportá-lo e sobreviver? Ele encontrou a resposta: diante da mesma situação de um sofrimento torturador, sobrevivem aquelas pessoas que têm esperança, que têm alguém esperando por elas fora do campo de concentração; sobrevivem aquelas pessoas que escolhem dar um sentido ao sofrimento pelo qual estão passando. Quem tem uma razão, um sentido para viver, suporta qualquer tipo de sofrimento.
     Embora nós façamos de tudo para não sofrer, o dia de hoje nos lembra que não existe vida sem sofrimento; ninguém passa pela existência humana sem lidar com alguma frustração, sem ouvir um “não”, sem ter que lidar com perdas, sem se deparar com algum tipo de cruz. Nós nem sempre escolhemos sofrer, mas sempre podemos escolher como lidar com determinado sofrimento, porque somos capazes de dar um sentido à nossa dor, à nossa cruz. Jesus deu um sentido à sua própria cruz ao compreender que o sentido da existência do grão de trigo não é ficar guardado numa gaveta, mas cair na terra, morrer e produzir muito fruto (cf. Jo 12,24). O sentido da vida não é preservar-se de todo tipo de dor, mas fazer da sua dor uma oportunidade de crescimento, de amadurecimento, de serviço em favor do bem da humanidade.  
     Ao falar do Servo Sofredor, o profeta Isaías disse que “Ele cresceu diante do Senhor, como raiz em terra seca”. Nenhuma criança se torna uma pessoa madura sendo poupada de todo tipo de frustração. Nós só crescemos espiritualmente e amadurecemos emocionalmente na experiência da aridez, do sofrimento. Mas, cuidado! Não se trata de viver à procura de sofrimento; trata-se de enfrentar o sofrimento que faz parte da sua história de vida; sobretudo, da sua fidelidade à vontade de Deus. Jesus não foi para a cruz porque gostava de sofrer, mas porque decidiu amar a humanidade até o fim (cf. Jo 13,1), ainda que esse “fim” fosse sua morte numa cruz.
Sempre que você faz uma experiência de cruz, a imagem que você tem de Deus se quebra: “(Ele) não tinha beleza, nem atrativo para o olharmos, não tinha aparência que nos agradasse... Homem coberto de dores, cheio de sofrimentos... Figura desprezível” (Is 53,2-3). Com que olhos você se vê quando está sofrendo? Você vê apenas a sua casca, ou é capaz de enxergar mais profundamente as transformações que estão acontecendo em você com a experiência da dor? Seus ouvidos estão abertos para ouvir Deus também quando Ele te fala por meio de um acontecimento ruim? “Desde que Cristo morreu na cruz, toda situação, inclusive a mais frágil e trágica ou a aparentemente falimentar e maldita, pode tornar-se lugar e causa de salvação” (Pe. Amedeo Cencini). Você crê nesta verdade?
Hoje é um dia muito apropriado para nos lembrarmos desta palavra de Jesus: “Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). O que nos atrai para Jesus na cruz é a sua atitude de recolher em si toda dor, todo sofrimento, toda morte, e entregar tudo ao Pai, o único que pode transformar a morte em vida. O que nos atrai para a cruz é ver nela Aquele que é o nosso Sumo sacerdote – aquele que está entre o céu e a terra, entre Deus e os homens – como uma ponte, como o Sumo Pontífice – o Sumo sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas. É por isso que o autor da carta aos Hebreus nos convida a permanecer “firmes na fé que professamos. Com efeito, temos um sumo sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas... Aproximemo-nos então, com toda a confiança, do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento oportuno” (Hb 4,14-16). Ao ressuscitar seu Filho, o Pai transformou a cruz no trono da graça. Diante deste trono, os condenados são absolvidos, os pecadores são perdoados e os doentes são curados, conforme diz a Escritura: “por suas feridas fostes curados” (1Pd 2,24). Se o Pai permitiu a morte de seu Filho na cruz foi porque esta morte geraria em cada um de nós o fruto da ressurreição.  
Enfim, não pensemos que Jesus “tirou de letra” essa experiência terrível de ser crucificado! O autor da carta aos Hebreus afirma que ele “dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte. E foi atendido, por causa da sua entrega a Deus. Mesmo sento Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que sofreu” (Hb 5,7-8). Jesus jamais negou sua repulsa humana diante da dor, do sofrimento e da morte, mas ele transformou essa repulsa em oração, uma oração tão profunda e sincera que foi atendida pelo Pai; não atendida livrando-o de passar pela cruz, mas atendida enquanto ressuscitando-o após a morte de cruz.
Aqui, mais um ensinamento para nós. Não é o fato de o Pai ter deixado morrer aquilo que tanto suplicamos que salvasse da morte que significa que Ele ignorou a nossa súplica e as nossas lágrimas. Deus tem uma outra forma de responder à nossa oração. A verdadeira vida que Ele tem para nos dar não é esta vida terrena e constantemente ameaçada pela morte, mas a vida eterna. Portanto, só a fé no amor do Pai por nós pode nos livrar de enlouquecermos ou de perdermos o sentido da vida por causa da cruz que atravessou o nosso caminho. Jesus aprendeu a confiar neste amor do Pai por aquilo que ele sofreu. Assim também será conosco: aquilo que sofremos poderá ser vivido como uma redescoberta da presença do Pai em nossa vida, se estivermos abertos a aprender o que Ele está querendo nos ensinar. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

