quinta-feira, 25 de novembro de 2021

LEVANTADOS PELA FÉ E DE CABEÇA ERGUIDA PELA ESPERANÇA

 Missa do 1. dom. do advento. Palavra de Deus: Jeremias 33,14-16; 1Tessalonicenses 3,12 – 4,2; Lucas 21,25-28.34-36.

 

Prestemos atenção a essas expressões da leitura de Jeremias: “virão dias”, “bens futuros”, “farei brotar”, “fará valer”, “será salvo”, “terá uma população confiante”. Todas elas estão no tempo futuro. Todas elas foram pronunciadas quando o presente do povo de Israel estava marcado por dor, sofrimento, tristeza, angústia, falta de perspectiva de vida.

Sempre que estamos enfrentando uma dificuldade, a nossa tendência é nos fechar naquele momento, como se aquela situação fosse definitiva. Por causa da dor ou do sofrimento que estamos enfrentando, nós nos vemos trancados num quarto escuro, sem porta e sem janela, sem saída, como se fôssemos ficar ali para sempre. Nos esquecemos das palavras que Deus disse ao seu povo: “Existe recompensa para a tua dor... Há esperança para o teu futuro” (Jr 31,16.17).  

“Recompensa”, “esperança”, “futuro”. Enquanto os nossos olhos não conseguem enxergar para além do problema que estamos enfrentando, os olhos de Deus veem além. Nenhuma dor deveria nos tornar incapazes de enxergar além. Nenhum sofrimento deveria nos fazer esquecer de que existe um futuro, um depois, um desdobramento. Nada ficará como está, definitivamente. Nossa vida está inserida no plano de Deus, o qual tem como plenitude o “dia da vinda de nosso Senhor Jesus, com todos os seus santos” (1Ts 3,13). Em outras palavras, Alguém está vindo! Nós aguardamos Aquele que transfigurará o nosso corpo humilhado (cf. Fl 3,20-21), Aquele que disse: “Eis que venho em breve, e trago comigo o salário para retribuir a cada um conforme o seu trabalho (conduta)” (Ap 22,12); Aquele que fará justiça e separará os que fazem o bem daqueles que fazem o mal (cf. Mt 25,31-46; Ap 14,14-20), Aquele que enxugará as lágrimas de todos os rostos e destruirá o mal e a morte para sempre (cf. Ap 21,4).

Estamos iniciando o tempo do advento – a espera por Aquele que vem. Espera tem a ver com esperança. Assim como os sobreviventes dos campos de concentração nazistas não enlouqueceram e não se suicidaram porque tinham esperança de reencontrar algum ente querido quando o holocausto terminasse, assim a esperança é fundamental para conseguirmos suportar o momento presente e confiar que a nossa história não está nas mãos do acaso, mas nas mãos do Senhor Deus, que estabeleceu o Seu Filho como Princípio e Fim (cf. Ap 1,17; 22,5), Aquele que tem a palavra final sobre a história humana.      

Jesus afirmou claramente a respeito da sua segunda vinda: quando as forças do céu e da terra forem abaladas, nós o veremos “vindo numa nuvem com grande poder e glória” (Lc 21,27). Além disso, Ele afirmou que deseja nos encontrar em pé, ou seja, firmes em nossa fé. Lembremos da pergunta que Ele fez: “Quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc 18,8). A fé que Jesus pede de nós é aquela que não se abala diante de tudo o que é abalado à nossa volta. É a fé que não se desespera por causa das dores de parto, mas se mantém firme na esperança da vida nova que está nascendo em meio às dores. Foi por isso que Jesus disse: “Quando estas coisas começarem a acontecer, levantem-se e ergam a cabeça, porque a libertação de vocês está próxima” (Lc 21,28).

