quinta-feira, 21 de março de 2024

NENHUMA FÉ SERÁ POUPADA DE SENTIR-SE ABANDONADA POR DEUS

 Missa do domingo de ramos. Palavra de Deus: Isaías 50,4-7; Filipenses 2,6-11; Marcos 15,1-39.

 

Jesus “passou pelo mundo fazendo o bem” (At 10,38). Por que, então, ele teve que ser eliminado? Porque quem faz o bem questiona quem faz o mal. A presença da pessoa que faz o bem é como uma luz que incomoda quem se habituou a viver na escuridão, fazendo o mal. Mas quem Jesus incomodou: os líderes políticos ou os líderes religiosos do seu tempo? Os líderes religiosos, conforme acabamos de ouvir no Evangelho: Pilatos “bem sabia que os sumos sacerdotes haviam entregado Jesus por inveja” (Mc 15,10).

Essa atitude dos líderes religiosos da época de Jesus precisa fazer vir para fora os sentimentos que estão escondidos no mais profundo de nós mesmos: inveja, raiva, ódio, desejo de vingança, desejo de eliminar o outro. Não é porque somos cristãos que não sentimos coisas que são contrárias ao Evangelho. Nós não somos somente filhos de Deus, mas também filhos da nossa época, uma época onde as emoções são mais ouvidas do que a razão (a consciência); uma época de crescente intolerância e de incapacidade de conviver com o diferente; uma época onde, ao mesmo tempo em que cresce a sensibilidade para com a defesa dos animais, cresce a indiferença para com a defesa da vida humana, especialmente dos que vivem pelas ruas.

O que dizer então da inversão de valores? O Evangelho nos pergunta com quem nos identificamos: com Jesus ou com Barrabás? Somos discípulos d’Aquele que oferece sua vida para que outros tenham vida, ou daquele que não se importa com a vida alheia? A multidão preferiu Barrabás, um assassino. Quais são as músicas preferidas hoje? Quais são os artistas, os filmes, as novelas, os livros e os vídeos de maior sucesso atualmente? A inversão de valores do mundo atual ataca diretamente toda pessoa que defenda valores como família, honestidade, fidelidade, justiça etc. Pilatos cedeu à “preferência popular”. E nós, cristãos? Nós nos movemos na vida pressionados pela “preferência” das pessoas à nossa volta, ou nos movemos pela nossa consciência?

O mal é visível e palpável no mundo em que vivemos. Sendo verdadeiro Servo de Deus, Jesus não fechou o seu ouvido, nem virou o seu rosto quando foi confrontado pelo mal – a violência dos homens (cf. Is 50,4-7). Pelo contrário, ele abriu seus ouvidos para ouvir o que o Pai tinha a dizer ao ser humano que sofre. No meio de tantas pessoas desoladas, Jesus nos convida a manter nossos ouvidos abertos ao Pai, para que Ele coloque em nossa boca palavras de conforto para as pessoas que estão abatidas à nossa volta. Uma pessoa que serve a Deus não pode ficar calada diante do sofrimento do seu semelhante.

Na hora em que Jesus estava para ser crucificado, “deram-lhe vinho misturado com mirra, mas ele não o tomou” (Mc 15,23). Essa bebida servia como anestésico, para que a pessoa que fosse crucificada não sentisse toda a intensidade da dor da crucificação. Jesus rejeita esse anestésico; quer sofrer conscientemente. Como nós nos portamos diante da nossa ou da dor dos outros? Usamos de meios para manter nossa consciência anestesiada? Todos nós somos influenciados por um mundo que não aceita a dor e que oferece uma porção de subterfúgios para não senti-la. As drogas que o digam! Jesus nos desafia a encarar a vida nos olhos e a não fugir daquilo que nos cabe enfrentar.

“Vivemos em uma sociedade da positividade. A dor é a negatividade pura e simplesmente. O treino de resiliência como treino de resistência espiritual tem de formar, a partir do ser humano, um sujeito de desempenho permanentemente feliz, o mais insensível à dor possível. A sociedade paliativa coincide com a sociedade do desempenho. A dor é vista como um sinal de fraqueza. A passividade do sofrer não tem lugar na sociedade ativa dominada pelo poder. Nada deve provocar dor. Esquece-se que a dor purifica” (Byung-Chul Han, Sociedade paliativa – a dor hoje).    

A crucificação foi a violência suprema sofrida por Jesus. Não se trata somente da dor física da crucificação, mas da dor “moral”, a dor de ser declarado perante o mundo um homem “condenado”, condenado pelos homens e condenado pelo próprio Deus! Se Jesus aceitou a violência da condenação à morte foi para livrar todo ser humano de sentir-se condenado e de ser condenado (cf. Rm 8,1). Por isso, hoje Jesus pede a nós, seus discípulos, para sermos uma presença libertadora junto a toda pessoa crucificada por inúmeras formas de violência neste mundo. É missão de todo discípulo de Jesus levar “palavras de conforto à pessoa abatida” (Is 50,4); ser uma presença de conforto junto a toda pessoa atingida por algum tipo de cruz, especialmente para que ela não se sinta abandonada por Deus naquela situação.

O silêncio que Jesus manteve durante o seu julgamento e a sua crucificação foi rompido com uma oração: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Como é possível que aquele que a vida toda confiou no Pai morra sentindo-se abandonado por Ele? Certamente, nunca o Pai esteve tão junto do seu Filho como neste momento de cruz, mas Jesus expressa no seu grito a verdade mais profunda que nos habita: na hora mais intensa da dor, nós não sentimos Deus. Ele está ali, nos sustentando nos Seus braços, mas, naquele momento, nós nos sentimos completamente sozinhos, literalmente abandonados!

“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Quantas pessoas que morreram de câncer ou de outras doenças fizeram essa pergunta na hora da morte? Quantas famílias, esposas, maridos, filhos, pais, fizeram essa mesma pergunta, ao perderam alguém que eles amavam? Essa pergunta não pode ser ignorada, porque ela nos habita: para cada ser humano que crê, sempre chegará o momento de questionar Deus. A fé nunca será blindada contra a dúvida, contra o sentimento de abandono por parte de Deus. Então, o melhor que temos a fazer é nos jogar nos braços do Pai dizendo o quanto estamos nos sentindo sozinhos, abandonados, esquecidos, ignorados por Ele!

Se muitas pessoas se escandalizam com o questionamento que o Filho faz ao Pai na hora da morte, um homem não se escandaliza; pelo contrário, se abre à fé, ao ver como Jesus morre: “Quando o oficial do exército, que estava bem em frente dele, viu como Jesus havia expirado, disse: 'Na verdade, este homem era Filho de Deus!’” (Mc 15,39). A maneira como lidamos com a nossa cruz, com a dor que atravessa o nosso caminho, com o sofrimento que atinge pessoas à nossa volta, pode levar outros à fé. Quem dera as pessoas, ao nos virem sofrer e até mesmo morrer, dissessem a nosso respeito: “Verdadeiramente, essa pessoa era uma filha de Deus!”. A experiência de cruz não se dá em nossa vida para destruir a nossa fé, mas para comprová-la! O Pai permite que a cruz atravesse o nosso caminho não para nos fazer desistir de sermos discípulos de seu Filho, mas para nos confirmar como tais.

Diante desse Pai, “Jesus deu um forte grito e expirou” (Mc 15,37). No grito de Jesus está o grito de cada ser humano por vida, por paz, por justiça, por misericórdia, por perdão... Expirando, Jesus entrega seu hálito de vida (seu espírito) a Deus. Expirar lembra término. Chegará o momento em que iremos expirar, como Jesus. Que o nosso expirar seja vivido segundo as palavras do apóstolo Paulo: “sei em quem depositei a minha fé” (2Tm 2,12). Sei nas mãos de quem eu entrego o meu espírito: nas mãos do Pai que conta cada um dos meus passos errantes e recolhe no seu odre cada uma das minhas lágrimas (cf. Sl 56,9), para enxugá-las e recompensá-las (cf. Is 25,8; Ap 7,17). Quer eu esteja vivo, quer eu morra, continuarei pertencendo ao Senhor Jesus (cf. Rm 14,7-8)!

 

 Pe. Paulo Cezar Mazzi

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