DA ANTIGA À NOVA PÁSCOA


Missa da Ceia do Senhor. Palavra de Deus: Êxodo 12,1-8.11-14; 1Coríntios 11,23-26; João 13,1-15.

                 Os textos bíblicos que ouvimos nesta noite nos falam de duas páscoas: a dos hebreus e a de Jesus. Meditando sobre essas duas páscoas, somos convidados a fazer a nossa própria páscoa.  Depois de viver 400 anos escravo no Egito, o povo hebreu foi liberto por Moisés, mas essa libertação não se deu sem luta. Primeiro, foi preciso lutar para vencer as resistências do faraó (as dez pragas); depois, foi preciso lutar para vencer as resistências do próprio povo hebreu (o medo). Quando decidimos fazer a passagem da escravidão para a liberdade, do pecado para a santidade, do egoísmo para a solidariedade, temos que enfrentar resistências dentro e fora de nós; sem enfrentá-las, não fazemos a passagem que desejamos, que precisamos.         
                 A passagem dos hebreus da escravidão para a liberdade foi preparada por meio de um ritual: as famílias se reuniram, sacrificaram alguns cordeiros, passaram seu sangue nas portas de suas casas, comeram pães sem fermento e ervas amargas. Isso significa que, se queremos nos libertar do mal que nos escraviza e faz a nossa vida definhar, precisamos nos manter unidos (família), estar dispostos a nos sacrificar por aquilo e por aqueles que amamos (este é o sentido do cordeiro), carregar conosco o sinal da nossa fé (o sangue que marcou as portas), viver como pães sem fermento, isto é, como pessoas retas e justas, e nos lembrar do quão amarga se torna a nossa vida quando nos deixamos escravizar pelo pecado (ervas amargas).
                 O relato da páscoa dos hebreus termina com uma ordem de Deus: esta festa deve ser celebrada de geração em geração (cf. Ex 12,14). E assim foi até a época de Jesus. Mas justamente na celebração da páscoa dos hebreus Jesus escolheu fazer a sua Páscoa. “Antes da festa da páscoa”, começa o Evangelho que narra a última ceia de Jesus. Antes de entregar-se na cruz, Jesus se entregou num pedaço de pão, dizendo: “Isto é o meu corpo que é dado por vós” (1Cor 11,24) e num pouco de vinho, dizendo: “Este cálice é a nova aliança em meu sangue” (1Cor 11,25). E terminou a ceia dizendo: “Fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24.25).
Para entendermos o significado da palavra “memória”, o apóstolo Paulo nos esclarece: “Todas as vezes que comerdes desse pão e beberdes desse cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha” (1Cor 11,26).Todas as vezes que celebramos a Eucaristia, estamos proclamando que Jesus nos amou até o fim, e por isso se entregou por nós na cruz. Além disso, estamos proclamando que Ele ressuscitou e que um dia virá para nos conduzir à Páscoa definitiva: a nossa passagem deste mundo transitório para o Reino eterno do Pai.
Ao nos dar o seu Corpo e o seu Sangue na Eucaristia, Jesus nos convida a fazer a difícil passagem de quem desistiu de amar para quem decidiu amar até o fim: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Jesus nos convida a ter uma atitude pascal para com as pessoas, e essa atitude pascal significa amar até o fim aqueles que Deus confiou aos nossos cuidados. Ao nos fazer assentar à mesa da Eucaristia, Jesus também nos convida a fazer a difícil passagem de quem espera ser servido pelos outros para quem decide servir aos outros: “Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,14-15). 
O que significa, no mundo de hoje, lavar os pés uns dos outros? Significa perceber que, onde quer que estejamos, existe alguém que precisa de nós. “Não devemos permitir que alguém saia da nossa presença sem sentir-se melhor e mais feliz” (Madre Teresa de Calcutá). Lavar os pés uns dos outros significa ainda ajudar e fazer o bem também às pessoas que não nos são simpáticas, também àquelas que nos traem ou nos prejudicam, a exemplo de Jesus, que lavou também os pés de Judas, que o traiu, e de Pedro, que o negou três vezes...
Enfim, em nosso dia a dia lembremos de que “há sempre um lar que nos espera, um ambiente carente, um serviço urgente. Há pessoas que aguardam nossa presença compassiva e servidora, nosso coração aberto, nossa acolhida e cuidado amoroso... Sempre teremos ‘pés’ para lavar, mãos estendidas para acolher, irmãos que nos esperam, situações delicadas a serem enfrentadas com coragem... Isso é viver a Eucaristia no cotidiano da vida” (Pe. Adroaldo).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 11 de abril de 2019