“Levantem-se e ergam a cabeça”. Enquanto os problemas tendem a nos puxar para baixo, a fé nos levanta e nos faz olhar para o alto, para Aquele que está acima de todas as coisas. Deus não nos quer derrubados e vencidos, mas em pé, enfrentando aquilo que nos cabe enfrentar, olhando a realidade nos olhos e sabendo que foi exatamente esse o tempo em que fomos chamados a viver e a dar testemunho da nossa fé e da nossa esperança. Como diz a Palavra: “Se nós trabalhamos e lutamos, é porque pomos a nossa esperança no Deus vivo, salvador de todos os homens, sobretudo dos que têm fé” (1Tm 4,10).

Mas, onde encontrar força para manter vivas nossa fé e nossa esperança? Na oração! “Ficai atentos e orai a todo momento, a fim de terdes força para escapar de tudo o que deve acontecer e para ficardes em pé diante do Filho do Homem” (Lc 21,36). É exatamente a força da oração que nos levanta da nossa prostração e nos faz erguer a cabeça diante das situações difíceis. Na verdade, a oração está fortemente ligada à esperança...

“Cada oração é uma expressão de esperança. Uma pessoa que não espera nada do futuro não pode orar. Só pode haver vida e movimento quando você não aceita mais as coisas como são e olha para frente rumo ao que ainda não é... Um homem com esperança não se preocupa em saber como seus desejos serão cumpridos. Assim, sua oração não se dirige à graça, mas Àquele que a proporciona... Sempre que orarmos com esperança, poremos nossa vida nas mãos de Deus. Medo e ansiedade desaparecem, tudo que recebemos e tudo de que somos privados não são nada senão um dedo apontando na direção da promessa de Deus de que vamos viver por completo” (Oração e esperança, Pe. Henri Nouwen).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

ESTE REI DEFENDERÁ OS QUE SÃO POBRES, E A VIDA DOS HUMILDES SALVARÁ

 Missa de Cristo, rei do Universo. Palavra de Deus: Daniel 7,13-14; Apocalipse 1,5-8; João 18,33b-37.

 

A figura do rei é bastante estranha para nós. No mundo atual, há pouquíssimos reis. Mas, no mundo bíblico, ela é uma figura muito forte. O rei ideal é aquele que exerce o domínio sobre seu povo em função de protegê-lo, ampará-lo, defendê-lo, garantindo-lhe vida e paz. No entanto, muitos dos reis que já existiram na terra se corromperam e abusaram do seu poder, tornando-se até mesmo tiranos. Também no mundo bíblico nós temos o registro de muitos reis que governaram o povo de Israel, sendo que somente quatro “fizeram o que agrada aos olhos de Deus”. Todos os demais foram rejeitados por Deus. É por isso que, no livro dos Reis, a frase que mais se repete é: tal rei “fez o que é mau aos olhos de Deus”.

O Salmo 72 nos apresenta o rei ideal como sendo aquele que “libertará o indigente que suplica, e o pobre ao qual ninguém quer ajudar. Terá pena do indigente e do infeliz, e a vida dos humildes salvará. Há de livrá-los da violência e opressão, pois vale muito o sangue deles a seus olhos!” (vv.12-14). O rei ideal é aquele que cuida de quem não é cuidado por ninguém, que valoriza quem o mundo despreza, que se coloca ao lado dos que estão desprotegidos e desamparados. A figura desse rei encontrou em Jesus a sua plena realização.

Jesus é o Rei-Pastor que veio buscar a ovelha perdida, reconduzir a extraviada, curar a que está ferida e restaurar as forças da que está abatida (cf. Ez 34,16). No entanto, Ele não aceitou ser “eleito” rei pelas multidões que encontraram nele uma espécie de “provedor” das suas necessidades. Isso ficou claro após ele ter saciado a fome da grande multidão: “Jesus, sabendo que viriam buscá-lo para fazê-lo rei, refugiou-se de novo, sozinho, na montanha” (Jo 6,15). Jesus não veio nos manter numa atitude infantilizada perante a vida, de quem só espera receber, de quem é mantido na sua condição de dependência. Ele veio nos levantar, nos colocar em pé e nos tornar conscientes das nossas capacidades e responsabilidades.

Se a figura do rei nos lembra o domínio sobre um povo, Jesus é aquele que veio nos libertar do domínio do mal, do domínio da escravidão do nosso pecado, do domínio de toda situação injusta. Ele veio nos devolver a liberdade de exercermos o domínio sobre nós mesmos. Essa é a questão principal e mais difícil: ter domínio sobre si, sobre seus desejos, seus instintos e sua vontade. Jesus não nos quer dominados pelos vícios, pelo consumismo, pelas ideologias políticas, pela submissão ao dinheiro, pela Internet (redes sociais) e também pela religião.

Ao celebrarmos hoje Cristo, Rei do Universo, lembramos que “o Pai entregou ao Filho o poder sobre todo ser humano” (cf. Jo 17,2), o poder de redimir, salvar e dar a vida eterna a todo ser humano. Esse poder foi exercido a partir da cruz. A cruz foi o trono de Jesus. Sua coroa de espinhos indica que ele é o Rei ferido, o Rei que sente a dor de toda pessoa ferida na face da terra. Ele não é o Rei que derrama o sangue dos seus inimigos, mas o Rei que derrama o seu próprio Sangue para reconciliar tudo o que existe no Universo. De fato, Deus Pai quis “reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz pelo sangue de sua cruz” (Cl 1,20).

A questão principal é: como podemos sair do domínio do mal que tudo adoece, arruína e destrói, e passarmos para o domínio de Cristo, que tudo liberta, cura e restaura? Deixemos com que o próprio Jesus nos responda: “Eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37). A única forma de permitirmos que Jesus reine sobre nós é nos confrontando com a Verdade. Para o mundo atual, não existe a Verdade, mas “verdades”: cada um tem a sua verdade; cada um tem a sua cabeça, a sua liberdade e a sua vontade; cada um faz o que quer. No entanto, a Verdade é uma Pessoa, a Verdade é Cristo. Seu Evangelho é a Palavra da Verdade. Somente esta Verdade nos liberta (cf. Jo 8,32).

Muitas pessoas adoecem e vivem submissas a algo ou a alguém que lhes faz mal porque não conhecem a verdade sobre si mesmas. Elas são como aquele elefante que cresceu amarrado a uma corda e não tem consciência de que ele tem força suficiente para arrebentar aquela corda e ser livre. Jesus é a Verdade que nos torna conscientes da força que nos habita. Quando usamos essa força, nos libertamos de muitas coisas que nos aprisionam e nos adoecem. O problema é que não são poucas as pessoas que preferem uma mentira que aprisiona do que a verdade que liberta. São pessoas que não querem responsabilizar-se pela própria vida, mas ter sempre alguém a quem culpar pela sua infelicidade, pelo seu fracasso.  

“Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37). Neste mundo cheio de mentiras, de máscaras, de aparências, de desinformação, de fake news, precisamos educar a nossa consciência para reconhecer a voz da Verdade em nós, voz que continuamente nos convida a sair do domínio daquilo que nos adoece e escraviza para vivermos sob o domínio daquele que é capaz de nos tornar verdadeiramente livres e capazes de autodomínio.

 

Oração: Senhor Jesus Cristo, reina sobre mim! Estende o teu domínio libertador e salvador sobre todo ser humano, especialmente sobre aquele que se encontram dominados pelo mal, pelo sofrimento, pelas injustiças e pelo pecado. Põe tua Verdade em nossos corações; liberta-nos de toda mentira, de todo autoengano. Que cada ser humano conheça a verdade a respeito de si mesmo e não se permita viver aprisionado na mentira que adoece, tira a paz e leva à autodestruição. Reina com tua Verdade e com tua Paz em nossas famílias, ambientes de trabalho, escolas e cidades. Podes reinar, Senhor Jesus! O teu poder teu povo sentirá. Que bom, Senhor, saber que estás presente aqui! Reina, Senhor, neste lugar!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

NO TEMPO DA ANGÚSTIA, TEU POVO SERÁ SALVO!

 Missa do 33. dom. comum. Palavra de Deus: Daniel 12,1-3; Hebreus, 10,11-14.18; Marcos 13,24-32

 

            No mundo em que vivemos, as mudanças não param de acontecer. Devido à tecnologia, o ritmo dessas mudanças está cada vez mais acelerado. Nem nosso cérebro, nem nosso emocional conseguem assimilar todas essas mudanças. Isso nos provoca angústia, insegurança, medo e aflição. Para onde estamos indo? Quem ou o que está  causando essas mudanças? Tudo isso gera em nós um sentimento de desorientação e de impotência.

            Contudo, o profeta Daniel nos oferece uma luz: “Será um tempo de angústia, como nunca houve até então, desde que começaram a existir nações. Mas, nesse tempo, teu povo será salvo” (Dn 12,1). Vivemos um tempo forte de angústia: desemprego, fome, imigração forçada, violência, banalização da vida, desestruturação familiar, suicídio, falta de perspectiva de futuro, doenças físicas e psíquicas, perda de fé, sentimento de ausência de Deus... Como afirmou o Papa Francisco, “nós não podemos pretender ser pessoas saudáveis num mundo doente”. Tudo o que acontece com o Planeta e com a humanidade nos afeta. Enquanto cristãos, somos parte de uma humanidade não somente ferida, mas que tem um estilo de vida que adoece.

Apesar do sentimento de angústia que marca o nosso tempo, confiamos que a nossa história não está nas mãos do acaso ou de um destino cego, mas nas mãos de Deus. Confiamos que, exatamente em meio a essa situação de angústia, “teu povo será salvo”. Essa salvação de Deus não se refere somente a nós, que ainda estamos na face da terra, mas também àqueles que já morreram. Para eles, haverá uma ressurreição que restabelecerá a justiça. Quando Deus faz justiça, Ele separa uma coisa da outra: “Muitos dos que dormem no pó da terra, despertarão, uns para a vida eterna, outros para a humilhação eterna” (Dn 12,2). Jesus confirma isso: “os que tiverem feito o bem, ressuscitarão para a vida; os que fizeram o mal, para o julgamento” (Jo 5,29).

O Evangelho que ouvimos tem um tom apocalíptico. “Apocalipse” significa “revelar”, “fazer ver além do véu”. Ao mencionar os abalos que ocorrerão no céu e na terra, Jesus não está falando do “fim do mundo”, mas do fim de um mundo específico: o mundo injusto, desigual, gerador de sofrimento, violência e morte para os mais fracos. Esse mundo desaparecerá, para dar lugar a um mundo renovado. Diante de tudo o que se abala e desaba, precisamos nos firmar nas palavras de Jesus: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mc 13,31). De fato, “o que nós esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). Diante dessa certeza, cabe-nos levar uma vida orientada pelo Evangelho, aguardando o cumprimento da promessa de Jesus: “Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória” (Mc 13,26).  

O livro do Apocalipse tem no seu horizonte essa segunda vinda de Cristo: “Eis que ele vem com as nuvens, e todos os olhos o verão” (Ap 1,7), até mesmo as pessoas que nunca o conheceram ou que se recusaram a crer nele. Jesus virá como juiz, como aquele que, julgando, separa o trigo das uvas, recolhendo o trigo no celeiro de Deus e esmagando as uvas com os pés, sinal da destruição definitiva do mal sobre a face da terra (cf. Ap 14,14-20). Se no horizonte da história está o encontro de cada pessoa com Jesus, precisamos nos perguntar se estamos cultivando a nós mesmos como trigo (pessoas que praticam o bem e a justiça) ou como uvas (pessoas que praticam o mal e a injustiça). Afinal de conta, “todos nós compareceremos perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba conforme tenha feito durante sua vida no corpo, seja o bem, seja o mal” (2Cor 5,10).     

                Justamente porque vivemos num país acostumado com a impunidade e desacreditado em relação à justiça, precisamos manter nossa consciência viva, desperta, sem nos corromper e sem nos afastar das promessas de Jesus. Precisamos lembrar que nós não somos expectadores de um filme onde se trava um combate entre o bem e o mal. Nós fazemos parte dessa luta e precisamos enfrentá-la com perseverança: “De fato, é de perseverança que vocês necessitam, para cumprirem a vontade de Deus e alcançarem o que Ele prometeu. Porque ainda um pouco, muito pouco tempo, e aquele que vem, chegará e não tardará... Não sejamos como os que abandonam a luta e se perdem, mas homens e mulheres de fé, para a conservação da nossa vida” (citação livre de Hb 10,36-37.39).   

 

            Oração: Senhor Deus, “a angústia cresce em meu coração, tira-me das minhas aflições” (Sl 25,17). Sei que não posso pretender ser uma pessoa totalmente saudável vivendo num mundo doente como o nosso. Forma minha consciência a partir dos valores do Evangelho. Concede perseverança à minha fé e firmeza à minha esperança.

            Senhor Jesus Cristo, eu creio e espero por tua Vinda. Confio na tua promessa de criar novos céus e uma nova terra, onde habitarão a justiça e aqueles que buscam ser justos. Dá-me a graça de cultivar-me como trigo, de não corromper-me no mal e de fazer o bem que estiver ao meu alcance, especialmente aos que sofrem e que são injustiçados. Unindo-me ao Espírito Santo, eu suplico com toda criação e com a Igreja: “Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22,20). Vem e resgata o teu povo de todas as suas angústias! Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

SER SANTO(A): TORNAR-SE A PESSOA QUE VOCÊ FOI CHAMADO(A) A SER

Missa de todos os Santos. Palavra de Deus: Apocalipse 7,2-4.9-14; 1João 3,1-3; Mateus 5,1-12a.

 

            Quais são as metas que o mundo nos propõe? Sucesso, felicidade, dinheiro, segurança, fama (aparecer, ser visto pelos outros), vitória etc. Em contrapartida, deixou de ser importante: honestidade, caráter, fidelidade, retidão, compromisso, amar até o fim. Pior ainda, somos ensinados a evitar: renúncia, sacrifício, frustração, autodomínio, dor e sofrimento.

            A meta dos filhos de Deus é a santidade – tornar-me a pessoa que fui chamado(a) a ser; desenvolver meus talentos; identificar e manter-me fiel à tarefa/missão para a qual nasci; não conformar-me ao mundo (não deformar-me), mas configurar-me ao Filho Jesus; viver a partir da verdade de Deus a meu respeito; passar do fazer somente aquilo que “eu quero” para fazer aquilo que “eu devo”, em sintonia com a minha identidade de filho(a) de Deus.

            A santidade é um processo em nós: ora avançamos, ora retrocedemos, ora estagnamos. Ela exige a participação da nossa vontade: “Busquem a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12,14). Ao mesmo tempo, ela é graça, dom de Deus: “A santidade não é fruto do esforço humano, que procura alcançar Deus com suas forças, e até com heroísmo; ela é dom do amor de Deus e resposta do homem à iniciativa divina” (Missal Dominical, p.1367). A santidade é, no fundo, um diálogo entre a vontade de Deus e a nossa vontade humana, quando entendemos que o que Deus quer para nós nada mais é do que a nossa felicidade. É um processo que avança quando nos colocamos como barro nas mãos do Oleiro, mas que também trava ou retrocede quando nos mantemos distantes dessas mãos (cf. Jr 18,6).

            A santificação é um processo que se inicia em nossa vida terrena. Vivendo em um mundo marcado por contravalores, que “chama o bem de mal e o mal de bem” (cf. Is 5,20), as pessoas que buscam sua santificação recebem em sua fronte “a marca do Deus vivo” (Ap 7,2.3). Se essa marca fosse visível, ela seria motivo de “orgulho” para os cristãos. No entanto, é uma marca invisível, porque se refere à consciência da pessoa. Uma vez que o nosso mundo está cheio de marcas externas, feitas para chamar a atenção sobre a pessoa, a santidade é uma marca interna, e, por isso mesmo, ignorada pelo mundo: “Se o mundo não nos conhece, é porque não conheceu o Pai” (1Jo 3,2). Portanto, só busca a santidade quem compreende que o essencial não é a aparência, mas a essência.

O que significa receber “a marca do Deus vivo”? Essa marca significa “proteção”, mas, sobretudo, “pertença”. É essa pertença que fará com que, após nossa morte, nós estejamos “de pé” (ressuscitados), “diante do trono de Deus e do Cordeiro” (seu Filho Jesus), trajando “vestes brancas” (santidade) e segurando “palmas na mão” (vitória sobre o mal e a morte). Porém, como vivemos em um mundo contrário ao Evangelho, a nossa santificação não se dá sem enfrentar inúmeras tribulações, pois não existe vitória sem luta.    

            As tribulações nos lembram que toda pessoa que busca sua santificação é uma pessoa ferida, porque se posiciona diante da realidade, defendendo os mais fracos e injustiçados. Ser santo significa tomar partido diante da realidade que se nos apresenta: “Sempre tome partido. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, não o atormentado” (Elie Wiesel, escritor judeu, sobrevivente do Holocausto). Por ter tomado partido dos que sofriam, Jesus foi crucificado. Do mesmo modo, toda pessoa que se posiciona diante da realidade, acaba por se “sujar” com o sofrimento que há no mundo, mas ela terá suas vestes lavadas no sangue do Cordeiro.    

Qual é o tempo mais apropriado para buscarmos a nossa santificação? O tempo presente, o aqui e o agora, cada dia, a vida toda: “A vocação do cristão é a santidade, em todo momento da vida. Na primavera da juventude, na plenitude do verão da idade madura, e depois também no outono e no inverno da velhice, e por último, na hora da morte” (São João Paulo II). Toda ocasião é oportuna para a nossa santificação, porque é ali que somos chamados a examinar a nossa consciência e a fazer escolhas ou a tomar decisões a partir da nossa liberdade e da nossa responsabilidade. Toda a nossa vida é um processo de transformação: “Desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele” (1Jo 3,2).

Enfim, o Evangelho de hoje nos apresenta o retrato dos santos na terra, em cuja existência se dá o processo de crucificação e de ressurreição. “Jesus, crucificado e ressuscitado, é a realização das bem aventuranças. Enquanto crucificado, cumpre a primeira parte delas: é pobre, aflito, tem fome e sede de justiça, é puro de coração, pacificador, perseguido; enquanto ressuscitado, cumpre a segunda parte: o Reino é Seu, é consolado, herda a terra, é saciado, encontra misericórdia, vê a Deus, é Filho de Deus. As bem aventuranças são a carteira de identidade do Filho” (Pe. José Pagola). Elas devem se tornar a nossa também.    

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

VIVOS OU MORTOS, PERTENCEMOS AO SENHOR

 Missa de finados 2021. Palavra de Deus: Jó 19,21-27; 1Coríntios 15,20-26.28; Lucas 12,35-40.

 

    “A mão de Deus me feriu!” (Jó 19,21). Essas palavras de Jó poderiam ser ditas por aqueles que estão doentes, pelos que estão em fase terminal de câncer, pelos que definham por anos em cima de uma cama. Essas palavras também poderiam ser ditas por famílias enlutadas, por pessoas que perderam alguém querido.

    Mas, será mesmo que os ferimentos de Jó – a perda de seus bens, a morte de seus filhos e a perda da sua saúde – foram provocados pela mão de Deus? Não! O que Deus fez foi permitir ao mal que atingisse Jó: “Eu te dou permissão para tocar nos bens dele, mas não nele” (Jó 1,12); “Eu te dou permissão para tocar nele, mas não para tirar-lhe a vida” (Jó 2,6). Nenhum mal nos atinge, sem a permissão de Deus, como ensinou Jesus: “Até mesmo os cabelos da cabeça de vocês estão contados. Vocês valem mais do que muitos pardais” (Mt 10,30-31). Tudo o que Deus permite que aconteça é visando o nosso bem, a nossa salvação. Foi assim que o apóstolo Paulo entendeu: “aprendi a viver na abundância e também a sofrer necessidade; tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4,13).

    Não foi a mão de mão de Deus que feriu Jó. Ele apenas entende que tudo vem de Deus: o bem e o mal, a alegria e a tristeza, a vida e a morte. Mas nós, cristãos, sabemos que a mão de Deus tornou-se mão humana na pessoa de seu Filho Jesus, e suas mãos trabalharam incansavelmente pela salvação de todo ser humano. A mão de Deus não é a mão que fere, mas a mão que foi ferida na cruz, para retirar do sofrimento quem ali se encontra. A mão de Deus é a mão crucificada e ressuscitada de seu Filho Jesus: “Vejam minhas mãos e meus pés... Sou eu mesmo!” (Lc 24,39).

    Contemplando as mãos crucificadas e ressuscitadas de Jesus, nós proclamamos como Jó: “Eu sei que o meu redentor está vivo e que, por último, se levantará sobre o pó; e depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne, verei a Deus. Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão” (Jó 19,25-27). A nossa fé em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado não é uma fé somente para esta vida presente: depois que nossa pele for destruída – nosso corpo consumido pela terra – nós veremos a Deus com o nosso corpo glorificado. Como nos ensina a nossa Igreja, nós cremos na ressurreição da carne: “semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita glorioso; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força” (1Cor 15,42-43). 

    Ter consciência da nossa morte nos ajuda a viver de uma outra maneira a nossa vida. “Quando entendemos que não é um dia a mais, mas sim um dia a menos, começamos a valorizar o que realmente importa” (Cora Coralina). Jesus nos provoca a essa mudança de consciência no Evangelho de hoje: “Sejam como homens que estão esperando seu senhor voltar de uma festa de casamento, para lhe abrirem, imediatamente, a porta, logo que ele chegar e bater” (Lc 12,37). No horizonte da nossa existência não está simplesmente a morte, mas o encontro com Aquele que venceu a morte e ressuscitou (cf. Ap 1,17-18). Esse encontro se dará “na hora em que vocês menos esperarem” (Lc 12,40).

    Sendo assim, como devemos nos preparar para esse encontro? Mantendo-nos fiéis à tarefa que Deus nos confiou por meio da vocação que cada um de nós recebeu. Essa tarefa aparece na imagem do “servo” fiel e prudente. O sentido da nossa existência está na tarefa que nos foi pedida para realizar. Enquanto o mundo nos incentiva a desfrutar da vida, pensando unicamente em nós mesmos, Jesus nos convida a fazer da nossa vida um serviço em favor da humanidade, exatamente como Ele, que “veio para servir não ser servido” (Mc 10,45).

    Hoje agradecemos a Deus por nos ter chamado à existência. Nos comprometemos a viver a nossa breve vida buscando ser fiéis à missão que Ele nos confiou. Agradecemos cada pessoa que passou por nossa vida e hoje não se encontra mais na terra. Renovamos a nossa fé no dia da ressurreição, quando Jesus nos unir àqueles que já partiram antes de nós e estão n’Ele (cf. 1Ts 4,13-18). Confiamo-nos todos às mãos do Pai, mãos encarnadas em seu Filho Jesus, crucificadas e ressuscitadas, mãos que cuidam de nós e nos destinam à vida eterna... 

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi