quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

DEUS NOS CONCEDA A SUA GRAÇA E A SUA BÊNÇÃO PARA O NOVO ANO!

Missa Santa Maria, Mãe de Deus. Palavra de Deus: Números 6,22-27; Gálatas 4,4-7; Lucas 2,16-21.

 

Começo essa reflexão com uma frase cujo autor desconheço: “Quando entendemos que não é um dia a mais, mas um dia a menos, começamos a valorizar o essencial”. Um ano termina e outro começa. 2022 não foi somente um ano a mais que vivemos, mas é também um ano a menos em nossa existência terrena. Sabemos que o tempo escorre como água por entre os nossos dedos. A vida passa rapidamente e não se importa se estamos aproveitando o tempo que ainda nos resta para cuidarmos do essencial, ou se estamos desperdiçando esse tempo correndo atrás de coisas que nada nos acrescentam enquanto seres humanos. De qualquer forma, a passagem de ano é um momento importante para que cada um de nós se pergunte: “Eu já aprendi a valorizar o essencial?”.

O ano que termina é como que mais uma página que escrevemos no livro da nossa história de vida, e aquilo que escrevemos está escrito; não pode ser apagado, mudado ou corrigido. Precisamos, portanto, aceitar o passado, nos reconciliar com ele e compreender que o momento mais importante da nossa vida é o presente, onde temos a oportunidade de revermos os nossos valores e usarmos a nossa liberdade para fazer escolhas que nos tornem melhores, que estejam de acordo com a nossa vocação, ajudando a nos tornar a pessoa que fomos chamados a ser, segundo os desígnios de Deus a nosso respeito.

Enquanto o nosso mundo, cada vez mais paganizado, nos dá dicas de como atrair a “boa sorte” para o novo ano – cores de roupas a serem usadas, comidas e bebidas a serem ingeridas, rituais religiosos carregados de superstição a serem praticados na passagem de ano – nós nos reunimos para pedir: “Que Deus nos dê a sua graça e sua bênção, e sua face resplandeça sobre nós!” (Sl 67,2). Sabemos que, sem o auxílio de Deus, nada podemos. Só a sua graça nos sustenta e nos mantém em pé diante das contrariedades da vida. Só a sua bênção torna fecundo o nosso trabalho e nos ajuda a perseverar na prática do bem. Só a sua face, que é luz, nos oferece direção e nos ajuda a manter os nossos passos no caminho para a verdadeira vida, como pede o salmista: “Vê, Senhor, se não ando num caminho fatal, e conduze-me pelo caminho eterno” (Sl 139,24).

Ao iniciarmos o novo ano pedimos que Deus disponha de cada um dos nossos dias e que possamos vivê-los sob a orientação do Espírito Santo. Ele nos foi dado como garantia da nossa filiação divina: “Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abá - ó Pai!” (Gl 4,6). A consciência da nossa filiação divina não deve ser entendida como privilégio ou como garantia de sucesso permanente diante de um mundo onde muitos são alcançados pela dor e atingidos pelas injustiças, mas com a consciência de que temos uma missão: se estamos nesse mundo é porque há uma tarefa que nos cabe realizar; há algo ou alguém que necessita ser cuidado por nós. É essa consciência que confere sentido à nossa existência.  

O apóstolo Paulo deixa claro que o contrário do filho de Deus é a figura do escravo. Escrava é toda pessoa que permite ser determinada a partir de fora, tornando-se uma espécie de joguete nas mãos do consumismo, dos seus afetos desordenados, dos seus pecados, das superstições do paganismo e da imposição dos contravalores do mundo atual. Quem se deixa conduzir pelo Espírito de Deus escolhe determinar-se a partir de dentro. Sua conduta não é determinada pelas cobranças externas, mas orientada pela voz da sua própria consciência, cujo desejo é viver segundo a vontade de Deus, sendo fiel à verdade que habita no fundo do seu ser. Sempre que nos aproximamos dessa verdade, nos sentimos felizes; sempre que nos distanciamos dela, nos entristecemos interiormente.

Maria é um exemplo concreto de pessoa livre, que escolhe se determinar a partir de dentro: “Quanto a Maria, guardava todos estes fatos e meditava sobre eles em seu coração” (Lc 2,19). Assim como Maria, nós não temos todas as respostas para as nossas perguntas, mas procuramos perceber nos acontecimentos o que Deus está querendo nos dizer. Assim como ela se colocou disponível a Deus – “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38) –, assim nós queremos viver cada dia do novo ano orientados pela Palavra de Deus, confiando que ela se cumprirá na vida de todos aqueles que nela creem e esperam. Assim como Maria, compreendemos que a nossa existência tem uma palavra que Deus deseja comunicar à humanidade: palavra de consolo para as pessoas abatidas; palavra de correção para aqueles que estão no erro; palavra de fé e de esperança para os que estão desanimados...

Ao pedirmos a bênção do nosso Pai para o novo ano que se inicia (cf. Nm 6,24-26), devemos nos recordar dessas palavras do apóstolo Paulo: “A ninguém pagueis o mal com o mal; seja vossa preocupação fazer o que é bom para todos os homens, procurando, se possível, viver em paz com todos, por quanto depende de vós” (Rm 12,17-18). Sabemos que o mal cresce e se espalha sempre mais no mundo, e que as pessoas estão cada vez mais agressivas, intolerantes e indiferentes ao seu semelhante. Exatamente por isso, precisamos ser uma presença de bênção no meio de tanta maldição; uma presença de paz no meio de tanto conflito e tanta agressão. Se realmente desejamos que a bênção de Deus esteja sobre nós, devemos nos dispor a fazer o bem a todas as pessoas e a viver em paz com elas, naquilo que depende de nós.

Termino essa reflexão citando três breves trechos da mensagem do Papa Francisco para o 53º dia mundial da Paz: 1. “A maior lição que a Covid-19 nos deixa em herança é a consciência de que todos precisamos uns dos outros, que o nosso maior tesouro, ainda que o mais frágil, é a fraternidade humana, fundada na filiação divina comum, e que ninguém pode salvar-se sozinho”. 2. “É juntos, na fraternidade e solidariedade, que construímos a paz, garantimos a justiça, superamos os acontecimentos mais dolorosos”. 3. “Não podemos continuar a pensar apenas em salvaguardar o espaço dos nossos interesses pessoais ou nacionais, mas devemos repensar-nos à luz do bem comum, com um sentido comunitário, como um ‘nós’ aberto à fraternidade universal”.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

ACOLHER A SALVAÇÃO DE DEUS NA "CARNE" DE SEU FILHO JESUS

 Missa de Natal. Palavra de Deus: Isaías 9,1-6; Tito 2,11-14; Lucas 2,1-14.

           

            Quando nasce uma criança, nós dizemos que a mãe deu à luz um filho. Mas, no caso do nascimento de Jesus, a Escritura afirma que ele “era a luz de verdade, que, vindo ao mundo, ilumina todo ser humano” (Jo 1,9). Esta noite ou dia de Natal nos convida a nos deixar envolver pela luz do Menino que é Luz, luz que significa orientação, esperança, saída de uma situação de escuridão; luz que, por ser sinônimo de verdade, liberta-nos dos nossos autoenganos e de todo tipo de mentira que nos escraviza; mais do que tudo, luz que dá a todo ser humano a possibilidade de ver, experimentar, a salvação que vem de Deus.

            “Para os que habitavam na sombra da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9,1). O grande problema de “habitar na sombra da morte” é habituar-se com ela, como os morcegos, que se sentem totalmente à vontade quando estão no escuro. Muitas pessoas nasceram e cresceram habituadas com a escuridão. Para elas, a luz agride, incomoda. Por isso, embora Jesus tenha nascido como luz para iluminar todo ser humano que nasce, isso não significa que sua luz seja desejada ou acolhida por todos. Nós mesmos, que celebramos o Natal de Jesus, precisamos nos perguntar se, de fato, desejamos que a luz da sua verdade ilumine todos os recantos da nossa alma, onde habitam as nossas sombras mais escuras.

            A celebração do nascimento de Jesus nos fala da maneira pequena, discreta, até mesmo insignificante, como Deus decide entrar na história humana, para redimi-la a partir de dentro: Jesus não nasce na capital do Império Romano (Roma), nem na capital de Israel (Jerusalém), mas na insignificante cidade de Belém. Nossos olhos foram doutrinados a enxergar somente o que é grande e tem a aparência de importante. Tudo o que é simples, pequeno e humilde não é visto por nós, e se o vemos, o desprezamos. Com isso, acabamos jogando fora a salvação de Deus, porque ela que não vem a nós embrulhada num enorme pacote de presente, mas mediada por acontecimentos simples e corriqueiros do dia a dia.

“Nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho” (Is 9,5). A salvação de Deus não vem a nós por meio de um adulto forte, mas por meio de uma criança recém-nascida, que necessita ser acolhida e cuidada por nós. Em outras palavras, a salvação é um processo. Devemos respeitar as suas fases, o seu crescimento, o seu desenvolvimento, o que exige de nós cultivo diário, paciência, perseverança e confiança. Acelerar artificialmente o processo não funciona. O menino que nasceu para nós, o filho que nos foi dado, não deve ser abortado pelo nosso imediatismo.

A celebração do nascimento de Jesus nos convida a acolher a salvação de Deus que se manifesta a nós na Palavra: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus... Tudo foi feito por ela e sem ela nada se fez de tudo que foi feito. Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,1-3.14). Muitos gostariam de ouvir Deus diretamente, sem a mediação de um pregador, de uma religião ou de uma igreja. Mas Deus escolheu falar conosco por meio de seu Filho único, Jesus Cristo: “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho” (Hb 1,1).

Qual é o problema aqui? O problema é que Jesus foi rejeitado por ser uma pessoa como nós. As próprias pessoas de Nazaré, lugar onde Jesus foi criado, não tinham fé nele (cf. Mc 6,1-6). Hoje essa rejeição cresceu e se alastrou pelo mundo: grande parte das pessoas não querem um Deus encarnado – feito pessoa humana –, mas um Deus somente espiritual, celeste, transcendente. Elas querem ser salvas como que “para fora da sua própria carne”. Por isso, buscam espiritualidades desencarnadas, distantes da realidade humana, descomprometidas com a realidade social na qual vivem. No entanto, o Natal nos convida a nos reconciliar com a nossa própria carne, com o nosso humano, e a não desprezar nenhum ser humano, porque ele é nossa carne (cf. Is 58,7).

“A graça de Deus se manifestou trazendo a salvação para todos os homens” (Tt 2,11). O Natal é, antes de tudo, graça. Não somos salvos por mérito ou por esforço nosso, mas por pura graça de Deus. Ela é como a chuva: não podemos produzi-la; podemos, apenas, fazer como a terra: nos abrir para recebê-la; permitir que ela penetre calmamente em nós e desça ao mais profundo de nós mesmos, despertando nossa vitalidade interior, que nos faz fecundos, independentemente das condições externas e adversas à nossa volta. Além disso, a graça da salvação é destinada a todas as pessoas: se existe descrédito em relação ao sentido do Natal é porque a nossa forma de celebrá-lo não contempla a todos, mas somente aqueles que pensam como nós.

“Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11). Cristo não nasceu para Maria, nem para José, mas para todos, especialmente para cada pessoa que necessita ser salva. Esse Cristo é o Senhor, título exclusivo de Deus Pai no Antigo Testamento e que havia sido usurpado pelo imperador de Roma. Para nós, cristãos, só existe um Senhor: Cristo Jesus. “Quem nele crê não será confundido... Ele é Senhor de todos, rico para todos os que o invocam. Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor (Jesus) será salvo” (Rm 10,11.13). Coloquemo-nos sob o senhorio de Cristo e sejamos anunciadores da sua salvação às pessoas do nosso tempo.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

JOSÉ: TORNAR-SE CUIDADOR(A) DAQUILO QUE ESTÁ ÓRFÃO À SUA VOLTA

 Missa do 4º dom. advento. Palavra de Deus: Isaías 7,10-14; Romanos 1,1-7; Mateus 1,18-24.

 

            Os textos bíblicos deste último domingo do Advento nos colocam diante de dois homens, chamados a se tornarem pais: o rei Acaz (séc. 8 aC) e o carpinteiro José (séc. 1 dC). Enquanto o filho de Acaz representa a promessa, o filho de José representa o cumprimento, a realização da promessa, para mostrar que Deus “vigia sobre a sua Palavra até que ela se realize” (cf. Jr 1,12). Isso significa que nenhuma das promessas de Deus ficará esquecida ou perdida no tempo, mas todas se cumprirão no seu devido tempo.

            O rei Acaz é chamado a tornar-se pai num contexto de ameaça de guerra. A guerra destrói tudo, trazendo consigo a morte e a perda de confiança no futuro. Exatamente na iminência de estourar uma guerra que destruirá o seu reino, Acaz recebe uma promessa de Deus: “Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Emanuel” (Is 7,14). A virgem, nesse caso, é a esposa de Acaz; o filho é Ezequiel, futuro rei de Israel, garantia de que haverá um futuro para um reino que está ameaçado de ser eliminado da face da terra.

            Muitos casais optam hoje por não terem filhos. Para que colocar um filho neste mundo tão desumano e ameaçador? Só para sofrer? No entanto, o nascimento de uma criança afirma que “Deus está conosco” – esse é o significado do nome Emanuel. Séculos mais tarde, o apóstolo Paulo perguntará: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” (Rm 8,31). O nascimento de uma criança é o sinal mais evidente de que nós, humanidade, sempre poderemos encontrar em Deus um futuro e uma esperança.

            Mas o filho de Acaz, Ezequiel, era apenas uma promessa, um símbolo bíblico para falar de um outro nascimento, de um outro menino, do verdadeiro Emanuel: Jesus Cristo, o “Deus conosco” (Mt 1,23), ele que nos garantiu: “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20). E o evangelho de hoje nos fala da “origem” humana de Jesus, uma origem que se dá num contexto de forte crise para o coração de José, que será chamado a ser pai de um filho que ele não gerou.   

            A gravidez de Maria pegou José de surpresa e o jogou numa profunda crise, enchendo seu coração de perguntas que ele não conseguia responder. Se a palavra “virgem”, aplicada à esposa do rei Acaz, designava sua idade jovem, em Maria ela designava literalmente a sua virgindade, pois ela nunca havia tido relação sexual com homem algum (cf. Lc 1,34). Portanto, desconhecendo o plano de Deus, era natural que José concluísse que a gravidez de Maria era fruto de uma traição, uma traição cujo preço era o apedrejamento até à morte, segundo a lei religiosa da época.

            E aqui entra a grandeza de José, aquilo que o evangelho chama de “justiça”: “José, seu marido, era justo” (Mt 1,19). Para não denunciar Maria publicamente como uma mulher que havia traído o seu futuro esposo e engravidado de um outro homem, José decide abandonar Maria em segredo, assumindo a “culpa” de ter engravidado Maria e não ter assumido a responsabilidade pelo filho. José poderia ter exigido “justiça” e entregue Maria ao apedrejamento, mas ele não o fez. Quantas injustiças nós causamos aos outros ao exigir justiça? Quantas vidas inocentes foram mortas em nome de uma falsa justiça? (No filme “Frankenstein de Mary Shelley” há uma cena dramática de uma jovem, morta por enforcamento, acusada injustamente de ter raptado uma criança).

            Assim como José, existem acontecimentos que transtornam a nossa vida, e nós não conseguimos raciocinar. Um monte de perguntas toma conta do nosso coração e nossas emoções turvam a nossa razão, dificultando que nossa consciência ouça e voz de Deus. Nesse caso, a única chance de Deus ser ouvido é por meio do sonho, pois ali o nosso consciente “desliga” e dá espaço para que o nosso inconsciente fale conosco. Enquanto o nosso consciente se defende daquilo que a vida está nos pedindo, o nosso inconsciente é livre para expressar aquilo que deve ser acolhido por nós como chance de uma reviravolta na nossa vida, como ampliação do horizonte da nossa existência. Desse modo, no sonho Deus fala com José e esclarece a “origem” da gravidez de Maria: ela é obra do Espírito Santo. Além disso, José é convidado por Deus a se tornar pai de um filho que não é seu, mas de Deus! José acorda do sonho e responde a Deus com a “obediência da fé” (Rm 1,5). Ele abre mão de seus planos humanos e se ajusta aos planos de Deus.

            A quantos de nós a vida está pedindo para cuidar de algo – ou de alguém – que não geramos, que não foi querido ou “causado” por nós, mas que depende absolutamente do nosso cuidado, para ter prosseguimento e futuro? Quantos casais, impossibilitados de terem filhos, não se abriram à possibilidade de adotarem um filho que não foi gerado por eles? A vida de muitos de nós pode ganhar um sentido totalmente novo quando aceitamos cuidar de algo que não é nosso, mas que Deus colocou em nosso caminho, na esperança de que abracemos aquilo como sendo nossa responsabilidade.  

            José não teve participação alguma na geração de Jesus no ventre de Maria, mas cabe a ele dar um nome àquele menino: “Tu lhe darás no nome de Jesus” (Mt 1,21), que significa “Deus salva”. Toda criança que nasce precisa de uma mãe ou de um pai que lhe dê um nome, uma identidade, os meios para que aquela vida, absolutamente depende de cuidado, tenha possibilidade de desenvolver-se, de ter um futuro e de se tornar aquilo que foi chamada a ser, para o bem da humanidade. Sabemos que mais da metade das famílias brasileiras não tem o pai dentro de casa. A maioria das crianças está crescendo como pequenos “Barrabás”, nome que significa “filho de um pai que ninguém sabe quem é”. A ausência de José na maioria das famílias hoje abre uma lacuna enorme na formação da personalidade dos filhos, por mais que a mãe seja uma heroína e os crie sozinha.

            Deus procura hoje por “Josés”. Deus procura pelos inúmeros homens ausentes das nossas celebrações, cuja igreja é o bar, o campo de futebol, a boca de fumo, a internet, o pedal, a trilha, a Netflix... Deus nos desafia como Igreja a sermos a presença de José junto às inúmeras crianças carentes de pai, crianças “adotadas” precocemente pelo tráfico de drogas e pelo mundo da criminalidade. Que a presença discreta e silenciosa de José na Sagrada Escritura nos inspire a ocuparmos o nosso lugar na história da salvação. Assim como ele, que nós nos tornemos homens e mulheres “justos”, dispostos a ajustar a nossa vida aos projetos de Deus, que visam o bem e a salvação nossa e da humanidade.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

SÓ NUMA TERRA ARADA COM A CRISE DE FÉ A SEMENTE DA ESPERANÇA PODE PENETRAR E GERMINAR

 Missa do 3. dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 35,1-6a.10; Tiago 5,7-10; Mateus 11,2-11.

 

            Como temos vivido a nossa vida? Com otimismo ou com pessimismo? Com esperança e alegria, ou com desencanto? A nossa época, decididamente, não é nem de alegria, nem de esperança, mas de medo, de preocupação, de insegurança e de ansiedade; uma época em que cada vez mais sentimos uma tendência a irmos para baixo. Não é só o estresse do dia a dia que faz baixar a nossa libido – o prazer ou a alegria de viver –, mas os diversos problemas, como doenças, conflitos, dificuldade financeira, solidão, insegurança no trabalho, violência e, principalmente, a sensação de que estamos sozinhos no mundo, sem alguém que possa nos salvar da destruição causada, algumas vezes, por nós mesmos.

            O abatimento da nossa esperança e da nossa alegria são importantes, porque nos colocam em comunhão com a crise de fé pela qual estava passando João Batista, na prisão: “És tu, aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?” (Mt 11,3). João Batista tinha uma grande expectativa em Jesus, de quem ele esperava uma intervenção radical e definitiva na história humana. Mas Jesus escolheu atuar de uma outra forma na consciência das pessoas e na história humana, deixando de lado a radicalidade que impõe à força uma mudança que sabemos, ou julgamos, ser necessária.

            Na verdade, João estava se perguntando se ele havia perdido tempo em crer em Jesus; se ainda teria sentido em continuar a crer e esperar nele. Nós precisamos ser muito sinceros e reconhecer que nossa fé não está tranquila, mas agitada, angustiada, insegura. Não entendemos tudo o que está acontecendo conosco e com o mundo. Não enxergamos claramente onde está Deus e quais as razões pelas quais Ele parece não intervir no mundo, mas escolhe deixar que a humanidade continue a fazer mal a si mesma. Será que Deus realmente nos ama e se importa conosco? Será que nós entendemos suas promessas, contidas na Sagrada Escritura, ou elas não passam de consolação ilusória para quem sofre?

            Jesus responde à crise de fé – nossa e de João Batista – afirmando: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim” (Mt 11,6). Feliz aquele que não joga fora sua fé só pelo fato de eu não intervir na sua vida como ele espera. Feliz aquele que não se fecha em ideias pré-concebidas a meu respeito, mas se mantém aberto àquilo que eu quero lhe revelar, dando-me a conhecer a ele de uma maneira nova e mais profunda. Feliz aquele que cuja fé não tem resposta para tudo, mas que aceita sofrer a angústia das perguntas, deixando-se questionar pela realidade por meio da qual o Espírito Santo continua a falar ao ser humano.   

            Embora João Batista estivesse passando por uma crise de fé, Jesus afirma que ele nunca foi um caniço agitado pelo vento, ou seja, uma pessoa volúvel, que muda de opinião conforme a onda do momento, que não tem raiz, isto é, que não tem convicção interior e que se deixa arrastar como folha seca pelo vento da desorientação em que vive o mundo. João Batista também não era um homem ligado ao supérfluo, cujo sentido de vida dependia do seu próprio bem-estar. Muito pelo contrário, era um homem simples e austero, que vivia do essencial e não se deixava aprisionar em falsas necessidades. João Batista era um autêntico profeta: um homem que vive junto aos outros homens, afetado pelos mesmos problemas que eles, mas que consegue ver, por trás de uma realidade ambígua e contraditória, a mão de Deus orientando a história para a verdade, a justiça e o bem comum.

            E você, como se vê? Como Jesus descreveria você? Como uma pessoa que se deixa determinar a partir de fora ou que busca se determinar a partir de dentro? Você é uma pessoa cuja esperança se assenta na Palavra do Deus que não mente, ou que depende de que as circunstâncias externas sejam favoráveis ao seu bem-estar, e que os ventos soprem a favor dos seus sonhos e projetos? “Fortalecei as mãos enfraquecidas e firmai os joelhos debilitados” (Is 35,3). Suas mãos ainda de erguem e seus joelhos ainda se dobram para orar? Suas mãos ainda persistem em fazer algo para tornar o mundo melhor, ou elas decidiram “jogar a toalha”, como a maioria? Seus joelhos ainda sustentam seus passos no seguimento de Jesus, ou desistiram de caminhar atrás dele?  

“Criai ânimo, não tenhais medo! Vede, é vosso Deus, (...) é ele que vem para vos salvar” (Is 35,5). “Ânimo” é contrário de desânimo – sem alma, sem vigor, sem vida interior, um cadáver ambulante. Nosso “ânimo” deve ser firme como o ânimo do agricultor: independente de ter a garantia de que vai chover, ele trabalha firmemente a terra, arando e semeando, na esperança de que, no momento certo, a chuva virá e fará a semente germinar (cf. Tg 5,7). Se a chuva cai numa terra onde nada foi semeado, ali só cresce o mato. A nós, portanto, cabe semear. Não temos o poder de fazer chover. Como bons agricultores, devemos semear com firmeza, inclusive e sobretudo no tempo da tristeza, sabendo que “aquele que semeia entre lágrimas, colherá com alegria” (Sl 126,5).

            Se muitas pessoas querem colher o que não semeiam e esperam que caia do céu aquilo que elas não se dão ao trabalho de cultivar, Deus procura por bons agricultores, por pessoas firmes na sua fé e na sua esperança, por pessoas que semeiem em todos os tempos, e não somente quando existe garantia de chuva. Não revistamos a terra da nossa alma com uma camada de cimento chamada “indiferença”, “apatia”, “desânimo”. Mantenhamos a terra da nossa alma descoberta, arada com o arado da crise de fé, de uma fé que se deixa cortar por dentro, para que ali, no corte aberto, seja lançada a semente da esperança, e dela brote o fruto que comprova que Deus jamais desamparada aqueles que nele esperam (cf. Sl 25,3).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

O NECESSÁRIO DIÁLOGO ENTRE NOSSO LOBO E NOSSO CORDEIRO

 Missa do 2. dom. advento. Palavra de Deus: Isaías 11,1-10; Romanos 15,4-9; Mateus 3,1-12.  

 

            Polarização. Brasil partido. Mundo e Igreja divididos. Oriente e Ocidente. Norte e Sul. Direita e Esquerda. Inimizade. Ódio. Pensamento único – eliminar quem pensa diferente de mim. Incapacidade de dialogar. No lugar de pontes que unem, muros que separam. Todas essas formas de divisão, de oposição, nos desumanizam, nos adoecem e nos levam para a morte.

              Qual é a possiblidade de mudança, de transformação, seja do mundo, seja de nós mesmos? “Convertam-se, porque o Reino dos Céus está próximo” (Mt 3,2). Tanto João Batista quanto Jesus (cf. Mc 1,15) estavam convencidos de que nós podemos mudar, ser melhores, modificando nossa maneira de pensar e de agir. O tempo do Advento sempre nos recorda de que nunca é tarde para mudar a si mesmo, independentemente da idade que se tenha. Conversão é o contrário de perversão. Precisamos nos perguntar se, ao longo da nossa existência, estamos nos convertendo a Deus ou nos pervertendo na direção de caminhos de perdição e de destruição.

Foi a uma humanidade dividida, fragmentada, partida, que Deus enviou o seu Filho, para derrubar o muro da separação, para eliminar a inimizade, para reconciliar o ser humano consigo mesmo, com Deus e com o seu semelhante (cf. Ef 2,14-16). A imagem dessa humanidade reconciliada, pacificada, aparece na profecia de Isaías: “O lobo e o cordeiro viverão juntos”; “o bezerro e o leão comerão juntos” (Is 11,6); “o leão comerá palha como o boi” (Is 11,7). Em outras palavras, não haverá agressão, nem derramamento de sangue sobre a terra. Até mesmo os inimigos “naturais” deixarão de ser inimigos e conviverão juntos. Isso significa que o processo de conversão, de busca de mudança, precisa descer ao mais profundo de cada um de nós e atingir os nossos afetos, os nossos instintos, de forma que o nosso “natural” transcenda e se torne “espiritual”.

            Em cada um de nós existe bondade e maldade, mansidão e agressividade, natural e espiritual. Não podemos eliminar um e ficar somente com o outro. Nossa principal tarefa é colocar os dois para dialogar. O cordeiro tem algo a ensinar ao lobo, assim como o lobo ao cordeiro. Há momentos em que a situação pede que sejamos cordeiros, assim como há momentos em que precisamos deixar o lobo que nos habita se manifestar. Mas esse diálogo entre lobo e cordeiro precisa ser realizado também no âmbito familiar, comunitário e social. Quantos muros precisam ser derrubados e convertidos em pontes, em nossas famílias, em nossas igrejas, em nossos ambientes de trabalho e no mundo ao nosso redor? Cada palavra e cada atitude nossa podem ser um tijolo a mais no muro da separação ou uma tábua a mais na ponte da reconciliação.

            Advento é tempo de deixar brotar algo novo no tronco da nossa vida; é tempo de permitir que o Espírito do Senhor repouse sobre nós e oriente nossas atitudes (cf. Is 11,1-2). Se o tempo do Advento nos prepara para o Natal, precisamos ter consciência de que “o Natal é uma mentira quando você crê que Deus quis compartilhar a nossa vida para restaurar o humano e, ao mesmo tempo, você colabora com a desumanização da nossa sociedade. O Natal é uma mentira quando você crê no Deus que se entregou até à morte para defender e salvar o ser humano, mas você passa a vida sem fazer nada por ninguém” (Pe. José A. Pagola). Eis porque o apóstolo Paulo nos recorda da necessidade de nos acolhermos uns aos outros e de trabalharmos em vista da harmonia e da concórdia uns com os outros (cf. Rm 14,5.7).

            A primeira vinda de Jesus foi preparada por João Batista. É ele a figura central no Evangelho de hoje. Diferente de Jesus, cuja pregação era marcada pela misericórdia, João Batista tinha uma pregação mais agressiva: “Raça de cobras venenosas, quem ensinou vocês a fugirem da ira que vai chegar? Produzam frutos que provem a conversão de vocês” (Mt 3,7-8). João Batista se refere a pessoas religiosas como “raça de cobras venenosas”. Por que há tanto veneno dentro das nossas igrejas? Quantas das nossas comunidades estão envenenadas pela fofoca, pela competição, pela busca de poder, pela disputa por cargos, pela divisão e mesmo pelo ódio? Como é possível que dos mesmos lábios que recebem o Corpo de Cristo saia o veneno do mal, das palavras que causam discórdia e divisão?

            “Produzam frutos que provem a conversão de vocês”. Ninguém de nós já concluiu seu processo de conversão. Ninguém de nós é uma pessoa totalmente convertida. A conversão é um processo contínuo em nossa vida, com avanços e retrocessos. No entanto, o mínimo que se espera de nós, pessoas “de Igreja”, é que sejamos melhores seres humanos do que aqueles que julgamos serem pessoas “do mundo”. É inaceitável que um cristão seja pior ser humano do que um pagão. Eis porque o Evangelho nos fala do machado posto junto à raiz da árvore: “O machado já está na raiz das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada e jogada no fogo” (Mt 3,10). Um cristão que nada faz para tornar o mundo um pouco melhor será cortado do mundo.

            Não nos esqueçamos de que Jesus Cristo virá uma segunda vez, e virá como Juiz (cf. Mt 25,31-33). Julgar, no sentido bíblico, significa separar. Ele terá na sua mão uma pá: com ela, recolherá o trigo – as pessoas que fazem o bem – no celeiro de Deus, e também com ela recolherá a palha e a jogará no fogo que não se apaga, símbolo bíblico do tormento eterno dos que fazem o mal. Revisemos, portanto, nossas atitudes. Verifiquemos se a nossa presença no seio da humanidade a tem tornado melhor ou pior.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

O HOMEM MUNDANO NADA ESPERA; O HOMEM ESPIRITUAL TUDO ESPERA

 Missa do 1. dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 2,1-5; Romanos 13,11-14a; Mateus 24,37-44.

 

Houve um tempo em que a espera enchia a vida de sentido. Esperava-se a Páscoa para se comer o “ovo de Páscoa”; esperava-se o Natal para se ganhar o presente desejado; esperava-se o casamento para se experimentar o prazer de uma relação sexual. Mas o tempo da espera foi eliminado da existência humana. Antes mesmo do tempo da Quaresma, os ovos de chocolate são comprados e consumidos, de forma que o dia da Páscoa não tem mais novidade alguma a se aguardar. Da mesma forma, as famílias de boa condição financeira presenteiam seus filhos em qualquer tempo, e a relação sexual deixou de ser exceção, passando a ser regra no namoro. Portanto, não há mais o que esperar, e o não ter pelo quê esperar esvaziou a vida de sentido.  

Advento é tempo de espera. Não estamos esperando apenas alguma coisa acontecer, mas estamos esperando o nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo: “Ele virá, uma segunda vez, (...) àqueles que o esperam, para lhes dar a salvação” (Hb 9,28). O tempo do advento existe para nos ensinar a importância da espera. Uma vida sem espera é uma vida sem horizonte, sem amanhã. Todos nós precisamos esperar: esperar pela resposta à nossa pergunta; esperar pela cura da nossa ferida; esperar até que a noite termine e nasça o dia; esperar até que seja completada a obra que Deus iniciou em cada um de nós: “Tenho plena certeza de que aquele que começou em vós a boa obra há de levá-la à perfeição até o dia de Cristo Jesus” (Fl 1,6), isto é, da segunda Vinda de Cristo.   

Só a espera nos livra do desespero e de uma vida sem sentido. Foi a espera em reencontrar pessoas da própria família que fez com que muitos judeus não enlouquecessem e não se suicidassem nos campos de concentração. A espera é o gemido do Espírito Santo em nós: “gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo” (Rm 8,23). O tempo do Advento existe para nos tornar conscientes de que vivemos o tempo do “ainda não”: ainda não terminamos a corrida; ainda não encerramos a luta; ainda não chegamos à meta. Precisamos aprender a suportar o “ainda não”, até que o Senhor Jesus venha e cumpra cada uma das suas promessas a nosso respeito.

Nós, cristãos, estamos vivendo o tempo entre a Páscoa e a segunda Vinda de Cristo, entendido biblicamente como o tempo da conversão, da necessária perseverança, da fidelidade ameaçada, da fé combatida. No horizonte da história humana há uma promessa: o insignificante monte Sião, uma pequena colina sobre a qual foi construído o templo de Jerusalém, se erguerá e se tornará o ponto mais alto da terra (cf. Is 2,1-2), onde Jesus se encontrará com seus eleitos. Em outras palavras, a aparente insignificância da nossa rotina, dos nossos dias e das nossas atitudes em tornar o mundo melhor, será recompensada pelo próprio Jesus que “passou por este mundo fazendo o bem” (At 10,37).

Se não queremos que em nossa existência a espera seja substituída pelo tédio, pelo vazio, pela perda de sentido, precisamos “acordar”. O apóstolo Paulo nos alerta para o perigo do sono, da distração, de quem, por descuidar da sua vida espiritual, reduziu a sua esperança a uma vida mundana: sua existência se resume em comer, beber, consumir, desfrutar, competir, sem dar à própria uma direção, uma razão, um sentido. A pessoa funciona como uma mera engrenagem dentro de uma máquina, vivendo automaticamente, fazendo o que é mandada – ou o que foi “programada” (a partir de fora) para fazer. Quando se dá conta, a vida passou e ela não viveu, mas “foi vivida”.  

Jesus deseja nos despertar do sono de quem vive no automatismo, fazendo uma porção se coisas sem se perguntar para onde sua vida está indo. Ele nos recorda que a sua Vinda encontrará a humanidade exatamente como o dilúvio a encontrou: as pessoas comiam, bebiam, casavam-se, trabalhavam, divertiam-se, sem se dar conta de que algo estava acontecendo. Elas “nada perceberam até que veio o dilúvio e arrastou a todos” (Mt 24,39). Quem vive a partir da carne, de maneira mundana, “nada percebe”: a existência, para essa pessoa, não tem um para que, uma razão de ser, um sentido, mas quem vive a partir do espírito sabe que sua existência tem uma finalidade, e as escolhas que ela faz hoje refletirão no seu destino final.  

A diferença entre viver de maneira mundana e viver de maneira espiritual aparece nessas palavras de Jesus, revelando que, no momento da sua Vinda, um homem “será levado e o outro será deixado”; uma mulher “será levada e a outra será deixada” (Mt 24,40-41). A Vinda de Jesus surpreenderá a todos (como um ladrão), mas aqueles que o esperaram, que suportaram em suas vidas o “ainda não”, que se mantiveram firmes na fé, serão salvos, justamente porque receberão a concretização daquilo que esperaram: a própria salvação.  

 Algumas perguntas podem nos ajudar neste início de Advento: O que eu espero da vida? Eu lanço as sementes para colher aquilo que eu desejo e espero? Eu suporto na minha história de vida o “ainda não”? Como o Senhor Jesus me encontrará: promovendo desavenças, conflitos, brigas e rivalidades, ou promovendo a paz (cf. Is 2,4; Rm 13,13)? Ele me encontrará agindo com honestidade e perseverando na minha vida espiritual, ou levando uma vida mundana: comendo, bebendo e me prostituindo?

Vivemos esperando dias melhores: dias de paz, dias a mais dias que não deixaremos para trás... Vivemos esperando o dia em que seremos melhores: melhores no amor, melhores na dor, melhores em tudo” (Dias melhores, Jota Quest).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

QUEM EU PERMITO QUE EXERÇA DOMÍNIO SOBRE MIM?

 Missa de Cristo, Rei do Universo. Palavra de Deus: 2Samuel 5,1-3; Colossenses 1,12-20; Lucas 23,35-43.

 

Onde, na Bíblia, começou essa história de o povo de Deus (Israel) ter um rei? Ela começou quando Samuel, o último juiz de Israel, estava idoso: “Constitui sobre nós um rei, que exerça a justiça sobre nós” (1Sm 8,5). A ideia da monarquia podia parecer boa – um rei que exerça a justiça – mas não era. Não somente Samuel, mas o próprio Deus também era contrário à monarquia: “Não é a ti que eles rejeitam, mas é a mim que eles rejeitam, porque não querem mais que eu reine sobre eles” (1Sm 8,7). Apesar disso, Deus consentiu que Israel tivesse um rei.

Nós também, povo brasileiro, gostaríamos de ter um rei, um homem forte, inteligente e poderoso, que pusesse ordem na casa; um homem que nos oferecesse proteção e que acabasse com tudo o que existe de ruim em nosso País; um homem que nos garantisse paz, prosperidade e o pão de cada dia. Aliás, foi exatamente após a multiplicação dos pães que o povo quis fazer de Jesus o seu rei: “‘Esse é, verdadeiramente, o profeta que deve vir ao mundo’. Jesus, porém, sabendo que viriam buscá-lo para fazê-lo rei, refugiou-se de novo, sozinho, na montanha” (Jo 6,14-15). Jesus recusou-se a ser rei daquela multidão porque ele não veio nos desresponsabilizar perante a vida. Uma cidade, um estado ou um País não dependem unicamente de quem os governa, mas de cada pessoa que habita aquela cidade, aquele estado, aquele País.

O povo de Israel teve inúmeros reis, principalmente porque, em grande parte da sua história, foi um País dividido entre Reino do Norte e Reino do Sul. A imensa maioria dos reis do Reino do Norte e do Reino do Sul “fizeram o que é mau aos olhos do Senhor”, uma frase que se repete constantemente no Livro dos Reis. Somente quatro reis foram aprovados por Deus, fazendo o que era correto aos seus olhos. Dentre eles, está o rei Davi, que aparece na primeira leitura unificando o País. Um País dividido está condenado a destruir-se com suas próprias mãos, pelas atitudes dos seus habitantes. Um País dividido é um País onde quem reina não é Deus, o Pai que quis reconciliar a todos em seu Filho Jesus Cristo, “realizando a paz pelo sangue de sua cruz” (Cl 1,20), mas o diabo, o divisor, aquele que envenena o coração humano com ódio para desumanizar pessoas, tornando-as homicidas.

Desde o Antigo Testamento, a figura do Rei foi associada à figura do Pastor. A função do Rei é apascentar, é cuidar do rebanho que lhe foi confiado. Diante do fracasso dos inúmeros reis de Israel, que se tornaram “pastores de si mesmos” (cf. Ez 34,8), Deus se comprometeu em apascentar ele mesmo o seu rebanho: “Buscarei a ovelha que estiver perdida, reconduzirei a que estiver desgarrada, cuidarei da que estive fraturada e restaurarei a que estiver abatida... Eu as apascentarei com justiça” (Ez 34,16). Essa promessa se cumpriu em Jesus Cristo, o Bom Pastor, o Rei Pastor, que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (cf. Mt 20,28).

Enquanto os reis vivem em palácios, Jesus não tem onde reclinar a cabeça (cf. Lc 9,58); enquanto os reis fazem banquetes esplêndidos, onde se decide, inclusive, a morte de pessoas inocentes (cf. Mc 6,25), Jesus se senta à mesa com os pecadores e com pessoas que jamais seriam convidadas para um banquete, por serem pobres (cf. Mt 9,10-11; Lc 14,12-14); enquanto os reis se sentam num trono, para comandar as guerras, Jesus se deixa colocar numa cruz, a partir da qual entrega a sua vida para libertar todos os condenados e para retirar a humanidade debaixo do domínio de Satanás, o “príncipe deste mundo” (Jo 12,31).  

Durante a sua permanência na cruz, Jesus ouviu por três vezes a expressão “salve-se a si mesmo!” (cf. Lc 23,35.37.39). Os reis têm exércitos e armas para se defenderem, mas Jesus é o Rei que tem como armas unicamente o amor e o perdão. Ele não tem exército nem armas porque não tem inimigos a destruir, mas filhos a resgatar do domínio do pecado e introduzi-los no Reino do seu Pai. Mesmo sendo Rei, Jesus não se desviou da cruz, para nos ensinar que ele não veio eliminar a dor da vida, mas nos encorajar a nos responsabilizar pela nossa existência, amando até o fim, apascentando até o fim, cuidando até o fim daquilo que a vida nos pediu para cuidar, ainda que tudo isso comporte algum tipo de dor. O Rei Jesus veio nos ensinar que o sentido da vida não está em não sofrer, mas em viver por uma causa, ainda que isso nos traga sofrimento.

Enquanto os “reis” da terra condenam pessoas ao sofrimento, praticando uma política de morte e defendendo uma economia que mata, Jesus se permitiu ser um Rei condenado entre os condenados. E exatamente nessa condição de condenado, ele se tornou causa de libertação e de salvação para um condenado: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado” (Lc 23,42). Jesus lhe respondeu: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43). Esse é o domínio que Jesus, Rei do Universo, exerce sobre todo ser humano que o escolhe como Rei e Pastor: um domínio de libertação, de absolvição, de cancelamento de toda e qualquer condenação, de modo que Paulo apóstolo afirmou: “Não existe mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus” (Rm 8,1).

Hoje nos aproximamos do trono do nosso Rei e Pastor, suplicando que ele se lembre de nós em seu Reino; que ele se lembre de todos os condenados na face da terra, de todos os que precisam ser resgatados do domínio do mal, do pecado e de qualquer tipo de injustiça que continue a crucificar pessoas em nosso tempo; que o seu sangue redentor realize a paz em nosso País, em nosso local de trabalho, em nossas igrejas, no mundo todo. Que não seja mais o ódio a exercer domínio sobre nós, mas o amor e o perdão, para que as pessoas à nossa volta saibam que o Pai deseja realizar a paz em cada canto da terra, pelo sangue redentor de seu Filho, derramado na cruz “para reunir todos os filhos de Deus dispersos” (Jo 11,52).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

O NOVO SÓ NASCE DA DESTRUIÇÃO DO VELHO

 Missa do 33. dom. comum. Palavra de Deus: Malaquias 3,19-20a; 2Tessalonicenses 3,7-12; Lucas 21,5-19.

 

Os textos bíblicos de hoje nos colocam diante de um gênero literário chamado “apocalíptico”. Os escritos apocalípticos têm um caráter pessimista e também otimista: são pessimistas em relação ao mundo mau, às pessoas injustas; mas são otimistas em relação a todos aqueles que procuram se manter fiéis a Deus, não se corrompendo com o mundo e não se tornando más por questão de sobrevivência.

“Apocalipse” significa tirar o véu, revelar. Os escritos apocalípticos querem nos ajudar a enxergar além do véu da realidade presente, e compreender que a história humana não está nas mãos de nenhum regime político, de nenhum ser humano poderoso. Atualizando para os nossos dias, devemos ter a convicção de que a história humana não está nas mãos do mercado, de meia dúzia de pessoas extremamente ricas e poderosas, que decidem os rumos das nações, que decidem até mesmo quem vive e quem morre, a partir de onde elas decidem investir financeiramente.

Para o autor apocalíptico, a história está nas mãos de Deus, o único que realmente governa o mundo, e todos os acontecimentos, por mais contraditórios que sejam, servem unicamente aos seus desígnios a respeito da humanidade. Uma das convicções apocalípticas mais fortes na Bíblia se refere ao “Dia do Senhor”. Esse “Dia” fala da intervenção definitiva de Deus na história humana, exterminando da face da terra todos os que fazem o mal, que praticam a injustiça e que levam outros à morte, e salvando “os eleitos”, isto é, as pessoas que perseveram na prática da justiça, fazendo o bem e promovendo a vida ao seu redor.

O profeta Malaquias descreve o “Dia do Senhor” com a imagem do fogo: esse fogo destrói as pessoas más como se fossem palha seca, ao mesmo tempo em que é descrito como “sol da justiça”, trazendo a salvação definitiva para as pessoas boas. Já o apóstolo Paulo constata que algumas pessoas, apostando na iminência do “Dia do Senhor” – a volta do Senhor Jesus – decidiram cruzar os braços e não fazer mais nada, esperando Jesus voltar. Paulo afirma que não é essa a conduta que se espera de um cristão, mas que ele continue a trabalhar todos os dias, pelo bem de si mesmo e dos outros. Jesus não traz uma intervenção mágica que desresponsabiliza o homem.  

Enfim, o próprio Jesus, no Evangelho de hoje, fala conosco usando uma linguagem apocalíptica: “Vós admirais estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído” (Lc 21,6). Essas palavras se referem à destruição do Templo de Jerusalém, algo impensável para as pessoas na época de Jesus! Ora, que os impérios humanos sejam destruídos, isso pode até nos deixar assustados, mas, afinal de contas, são construções “humanas”. Agora, que Deus permita que até mesmo o Templo em que Ele habita seja destruído, isso nos deixa perplexos! Se até mesmo aquilo que julgamos ser divino pode ser destruído, em quê ou em quem podemos confiar o nosso destino?

A princípio, essa afirmação de Jesus – “Tudo será destruído” – serviria apenas para aumentar ainda mais a nossa angústia, a nossa ansiedade, o nosso medo em relação ao futuro. Mas o que Jesus quer é que nós estejamos abertos à vida, e a vida muda constantemente. A vida é dinâmica; Deus é dinâmico. Até mesmo a nossa rotina, que parece ser a mesma, está inserida num movimento, num desígnio maior, que é o plano de Deus. O Deus que intervirá de maneira definitiva no fim dos tempos, está intervindo todos os dias na história humana. Ele tem um propósito para cada um de nós, para toda a humanidade. Todos os acontecimentos tendem para um desfecho. Se Deus permite que algo muito precioso para nós seja destruído, não é porque Ele não nos ama ou seja indiferente ao que nos acontece, mas porque seus desígnios ultrapassam a nossa compreensão presente e projetam a nossa vida para um futuro que o próprio Deus está nos preparando.

A Terra não é o Céu. Este mundo desigual, injusto e cheio de sofrimento não é o mundo que Deus criou e que deseja para nós. O horizonte de toda linguagem apocalíptica aponta para uma promessa de Deus: “O que nós esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). No horizonte da nossa existência está uma vida sem injustiça, sem maldade, sem dor, sem destruição, sem morte. Mas nós vivemos no “ainda não”. Ainda temos que viver em um mundo marcado por dores e sofrimentos. Essa é a época em que cada um de nós foi chamado a viver e a dar testemunho da sua fé e da sua esperança em Cristo: “Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé” (Lc 21,13). Exatamente num contexto de forte individualismo, de indiferença, de descaso para com a vida alheia, de maldade, dor e sofrimento é que devemos testemunhar a nossa fé.

Mas qual é a nossa fé? É a certeza de que nenhum fio de cabelo cairá da nossa cabeça sem o consentimento do Pai. Tudo o que Ele permitir que seja modificado ou até mesmo destruído em nossa vida, acontecerá apenas porque Ele tem um desígnio maior a nosso respeito. Por isso, diante de cada perda, de cada dor, de cada acontecimento aparentemente absurdo e sem sentido, nós pediremos confiantemente: “Venha a nós o vosso Reino! Seja feita a vossa vontade!”. Diante de cada plano nosso desfeito e da pretensão humana daqueles que julgam serem os donos do mundo, decidindo os rumos da humanidade, nós proclamaremos: “O Senhor desfaz os planos das nações e os projetos que os povos se propõem. Mas os desígnios do Senhor são para sempre, e os pensamentos que ele traz no coração, de geração em geração vão perdurar” (Sl 33,10-11).

Guardemos no coração essas palavras de Jesus: “É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!” (Lc 21,19). Permaneçamos firmes, cuidando daquilo que a vida está pedindo para cuidarmos, neste momento. Permaneçamos firmes na fé, na esperança e na caridade. Permaneçamos firmes no bem que somos chamados a fazer, enquanto aguardamos o nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

SANTIDADE: FAZER VIR À LUZ O MELHOR DE NÓS MESMOS

 Missa de todos os Santos. Palavra de Deus: Apocalipse 7,2-4.9-14; 1João 3,1-3; Mateus 5,1-12.

Como nasce a devoção aos Santos? Normalmente, ela nasce a partir de uma necessidade, de uma urgência, de um pedido de intercessão. Mas pode acontecer também que essa devoção nasça da leitura da história de vida de um(a) Santo(a), que acaba inspirando a pessoa a buscar o seu melhor: “Importante é que cada fiel entenda o seu próprio caminho e traga à luz o melhor de si mesmo” (Papa Francisco, GE, n.11). Nessas palavras do Papa Francisco fica claro que ser santo não consiste em nos tornarmos uma pessoa diferente daquela que somos, mas em nos tornarmos a pessoa que fomos chamados a ser, deixando vir à luz o melhor de nós mesmos.

A comemoração de todos os Santos nos recorda a nossa vocação, o nosso chamado à santidade: o Pai Santo “nos quer santos e espera que não nos resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa... Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra” (Papa Francisco, GE n.14). Deus não quer que vivamos uma vida sem sentido, sem alma, sem razão de ser, sem alegria. O tempo em que fomos chamamos a viver e o lugar aonde a mão de Deus nos plantou são exatamente o contexto onde somos chamados a abraçar a nossa vocação à santidade. É ali, e não em outro lugar, que se encontra a ocasião mais oportuna para a nossa santificação, para desenvolvermos o melhor de nós mesmos. É na rotina de cada dia, nas ocupações diárias, que cada um de nós é chamado a santificar-se e a santificar o mundo.

No livro do Apocalipse, as pessoas santas recebem a marca do Deus vivo em sua fronte = consciência (cf. Ap 7,3). No entanto, no mundo atual, quase não se fala de consciência. Tudo é reduzido à emoção, ao coração. Muitas pessoas, ao fazerem uma escolha ou tomarem uma decisão, não consultam sua consciência, mas sim as emoções que sentem no momento. Por isso, erram muito: ferem e são feridas. Por outro lado, a consciência é o lugar da nossa liberdade e da nossa responsabilidade. É a partir da nossa consciência que podemos superar o mero “reagir” ao que nos acontece, para tomarmos a decisão que nos é pedida, em vista de lidarmos da melhor forma com o que nos acontece.

O caminho da nossa santificação passa pelo Evangelho e pela nossa configuração a Jesus Cristo, “o Santo de Deus” (Jo 6,69). Neste sentido, o Papa Francisco nos recorda que “para viver o Evangelho, não podemos esperar que tudo à nossa volta seja favorável” (GE, n.91). Muito pelo contrário: o mundo em que vivemos está em profundo desacordo com os valores do Evangelho, o que significa que, se quisermos nos configurar a Jesus Cristo, teremos que lidar com o desprezo, a indiferença ou até mesmo a perseguição por parte do mundo. É por isso que o Papa Francisco afirma: “Abraçar diariamente o caminho do Evangelho mesmo que nos acarrete problemas: isto é santidade” (GE, n.94). Em outras palavras, quem busca sua santificação não segue a direção do vento, mas orienta-se por uma meta, e não deixa de caminhar na direção dessa meta só porque os ventos são contrários.

Assim como nós, Jesus percorreu seu caminho de santificação, de plena conformação da sua vontade humana à vontade do Pai. Ele deixou esse caminho descrito para nós nas bem-aventuranças, as quais devemos entender como atitudes de vida: ser pobre em espírito, isto é, viver na absoluta dependência de Deus e na confiança em seu amor; ser aflito, no sentido de deixar-se afetar pelo sofrimento alheio; ser manso, aprendendo a lidar consigo mesmo e com os outros; ter fome e sede de justiça, no sentido de não desistir de ser uma pessoa justa e de trabalhar em favor daquilo que é justo; agir com misericórdia para consigo mesmo e para com os outros; ser puro de coração, tendo reta intenção e valorizando o bem que habita em cada pessoa; promover a paz, desarmando-se e ajudando os outros a se desarmarem no relacionamento cotidiano; suportar ser perseguido ou criticado por ser uma pessoa justa; enfim, suportar ser perseguido ou criticado por servir a Jesus e à causa do Evangelho.  

Enfim, devemos ainda recordar um outro aspecto importante, para o nosso caminho de santificação: “Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo” (Papa Francisco, GE, n.101). As pessoas santas não são aquelas que se mantêm distantes da dor humana; pelo contrário, são aquelas que enxergam onde há injustiça e se colocam na defesa dos injustiçados, à semelhança de Jesus. Não por acaso, nos foi dito no livro do Apocalipse que os Santos “vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram suas vestes no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14). Enfrentemos com coragem as tribulações que nos são propostas pela vida, consequência da nossa busca em nos santificarmos e vivermos segundo o Evangelho de Jesus.   

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

O JESUS SEGUNDO O EVANGELHO TE REPRESENTA?

 Missa do 31. dom. comum.  Sabedoria 11,22 – 12,2; 2Tessalonicenses 1,11 – 2,2; Lucas 19,1-10.

 

            “Rezo para que Nossa Senhora Aparecida proteja e cuide do povo brasileiro; que o liberte do ódio, da intolerância e da violência” (Papa Francisco). Quem foi que conseguiu implantar no coração do nosso País tanto ódio, tanta intolerância e tanta violência? Nunca como nos tempos atuais o ódio esteve tão presente no meio de nós. Nós o percebemos dentro das famílias, nos ambientes de trabalho, nas escolas, nas ruas e até mesmo dentro das igrejas. O ódio nada mais é do que o veneno do maligno em nós. O diabo é o divisor: ele implanta ódio no coração das pessoas para dividir um país, uma cidade, um ambiente de trabalho, uma família, uma igreja. Uma vez divididos, somos mais fáceis de sermos dominados pelo maligno.

            Contrapondo-se ao ódio, que nos torna intolerantes e violentos em relação às pessoas que não pensam como nós, o livro da Sabedoria nos fala do coração de Deus; um coração que tem compaixão de todos, que não se vinga dos pecados dos homens com agressividade, porque tem esperança de que eles se arrependam; um coração que ama tudo o que existe; um coração que não odeia ninguém. Deus não odeia ninguém! A todos ele trata com bondade; quando precisa corrigir alguém, o faz com carinho, com paciência, na esperança de que a pessoa se afaste do mal.

            Quem foi que nos afastou do Deus bíblico, do Deus que ama a todos e a ninguém odeia? Quem foi que nos ensinou a projetar em Deus o nosso ódio, a nossa intolerância e a nossa violência, achando que ele compactua com o nosso desejo diabólico de destruir pessoas que não pensam como nós? Quem foi que nos perverteu em cristãos cheios de ódio, vivendo de costas para o Evangelho? Quem foi que nos incentivou a postar frases do tipo “O Papa Francisco não me representa” ou “A CNBB não me representa”? O Deus descrito no livro da Sabedoria, o Deus que ama a todos e a ninguém odeia, te representa???

            A imagem do Deus bíblico, que quer salvar a todos porque ama a todos e a ninguém odeia, está profundamente impressa nas palavras e nas atitudes de Jesus, conforme acabamos de ver no Evangelho de hoje. Para entendermos o escândalo que foi o fato de Jesus entrar na casa de Zaqueu, chefe dos cobradores de impostos e muito rico, temos que levar em conta duas coisas. Primeiro, os cobradores de impostos eram odiados pelos judeus, porque estavam a serviço da dominação romana. Além de serem odiados, eram vistos como corruptos. Se Zaqueu era muito rico, podemos supor que também era muito corrupto. Em segundo lugar, a riqueza sempre aparece nas palavras de Jesus como o maior inimigo que pode nos impedir de entrar no Reino de Deus (cf. Lc 6,24-25; 16,13-15; 18,24-25). Isso nos ajuda a entender o escândalo do povo, quando diz: “Ele foi hospedar-se na casa de um pecador” (Lc 19,7).

            Que um padre ou um bispo hospede-se na casa de uma pessoa rica, isso não tem nada de escandaloso nos dias atuais. Muito pelo contrário. Afinal, não são as pessoas ricas que fazem doações importantes para a manutenção da paróquia ou da Diocese? Por isso, se quisermos nos deixar afetar pelo escândalo do povo, ao ver Jesus ir hospedar-se na casa de Zaqueu, precisamos imaginar a nossa reação vendo o padre da paróquia ou o bispo da Diocese hospedar-se na casa de um traficante, de um homossexual, de um casal em segunda união, de uma mãe solteira, de um ex-presidiário, de uma senhora que mora na periferia da cidade... 

            O Jesus bíblico, o Jesus do Evangelho, não é o Jesus que defende os nossos valores de “pessoas de bem”, mas que questiona a nossa hipocrisia, o nosso farisaísmo, o nosso manter-nos afastados das pessoas que precisam ser salvas, exatamente aquelas das quais queremos nos manter distantes porque “não comungam dos nossos valores”. Ao dizer a Zaqueu: “Hoje eu devo ficar na tua casa”, Jesus está nos dizendo que é nosso dever, enquanto cristãos, nos fazer presente na casa das pessoas que nós consideramos perdidas. Daqui a um mês praticamente, iniciaremos a Novena de Natal. Onde nós a rezaremos? Também nas casas dos inúmeros Zaqueus da nossa cidade, ou somente nas casas dos católicos praticantes, daqueles que pensam como nós?

            A atitude de Jesus, que também surpreendeu o próprio Zaqueu, fez com que ele mudasse sua forma de lidar com o dinheiro: “Senhor, eu dou a metade dos meus bens aos pobres, e se defraudei alguém, vou devolver quatro vezes mais” (Lc 19,8). Quantos de nós estamos na Igreja há anos, mas nunca permitimos que o Evangelho questionasse a nossa relação com o dinheiro? Quantos de nós acusam o Papa Francisco ou a CNBB de serem “de esquerda” quando denunciam as injustiças sociais que causam inúmeros sofrimentos aos pobres? O verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo, que chama todos à conversão e que sempre se coloca na defesa dos pobres, representa você, ou você vai se defender dele, acusando o pregador de ser marxista?   

            Jesus justifica a sua hospedagem na casa de Zaqueu afirmando que veio “procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). Uma Igreja que permanece fechada em si mesma, defendendo-se do mundo, não entendeu o Evangelho. Um cristão que decidiu trocar o Deus que ama a todos e a ninguém odeia por um Deus que autoriza o ódio ao diferente, virou as costas para a Sagrada Escritura. Um cristão que reduz o Evangelho a preceitos espirituais e morais e não opõe às injustiças sociais, nem se preocupa com a ruína dos pobres, já virou as costas para Jesus Cristo há muito tempo, mas ainda não se deu conta disso. 

            Na vida cristã não cabe neutralidade. É impossível ser fiel ao Evangelho e “representar” cristãos que não se deixam questionar por suas exigências. Quando ouvir desses cristãos que você não os representa, agradeça a Deus e alegre-se! Isso é sinal de que você está no caminho que o Papa Francisco e a CNBB escolheram percorrer: o caminho da fidelidade ao Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, ainda que isso lhes custe o ódio dos cristãos que se julgam “pessoas de bem”.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

TOME CUIDADO COM A SOBERBA ESPIRITUAL

Missa do 30º dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 35,15b-17.20-22a; 2Timóteo 4,6-8.16-18; Lucas 18,9-14.

 

            Até que ponto a religião nos torna melhores, enquanto seres humanos? Ter uma religião nos humaniza, nos torna mais capazes de compaixão e de solidariedade para com o próximo, para com quem sofre? Será que o fato de sermos pessoas religiosas nos dá um certo orgulho e nos faz pensar que somos melhores que os demais seres humanos?

            Jesus nasceu dentro da religião judaica. Ao crescer, se deu conta que sua religião havia se fechado em si mesma, afastando-se das pessoas que mais precisavam de salvação. Dentro da religião de Jesus, havia um grupo que se considerava “pessoas de bem”, pessoas não contaminadas pelo pecado do povo “ignorante”: os fariseus. Aliás, o próprio nome “fariseu” significa “separado”. Enquanto os fariseus faziam questão de manter distância das pessoas que eles consideravam pecadoras, Jesus fez questão de se colocar junto a essas pessoas, entendendo que o lugar do Médico é junto aos que estão doentes, assim como o lugar do Salvador é junto daqueles que se reconhecem necessitados de salvação.

            Algo que preocupava muito Jesus era a presunção religiosa dos fariseus (o “fermento dos fariseus” – Mc 8,15): a presunção de se acharem salvos, uma presunção que tinha, como outro lado da moeda, o desprezo pelos outros: “Eu estou salvo; os outros estão perdidos. Eu estou na luz; os outros vivem na escuridão. Eu enxergo; os outros estão cegos”. Até que ponto essa presunção não está em nós, também? Já foi constatado que muitos católicos hoje em dia sofrem de uma doença chamada “soberba espiritual”. Essa soberba faz com que eles se achem mais católicos do que o Papa Francisco e mais fiéis à doutrina do que os nossos Bispos. Essa soberba espiritual faz com que alguns deles postem em suas redes sociais frases do tipo: “O Papa Francisco não me representa”; “O Bispo não me representa”; “A CNBB não me representa”.  

            Jesus mostra no Evangelho de hoje que a nossa soberba espiritual ou a nossa humildade aparecem na hora em que vamos fazer nossa oração. Durante a sua oração, uma pessoa que sofre de soberba espiritual exalta a si mesma perante Deus, enquanto que, ao mesmo tempo, despreza os outros, que não pensam como ela, que não são “boas” como ela se julga ser. O grande problema é que no coração de um fariseu, de uma pessoa cheia de si, não há espaço nem para Deus, nem para os outros. Só cabe ali o seu próprio ego. Pior ainda: uma pessoa que sofre de soberba espiritual não sente a necessidade de ser salva; pelo contrário, ela já se presume salva, e julga os outros como pessoas perdidas, sem salvação, pessoas das quais ela procura se manter distante, chegando até mesmo a sentir ódio delas.  

            O contrário da soberba espiritual é a humildade. O coração da pessoa humilde é como um jarro vazio: ali cabem os outros e ali cabe, sobretudo, Deus. A oração da pessoa humilde jamais expressa a presunção em estar salva, mas a consciência de que ela necessita ser salva. Diferente do cristão fariseu, o cristão humilde nunca olha os outros como pecadores desprezíveis, mas enxerga a si mesmo como pecador e necessitado de salvação, a exemplo do apóstolo Paulo: “Cristo Jesus veio ao mundo salvar os pecadores, e eu sou o primeiro que necessito ser salvo” (citação livre de 1Tm 1,15).

            Após mostrar o contraste da oração da pessoa soberba e da pessoa humilde, Jesus chama a atenção para o efeito que a oração produziu em uma e em outra: o homem que se reconheceu pecador e necessitado de salvação voltou para casa “justificado”, enquanto que o outro não. Voltar para casa “justificado” pode ser compreendido como voltar para casa curado, transformado, liberto, salvo. Assim como a condição para ser curado é ter consciência da própria doença, a condição para ser justificado é ter consciência do próprio pecado.

            Para compreendermos a importância do termo “justificado”, precisamos nos lembrar de três verdades bíblicas: “Diante de ti, nenhum ser humano será declarado justo” (Sl 143,2); “Não existe pessoa justa, não existe uma sequer; todas se transviaram e se corromperam” (Rm 3,10-11); “Todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus, mas são justificados gratuitamente, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus” (Rm 3,23-24). A justificação não é prêmio que eu recebo pelos meus esforços ou pelos meus méritos, mas unicamente graça; graça que me foi concedida na cruz de Cristo. Eu não sou um homem justo; sou um homem miserável e pecador, mas que foi gratuitamente justificado, isto é, tornado justo, pelos sofrimentos de Cristo na cruz.

            Tomemos cuidado com o fermento dos fariseus, que é a soberba espiritual, a presunção em ser uma pessoa de bem, enquanto julga os outros como se fossem pessoas do mal. Não sejamos escândalo para o mundo. Não permitamos que a religião nos torne arrogantes e cheios de nós mesmos, olhando os outros de cima para baixo; pior ainda, ignorando os demais. Não nos esqueçamos da advertência de Santo Agostinho: “Há pessoas que estão dentro, mas vivem como se estivessem fora. Há pessoas que estão fora, mas vivem como se estivessem dentro”.

Aprendamos com Jesus, com o Papa Francisco e com tantas pessoas que, mesmo fora da Igreja, escolheram descer o degrau da soberba para se colocarem junto daqueles que estão abatidos e humilhados, justamente porque essa continua sendo a escolha de Deus: “Eu habito em lugar alto e santo, mas estou junto com o humilhado e desamparado, a fim de animar os espíritos desamparados, a fim de animar os corações humilhados” (Is 57,15).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

 

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

A VERDADEIRA FÉ SÓ SOBREVIVERÁ SE APRENDER A SUPORTAR A APARENTE INDIFERENÇA DE DEUS PARA CONOSCO

 Missa do 29. dom. comum. Palavra de Deus: Êxodo 17,8-13; 2Timóteo 3,14 – 4,2; Lucas 18,1-8.

Jesus nos deixa claro, no Evangelho de hoje, que é necessário rezar sempre e nunca desistir. Ele mesmo rezava sempre, todos os dias; se não conseguia fazê-lo durante o dia, por causa das multidões que o procuravam, fazia-o à noite, ou de madrugada, mas jamais deixava de rezar.

A oração não é uma questão de tempo, nem de vontade. Ela nasce de uma convicção: sem Deus, eu nada posso. O texto do livro do Êxodo que hoje ouvimos deixa claro que, durante a nossa vida, teremos inúmeros combates a enfrentar, e se não rezarmos, seremos sempre derrotados. A nossa vitória não depende das nossas forças, nem das nossas estratégias, mas unicamente da oração. Com afirma a Sagrada Escritura: “Um rei não vence pela força do exército, nem o guerreiro escapará por seu vigor. Não são cavalos (armas) que garantem a vitória; ninguém se salvará por sua força” (Sl 33,16-17). Ninguém vence as dificuldades da vida apoiando-se apenas em si mesmo, na sua força física, no seu dinheiro, na sua inteligência, na sua estratégia ou nas suas armas. Para vencermos os combates da vida, todos nós necessitamos da força do Alto, que só nos é concedida na oração.  

Mas, e quando a oração se torna uma luta entre nós e Deus? E quando, na oração, acontece uma batalha entre a nossa vontade e a vontade de Deus? Segundo David Benner, “nós podemos comparar a oração como um rio. Você é convidado a entrar neste rio e flutuar nele, deixando-se conduzir pelo Espírito Santo até a presença de Deus. Mas, quantas vezes você entra nesse rio e, ao invés de se deixar conduzir pelo Espírito, abraçando a vontade de Deus, você começa a nadar contra a corrente, opondo resistência ao Espírito, porque quer que prevaleça a sua vontade e não a vontade de Deus? Quando você faz isso, acaba por transformar a sua oração num tormento. Isso distancia você da oração”.

A oração não é o lugar onde nós dobramos Deus à nossa vontade, mas o lugar onde precisamos acolher a vontade de Deus e confiar que aquilo que ele quer para nós é, de fato, o melhor. Nós temos a mania de achar que a nossa oração é bem sucedida quando saímos dela tendo conseguido aquilo que queríamos. Mas não. A oração bem sucedida é aquela da qual saímos dispostos a fazer a vontade de Deus! E Deus deseja que nós não fujamos dos confrontos da vida, mas que os enfrentemos com coragem, paciência e determinação. Neste sentido, é importante compreendermos que “pedir uma coisa a Deus não é certamente pretender que ele faça, em nosso lugar, o que nós devemos fazer” (missal dominical, p.1269).

Essa determinação aparece nas palavras de Jesus ao mencionar a atitude da viúva, que todos os dias batia à porta do juiz para pedir que lhe fizesse justiça. “Durante muito tempo, o juiz se recusou” (Lc 18,4). É aqui que a nossa confiança na oração começa a se desfazer: temos a impressão de que Deus se recusa a nos ouvir; se ouve, se recusa a nos atender, como se não se importasse com a nossa causa. O que chama a atenção, no exemplo que Jesus usa, é que a viúva não pede ao juiz um favor, que atenda a um capricho seu, mas que lhe faça “justiça”. Ora, a função de um juiz não é justamente essa: fazer justiça?

Propositalmente, Jesus usa o exemplo desse juiz para nos falar de Deus como aquele que jamais deixaria de fazer justiça a quem por ele clama, na oração: “Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele? Será que vai fazê-los esperar? Eu vos digo que Deus lhes fará justiça bem depressa” (Lc 18,7-8). Eis a certeza que Jesus quer que tenhamos: Deus não ignora as injustiças que seus filhos sofrem neste mundo. Ele lhes fará justiça, sim. Não podemos jamais duvidar disso. Não podemos jamais substituir a nossa confiança em Deus pela sensação de que ele é indiferente ao que nos acontece.

Mas o problema persiste: Quando Deus nos fará justiça? Quando Deus intervirá, para acabar com o mal que nos aflige? O que Jesus quer dizer com esse “bem depressa?”. Quantas causas nossas foram perdidas? Muitas pessoas deixaram de rezar exatamente porque Deus não lhes fez justiça; elas suplicaram incansavelmente, mas ele não impediu a morte, não impediu a falência da empresa, não impediu a guerra, não impediu a destruição, nem o mal.

Diante da decisão de muitas pessoas em deixar de buscar a Deus na oração, Jesus nos pergunta se, quando ele voltar, encontrará fé sobre a terra; se encontrará alguém que ainda tenha fé. Ter fé nunca foi e nunca será simples, porque a realidade em que vivemos é ambígua: nela se misturam o bem e o mal, a verdade e a mentira, a justiça e a injustiça, e essa ambiguidade deixa nossa fé confusa. Além disso, nossa fé em Deus sempre cria expectativas: ele vai nos atender! Ele vai intervir! Ele fará justiça! Mas, como nos lembra o Pe. Tomás Halík, no seu livro, “A noite do confessor”, “O discurso de Deus é a própria vida, a vida que é uma correção constante, e por vezes dolorosa, dos nossos desejos e ilusões” (p.106). Nossa fé, às vezes, precisa ser purificada dos nossos desejos e ilusões, os quais nada têm a ver com a vontade de Deus, e essa purificação só se dá numa experiência de forte decepção com Deus.

Só uma fé que já se decepcionou com Deus e “brigou” com ele, mas mesmo assim não o abandonou, não o jogou fora, pode se manter viva até a volta de Jesus. Essa fé deve nos ajudar a entender que, apesar do silêncio de Deus, jamais devemos deixar de dialogar com ele, na oração. Ele tem projetos e planos que nós, na nossa impaciência, não conseguimos compreender. Portanto, lembremos mais uma vez a carta aos Hebreus: “Sem a fé, é impossível agradar a Deus. Pois aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe e que recompensa os que o procuram” (Hb 11,6).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi