terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A NOSSA "CARNE" DEVE COMUNICAR A PALAVRA QUE É DEUS

 Missa de Natal. Palavra de Deus: Is 9,1-6; Tt 2,11-14; Lc 2,1-14 (noite). Is 52,7-10; Hb 1,1-6; Jo 1,1-18 (dia).

 

Toda pessoa que nasce, nasce num tempo determinado e numa situação determinada. Alguns nasceram em meio a guerras; outros, num ambiente de paz. Alguns nasceram numa família estabilizada financeiramente; outros, em meio a muita miséria. Alguns nasceram sendo amados e desejados; outros, sentindo-se fortemente rejeitados. Alguns nasceram no seio de famílias de fé; outros, em ambientes sem nenhuma fé. Alguns nasceram sob o regime da democracia; outros, sob o regime de um ditador...

            Nós não escolhemos em que época, em que tempo, nem em qual família ou contexto social e político nascer. Tudo isso nos foi dado, e cada um de nós foi chamado a se posicionar diante da realidade que marcou a nossa existência, lembrando que ninguém é fruto daquilo que lhe aconteceu; todos nós somos fruto daquilo que decidimos fazer com o que nos aconteceu. Além disso, o momento em que nós nascemos, dentro da história humana, foi o momento em que Deus quis que existíssemos, para deixar no mundo, com a nossa existência, uma palavra Sua para a humanidade.

Qual foi o contexto em que aconteceu o Natal, o nascimento de Jesus? Ele nasceu debaixo da dominação do Império Romano; conheceu a forte violência desse Império diante de qualquer tentativa de rebelião (crucificação, degolamento); cresceu e viveu no meio de um povo endividado (o permanente risco de perda do seu pedaço de terra), tendo que pagar a Roma altos impostos. Jesus nasceu num contexto de forte desigualdade social, com alto número de indigentes e de prostitutas. No âmbito religioso, Jesus viveu distante do Templo de Jerusalém, pois morava muito longe da capital, numa periferia considerada “impura” pelos judeus conservadores – a Galileia. Ali, Jesus alimentou a sua fé frequentando a sinagoga aos sábados, onde ouvia e meditava a Palavra de Deus. Resumindo, Jesus nasceu e viveu sendo ignorado por muito tempo, e quando morreu, foi interpretado como um fracassado.

Por causa das redes sociais, existe hoje uma superexposição da criança logo que nasce. Os pais de classe média e alta postam fotos e vídeos de seus filhos como se fossem “príncipes” e “princesas”, isto é, como se fossem o centro do mundo. Esquecem ou ignoram que “vaidade” significa “vazio”: quanto mais vazia uma carroça, mais barulho ela faz. Quanto mais aparência, menos essência. O grande perigo das crianças filhas da classe média e alta é seus pais lhes darem tudo, menos aquilo que o dinheiro não pode comprar: caráter, honestidade, respeito ao próximo, capacidade de lidar com a dor e com a frustração, fé, conhecimento de Deus...

Por outro lado, muitas crianças nascem em ambientes marcados pela pobreza, pela miséria, onde não apenas faltam condições mínimas de vida, mas também afeto, presença. Uma parte considerável dessas famílias está marcada pela separação, pela ausência do pai, sobretudo, pela violência verbal ou física, pela bebida e pelas drogas (não que isso não aconteça nas outras famílias), pelo desemprego e por uma baixa escolaridade. Tudo isso precisa ser trazido à nossa consciência neste dia de Natal, porque o Menino Jesus está presente em cada criança como possiblidade de superação de todo condicionamento familiar e social.

O nascimento de Jesus foi traduzido pelo evangelista João dessa maneira: “A Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Antes de mais nada, o Deus em quem nós cremos é Palavra: Palavra que orienta, esclarece, liberta, corrige, encoraja, perdoa, cura, julga – no sentido de fazer justiça; principalmente, Palavra que faz passar da morte para a vida. Essa Palavra se fez pessoa humana em Jesus Cristo. Isso significa que “Deus é Jesus”. Nós não podemos saber nada sobre a Pessoa do Pai se não nos aproximarmos da Pessoa do Filho. Só o Filho pode nos revelar o Pai. Qualquer imagem ou ideia que possamos ter de Deus, precisamos confrontá-la com o Jesus histórico, revelado a nós pelos Evangelhos.

Em seu Filho Jesus, Deus veio morar na carne humana. Ao descrever o ser humano como “carne”, a Bíblia fala da fraqueza humana, da sua insuficiência, da sua finitude, da sua tendência ao pecado, da sua necessidade de redenção e de salvação. Tudo o que atinge a “carne” do ser humano atinge Deus. Ele enviou o seu Filho não para salvar “almas”, mas para salvar o ser humano na sua dimensão física, psíquica e espiritual. Um cristianismo que não se importa com a situação da “carne” humana, mas somente com sua dimensão espiritual, não entendeu o sentido do Natal.

Em seu Filho Jesus, o Pai se fez humano. Se o Natal perde cada vez mais o sentido no mundo moderno é porque nós estamos nos desumanizando. Toda pessoa que se desumaniza, afasta-se de Jesus, porque Ele é o Deus humano. Toda pessoa que rejeita sua própria humanidade e se refugia numa espiritualidade desencarnada, não compreendeu quem é Jesus. Toda pessoa que se distancia do ser humano ferido, degradado, injustiçado e tratado de maneira desumana, distancia-se igualmente de Jesus. Cada Natal que celebramos precisa nos questionar se atualmente nós estamos mais humanos ou menos humanos, se nós ainda cremos na possibilidade de recuperação do ser humano.

Se o nascimento de Jesus foi o momento em que “a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14), o Natal precisa nos fazer refletir se a nossa carne – a nossa existência humana – está comunicando a Palavra de Deus às pessoas que convivem conosco. A descrença na Pessoa de Deus e de Jesus Cristo está diretamente ligada a isso: a vida dos cristãos do mundo atual nada diz às pessoas do nosso tempo. Nossa vida precisa se tornar “Palavra” para as outras pessoas. Ninguém escuta o que eu falo, mas todos observam como eu vivo. O meu modo de viver deve “falar” de Deus e de seu Filho Jesus aos outros. Sendo assim, que cada um de nós “consiga identificar a palavra, a mensagem de Jesus que Deus quer dizer ao mundo com a nossa vida... O Senhor a levará ao cumprimento mesmo no meio dos nossos erros e momentos negativos, desde que não abandonemos o caminho do amor e permaneçamos sempre atentos à sua ação sobrenatural que purifica e ilumina” (Papa Francisco, GE n.24). Enfim, não nos esqueçamos de que “para viver o Evangelho, não podemos esperar que tudo à nossa volta seja favorável” (GE, n.91). Que o nosso modo de viver comunique às pessoas do nosso tempo: “Nasceu hoje para vós um Salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lc 2,11).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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