O CORPO NA CRUZ, MAS O ESPÍRITO NAS MÃOS DO PAI


Missa do domingo de ramos. Palavra de Deus: Isaías 50,4-7; Filipenses 2,6-11; Lucas 23,1-49.

            Nosso mundo está cheio de histórias de vidas interrompidas por uma tragédia, uma doença, um acidente, um atentado terrorista etc. No Brasil, mais de 60 mil pessoas são assassinadas por ano: são vidas interrompidas pela violência, que por sua vez é consequência direta da desigualdade social, que por sua vez é fabricada pela corrupção que, como uma espécie de câncer, se espalha e atinge órgãos vitais como a Política e a Justiça em nosso País. Por fim, cresce no Brasil e no mundo o número de vidas interrompidas pelo suicídio: são crianças, adolescentes, jovens, adultos e até mesmo idosos que decidiram pôr fim à própria existência, seja porque não conseguiram lidar com seus problemas, seja porque a vida perdeu o sentido para eles.
            O Evangelho de hoje nos coloca diante de Jesus, cuja vida foi interrompida pela maldade e pela violência cega dos líderes religiosos e políticos da sua época. Por quatro vezes, Pilatos declarou Jesus totalmente inocente, sem culpa alguma; portanto, sem motivo algum que justificasse sua condenação à morte: “Não encontro neste homem nenhum crime” (Lc 23,1.4); “Já o interroguei diante de vós e não encontrei nele nenhum dos crimes de que o acusais” (Lc 23,14); “Não encontrei nele nenhum crime que mereça a morte” (Lc 23,22). No entanto, todas as tentativas de Pilatos de declarar a inocência de Jesus e libertá-lo de uma condenação injusta falharam: “Mas eles gritavam: ‘Crucifica-o! Crucifica-o!’” (Lc 23,22).    
                Quantas pessoas hoje são condenadas à morte injustamente? Há alguém que se levante para defender essas pessoas? Recentemente a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) denunciou: “Reconhecemos que o sistema da Previdência precisa ser avaliado e, se necessário, adequado à Seguridade Social. Alertamos, no entanto, que as mudanças contidas na PEC 06/2019 sacrificam os mais pobres, penalizam as mulheres e os trabalhadores rurais, punem as pessoas com deficiência e geram desânimo quanto à seguridade social, sobretudo, nos desempregados e nas gerações mais jovens” (Mensagem sobre a Reforma da Previdência). Nós estamos atentos a isso, ou acreditamos ingenuamente na propaganda mentirosa do Governo de que a Reforma da Previdência visa combater privilégios?
            Enquanto algumas mulheres choravam por causa de Jesus, ele se voltou para elas e disse: “Não choreis por mim! Chorai por vós mesmas e por vossos filhos!” (Lc 23,28). Graças às novas tecnologias, nós estamos nos afastando cada vez mais da vida real e nos distraindo com vídeos, filmes e séries do mundo virtual. Somos expectadores que se emocionam e choram com cenas projetadas na tela do nosso celular, do nosso computador ou da nossa TV Full HD (“Full High Definition”, Alta Definição Completa), mas não enxergamos as injustiças que acontecem com pessoas reais próximas a nós. Não nos damos conta de que a mesma violência que hoje as atinge, amanhã nos atingirá.
Jesus ainda disse àquelas mulheres: “Porque, se fazem assim com a árvore verde, o que não farão com a árvore seca?” (Lc 23,31). Enquanto Jesus é a árvore verde, o homem justo e inocente, que foi cortado da face da terra ao morrer na cruz, nós somos “árvores secas”, isto é, pessoas que secaram na sua fé, na sua esperança e no seu amor, pessoas que deixaram de acreditar na força do bem e passaram a acreditar na força do mal, das armas, de políticos ligados às milícias do Rio de Janeiro, ágeis em matar pobres, negros, políticos e juízes que investigam militares, policiais e ex-policiais que se tornaram assassinos profissionais. Eis, portanto, o alerta de Jesus: se a violência extermina pessoas boas, imagine o que ela fará com aqueles que estão se convencendo de que não vale mais a pena ser bom...
Ao ser pregado na cruz, Jesus ora ao Pai por aqueles que o crucificam: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!” (Lc 23,34). Muitos dos nossos erros nascem da nossa ignorância. Escolhemos o mal achando que estamos escolhendo o bem, sobretudo numa época como a nossa, de uma inversão tão profunda de valores, onde muitas pessoas já não se preocupam com o certo e o errado, mas apenas com aquilo que lhes parece mais conveniente para satisfazer o seu desejo de felicidade. Esta oração de Jesus nos desafia a enxergar para além do mal que alguém está nos provocando e perceber o quanto a pessoa está agindo não por maldade nua e crua, mas por estar totalmente enganada em relação a nós.    
  Os dois homens que foram crucificados com Jesus retratam duas maneiras diferentes de lidarmos com a nossa própria cruz. “Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: ‘Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!’ Mas o outro o repreendeu, dizendo: ‘Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal’” (Lc 23,39-41). Assim como o primeiro malfeitor, nós às vezes custamos a reconhecer a nossa responsabilidade na cruz que surgiu em nosso caminho. Por mais que detestemos admitir isso, o fato é que boa parte dos nossos sofrimentos é produzida por nós mesmos. Daí o alerta do segundo malfeitor: “Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos” (Lc 23,41). Portanto, antes de reclamar, façamos uma séria autocrítica para perceber a nossa parcela de responsabilidade no mal que nos atinge.
Após convidar o primeiro malfeitor à autocrítica, o segundo malfeitor suplica a Jesus: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”, ao que Jesus lhe responde: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,42-43). Algo maravilhoso acontece aqui! Um homem condenado de maneira justa, e condenado duplamente, perante os homens e perante Deus, nos seus últimos instantes de vida lança mão da sua fé em Jesus e suplica por salvação. E aquele que antes estava definitivamente condenado agora é salvo, uma salvação declarada nas palavras de Jesus: “ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43). Quem dera nós ouvirmos isso de Jesus nos momentos finais da nossa vida! Precisamos nos convencer acerca desta verdade: “Não existe mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus” (Rm 8,1).            
            Por fim Jesus, nos instantes finais da sua vida, escolhe deixar este mundo orando ao Pai, orando como orou a vida toda, sobretudo nos momentos fortes e mais significativos, testemunhados por São Lucas ao longo de todo o seu Evangelho. E Jesus ora gritando: “‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’. Dizendo isso, expirou” (Lc 23,46). O corpo de Jesus está pregado numa cruz, mas o seu espírito está livre para lançar-se nos braços do Pai. Nós também podemos fazer essa experiência: mesmo estando fisicamente neste mundo, mesmo estando com o nosso corpo preso à cruz de uma doença, de uma injustiça ou de um sofrimento, nosso espírito não está preso a nenhuma cruz; nosso espírito é livre e tem onde se lançar: nos braços do Pai. O Pai que acolheu o espírito de Jesus e de todos os que morreram injustamente, o Pai que um dia acolherá o espírito de cada um de nós é o Pai capaz de nos ressuscitar, o Pai que fará justiça a todos os injustiçados deste mundo, o Pai que julgará todos os que condenam injustamente à morte tantos inocentes.
            Desse modo, nossa oração não poderia ser outra hoje, senão a mesma de Jesus: “Senhor, eu ponho em vós minha esperança; que eu não fique envergonhado eternamente! Em vossas mãos, Senhor, entrego o meu espírito, porque vós me salvareis, ó Deus fiel! As pessoas me esqueceram como um morto, e tornei-me como um vaso espedaçado. A vós, porém, ó meu Senhor, eu me confio, e afirmo que só vós sois o meu Deus! Eu entrego em vossas mãos o meu destino; libertai-me do inimigo e do opressor! Mostrai serena a vossa face ao vosso servo, e salvai-me pela vossa compaixão! Fortalecei os corações, tende coragem, todos vós que ao Senhor vos confiais!” (Sl 31,2.6.13.15-17.25). 

Pe. Paulo Cezar Mazzi
  


quinta-feira, 4 de abril de 2019

A PÁGINA PRINCIPAL DO LIVRO DA SUA HISTÓRIA SE CHAMA "HOJE"

Missa do 5º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Isaías 43,16-21; Filipenses 3,8-14; João 8,1-11.

            Van Thuan, um grande cardeal da nossa Igreja, afirmou: “Não há santos sem passado, nem pecadores sem futuro”. Inúmeras pessoas que atualmente estão no caminho de Deus tiveram um passado de erros e de pecados. Da mesma forma, pessoas que atualmente julgamos perdidas numa vida de erros e de pecados – portanto, sem possibilidade de salvação –, encontram em Deus um futuro que pode ser diferente do que tem sido suas vidas até hoje. Precisamos nos dar conta de que o passado tem, sim, o poder de marcar a nossa história de vida, mas não tem o poder de determiná-la. Se nós não temos o poder de apagar a história de vida que escrevemos no passado, temos o poder de escrever uma nova história a partir de hoje.
            Eis como Deus convida o povo de Israel a virar a página do passado e a escrever o seu presente de uma forma nova: “Não relembreis coisas passadas, não olheis para fatos antigos. Eis que eu farei coisas novas, e que já estão surgindo: acaso não as reconheceis? Pois abrirei uma estrada no deserto e farei correr rios na terra seca” (Is 43,18-19). Israel estava cometendo um erro: ele conseguia reconhecer a presença de Deus em sua história de vida no passado, no grande acontecimento do Êxodo (libertação do Egito), mas não estava conseguindo reconhecer esse mesmo Deus no presente da sua história. Deus corrige Israel, afirmando que Ele fará “coisas novas”, porque a nossa vida presente não é mera repetição do passado, mas abertura para um novo futuro.
            Nós conhecemos muitas pessoas que vivem seu presente em função do passado: ao invés de valorizar a porta que hoje a vida está lhes abrindo e entrar por ela, dando a si mesmas a chance de um futuro e de uma esperança, elas decidiram se sentar diante da porta que lhes foi fechada e chorar, tornando-se amargas e deprimidas. Para não alimentarmos em nós essa atitude doentia e sabotadora, o apóstolo Paulo nos dá o seu próprio testemunho: “esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente. Corro direto para a meta, rumo ao prêmio, que, do alto, Deus me chama a receber em Cristo Jesus” (Fl 3,13-14).   
Quando Paulo olhava o seu passado, não reconhecia apenas seus erros, mas algo muito mais importante: “Eu fui alcançado por Cristo Jesus e por isso agora corro para alcançá-lo” (citação livre de Fl 3,12). O perdão que Jesus nos concedeu na cruz nos libertou da condenação do nosso passado, de modo que nós agora estamos livres para correr em direção à meta, que é a nossa salvação. Em outras palavras, o que determina a nossa vida não são as escolhas que fizemos e as decisões que tomamos ontem, mas as escolhas que estamos fazendo e as decisões que estamos tomando hoje. Dizendo ainda de outra forma, a página principal do livro da nossa vida é aquela que estamos escrevendo hoje, e não as que foram escritas até ontem.
É assim que nós podemos entender a atitude de Jesus para com a mulher que foi pega cometendo adultério e que os fariseus e mestres da Lei querem apedrejar. Diante do fato de que “Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres” (Jo 8,5), Jesus responde: “Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra” (Jo 8,7). Ninguém de nós tem um passado totalmente limpo, isento de erros e de enganos. E ainda que alguém o tivesse, ninguém de nós está garantido de nunca errar, se enganar e pecar. É por isso que o salmista suplica a Deus: “Não entres em julgamento com teu servo, pois frente a ti nenhum vivente é justo” (Sl 143,2). Quando nos colocamos com sinceridade diante de Deus, reconhecemos que as pedras que estamos prontos para atirar sobre aqueles que julgamos estar condenados por seus erros acabarão por atingir a nós mesmos, pois todos somos pecadores e todos necessitamos de perdão.  
Meditando sobre este Evangelho, o Pe. Flávio Sobreiro escreveu: “Jesus olhou para aqueles que desejavam por fim àquela história e lhes mostrou que as histórias de cada vida eram tão mal escritas quanto às daquele livro que estava prestes a ser apagado da história. Quando todos olharam para suas belas capas de perfeição descobriram o conteúdo mal redigido de suas vidas”. No livro da nossa história de vida, todos nós já escrevemos palavras ou frases das quais hoje nos arrependemos, mas que não podem ser apagadas. No entanto, Jesus nos convida a olhar para o livro da nossa história de vida para além da capa, para além das páginas que registram erros que cometemos no passado, porque “para Ele, antes do pecado, vem o pecador. No coração de Deus, eu, você, cada um de nós, vem em primeiro lugar; vem antes dos erros, das normas, dos juízos e das nossas quedas” (Papa Francisco).
         Depois que os acusadores daquela mulher foram embora, pois todos eles já tinham pecado alguma vez na vida, “Jesus se levantou e disse: ‘Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?’ Ela respondeu: ‘Ninguém, Senhor’. Então Jesus lhe disse: ‘Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais’” (Jo 8,10-11). Com a palavra mais uma vez, o Pe. Flávio Sobreiro: O ser humano é um grande livro escrito pela vida... Muitas pessoas escreveram suas histórias de modo triste. Rabiscaram frases corretas e apagaram páginas de felicidade. Outros apagaram os erros e reescreveram novas frases de esperança... Aquilo que escrevemos nas páginas de nossa história pode não ter sido tão bonito como havíamos sonhado. A vida não nos permite arrancarmos as páginas de nosso livro da vida, mas ela permite que reescrevamos frases de um tempo novo que se chama hoje. Nas linhas da vida, Deus nos oferece a borracha do perdão que apaga os erros de frases mal escritas. Muitos podem olhar para a capa de seus erros, mas Deus olha para aquilo que você ainda vai escrever”.  

            ORAÇÃO: Cristo Jesus, aqui estou com o livro da minha história de vida, uma história que contém erros e acertos. Reconheço que não posso mudar meu passado, mas também não devo lhe dar o poder de bloquear o meu presente e estragar o meu futuro. Quero me reconciliar com minha história, perdoando-me pelos erros que cometi ao lidar com o meu desejo de ser feliz. “Esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente” (Fl 3,13), para o abraço do Teu perdão.
            Jesus misericordioso, peço-Te por mim e por todas as pessoas que se sentem condenadas por seus erros: liberta-nos da culpa paralisante; ajuda-nos a enxergar a nós mesmos e aos outros para além dos nossos erros. Com alegria, acolhemos esta nova página em branco que se chama “hoje”, na qual podemos começar a escrever uma nova história, grávida de esperança e aberta ao futuro. Obrigado por nos lembrar de que não existe mais condenação para aqueles que creem na força redentora do Teu sangue. Obrigado por nos fazer acreditar que todos nós podemos escrever uma história diferente a partir de hoje!

Pe. Paulo Cezar Mazzi