quinta-feira, 1 de maio de 2025

DA DECISÃO DO ABANDONO PARA A DECISÃO EM VOLTAR PARA A MISSÃO QUE NOS FOI CONFIADA

 Missa do 3º dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 5,27b-32.40b-41; Apocalipse 5,11-14; João 20,1-14.

 

            Quando Jesus chamou seus dois primeiros discípulos, Simão Pedro e André, disse-lhes: “Sigam-me, e eu farei de vocês pescadores de homens” (Mt 4,19). “Pescar homens” significa resgatar pessoas de toda situação de morte, pois o mar, na Sagrada Escritura, representa as forças do mal que investem contra os seres humanos. Mas há algo estranho acontecendo no coração de Simão Pedro: “Eu vou pescar” (Jo 21,3). Ao que tudo indica, Pedro decidiu voltar à sua antiga vida de pescador de peixes. Por qual motivo? Apesar de já ter visto Cristo ressuscitado duas vezes (cf. Jo 20,19.26), Simão Pedro não sente a presença do Ressuscitado junto dele e da Igreja, representada aqui pelos sete discípulos. Portanto, a decisão de ir pescar peixes aponta para o abandono da missão de pescar homens.

            Essa decisão – “Eu vou pescar” (Jo 21,3) – tem sido tomada por muitos cristãos que, apesar de ouvirem a Igreja proclamar que Cristo ressuscitou, não o sentem junto a si, na luta cotidiana da vida. “Eu vou pescar” é o abandono do casamento e da família, é o dizer “pra mim, já deu!”, é o retorno à vida antiga, é a desistência de continuar a buscar a meta para a qual fomos chamados, é o voltar ao vício, ao pecado, a uma vida mundana, a uma vida segundo a carne (nosso egoísmo) e não mais segundo o Espírito (a vontade de Deus). Todos nós corremos esse risco de nos tornar pessimistas e desanimar da missão que nos foi confiada. O pior é que a nossa decisão de abandonar tudo acaba por arrastar outras pessoas conosco: “Também vamos contigo” (Jo 21,3).

            Qual foi o resultado da desistência dos discípulos em deixar de pescar homens e tentar pescar peixes novamente? O fracasso: “Saíram e entraram na barca, mas não pescaram nada naquela noite” (Jo 21,3). Quando abandonamos a missão que somos e nos distanciamos da verdade de Deus, a única coisa que conseguir colher é o fracasso. Por isso, quando não estamos pescando mais nada, precisamos nos perguntar se estamos fazendo aquilo que, de fato, fomos chamados a fazer; se, por acaso, não estamos no lugar errado, fazendo coisas erradas, desperdiçando nossas energias com coisas que nada têm a ver com a nossa verdadeira vocação. Neste sentido, o fracasso é a coisa mais importante que precisa surgir em nossa vida.

            A boa notícia é que a noite do fracasso termina com o amanhecer de um novo dia, e esse amanhecer nos remete para o momento em que foi anunciado à Igreja, por meio de Maria Madalena, que o Senhor Jesus ressuscitou (Jo 20,1.11ss)! “Já tinha amanhecido, e Jesus estava de pé na margem” (Jo 21,4). Jesus é a “Estrela da manhã” (Ap 2,28). O brilho do sol que nasce aponta para a luz da ressurreição que venceu as trevas da morte. Jesus está “de pé”, justamente porque ele é o Ressuscitado. “Mas os discípulos não sabiam que era Jesus” (Jo 21,4), seja porque estavam um pouco distantes da praia, seja porque o corpo de Jesus está agora glorificado, seja ainda porque, quando nossos olhos se fixam no resultado dos nossos fracassos, não conseguimos enxergar o Ressuscitado próximo de nós, quando é nele que os nossos olhos precisam se manter fixos (cf. Hb 12,2)!

            Mas finalmente chega o momento em que o Ressuscitado é reconhecido! Quando Jesus disse aos sete discípulos da barca: “Lançai a rede à direita da barca, e achareis”, eles obedeceram, lançaram a rede “e não conseguiam puxá-la para fora, por causa da quantidade de peixes. Então, o discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: ‘É o Senhor!’” (Jo 21,6-7). Notemos que o discípulo amado não diz a Pedro: “É Jesus!”, mas “É o Senhor!”. O título “Senhor” só foi dado a Jesus após a ressurreição (cf. Fl 2,9-11). Quando o discípulo amado reconhece o Ressuscitado, Pedro tem a estranha atitude de vestir sua roupa (pois estava nu) e atirar-se ao mar (cf. Jo 21,7). A nudez de Pedro simboliza o abandono da sua identidade de discípulo. Sentindo a ausência do Ressuscitado, ele havia abandonado a sua “veste de discípulo”. Agora que volta a enxergar o Ressuscitado, retoma a sua veste e mergulha no mar, porque deseja chegar ao Ressuscitado o mais rápido possível.

            Muitos cristãos decidiram ficar nus, para não serem reconhecidos como discípulos de Jesus, num mundo contrário ao Evangelho. Este terceiro domingo da Páscoa nos convida a retomar a nossa identidade de discípulos, a voltar para a missão que nos foi confiada, a não nos deixar levar pela correnteza, mas a nadar na direção do Cristo ressuscitado, aquele que nos chamou a abraçar a missão de pescar homens, de ajudar a resgatar pessoas do mar da destruição e da morte.  

“Logo que pisaram a terra, (os discípulos) viram brasas acesas, com peixe em cima, e pão... Jesus disse-lhes: ‘Vinde comer’” (Jo 21,10.12). Na última Ceia, Jesus tinha predito a traição de Judas e a negação de Pedro. Agora, nesta ceia improvisada na praia, o Ressuscitado oferece a Pedro a chance de rever suas atitudes anteriores e abraçar com mais convicção a sua missão de apascentar as ovelhas do Seu rebanho (vv.15-19), deixando-se orientar a cada dia por Sua palavra.   

            Retomando alguns pontos deste Evangelho... “Eu vou pescar” – Estou mantendo minha fidelidade à missão de “pescar pessoas” para Deus ou passei a fazer parte daqueles que abandonaram a missão? “Também vamos contigo” – Mesmo vendo tantos que abandonaram seu trabalho na Igreja, eu continuo perseverando, ou deixei me contaminar pelo pessimismo dos outros? “Não pescaram nada” – O que o fracasso que estou enfrentando está me dizendo? Estou onde deveria estar, fazendo o que me foi confiado, ou me distanciei da minha vocação original? “Já tinha amanhecido, e Jesus estava de pé na margem” – Eu confio que não existe noite que impeça o sol de surgir no amanhecer? Eu creio que Cristo está vivo e me oferece a sua Palavra no amanhecer de cada dia, para me orientar na missão? “Simão Pedro, ouvindo dizer que era o Senhor, vestiu sua roupa, pois estava nu, e atirou-se ao mar” – Eu também estou nu? Eu também prefiro não ser reconhecido como discípulo de Jesus, para não ser criticado ou agredido por um mundo contrário ao Evangelho? “Vinde comer” – Eu me deixo alimentar pela Eucaristia que o Ressuscitado me prepara e abraço esse momento como uma oportunidade de confirmar a minha vocação e missão de cuidar daquilo que Ele confiou aos meus cuidados?

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 24 de abril de 2025

A VERDADEIRA FÉ NÃO É CERTEZA, MAS CONFIANÇA, APESAR DA DÚVIDA

 Missa do 2º dom. Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 5,12-16; Apocalipse 1,9-11a.12-13.17-19; João 20,19,31.

 

São Lucas nos apresenta um retrato da nossa Igreja no século I, por volta dos anos 80, após a ressurreição de Jesus e a vinda do Espírito Santo: “Crescia sempre mais o número dos que aderiam ao Senhor pela fé” (At 5,14). Essa afirmação contrasta com a crescente perda de fé das pessoas no mundo todo, de modo que a “religião” que mais cresce no mundo – também no Brasil, conforme o censo de 2022 – é a dos “sem religião”. Embora durante o pontificado do Papa Francisco o número de católicos que abandonam a nossa Igreja tenha caído pela metade em nosso País (conforme revelou o censo de 2022), continua a aumentar o número das pessoas que escolhem não ter nenhuma religião, e isso não apenas por desencanto com igrejas e religiões, mas, sobretudo por desencanto com o próprio Deus.  

Neste segundo domingo da Páscoa nos deparamos com a falta de fé de Tomé. Primeiro, ele não teve fé na palavra da Igreja, isto é, dos demais apóstolos, que lhe disseram: “Vimos o Senhor!” (Jo 20,25). Segundo, ele não teve fé na própria ressurreição de Jesus, a ponto de exigir uma experiência particular: “Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” (Jo 20,25). Essa exigência de Tomé está presente hoje não só na necessidade de ver, mas também se sentir a presença de Deus. O mundo atual só crê no que vê e no que sente, reduzindo a fé a uma sensação, a uma emoção. Pregadores que levam os fiéis à emoção são os que mais têm suas igrejas e redes sociais lotadas de “seguidores”.  

Reduzir a fé a uma emoção tem dois problemas: primeiro, emoções passam, mudam e acabam rapidamente; segundo, nem Deus, nem a religião são uma espécie de droga fabricada para provocar emoção nas pessoas e mantê-las distantes da realidade que são chamadas a enfrentar. Como afirmou Davide Caldirola, “a verdadeira fé é aquela que nos salva nas tempestades e não das tempestades da vida”. Sempre que tentamos transformar Deus numa proteção que nos mantém blindados contra a vida, ou impedindo-nos de sermos feridos, machucados, Ele nos deixa falando sozinhos, até que a nossa fé desista de fabricar um deus à nossa imagem e semelhança e aceite a imagem do verdadeiro Deus: Cristo, o Ressuscitado que traz em seu corpo as marcas do Crucificado.  

Outro grande problema da nossa fé é o imediatismo, a incapacidade de esperar em Deus. Porque plantamos a semente da fé ontem, no chão da nossa vida, queremos colher hoje, nos esquecendo de que “a estação do milagre não é aquela da semeadura, nem a da colheita; é aquela da espera” (Davide Caldirola). Uma fé que não se desdobra em esperança não suporta as demoras de Deus. Uma fé que chora o tempo todo, desejando o leite das consolações de Deus, não é uma fé adulta, mas infantil, uma fé que não se mantém junto do Deus de toda a consolação, mesmo quando Ele não nos dá consolação alguma.   

Um engano muito comum, quando falamos de fé, é pensar que, se temos fé, não podemos duvidar. Na verdade, a fé verdadeira tem espaço para a dúvida. Muitas pessoas, por não suportarem os questionamentos do mundo, trocaram a fé pelo fundamentalismo. “O fundamentalismo é um distúrbio de uma fé que tenta entrincheirar-se no meio das sombras do passado, defendendo-se da perturbadora complexidade da vida” (Pe. Tomás Halík, A noite do confessor, p.35). São exatamente esses católicos fundamentalistas que rejeitaram o magistério do Papa Francisco e que comemoraram a sua morte, postando em suas redes sociais: “Já foi tarde!”.

Totalmente oposta ao fundamentalismo, a fé não é certeza, mas confiança. Eu não vejo, não sinto e não entendo o agir de Deus em minha vida; mesmo assim, eu confio no Seu agir. Neste sentido, devemos nos lembrar das palavras que um grupo de judeus deixou escritas numa pedra, na cidade de Colônia, Alemanha, durante a segunda guerra mundial: “Creio no Sol, mesmo quando não brilha; creio no Amor, mesmo quando não o sinto; creio em Deus, mesmo quando Ele se cala”. Isso é fé!

No momento em que Jerusalém estava sitiada por dois povos aliados contra ela, e o rei e o povo estavam tremendo de medo, Deus mandou Isaías dizer: “Se vocês não tiverem fé, não conseguirão manter-se firmes” (Is 7,9). É como se Deus dissesse: “Se vocês não se atreverem a se apoiar em mim, jamais poderão experimentar que são amparados”. A fé é exatamente isso: apoiar-me no Crucificado Ressuscitado, fundando sobre ele a minha vida e buscando, unicamente nele, estabilidade, segurança e perseverança. Que a nossa oração hoje seja a daquele pai, cuja falta de fé foi criticada por Jesus: “Eu creio, Senhor! Ajuda a minha falta de fé!” (Mc 9,24). Supliquemos, cantando: “Meus Deus, eu creio, adoro, espero e amo-vos. Peço-vos perdão para os que não creem, não adoram, não esperam e não vos amam!” (Oração do Anjo de Fátima).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sábado, 19 de abril de 2025

A RESSURREIÇÃO NOS HABITA COMO A VIDA DE UMA ÁRVORE ESCONDIDA DENTRO DE UMA SEMENTE

 Missa da Páscoa do Senhor. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 34a.37-43; Colossenses 3,1-4; João 20,1-9.

          “Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa fé” (1Cor 15,14). Dizendo de outra forma, se Cristo não tivesse ressuscitado, nós não teríamos razão alguma para crer em Deus; nossas perguntas não teriam resposta, nossas feridas não teriam cura, nossa fome e sede de justiça jamais seriam saciadas e nós nunca mais nos encontraríamos com os nossos entes queridos que já partiram desta vida terrena. Toda a nossa fé se sustenta unicamente no fato de que Cristo ressuscitou. Essa fé, por sua vez, tem como fundamento o testemunho dos apóstolos: “Deus o ressuscitou no terceiro dia, concedendo-lhe manifestar-se não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia escolhido: a nós, que comemos e bebemos com Jesus, depois que ressuscitou dos mortos” (At 10,40-41).

Mas Jesus ressuscitou para que? “Cristo morreu e ressuscitou para ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,9). Isso significa que Cristo é o Senhor de tudo o que em nós ainda está vivo e também de tudo o que já morreu em nós. Além disso, devemos saber que, “quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor” (Rm 14,8). Não pertencemos à morte; não pertencemos a este mundo, no qual sofremos muitas tribulações, mas pertencemos àquele que venceu este mundo!  

Eis a razão pela qual nós hoje cantamos com o salmista: “Este é o dia que o Senhor fez para nós: alegremo-nos e nele exultemos!” (Sl 118,24). Jesus ressuscitou para que, não obstante as dificuldades que temos que enfrentar nesta vida terrena, nos alegremos e exultemos porque Ele, o Ressuscitado, está agora diante da face do Pai, dia e noite, intercedendo por nós (cf. Hb 9,24). “Este é o dia que o Senhor fez para nós” (Sl 118,24), dia que durará cinquenta dias, porque inaugura na Igreja o Tempo Pascal, o qual se encerrará com a festa de Pentecostes, Tempo no qual o Ressuscitado aparecerá aos seus discípulos, comprovando a sua ressurreição, e os preparará para receber o dom do Espírito Santo, garantia da nossa futura ressurreição (cf. Ef 1,13-14; 4,30; Rm 8,11).

Como somos chamados a viver neste Tempo Pascal? “Esforçai-vos por alcançar as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus; aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres” (Cl 3,1-2). Sempre precisamos estar cientes de que vivemos num mundo que não olha para o alto, que reduz a fé em Deus a uma busca de felicidade somente aqui e agora, um mundo que não crê na recompensa por uma vida justa (cf. Sb 2,22). Mergulhados na luta pela sobrevivência e afastados da realidade social por meio da indústria da distração (canais de streaming, mundo digital e realidade virtual), nós facilmente perdemos o foco e esquecemos a meta a qual fomos chamados: aspirar às coisas celestes, desejar o céu, viver como cidadãos do céu e não como pessoas mundanas e terrenas.

Se é verdade que cada vez mais pessoas deixam de crer em Deus, em seu Filho ressuscitado e na Igreja, é porque muitos de nós, cristãos, vivemos como pagãos, buscando somente o que é terreno. E se nós mesmos não sentimos a presença do Ressuscitado junto a nós, esquecendo a sua promessa: “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20), é porque também nos esquecemos de que a nossa vida de homens e mulheres destinados à ressurreição “está escondida com Cristo, em Deus” (Cl 3,3). O Espírito Santo, garantia da nossa ressurreição, habita em nós como a vida de uma árvore habita escondida dentro de uma semente. Não é apenas o mundo que não enxerga a ressurreição em nós; nós mesmos não a vemos, e muitas vezes não a sentimos pulsar dentro de nós. E isso acontece porque ainda não aceitamos esta verdade: “Não olhamos para as coisas que se veem, mas para as que não se veem; pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno” (2Cor 4,18). Só pode sentir a promessa da ressurreição em sua vida quem sabe que “caminhamos pela fé e não pela visão” (2Cor 5,7).

            O Evangelho nos indica o primeiro sinal da ressurreição de Jesus: o túmulo vazio. Ele está vazio porque Jesus derrotou a morte. Na verdade, a morte de Jesus esvaziou todos os túmulos, como ele mesmo afirma: “Eu sou o Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho comigo as chaves da morte e da região dos mortos” (citação livre de Ap 1,18). Neste Tempo Pascal, somos chamados a deixar Jesus esvaziar os nossos túmulos, a devolver vida ao que deixamos que morresse em nós, a amar a nossa vida escondida ao invés de sofrermos a angústia de não sermos reconhecidos pelo mundo, a deixar a Palavra do Ressuscitado aquecer o nosso coração (cf. Lc 24,32) devolvendo-lhe a chama da fé, e a comungar a sua presença real na Eucaristia, para que nossos olhos se abram (cf. Lc 24,31) e possamos dizer, como os apóstolos: “Verdadeiramente o Senhor ressuscitou!” (Lc 24,34).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 18 de abril de 2025

A DESCRENÇA DOS DISCÍPULOS NA RESSURREIÇÃO DE JESUS É IMPORTANTE PARA A NOSSA FÉ

 Vigília Pascal. Palavra de Deus: Gênesis 1,26-31; Êxodo 14,15 – 15,1; Isaías 54,5-14; Romanos 6,3-11; Lucas 24,1-12.

              

Onde está o Deus do êxodo, o Deus que libertou Israel dos egípcios? Acabamos de ouvir: “O Senhor livrou Israel da mão dos egípcios, e Israel viu os egípcios mortos nas praias do mar, e a mão poderosa do Senhor agir contra eles” (Ex 14,30-31). Onde está a poderosa mão do Senhor? Não somos somente nós que nos perguntamos por que nem sempre vemos Deus agir na história humana como agiu antigamente. Há muitos séculos antes de Cristo vir ao mundo, o salmista já perguntava: “Será que Deus vai rejeitar-nos para sempre? E nunca mais nos há de dar o seu favor? Por acaso, seu amor foi esgotado? Será que Deus se esqueceu de ter piedade? Eu confesso que é esta a minha dor: ‘A mão de Deus não é a mesma: está mudada!’” (Sl 76,8-11).

Esta é também a nossa dor: a mão de Deus parece não agir mais! No entanto, o profeta Isaías afirma: “Não, a mão do Senhor não é muito curta para salvar, nem seu ouvido tão duro que não possa ouvir. Antes, foram as vossas maldades que criaram um abismo entre vós e vosso Deus. Por causa dos vossos pecados ele escondeu de vós o seu rosto, para não vos ouvir” (Is 59,1-2). A Campanha da Fraternidade nos lembrou de que “Deus viu tudo quanto havia feito, e eis que tudo era muito bom” (Gn 1,31). As secas severas e as chuvas excessivas e destrutivas não são produzidas pela mão de Deus, como se Ele tivesse resolvido destruir o que criou, mas consequências do aquecimento global, “fabricado” pela mão humana. A nós foi confiado o cuidado com a criação, mas a ganância pelo dinheiro nos faz olhar para a natureza como fonte inesgotável de lucro. 

Se nós, às vezes, perguntamos como o salmista: “Por acaso, seu amor foi esgotado?”, eis a resposta do nosso Deus: “Podem os montes recuar e as colinas abalar-se, mas minha misericórdia não se apartará de ti, nada fará mudar a aliança de minha paz, diz o teu misericordioso Senhor” (Is 54,10). Nossa época passa por mudanças intensas e rápidas, as quais nos deixam inseguros e desorientados. No entanto, uma única certeza deve nos manter firmes em nossa fé: o amor de Deus por nós não mudará! Mesmo que tenhamos que vivenciar as angústias do tempo presente, fazemos nossas as palavras do salmista: “Eu vos exalto, ó Senhor, pois me livrastes! Vós tirastes minha alma dos abismos e me salvastes, quando estava já morrendo! Vossa bondade permanece a vida inteira; se à tarde vem o pranto visitar-nos, de manhã vem saudar-nos a alegria” (citação livre do Sl 30,2.4.6).

Esta imagem do pranto que se converte em alegria aparece no Evangelho desta noite. Enquanto os discípulos estão mergulhados na tristeza pela sua morte de cruz, “as mulheres foram ao túmulo de Jesus, levando os perfumes que haviam preparado” (Lc 24,2). Esses perfumes são um contraste com o mau cheiro da morte. Se há muita coisa cheirando mau nas pessoas, como egoísmo, individualismo, maldade, intolerância, agressividade, infidelidade, precisamos espalhar o perfume da bondade, da paciência, da tolerância, do respeito, da honestidade, da fé, da esperança da caridade, do serviço voluntário, do cuidado com o meio ambiente etc.

São Lucas nos apresenta os primeiros sinais da ressurreição de Jesus: 1) A grande pedra que fechava o túmulo foi removida, o que indica que o Pai ressuscitou o Filho através do Espírito Santo. 2) Enquanto as mulheres ficam chocadas ao entrarem no túmulo e vê-lo vazio, aparecem dois homens, vestidos com roupas brilhantes. São dois porque são necessárias duas testemunhas para comprovar que um fato é verdadeiro (cf. Dt 19,15). Além disso, suas roupas brilhantes nos recordam o momento da transfiguração de Jesus (cf. Lc 9,29), o qual foi uma “antecipação” da sua ressurreição.

Eis, então, o grande anúncio desta noite de Páscoa: “Por que estais procurando entre os mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou!” (Lc 24,5-6). Jesus é descrito como “aquele que está vivo”, está no tempo presente, no hoje da nossa história. Por que Ele não está entre os mortos? Porque o próprio Jesus disse que o nosso Deus não é Deus de mortos, mas de vivos, pois, para Ele, todos vivem! (cf. Lc 20,38). Onde você procura por seu filho, sua mãe, seu irmão, que faleceu? No túmulo? “Ele não está aqui!”. A pessoa que faleceu não está no túmulo (nosso passado), mas na ressurreição (nosso futuro)! A morte de Jesus esvaziou todos os túmulos, de modo que cada um de nós pode proclamar com o salmista: “Não morrerei, mas ao contrário, viverei para cantar as grandes obras do Senhor!” (Sl 118,17).

A narrativa do anúncio da ressurreição de Jesus termina com a descrença dos apóstolos! Ao ouvirem as mulheres, eles consideram que elas tiveram um delírio. O não acreditar dos apóstolos é importante para a nossa fé! A ressurreição de Jesus não foi inventada pelos apóstolos. Pelo contrário, eles resistiram muito em crer nela! Só o próprio Ressuscitado poderá abrir os olhos deles para essa verdade, como veremos nos próximos domingos do tempo pascal.  

Enfim, o apóstolo Paulo nos recorda, nesta noite pascal, que cada um de nós está associado tanto à morte quanto à ressurreição de Jesus, através do batismo: “Pelo batismo na sua morte, fomos sepultados com ele, para que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim também nós levemos uma vida nova. Pois, se fomos de certo modo identificados a Jesus Cristo por uma morte semelhante à sua, seremos semelhantes a ele também pela ressurreição” (Rm 6,4-5). A nossa vida de pessoas destinadas à ressurreição exige de nós a atitude diária de decidir morrer para o pecado e escolher viver para Deus: “considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Jesus Cristo” (Rm 6,11). Com essa consciência, entremos agora na liturgia batismal. 

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quarta-feira, 16 de abril de 2025

SOMENTE UM DEUS FERIDO PODE SALVAR UMA HUMANIDADE FERIDA

Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Palavra de Deus: Isaías 52,13 – 53,12; Hebreus 4,14-16; 5,7-9; João 18,1 – 19,42.

      Qual a causa do sofrimento em nossa vida? Ele pode ser consequência de atitudes erradas que tomamos, consequência não daquilo que nos acontece, mas da maneira como lidamos com isso, ou ainda, consequência da nossa fidelidade a Deus, quando procuramos levar uma vida coerente, pautada na retidão e na justiça. Por isso, quando estamos vivenciando uma experiência de dor, precisamos nos perguntar o quanto aquela dor é responsabilidade nossa, o quanto é consequência de injustiças que existem em nossa sociedade e o quanto ela é consequência da nossa fidelidade a Deus.

A atitude mais comum de qualquer ser humano é buscar uma situação de bem-estar e afastar-se de toda situação de dor. Mas hoje a Palavra do Senhor nos confronta com a realidade da dor, presente de alguma forma na vida de todo ser humano. O salmista afirma que, algumas vezes, a dor e o sofrimento nos despedaçam como um vaso – “tornei-me como um vaso espedaçado” (Sl 31,13) – quebrando não somente a nós, mas também a imagem que até então tínhamos de Deus. Por isso, hoje precisamos trazer para a cruz de Cristo esses pedaços: os nossos próprios pedaços e também os pedaços que sobraram da nossa fé, da imagem que tínhamos de Deus e que agora não conseguimos mais reconstruir.

A verdadeira imagem de Deus está na cruz de seu Filho: “não tinha beleza nem atrativo para o olharmos, não tinha aparência que nos agradasse” (Is 53,2). É aqui que a nossa imagem de Deus começa a se quebrar. Nós gostaríamos que Ele sempre se manifestasse em nossa vida como beleza, saúde, força, vitória, sucesso, prosperidade... Mas, às vezes, Deus vem a nós por meio de uma experiência que não nos agrada: a doença, a dificuldade financeira, a perda, o fracasso, o conflito, a crise, a dor. É a hora do confronto com uma verdade que precisamos encarar.

“A verdade é que ele tomava sobre si as nossas enfermidades e sofria, ele mesmo, nossas dores... Ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes” (Is 53,4.5). A verdade é que, apesar de sermos filhos de Deus, não nascemos blindados contra a dor, nem vamos passar por este mundo sendo constantemente poupados de sofrimento. A verdade é que nós cometemos pecados, e esses pecados produzem dor e sofrimento na sociedade. A verdade é que a religião existe não para nos manter o mais distante possível da dor, mas para nos capacitar a enfrentar a dor e também a estar junto de quem se encontra hoje crucificado, seja pelos seus próprios erros, seja pelos erros de outros.            

Jesus nos dá o exemplo de como podemos nos posicionar diante de uma dor que não é escolha nossa, mas que nos cabe enfrentar. Quando Pedro tentou evitar a sua prisão, Jesus o questionou: “Não vou beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18,11). Jesus nos ensina que a cruz nem sempre é uma opção; opção é a nossa liberdade de escolher como queremos lidar com a cruz que atravessou o caminho da nossa vida. Não é prudente ter tanta pressa em passar adiante o cálice que o Pai nos dá para beber. Apesar de amargo, esse cálice pode conter o único e verdadeiro remédio para nos curar da ferida do egoísmo, do vício, do pecado, de atitudes nossas que estão destruindo a nossa vida pessoal, familiar, profissional ou espiritual.

A carta aos Hebreus nos ensina que Jesus não “tirou de letra” a experiência terrível de ser crucificado! Ele “dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte. E foi atendido, por causa da sua entrega a Deus. Mesmo sento Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que sofreu” (Hb 5,7-8). Jesus jamais negou sua repulsa humana diante da dor, do sofrimento e da morte, mas ele transformou essa repulsa em oração, uma oração tão profunda e sincera que foi atendida pelo Pai; não atendida livrando-o de passar pela cruz, mas atendida enquanto ressuscitando-o após a morte de cruz. Deus tem outra forma de responder à nossa oração, e só a fé no Seu amor por nós pode nos livrar de enlouquecermos ou de perdermos o sentido da vida por causa da cruz que atravessou o nosso caminho. Aquilo que sofremos pode ser vivido como uma redescoberta da presença do Pai em nossa vida, se estivermos abertos a aprender o que Ele está querendo nos ensinar.

Se é verdade que o nosso mundo está infectado pelo mau cheiro da morte, somos chamados a fazer como Nicodemos: espalhar perfume onde existe mau cheiro; espalhar o perfume da esperança onde há o mau cheiro do desespero; espalhar o perfume da consolação onde há o mau cheiro da desolação; espalhar o perfume da solidariedade onde há o mau cheiro da indiferença; espalhar o perfume da palavra de conforto onde há o mau cheiro do abatimento; espalhar o perfume do diálogo e da reconciliação, onde há o mau cheiro da inimizade.

Especialmente neste dia, meditemos sobre este alerta tão significativo: “Eu sei que um dia alguém vai ter que me enterrar, mas eu não vou fazer isso comigo mesma” (Cora Coralina).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

terça-feira, 15 de abril de 2025

NÃO BASTA COMER O CORDEIRO; É PRECISO CONFIGURAR-SE A ELE!

 Missa da Ceia do Senhor. Palavra de Deus: Êxodo 12,1-8.11-14; 1Coríntios 11,23-26; João 13,1-15.

                         

            Ao ouvirmos nesta noite os preparativos para a páscoa do Antigo Testamento, a pergunta que cada um de nós precisa se fazer é: De qual situação de escravidão eu preciso que o Senhor me liberte? De algum vício? De algum pecado? De alguma pessoa? Mais do que tudo, do próprio espírito do mal?

            O personagem central da páscoa dos hebreus no Egito foi o cordeiro: cada família devia sacrificá-lo, passar seu sangue na porta da casa e comer a sua carne assada ao fogo, com pães sem fermento e ervas amargas. Aqui outra pergunta é necessária: que tipo de espírito exterminador ameaça a minha família hoje? Doença? Drogas? Violência? Separação? Traição? Brigas? Dívidas? Celular? Jogos de apostas?

            Os pães sem fermento representam a pressa em sair do Egito. Somos pessoas apressadas, mas no sentido de viver correndo de um lado para outro, muitas vezes movidos pelas pressões externas e não por convicções internas. Nós também somos rápidos em agir para defender a nossa família ou os nossos valores espirituais? O pão sem fermento nos remete para Jesus, homem sem maldade, sem orgulho, humilde (o fermento incha a massa). A hóstia é pão sem fermento. Nós, que comungamos o Corpo de Cristo, somos pessoas sem maldade e simples de coração? Enfim, as ervas amargas eram necessárias para os hebreus não se esquecerem da vida amarga que tiveram no Egito. Ninguém gosta de recordações amargas, mas elas são necessárias para não voltarmos a nos tornar escravos de situações que nos fazem mal. Só remédios amargos curam doenças graves. Estamos dispostos a tomá-los, em vista da nossa cura e da nossa libertação?

            Os textos da carta de São Paulo e do Evangelho nos remetem para a páscoa do Novo Testamento. Nela o cordeiro não é mais um animal que é sacrificado sem ter consciência da razão do próprio sacrifício. Jesus é o Cordeiro de Deus que, livre e conscientemente, abraça o sacrifício da cruz em favor da salvação da humanidade. Seu sangue será derramado para perdoar nossos pecados e nos libertar definitivamente das mãos do espírito do mal. Comer o Corpo e beber o Sangue do Senhor Jesus implica em viver como Ele viveu: corpo doado e sangue derramado, isto é, não viver unicamente em função de nós mesmos, mas fazer da nossa existência uma doação para a salvação da humanidade. O próprio Jesus nos convida a imitá-lo: “Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,14-15).

            A atitude de Jesus escandalizou os próprios discípulos, pois lavar os pés das visitas durante uma refeição era um serviço próprio de escravos. Na última Ceia, Jesus quer ser lembrado por seus discípulos como aquele que serve. O escândalo de Pedro é o nosso escândalo, justamente porque não pensamos como Deus, mas como os homens: não queremos estar com os últimos, mas com os primeiros; não queremos nos sacrificar, mas usufruir, aproveitar, desfrutar das coisas boas da vida. Só mais tarde Pedro compreenderá a atitude de Jesus, quando estiver disposto a doar a sua vida pelo bem das ovelhas e dos cordeiros do rebanho de Jesus, que é a Igreja (cf. Jo 21,15-17).

            Na última Ceia alguém está comendo o Corpo e bebendo o Sangue de Jesus, mas o faz com o diabo em seu coração: Judas. O diabo é o divisor, o separador. Judas decidiu se separar de Jesus porque o queria forte e agressivo como um leão, e não fraco e manso como um Cordeiro. Judas se encontra hoje em todo cristão que acredita na força do dinheiro e das armas para resolver os problemas do mundo. As igrejas estão cheias de Judas, de fiéis que não se identificam com o Cordeiro, mas com o Leão, que exerce o domínio sobre todos e mata suas presas sem piedade. Justamente por conhecer cada ser humano por dentro (cf. Jo 2,25), Jesus hoje declara: “Nem todos estais limpos” (Jo 13,11). ‘Nem todos vocês querem se configurar a mim’.

            Nesta noite se inicia a nossa Páscoa. Cada um de nós é convidado a sair do Egito, isto é, da sua situação de escravidão, e a seguir os passos do Cordeiro de Deus, enfrentando o ódio do mundo, expresso na Cruz, na certeza de que aquele que perseverar até o fim no amor que nos torna “corpo doado e sangue derramado” será salvo. Se na hora da cruz todos os discípulos abandonaram Jesus, permaneçamos com Ele como fez o discípulo amado, mantendo no coração esta certeza: “Se com ele morremos, com ele viveremos. Se com ele sofremos, com ele reinaremos” (2Tm 2,11).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 10 de abril de 2025

OS SEIS ENSINAMENTOS DA PAIXÃO DE JESUS, SEGUNDO LUCAS

           Domingo de Ramos da Paixão do Senhor. Palavra de Deus: Lucas 19,28-40; Isaías 50,4-7; Filipenses 2,6-11; Lucas 23,1-49.

Hoje fazemos memória da entrada de Jesus em Jerusalém. Ele entra na cidade montado num jumentinho (cf. Lc 19,35) e não num cavalo, porque ele é manso e humilde, e não agressivo e violento. Como gostamos de nos sentir: Fortes ou fracos? Perdedores ou vencedores? Como quem sobe ou como quem desce? Com quem nos identificamos: com o Cordeiro ou com o leão? Enquanto nossas escolhas vão numa direção, Jesus escolhe a direção oposta: “esvaziou-se a si mesmo”, “assumiu a condição de escravo”, “humilhou-se a si mesmo”, “fez-se obediente até a morte” (Fl 2,7-8). Por qual motivo? Por causa da fidelidade à sua missão: salvar. Ele veio responder à nossa súplica: “Hosana!”, que significa “Dai-nos salvação!”. Eis a grande verdade: somente um Desgraçado pode salvar os desgraçados; somente um Condenado pode salvar os condenados; somente um Deus ferido pode salvar uma humanidade ferida.

Outra grande verdade que o dia de hoje nos revela: não existe salvação sem sacrifício. Não existe salvação para um relacionamento, quando um dos dois ou ambos não estão dispostos a sacrificar-se pelo mesmo. Não existe salvação para os filhos quando os pais não estão dispostos a se sacrificarem por eles, e vice-versa. E assim é também com o ambiente de trabalho, com a comunidade de fé, com a cidade; enfim, com o mundo no qual nos encontramos. Não nos esqueçamos disso: onde não há sacrifício, não há salvação.   

Na oração inicial da missa de hoje nós pedimos que o Pai nos conceda aprender o ensinamento da paixão (sofrimento) de seu Filho, para podermos ressuscitar com ele em sua glória. O primeiro ensinamento da paixão de Jesus é a constatação da sua inocência: “Não encontro neste homem nenhum crime” (Lc 23,4); “Ele nada fez para merecer a morte” (Lc 23,15); “Não encontrei nele nenhum crime que mereça a morte” (Lc 23,22). O que ainda existe de inocência em nós? Como eu lido com o fato de sofrer algum tipo de acusação injusta, como Jesus sofreu? Eu confio na justiça de Deus?

O segundo ensinamento da paixão de Jesus é a constatação de que nós estamos cada vez mais nos identificando com o mal: “A gritaria deles aumentava sempre mais. Então Pilatos decidiu que fosse feito o que eles pediam. Soltou o homem que eles queriam — aquele que fora preso por revolta e homicídio — e entregou Jesus à vontade deles” (Lc 23,23-25). Nosso modelo não é o Cordeiro que dá a vida, mas o leão que destrói a vida. Exemplo concreto: Andrew Tate, incitador de violência contra mulheres, tem 10 milhões de seguidores nas suas redes sociais. A rede social mais acessada no mundo, sobretudo por crianças e adolescentes, se chama Tik Tok, a qual propaga milhões de vídeos de violência que banalizam a vida de seres humanos e de animais.   

O terceiro ensinamento da paixão de Jesus é uma lamentação dele para com a nossa geração: “Chorai por vós mesmas e por vossos filhos! (...) Porque, se fazem assim com a árvore verde, o que não farão com a árvore seca?” (Lc 23,28.31). Chorem por vocês mesmos, pais, que dão celulares para seus filhos pequenos para que eles os deixem em paz, enquanto eles começam desde cedo a se viciarem nas telas. Chorem por vocês mesmos, pais, que acreditam ingenuamente que o fato de seus filhos estarem no quarto navegando na Internet significa que eles estão seguros. Chorem por vocês mesmos, crianças e adolescentes, que têm preguiça de ler um livro, que estão viciadas em jogos e vídeos, que se fecham para seus pais, mas se abrem para estranhos nas redes sociais. Chore por você mesmo(a), árvore seca, pessoa que não cria raiz em Deus, mas vive como folha seca que o vento das redes sociais empurra para onde quer.

O quarto ensinamento da paixão de Jesus é a libertação de todo tipo de condenação. Um homem, condenado por seus crimes, suplica: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”. Jesus lhe respondeu: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,42-43). Lembra-te de nós, Senhor, humanidade adoecida, desorientada, exposta ao mal ao mesmo tempo em que propaga o mal com suas atitudes. Lembra-te de nós, Senhor, consumidores que exploram os recursos naturais como se eles fossem inesgotáveis, que não nos dispomos a fazer algo de concreto pela preservação do meio ambiente. Lembra-te de nós, que não nos dispomos a mudar os nossos hábitos, mesmo sabendo que eles continuam a favorecer a destruição e a morte, para nós mesmos e para as gerações futuras.

O quinto ensinamento de Jesus é a sua entrega às mãos do Pai: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). Nós vivemos todos os dias nas mãos da ansiedade, do medo, da insegurança com relação a algo de ruim que possa nos acontecer. Jesus nos convida a substituir a ansiedade e o medo pela confiança, através de uma entrega incondicional ao Pai: “Meu Pai, que me deu essas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatar coisa alguma das mãos do Pai” (Jo 10,29). “Humilhem-se debaixo da poderosa mão de Deus, para que no momento oportuno Ele exalte vocês; lancem n’Ele todas as suas preocupações, porque é Ele quem cuida de vocês” (1P 5,6-7).

O sexto ensinamento da paixão de Jesus é a nossa atitude de olhar o sofrimento dos outros como quem assiste a um espetáculo: “As multidões, que tinham acorrido para assistir, viram o que havia acontecido e voltaram para casa, batendo no peito” (Lc 23,48). A tradução mais fiel ao texto bíblico é: “E toda a multidão que havia acorrido para ver o espetáculo...” (Lc 23,48), tradução da Bíblia de Jerusalém. As redes sociais nos presenteiam com fotos e vídeos de tragédias, de violência e, inclusive de suicídio de adolescentes e jovens, e nós assistimos a tudo isso como quem assiste a um espetáculo. Precisamos “bater no peito”, atitude bíblica de arrependimento, de quem se pergunta: Por que o nosso nível de humanidade está tão baixo? Por que a dor do outro não provoca indignação em mim? Como é que eu me tornei um doente no meio de uma sociedade doente, um cínico no meio de uma sociedade cínica, um indiferente no meio de uma sociedade indiferente à dor do outro?

Hosana! Dai-nos salvação, Senhor Jesus!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi