quinta-feira, 25 de abril de 2024

O NECESSÁRIO CULTIVO, SEM O QUAL NÃO HÁ FRUTO

 Missa do 5º dom. Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 9,26-31; 1João 3,18-24; João 15,1-8.

 

            O processo de industrialização retirou o homem do campo e o transportou para a cidade, fazendo-o perder o contato com a terra. Além disso, o avanço da tecnologia se impôs de tal forma que a maioria das pessoas vive desconectada da natureza, o que nos distancia muito das palavras do Evangelho de hoje: videira, agricultor, ramos, frutos. Por isso, a única palavra que talvez nos ajude a compreender o ensinamento de Jesus no dia de hoje seja a palavra “cultivo”. Se a maior parte da humanidade vive longe do lugar onde se cultivam plantas e se produzem frutos – ainda que dependa absolutamente do alimento para viver –, todo ser humano é chamado a cultivar relações, sem as quais a sua vida se torna insuportavelmente solitária.

            Cultivar relações significa cultivar vínculos. Ao mencionar diversas vezes a palavra “permanecer”, Jesus nos convida a cultivar o vínculo que temos com Ele, pois, sem tal vínculo, nós nada podemos fazer: “Aquele que permaneceu em mim, e eu nele, esse produz muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5). O problema é que “permanecer” é uma atitude cada vez mais rara na vida moderna: as pessoas não permanecem mais por muito tempo no mesmo emprego, na mesma empresa, no mesmo relacionamento, na mesma cidade, na mesma igreja etc. No lugar do “permanecer” entrou o desenraizar-se: não se cria mais raízes, o que significa que não se cria mais vínculos profundos.  

            Jesus deixa claro que, sem vínculo profundo, não existe fruto. Se o galho não permanece vinculado ao tronco da árvore, não recebe a seiva que procede do tronco e não consegue produzir fruto algum. Essa verdade deve nos fazer examinar as áreas da nossa vida que estão murchando, secando ou morrendo por descuido da nossa parte em relação ao cultivo. Quando não se cultiva um relacionamento, o mesmo perde o sentido; murcha, seca e não produz mais fruto, isto é, não alimenta afetivamente as pessoas envolvidas naquele relacionamento.

            O cultivo do nosso relacionamento com Jesus passa por quatro coisas: vida de oração, contato diário com o Evangelho, comunhão com a Eucaristia e solidariedade com os necessitados, com os quais Jesus se identifica. Porém, não deveríamos cultivar essas atitudes unicamente visando o fruto, sobretudo se ele for material (teologia da prosperidade). Como nos sentiríamos se percebêssemos que uma pessoa se vincula a nós não por amor, mas por interesse? Jesus conhece o ser humano por dentro (cf. Jo 2,25); Ele sabe quais são as reais motivações que levam uma pessoa a se vincular a Ele: se é por causa d’Ele ou se é por causa de algo que a pessoa espera conseguir d’Ele.

            Ao se comparar ao tronco de uma árvore e ao nos comparar aos galhos da mesma, Jesus fala do Pai como um agricultor que executa duas tarefas importantes: corta os galhos que nada produzem e poda aqueles que produzem, para que produzam frutos melhores ainda. Cortar e jogar fora um galho que nada produz significa lembrar que “quem não vive para servir, não serve para viver” (Mahatma Gandhi). Em outras palavras, “aquele que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4,17). Nenhum ser humano deve viver como parasita. Então, o que dizer dessa geração que nasceu para ser servida? (Ou o mais correto seria afirmar que “foi educada a ser servida”).

            A outra função do agricultor é podar os galhos que produzem frutos, para que se tornem mais fortes, mais fecundos, e seus frutos sejam melhores ainda. Toda poda causa dor na árvore. Isso está provado cientificamente. O Pai não tem receio em nos podar, em nos causar dor, quando aquela poda é necessária para o nosso crescimento, para nos tornar mais fecundos, melhores seres humanos e melhores cristãos. Como interpretamos essas podas? Elas são acolhidas com a confiança de que o Pai sabe o que está fazendo, ou se tornam causa de revolta da nossa parte para com Ele? O que o Pai hoje está querendo podar em nossa vida, porque aquilo está sugando nossas melhores energias e tornando os nossos frutos doentes, fracos e insuficientes?  

            De certa forma, cada um de nós é uma árvore que o divino Agricultor plantou na Terra, para produzirmos o fruto da bondade, da justiça, da fraternidade, da vida e da esperança. Nós estamos frutificando aonde a mão do Pai nos plantou? Nossas raízes estão em Deus? Somos pessoas capazes de “permanecer”, de ter disciplina e constância na vida de oração, de meditação diária da Palavra de Deus, de comunhão com Jesus na Eucaristia e na pessoa do próximo? Estamos correndo o risco de sermos cortados e jogados ao fogo por causa da nossa preguiça ou má vontade em fazer o bem de que somos capazes? Temos cultivado diariamente os relacionamentos que são significativos para a nossa vida?

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 18 de abril de 2024

ESCOLHER SER PASTOR NUM MUNDO DE MERCENÁRIOS

 Missa do 4º dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 4,8-12; 1João 3,1-2; João 10,11-18.

 

Ninguém de nós veio ao mundo a passeio. Ninguém de nós nasceu para simplesmente desfrutar da vida, mas, sim, para doá-la. Na verdade, o sentido da vida não está em desfrutá-la, mas em doá-la. Como afirma o Papa Francisco, “o nosso caminho sobre esta terra nunca se reduz a uma labuta sem objetivo nem a um vaguear sem meta; pelo contrário, cada dia, respondendo ao nosso chamado, procuramos realizar os passos possíveis rumo a um mundo novo, onde se viva em paz, na justiça e no amor” (Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações 2024). Em outras palavras, todo ser humano foi chamado à vida para uma tarefa, e essa tarefa consiste em cuidar de algo ou de alguém. Esse cuidado foi expresso por Jesus na imagem do pastor. O verdadeiro pastor cuida das ovelhas que lhe foram confiadas, e não desfruta delas. É por isso que Jesus contrapõe à imagem do pastor a do mercenário.

Enquanto o verdadeiro pastor dá a vida por suas ovelhas – dedica-se, esforça-se, sacrifica-se, doa-se diariamente para cuidar delas –, o mercenário não se importa com as ovelhas; seu interesse não está no bem-estar delas, mas no lucro que ele obtém ao “cuidar” das ovelhas. Jesus nos dá uma pista para sabermos diferenciar o verdadeiro pastor do mercenário: a hora da dor, da ameaça, a hora em que o lobo ataca as ovelhas. Enquanto o verdadeiro pastor enfrenta o lobo, o mercenário abandona as ovelhas e foge, pois a única coisa que ele visa é salvar sua própria pele.

A primeira pergunta que o Evangelho nos coloca é esta: quais são as ovelhas que a vida tem colocado sob os meus cuidados – filhos, pais, avós, subordinados no ambiente de trabalho, trabalho pastoral na minha paróquia? Como eu me comporto quando chega a hora da dor, da frustração com o “resultado” do trabalho realizado, com a ameaça dos lobos que visam destruir o que eu construí com tanto sacrifício? Uma ressalva importante: cuidar das ovelhas (filhos) nunca pode ser traduzido em superproteger, muito menos em acobertar erros. Cuidar não é apenas proteger, mas educar, formar o caráter, ensinar o filho a responsabilizar-se por suas atitudes.

Quem exerce a função de pastor/cuidador precisa cuidar de si também. Ninguém é uma fonte inesgotável de cuidado para os outros. Jesus disse que o bom pastor dá a vida por suas ovelhas, e não que se deixa devorar por elas. Quem cuida precisa deixar-se cuidar também. O nosso modelo de pastor/cuidador é Jesus: mesmo doando-se incansavelmente pelas ovelhas perdidas do seu povo, ele se retirava com frequência para lugares solitários a fim de descansar, rezar e deixar-se cuidar pelo Pai. Uma perigosa armadilha para um pastor/cuidador é não saber dizer não às suas ovelhas e carregá-las no colo quando elas podem andar por si mesmas.

Eis a segunda pergunta do Evangelho de hoje: eu dedico tempo para cuidar de mim da mesma forma como dedico tempo para cuidar dos outros? Sei reconhecer os meus limites? Consigo admitir que não sou – e não tenho a obrigação de ser – uma fonte inesgotável de cuidado para os outros? Eu dedico um tempo diário de oração para nela me deixar cuidar pelo Pai, assim como Jesus?

Quando olhamos para o nosso mundo hoje, percebemos que a presença de mercenários é muito maior do que a de bons pastores. É cada vez menor o número de pessoas que se dedicam a trabalhos voluntários. Esquece-se do que afirma o Papa Francisco: “Não somos ilhas fechadas em si mesmas, mas partes do todo” (Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações 2024). A maioria das pessoas só se dispõe a fazer algo pelos outros que isto lhes trouxer algum tipo de ganho, de benefício. Em outras palavras, perde-se o senso de gratuidade. A consequência disso é o aumento de ovelhas perdidas – pessoas abandonadas a si mesmas – enquanto que a grande maioria vive fechada no seu mundo particular, esvaziando a sua vida de sentido por viverem fechadas sobre si mesmas.

Ao descrever-se como bom pastor, Jesus afirmou: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir; escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10,16). Há muito mais pessoas afastadas do Evangelho do que alcançadas por ele. Aqui entra a missão de cada um de nós: fazer ecoar na vida dessas pessoas a voz de Jesus, ajudando as pessoas que estão desorientadas a encontrarem no Evangelho a orientação para a sua vida. No fundo, todo ser humano procura por um salvador, por um cuidador, e nós precisamos ajudar as pessoas a terem a convicção de que “não existe debaixo do céu outro nome  dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos” (At 4,12), a não ser o nome (a pessoa) de Jesus Cristo.

O desejo de Jesus é que haja um só rebanho e um só pastor; “formar uma só família, unida no amor de Deus e interligada pelo vínculo da caridade, da partilha e da fraternidade” (Papa Francisco, Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações 2024). Como eu me relaciono com as pessoas de outras igrejas e outras religiões? Eu consigo dialogar com quem crê diferente de mim, mantendo-me firme nas minhas convicções? Nessa época em que a nossa Igreja é ferida a partir de dentro, devido à polarização entre cristãos “de direita” e cristãos “de esquerda”, minhas atitudes alimentam e aprofundam a divisão interna da Igreja ou ajudam a derrubar muros e a construir pontes? Não esqueçamos a advertência de Jesus: “Quem não ajunta comigo, dispersa” (Lc 11,23).

Abracemos o chamado que o Senhor Deus nos faz, de sermos “peregrinos de esperança e construtores de paz”, fundando “a própria existência sobre a rocha da ressurreição de Cristo, sabendo que todos os nossos compromissos, na vocação que abraçamos e levamos adiante, não caiem no vazio... Cada um de nós, no seu lugar próprio, no seu estado de vida, pode ser, com a ajuda do Espírito Santo, um semeador de esperança e de paz... Apaixonemo-nos pela vida e comprometamo-nos no cuidado amoroso daqueles que vivem ao nosso lado e do ambiente que habitamos” (Papa Francisco, Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações 2024).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi


CORPO GLORIFICADO E NÃO ESPÍRITO DESENCARNADO

Missa do 3º dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 3,13-15.17-19; 1João  2,1-5a; Lucas 24,35-48.

 

Estamos no 3º domingo do tempo pascal e o Evangelho narra para nós a terceira aparição de Jesus ressuscitado aos discípulos. Ele os encontra preocupados e cheios de dúvidas: “Por que estais preocupados, e porque tendes dúvidas no coração?” (Lc 24,38). Também nós temos o coração cheio de dúvidas e de preocupações: instabilidade econômica, relacionamentos frágeis, doenças e violência que ameaçam a vida, futuro dos filhos, desinformação provinda das redes sociais e, mais do que tudo, a sensação de que estamos abandonados e nós mesmos (crise de fé).

Para dissipar as preocupações e dúvidas dos discípulos, Jesus lhes dirige primeiramente uma palavra: “A paz esteja convosco!” (Lc 24,36). Essa palavra está presente em praticamente todas as aparições do Ressuscitado (cf. Jo 20,19.21.28). A paz que o Ressuscitado nos oferece não ignora as nossas angústias, dúvidas, tribulações e preocupações, mas é a paz daquele que venceu o mundo: “Eu vos disse tais coisas para terdes paz em mim. No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!” (Jo 16,33). Nós só podemos ter paz “em” Jesus, permanecendo unidos a Ele, na comunhão com a presença no Evangelho e na Eucaristia. Mesmo que Ele tenha ressuscitado, as tribulações continuarão a existir, sobretudo na vida dos seus discípulos, pois o mundo é contrário ao Evangelho.

Eis a segunda atitude do Senhor ressuscitado: “‘Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e vede! Um fantasma não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho’. E dizendo isso, Jesus mostrou-lhes as mãos e os pés” (Lc 24,39-40). A ressurreição glorificou o corpo de Jesus, de modo que ele está modificado, o que dificulta que os seus discípulos o reconheçam imediatamente. No entanto, o corpo glorificado do Senhor carrega as marcas da sua crucificação. O Ressuscitado é o Crucificado! Tanto os discípulos ontem, como nós hoje, precisamos compreender que Jesus não é um fantasma! Ele é uma presença real no meio de nós, na palavra do Evangelho e no sacramento da Eucaristia! É por isso que ele insiste em “comer” na presença dos seus discípulos: “‘Tendes aqui alguma coisa para comer?’ Deram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele o tomou e comeu diante deles” (Lc 24,41-43).

Ninguém de nós duvida que Jesus morreu numa cruz, mas quantos de nós o sentem vivo, ressuscitado, no coração? Precisamos levar a sério sua promessa: “Eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). “Eu estou com você! Eu estou em você, através do Espírito Santo. Cada vez que você acolhe com fé a minha palavra no Evangelho e recebe o meu Corpo e Sangue na Eucaristia, minha presença se atualiza em você e na sua vida. Você não está sozinho!”.   

A terceira atitude dos Ressuscitado é relembrar aos discípulos aquilo que as Escrituras (Bíblia) profetizaram a seu respeito: “Era preciso que se cumprisse tudo
o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 35,44). Para o evangelista Lucas, todo acontecimento que se deu na vida de Jesus nunca foi obra do acaso, mas permissão do Pai. O Pai previu e permitiu o sofrimento e a morte de seu Filho em vista da nossa salvação: “Assim está escrito: ‘O Cristo sofrerá
e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia, e no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações’” (Lc 35,46-47).

Exatamente como Jesus, nós não estamos no mundo abandonados às mãos do acaso. Na vida de cada um de nós que cremos existe um “é preciso”. Se nós não queremos ser engolidos por nossas dúvidas e preocupações, “é preciso” buscar diariamente no Evangelho a Palavra do Ressuscitado, para vencermos o mundo. Se nós acreditamos que nossa vida tem um sentido, que a nossa existência tem uma razão de ser, que a nossa realização pessoal depende da fidelidade à tarefa que a vida nos confiou, temos que tomar consciência do nosso “é preciso”: É preciso enfrentar o que estou enfrentando; é preciso lutar para me manter fiel à vontade de Deus; é preciso me manter firme na minha vida de oração; é preciso dizer ‘não’ a mim mesmo, renunciar ao pecado e ‘morrer’ para o mundo, se eu quiser ser verdadeiramente salvo...

As três leituras bíblicas de hoje nos falam de conversão e de perdão dos pecados: “Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para que vossos pecados sejam perdoados” (At 2,19); “Se alguém pecar, temos junto do Pai um Defensor: Jesus Cristo, o Justo. Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,1-2); “No seu nome (na pessoa do Senhor ressuscitado), serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações” (Lc 24,47). Como anda a nossa consciência em relação ao pecado. No sentido bíblico, pecar significa “fazer o que é mal aos olhos de Deus” (cf. Sl 51,6). A maioria das pessoas não está preocupada em não pecar, mas em ser feliz, ainda que essa felicidade faça o mal à própria vida delas, dos outros ou do planeta. Todo pecado gera a morte naquele que peca (cf. Rm 5,12). Quem insiste em viver numa situação de pecado, invalida a ressurreição de Cristo para si. Da mesma forma como “Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras” (Lc 24,35), necessitamos que Ele nos torne conscientes em relação a qual atitude precisamos nos arrepender e nos converter, para que façamos a passagem da morte provocada pelo pecado para a vida que só o Ressuscitado pode nos dar.  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 4 de abril de 2024

FÉ PARA FAZER A VONTADE DE DEUS E NÃO PARA "DOBRÁ-LO" À NOSSA VONTADE

 Missa do 2º dom. de Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 4,32-35; 1João 5,1-6; João 20,19-31.

 

“Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” (Jo 20,25). A exigência de Tomé em ver para crer é o retrato da nossa época. Nós, humanos, temos necessidade de tocar, de sentir, de “apalpar” Deus. Nossa fé é movida pela necessidade de “experimentar” Deus. No entanto, só faz experiência de Deus quem desiste de fazê-Lo caber dentro de uma ideia, de um sentimento, de uma emoção ou de algo que possa ser visto ou tocado. O grande problema da nossa fé é que Deus é sempre o Transcendente, ou seja, Ele é sempre mais do que podemos compreender, sentir e experimentar. Além disso, não vê-Lo, não senti-Lo e não experimentá-Lo não significa que Ele não exista ou não se interesse por nós. Ele é absolutamente livre e é Ele quem decide quando e de que forma se manifestar em nossa vida.

Desde a pessoa de Abraão, chamado “pai da nossa fé” (cf. Rm 4,11), Deus se revelou como Aquele que fala, Aquele que se manifesta por meio da Palavra. Por isso, ter fé em Deus significa obedecer e confiar na sua Palavra. Essa Palavra ecoa na Igreja, a mesma Igreja que disse a Tomé: “Vimos o Senhor!” (Jo 20,25), mas para Tomé não bastou a Palavra da Igreja: ele exigiu ter uma experiência pessoal com o Ressuscitado. Jesus lhe deu essa experiência, mas o advertiu: “Acreditaste, porque me viste? Felizes os que creram sem terem visto!” (Jo 20,29). Enquanto nós julgamos que os discípulos de Jesus foram felizes por terem convivido pessoalmente com Ele, Jesus afirma que felizes são todos aqueles que, não convivendo pessoalmente com Ele, creram na sua presença contida na Palavra do Evangelho e na Eucaristia (cf. Lc 24,30-31).  

            Não há como negar que a nossa fé está cansada, desencantada e ferida. Nosso mundo se alimenta de fortes emoções e de constantes novidades, e isso “contamina” a nossa fé: nós também exigimos fortes emoções e constantes novidades em nossa vida de fé. Além disso, a realidade à nossa volta, marcada por dores, injustiças, sofrimentos e desigualdades, parece negar tudo aquilo que cremos. Como afirma o Pe. Tomás Halík, “a cruz da fé é a própria ambivalência da realidade” (A noite do confessor, p.34). Essa ambivalência é como que o avesso de um bordado: o que vemos são muitos fios trançados, misturados e aparentemente sem sentido; no entanto, quando olhamos o bordado do lado direito, vemos que ele mostra uma realidade que faz sentido.

            Por não suportarem a ambivalência da realidade, muitos cristãos têm escolhido deformar a sua fé em fundamentalismo, não entendendo que “o fundamentalismo é um distúrbio de uma fé que tenta entrincheirar-se no meio das sombras do passado, defendendo-se da perturbadora complexidade da vida” (Tomás Halík, A noite do confessor, p.35). São cristãos que vivem a sua fé como fuga do mundo, traindo a própria vocação que lhes foi dada por Jesus: “Vocês são o sal da terra... Vocês são a luz do mundo” (Mt 5,13.14). Esses cristãos querem uma Igreja protegida por uma doutrina, ao invés de se deixar desafiar constantemente pelo Evangelho a se tornar a presença do próprio Ressuscitado junto aos perdidos e feridos deste mundo.

            A fé não é uma opção para nós, mas a única condição de “sobrevivência”: “Quem não é correto vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (Hab 2,4; cf. Rm 1,17). Quem não se mantiver firme na sua fé, não sobreviverá a um mundo que cada dia mais afunda na sua própria desorientação. Além disso, não podemos nos esquecer da experiência de “fracasso” que Jesus viveu em sua própria cidade, Nazaré: Ele não pôde realizar ali nenhum milagre, por causa da incredulidade deles (cf. Mc 6,5-6). O Pai não autorizou o Filho a realizar nenhum milagre na vida de quem não crê na pessoa do Filho; de quem, ao contrário, se escandaliza com a humanidade do Filho. Foi por isso que São João afirmou que a nossa fé não é fé numa doutrina ou em algum espírito, mas numa Pessoa concreta: Jesus Cristo, “o que veio pela água (batismo) e pelo sangue (morte de cruz)” (1Jo 5,6).

            A fé de Tomé morreu junto com Jesus na cruz. Da mesma forma hoje, a fé “morre” no coração de muitas pessoas quando Deus permite que elas sejam feridas por uma dura experiência de cruz. Elas se esquecem de que o Ressuscitado só foi reconhecido pelos discípulos ao mostrar suas mãos e o seu lado, isto é, as feridas da cruz em seu Corpo agora glorificado pela ressurreição. As feridas do Ressuscitado nos recordam que não existe fé sem luta. Nós não lutamos somente com um mundo contrário à fé e ao Evangelho, mas lutamos também com Deus, como Jacó (cf. Gn 32,23-33). A fé nunca vai funcionar em nós como um “calmante”, mas como um “energético”, para olharmos a vida nos olhos e enfrentarmos os desafios que nos cabem enfrentar em nome da nossa obediência à vontade de Deus.

             Enquanto muitos entendem a fé como receita para o seu sucesso pessoal e leem o Evangelho como um livro de autoajuda, a Sagrada Escritura nos ensina que a fé é “obediência” (cf. Rm 1,5): nós nunca poderemos usar a nossa fé para “dobrar” Deus aos nossos desejos. A fé só será força de salvação em nós quando se tornar docilidade do nosso espírito ao que Deus quer de nós, sabendo que a Sua vontade poderá às vezes nos ferir profundamente, mas é uma ferida que produzirá ressurreição em nós. Enfim, tenhamos em conta que, justamente por crerem na ressurreição e na vida eterna, os primeiros cristãos abriam mão de suas posses e colocavam tudo “em comum”, para que entre eles não houvesse necessitados (cf. At 4,32-35). A fé no Ressuscitado nos faz ver com outros olhos o significado dinheiro em nossa vida.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi     

quarta-feira, 27 de março de 2024

"ELE VIU E ACREDITOU". O QUE EU VEJO À MINHA VOLTA ME FAZ ACREDITAR NA RESSURREIÇÃO?

 Missa do domingo de Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 10,34a.37-42; Colossenses 3,1-4; João 20,1-9.

 

            Maria Madalena “viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo” (Jo 20,1). O discípulo amado “viu as faixas de linho no chão, mas não entrou” (Jo 20,5). Pedro “viu as faixas de linho deitadas no chão e o pano que tinha estado sobre a cabeça de Jesus enrolado num lugar à parte” (Jo 20,6-7). O discípulo amado “viu e acreditou” (Jo 20,8).

            O que você vê hoje em dia? Como você se vê? O que nós vemos no dia a dia nos faz acreditar na ressurreição, nos faz acreditar que a vida é capaz de vencer a morte? O que vemos à nossa volta, no mundo ou em nós mesmos nos faz acreditar na ressurreição? O Evangelho do dia de Páscoa termina dizendo que os discípulos “ainda não tinham compreendido a Escritura” (Jo 20,9), que afirma a ressurreição de Jesus. Nós já a compreendemos?

A atitude dos discípulos naquele domingo era de desencanto. Nenhum deles esperava pela ressurreição. Todos tinham abandonado Jesus, no momento da cruz. Sentiam-se com medo dos judeus e culpados por terem deixado Jesus sozinho, na hora da cruz. Maria Madalena, livre da culpa e com mais coragem que os discípulos, vai ao túmulo de Jesus. Mas, quando encontra o túmulo vazio, também não pensa na ressurreição; pensa, sim, que o corpo de Jesus foi roubado. Assim como os discípulos, nós só cremos naquilo que conseguimos entender. Mesmo que a vida nos dê sinais de ressurreição, nossos olhos e nossos pensamentos estão focados ainda na imagem daquilo que morre a cada dia em nós e no mundo.

A ideia de que o corpo de Jesus havia sido roubado do túmulo só foi desfeita quando o próprio Jesus ressuscitado se manifestou a eles (cf. At 10,40-41). E Jesus mandou que os discípulos, testemunhas da sua ressurreição, anunciassem a nós que nele temos o perdão dos nossos pecados e, portanto, a nossa própria ressurreição (cf. At 10,42-43). Por isso, o movimento da nossa vida não é mais descer até o túmulo, mas subir até onde está Cristo ressuscitado: esforçar-nos por alcançar as coisas do alto, onde está Cristo, aspirar às coisas celestes, pois nossa vida (ressuscitada) está escondida (não pode ser vista aos olhos do mundo) com Cristo, em Deus (cf. Cl 3,1-4).

Ao celebramos o domingo de Páscoa, somos convidados pelo apóstolo Paulo a viver como pessoas ressuscitadas. Viver como ressuscitado significa procurar “as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus” (Cl 3,1). Na prática, isso significa que, diante de cada escolha, de cada decisão, eu devo me perguntar: a minha escolha, a minha decisão, vai me levar para o alto, para Deus, ou para baixo, me enterrando numa situação de morte?

“Ele viu e acreditou” (Jo 20,8). Aquilo que você vê te faz acreditar na vitória da vida sobre a morte? O discípulo amado não viu Jesus. Viu o túmulo vazio e intuiu no seu coração que aquilo era um sinal de que existe algo além da morte. Talvez, a nossa maior dificuldade em acreditar na ressurreição seja o fato de que continuamos a ver a vida ser vencida pela morte. Mas, o que é ressurreição? Ressurreição não é não morrer. Nós só podemos experimentar a alegria da ressurreição depois de experimentarmos a dor da morte! A fé na ressurreição não anula a morte, mas nos desafia a olhar para além dela.

“Ele viu e acreditou” (Jo 20,8). O que impede uma pessoa de crer na ressurreição é a maneira como ela vê sua própria vida. Crer na Ressurreição não significa não ter que passar pela morte, mas saber que Jesus é aquele que esteve morto, porém está vivo para sempre e tem consigo as chaves da morte: ela não pode mais nos manter trancados em nossos túmulos (cf. Ap 1,17-18)!

Hoje, domingo de Páscoa, é uma boa ocasião para perguntar: Você está verdadeiramente disposto a fazer a sua páscoa? Páscoa significa passagem. Você só faz a passagem de uma situação de pecado para a vida de santidade quando se convence de que, vivendo no pecado, você só encontrará a morte, nunca a vida. Todos querem passar da morte para a vida, mas nem todos estão dispostos a entrar pela porta estreita que conduz à verdadeira vida (cf. Mt 7,13-14). Além disso, a primeira carta de João diz: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos. Quem não ama permanece na morte” (1Jo 3,14). A maneira como você trata as pessoas que estão mais próximas de você revela se você já ressuscitou ou se ainda continua permanecendo na morte.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

PÁSCOA: DOM DE DEUS E TAMBÉM ESFORÇO NOSSO

 Vigília Pascal. Palavra de Deus: Gênesis 1,26 – 2,2; Êxodo 14,15 – 15,1; Isaías 55,1-11; Romanos 6,3-11; Marcos 16,1-7.

 

Esta noite se chama “Vigília Pascal”. Vigília lembra a atitude de quem está acordado, esperando pelo amanhecer. Nós esperamos pela luz do amanhecer, que é o Senhor Jesus ressuscitado, chamado no Apocalipse de “Estrela da manhã” (2,28). A noite escura é símbolo da nossa fé: nós não vemos a Deus, mas cremos na sua existência e no seu amor por nós. A fé é isso: o que nos faz caminhar, o que nos mantêm de pé não é o que vemos, mas o que cremos. Mesmo nas nossas noites escuras, e sobretudo nelas, nossa fé precisa se mover, pois, como diz a Escritura, “nós caminhamos pela fé, não pela visão clara” (2Cor 5,7).

Na noite em que foi liberto do Egito, Israel não conseguia enxergar claramente o que estava acontecendo. Ele só conseguiu atravessar o mar Vermelho porque era noite e, ao invés de ser amedrontado pelo mar, foi encorajado pela coluna de fogo, pela nuvem luminosa que o guiava, retirando-o do Egito e conduzindo-o para a Terra Prometida. Isso significa que só faz Páscoa, só faz a passagem da morte para a vida, quem aceita caminhar na noite escura da fé. A Páscoa exige que você caminhe também quando é noite; que você confie e se deixe guiar por Aquele que vê o caminho que você não consegue ver, pois Ele vê do alto e vê além!

A travessia do mar Vermelho nos recorda que todo processo de libertação enfrenta resistência. A Páscoa, a passagem que desejamos fazer, sempre enfrenta obstáculos. Mas o Senhor nos faz atravessar os obstáculos e prosseguir em nossa caminhada de libertação. A obra da salvação é d’Ele e não nossa. É Ele quem faz sair, faz entrar, faz caminhar e faz passar. Só existe Páscoa (passagem) porque o Senhor abre uma passagem onde ela não existe, e nos faz passar ali, assim como também só existe passagem porque nós decidimos confiar no Senhor e passar. Só existe Páscoa para quem abre mão do controle da sua própria vida e se deixa guiar e controlar por Alguém maior, Alguém que vê do alto.

O profeta Isaías nos recorda que a salvação é dom, graça, e não mérito: "Ó vós todos que estais com sede, vinde às águas; vós que não tendes dinheiro, apressai-vos, vinde e comei, vinde comprar sem dinheiro, tomar vinho e leite, sem nenhuma paga” (Is 55,1). Para ser salva, uma pessoa precisa apenas ter fome; ter sede; ter consciência da necessidade de ser salva. Porém, ninguém é salvo sem a sua colaboração. É preciso mover-se na direção do Senhor, afastando-se do pecado: “Buscai o Senhor, enquanto pode ser achado; invocai-o, enquanto ele está perto. Abandone o ímpio seu caminho, e o homem injusto, suas maquinações” (Is 55,6-7). É preciso ajustar a nossa conduta de acordo com a vontade de Deus, pois Ele diz: “Meus pensamentos não são como os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são como os meus caminhos” (Is 55,9).  

Em cada Vigília Pascal acontece a renovação das promessas do nosso Batismo. Batismo significa mergulho. A água do Batismo nos mergulhou na morte de Cristo para que com Ele possamos ressurgir para uma vida nova. Renovar as promessas do nosso batismo significa  atualizar a nossa identificação com Jesus Cristo por uma morte semelhante à sua, para que sejamos identificados com Ele por uma ressurreição semelhante à sua (cf. Rm 6,5). Assim, viver como uma pessoa batizada significa fazer um exercício diário de nos considerar mortos para o pecado, mas vivos para Deus.

A narrativa da Paixão (ontem) terminou com a menção da grande quantidade de perfume que Nicodemos comprou para ungir o corpo de Jesus. Naquele momento, refletíamos que, diante do mau cheiro da morte, precisamos espalhar o perfume da nossa fé na ressurreição, o perfume da nossa esperança de vida eterna, o perfume da nossa confiança de que toda situação de cruz se converterá em uma vida transformada, ressuscitada. Eis porque o Evangelho desta Vigília se inicia fazendo uma nova referência ao perfume que algumas mulheres levam, enquanto caminham na direção do túmulo de Jesus.   

Se a imagem do túmulo nos recorda que somos mortais, há um sinal que diz que a morte não é mais um ponto final na vida humana (a grande pedra que impedia o acesso ao corpo de Jesus foi retirada!). Aquela pedra não foi retirada por alguém de fora, mas por Alguém de dentro do túmulo, Alguém que todos pensavam que estava morto para sempre! A pedra que nos mantinha a todos fechados em nossos túmulos, aprisionados para sempre na morte, foi retirada! Dentro do túmulo não há mais uma vida que terminou na morte, um sonho de que desfez para sempre, uma luz que se apagou definitivamente. Dentro do túmulo há um jovem – imagem da vida que se renova – dizendo que Jesus de Nazaré, que foi crucificado, ressuscitou! Portanto, esta noite de Páscoa nos convida a retirar a pedra do túmulo do nosso desânimo, do nosso abatimento, túmulo que representa tantas atitudes nossas por meio das quais nos enterramos vivos, morremos antes da hora, abandonamos os nossos valores, pensando que ficar dentro de um túmulo seja melhor do que sair e enfrentar a vida e correr o risco de sermos machucados.

“Vós procurais Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele ressuscitou. Não está aqui. Vede o lugar onde o puseram. Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele irá à vossa frente, na Galileia. Lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito” (Mc 16,6-7). O Evangelho da Vigília Pascal poderia nos colocar em contato com Jesus Ressuscitado (o que será feito nos dois próximos domingos), mas ele nos coloca, primeiro, diante de um túmulo vazio, túmulo que nos lembra que crer na ressurreição não significa crer que não vamos morrer, ou que vamos ser poupados de sofrimento, mas significa crer que vamos vencer a morte e o sofrimento.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

terça-feira, 26 de março de 2024

POSICIONAR-SE DIANTE DO SOFRIMENTO

Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Palavra de Deus: Isaías 52,13 – 53,12; Hebreus 4,14-16; 5,7-9; João 18,1 – 19,42.

 

Aquilo que mais faz as pessoas se afastarem da fé em Deus é a experiência do sofrimento. Nós inventamos uma forma de ver a vida onde Deus e o sofrimento são inconciliáveis: onde está Deus não pode estar o sofrimento; onde está o sofrimento não pode estar Deus. Um exclui o outro. Logo, para muitos, a ferida do sofrimento que atinge cada vez mais pessoas no mundo é a “prova” de que, ou Deus não existe, ou, se existe, não se preocupa com o mundo. Quem afirma isso se esquece de que “o discurso de Deus é a própria vida, a vida que é uma correção constante, e por vezes dolorosa, dos nossos desejos e ilusões” (Tomás Halík, A noite do confessor, p.106).

Embora tenhamos a tendência a nos desviar do sofrimento, o profeta Isaías nos coloca frente a frente com o Servo Sofredor, “um homem tão desfigurado pelo sofrimento que não parecia ter aspecto humano” (Is 52,14). De fato, ele “não tinha beleza nem aparência que nos agradasse” (Is 53,2). Quando nos deixamos levar por uma sociedade que valoriza a estética, a aparência, e despreza aquilo que não tem beleza, acabamos por não conseguir enxergar Deus no rosto de alguém coberto de dores e cheio de sofrimentos. Com que olhos você se vê quando está sofrendo? Você vê apenas a casca, ou é capaz de enxergar mais profundamente as transformações que estão acontecendo em você com a experiência da dor?          

“Ele cresceu diante do Senhor, como raiz em terra seca” (Is 53,2). É possível crescer na dor, na aridez, na experiência do sofrimento! Para nós, ele era “alguém castigado por Deus” (Is 53,4) ou pelo destino; mas “ele foi ferido por nossos pecados, esmagado por nossos crimes” (Is 53,5). Antes de jogarmos nas costas de Deus a responsabilidade pelo sofrimento que existe no mundo, é importante nos perguntar qual é a nossa parcela de responsabilidade em criar ou alimentar situações de sofrimento à nossa volta. Nossos pecados, nossos pequenos crimes causam sofrimento nas pessoas e no ambiente ao nosso redor.

O maior desafio no sofrimento é readquirir a confiança em Deus. Ao invés de abandonar a fé, somos chamados a nos abandonar nas mãos de Deus: “Em vossas mãos entrego o meu espírito, porque vós me salvareis, ó Deus fiel. Como um vaso espedaçado, a vós eu me confio, e afirmo que só vós sois o meu Deus. Eu entrego em vossas mãos o meu destino” (cf. Sl 31,6.15). Quem consegue dar esse passo, comunica aos outros, com a sua maneira de lidar com o sofrimento, uma mensagem: “Tende coragem, todos vós que ao Senhor vos confiais!” (Sl 31,25).

Meditando sobre o sofrimento de Jesus, a carta aos Hebreus nos lembra que ele não está mais na cruz, mas no céu, como aquele que intercede por nós. Por isso “permaneçamos firmes na fé que professamos” (Hb 4,14), pois Jesus é capaz de se compadecer de nossas fraquezas, uma vez que foi provado em tudo como nós. Nada que nos acontece é estranho a Jesus. Nenhuma dor, nenhum sofrimento, nenhum absurdo pelo qual você passa é estranho ou desconhecido para ele. “Aproximemo-nos então com toda a confiança do trono da graça” (Hb 4,16), que é a sua Cruz, e oremos por toda a humanidade, sabendo que Jesus “provou a morte em favor de todos os homens” (Hb 2,9).

A maneira como Jesus lidou com seu sofrimento de cruz tem muito a nos ensinar. “Então Jesus disse a Pedro: ‘Guarda a tua espada na bainha. Não vou beber o cálice que o Pai me deu?’” (Jo 18,11). Beber o cálice é compreender que a dor deve doer. A dor da renúncia para nos manter fiéis à missão que Deus nos confiou deve doer. A dor da fidelidade, do não nos conformar com esse mundo, do fazer em tudo a vontade de Deus deve doer.

“Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz" (Jo 18,37). Jesus não veio ao mundo nos oferecer uma vida de ilusão e fantasia, mas o confronto com a verdade que, embora doa, é necessária para a nossa cura e a nossa salvação.  

“Tu não terias autoridade alguma sobre mim, se ela não te fosse dada do alto. Quem me entregou a ti, portanto, tem culpa maior” (Jo 19,11). Quando nos confiamos a Deus, não precisamos temer as pessoas. Nada nos atingirá, sem o consentimento do Pai. Além disso, toda autoridade precisa saber que prestará contas a Deus. Exercer o poder sobre os outros é uma grande responsabilidade.

“Ele tomou o vinagre e disse: ‘Tudo está consumado’. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19,30). Cumpri minha missão. “Conclui a obra que me encarregaste de realizar” (Jo 17,4). “Não perdi nenhum daqueles que tu me deste” (Jo 17,12). Como concluiremos a nossa vida?

“Olharão para aquele que transpassaram” (Jo 19,37). Nesta tarde, em que Jesus foi elevado da terra para atrair tudo a si (cf. Jo 12,32), para reunir todos os filhos de Deus dispersos (cf. Jo 11,52), nós nos colocamos aos pés da sua cruz, diante do trono da graça, permanecendo firmes em nossa fé e rezando por toda a humanidade.

“Então José veio tirar o corpo de Jesus. Chegou também Nicodemos... Levou uns trinta quilos de perfume feito de mirra e aloés. Então tomaram o corpo de Jesus e envolveram-no, com os aromas, em faixas de linho, como os judeus costumam sepultar” (Jo 19,38.39.40). Como Nicodemos, queremos espalhar perfume da vida onde existe o mau cheiro da morte; o perfume da esperança onde há o mau cheiro do desespero; o perfume da consolação onde há o mau cheiro da desolação; o perfume da solidariedade onde há o mau cheiro da indiferença; o perfume da palavra de conforto onde há o mau cheiro do abatimento; o perfume da reconciliação onde há o mau cheiro da inimizade...

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

CEIAS QUE TRANSFORMAM

 Missa da Ceia do Senhor. Palavra de Deus: Êxodo 12,1-8.11-14; 1Coríntios 11,23-26; João 13,1-15.

 

Estamos aqui para celebrar a última ceia de Jesus, na qual ele se entregou aos discípulos num pedaço de pão e num pouco de vinho, antes de entregar o seu Corpo e derramar o seu Sangue na cruz pela salvação da humanidade. Vamos relembrar algumas imagens de ceia que aparecem no Evangelho para tentar compreender o significado de estarmos aqui hoje.

            Numa ceia para a qual Jesus não foi convidado decidiu-se a morte de João Batista (Mt 14,3-12). Existem ceias onde se come e se bebe muito, mas onde o coração se alimenta de ideias e sentimentos de morte. São ceias onde a alegria provocada pela bebida e pelas músicas não consegue criar um clima de fraternidade verdadeira entre as pessoas. Existem ceias que não transformam, mas deformam as pessoas. Mas os evangelhos nos falam de diversas ceias onde Jesus esteve presente e onde houve uma transformação na vida de quem delas participou. Na ceia onde Jesus estava presente uma mulher foi perdoada (cf. Lc 7,36-50 – “Teus pecados estão perdoados”), um homem foi convertido (cf. Lc 19,1-10 – “O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido”), os pecadores foram acolhidos e os doentes foram curados (cf. Mt 9,10-13 – “Quem precisa de médico é quem está doente. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”). Nessas ceias houve uma transformação porque as pessoas que ali estavam não se alimentaram somente de pão, mas das palavras de Jesus, cuja verdade nos liberta.

            A última Ceia de Jesus com seus discípulos aconteceu “antes da festa da Páscoa” (Jo 13,1). Já havia uma páscoa, celebrada todos os anos pelos judeus, conforme nos relatou a leitura do livro do Êxodo. Nessa páscoa, um cordeiro deveria ser sacrificado ao cair da tarde. Seu sangue marcaria as portas das casas. Sua carne seria comida com pães sem fermento (lembrança da pressa em fugir do Egito) e ervas amargas (lembrança da escravidão vivida ali). Ao fazer memória dessa páscoa do Antigo Testamento podemos nos perguntar: Que praga exterminadora ameaça nossa família hoje? Qual sinal marca a nossa casa como uma casa cristã? O que é sacrificado pelo bem da família? Em muitas casas, vivemos uma inversão de valores: filhos são sacrificados em nome da felicidade dos pais; pais são sacrificados em nome da felicidade dos filhos. Um outro aspecto: os pães sem fermento são a imagem de Jesus, homem não inchado de orgulho; assim somos chamados a ser também (cf. 1Cor 5,7). As ervas amargas, por sua vez, nos recordam o amargo da correção, da frustração, da renúncia, atitudes necessárias para a formação do caráter dos filhos e para a nossa própria santificação.

Voltemos ao Evangelho da última Ceia. Jesus tinha consciência de que chegara o momento de passar deste mundo para o Pai. Ele decidiu amar seus discípulos até o fim. Quando chegar o momento de passar deste mundo para o Pai nós estaremos amando? Amar é servir, cuidando daquilo que nos foi confiado. Jesus quis que seus discípulos se lembrassem dele não como alguém que veio para ser servido, mas como alguém que veio para servir. Quando a nossa comunhão com Jesus é verdadeira, nós nos dispomos a servir: “Deveis lavar os pés uns dos outros” (Jo 13,14). Nisto seremos reconhecidos como seus discípulos: pela decisão de amar até o fim, até o ponto de nos inclinar sobre aqueles que necessitam da nossa ajuda.  

Cada Eucaristia que celebramos é uma atualização da última Ceia: “Fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24.25). Cada Eucaristia alcança o nosso passado (Jesus morreu por nós), o nosso presente (Ele está no meio de nós) e o nosso futuro (Ele virá para nos introduzir no banquete do Reino de Deus): “Todas as vezes que comemos deste pão e bebemos deste cálice, estamos proclamando a morte do Senhor, até que ele venha” (1Cor 11,26). Cada Eucaristia nos recorda o convite de Jesus: “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouve a minha voz e abre a porta, eu entro, faço a ceia com ele e ele comigo” (Ap 3,21). Nesta noite começa a nossa páscoa. Abramos a porta para Jesus e deixemos com que ele nos conduza para fora da escravidão do pecado pessoal e social, e nos faça passar da morte para a vida.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

quinta-feira, 21 de março de 2024

NENHUMA FÉ SERÁ POUPADA DE SENTIR-SE ABANDONADA POR DEUS

 Missa do domingo de ramos. Palavra de Deus: Isaías 50,4-7; Filipenses 2,6-11; Marcos 15,1-39.

 

Jesus “passou pelo mundo fazendo o bem” (At 10,38). Por que, então, ele teve que ser eliminado? Porque quem faz o bem questiona quem faz o mal. A presença da pessoa que faz o bem é como uma luz que incomoda quem se habituou a viver na escuridão, fazendo o mal. Mas quem Jesus incomodou: os líderes políticos ou os líderes religiosos do seu tempo? Os líderes religiosos, conforme acabamos de ouvir no Evangelho: Pilatos “bem sabia que os sumos sacerdotes haviam entregado Jesus por inveja” (Mc 15,10).

Essa atitude dos líderes religiosos da época de Jesus precisa fazer vir para fora os sentimentos que estão escondidos no mais profundo de nós mesmos: inveja, raiva, ódio, desejo de vingança, desejo de eliminar o outro. Não é porque somos cristãos que não sentimos coisas que são contrárias ao Evangelho. Nós não somos somente filhos de Deus, mas também filhos da nossa época, uma época onde as emoções são mais ouvidas do que a razão (a consciência); uma época de crescente intolerância e de incapacidade de conviver com o diferente; uma época onde, ao mesmo tempo em que cresce a sensibilidade para com a defesa dos animais, cresce a indiferença para com a defesa da vida humana, especialmente dos que vivem pelas ruas.

O que dizer então da inversão de valores? O Evangelho nos pergunta com quem nos identificamos: com Jesus ou com Barrabás? Somos discípulos d’Aquele que oferece sua vida para que outros tenham vida, ou daquele que não se importa com a vida alheia? A multidão preferiu Barrabás, um assassino. Quais são as músicas preferidas hoje? Quais são os artistas, os filmes, as novelas, os livros e os vídeos de maior sucesso atualmente? A inversão de valores do mundo atual ataca diretamente toda pessoa que defenda valores como família, honestidade, fidelidade, justiça etc. Pilatos cedeu à “preferência popular”. E nós, cristãos? Nós nos movemos na vida pressionados pela “preferência” das pessoas à nossa volta, ou nos movemos pela nossa consciência?

O mal é visível e palpável no mundo em que vivemos. Sendo verdadeiro Servo de Deus, Jesus não fechou o seu ouvido, nem virou o seu rosto quando foi confrontado pelo mal – a violência dos homens (cf. Is 50,4-7). Pelo contrário, ele abriu seus ouvidos para ouvir o que o Pai tinha a dizer ao ser humano que sofre. No meio de tantas pessoas desoladas, Jesus nos convida a manter nossos ouvidos abertos ao Pai, para que Ele coloque em nossa boca palavras de conforto para as pessoas que estão abatidas à nossa volta. Uma pessoa que serve a Deus não pode ficar calada diante do sofrimento do seu semelhante.

Na hora em que Jesus estava para ser crucificado, “deram-lhe vinho misturado com mirra, mas ele não o tomou” (Mc 15,23). Essa bebida servia como anestésico, para que a pessoa que fosse crucificada não sentisse toda a intensidade da dor da crucificação. Jesus rejeita esse anestésico; quer sofrer conscientemente. Como nós nos portamos diante da nossa ou da dor dos outros? Usamos de meios para manter nossa consciência anestesiada? Todos nós somos influenciados por um mundo que não aceita a dor e que oferece uma porção de subterfúgios para não senti-la. As drogas que o digam! Jesus nos desafia a encarar a vida nos olhos e a não fugir daquilo que nos cabe enfrentar.

“Vivemos em uma sociedade da positividade. A dor é a negatividade pura e simplesmente. O treino de resiliência como treino de resistência espiritual tem de formar, a partir do ser humano, um sujeito de desempenho permanentemente feliz, o mais insensível à dor possível. A sociedade paliativa coincide com a sociedade do desempenho. A dor é vista como um sinal de fraqueza. A passividade do sofrer não tem lugar na sociedade ativa dominada pelo poder. Nada deve provocar dor. Esquece-se que a dor purifica” (Byung-Chul Han, Sociedade paliativa – a dor hoje).    

A crucificação foi a violência suprema sofrida por Jesus. Não se trata somente da dor física da crucificação, mas da dor “moral”, a dor de ser declarado perante o mundo um homem “condenado”, condenado pelos homens e condenado pelo próprio Deus! Se Jesus aceitou a violência da condenação à morte foi para livrar todo ser humano de sentir-se condenado e de ser condenado (cf. Rm 8,1). Por isso, hoje Jesus pede a nós, seus discípulos, para sermos uma presença libertadora junto a toda pessoa crucificada por inúmeras formas de violência neste mundo. É missão de todo discípulo de Jesus levar “palavras de conforto à pessoa abatida” (Is 50,4); ser uma presença de conforto junto a toda pessoa atingida por algum tipo de cruz, especialmente para que ela não se sinta abandonada por Deus naquela situação.

O silêncio que Jesus manteve durante o seu julgamento e a sua crucificação foi rompido com uma oração: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Como é possível que aquele que a vida toda confiou no Pai morra sentindo-se abandonado por Ele? Certamente, nunca o Pai esteve tão junto do seu Filho como neste momento de cruz, mas Jesus expressa no seu grito a verdade mais profunda que nos habita: na hora mais intensa da dor, nós não sentimos Deus. Ele está ali, nos sustentando nos Seus braços, mas, naquele momento, nós nos sentimos completamente sozinhos, literalmente abandonados!

“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Quantas pessoas que morreram de câncer ou de outras doenças fizeram essa pergunta na hora da morte? Quantas famílias, esposas, maridos, filhos, pais, fizeram essa mesma pergunta, ao perderam alguém que eles amavam? Essa pergunta não pode ser ignorada, porque ela nos habita: para cada ser humano que crê, sempre chegará o momento de questionar Deus. A fé nunca será blindada contra a dúvida, contra o sentimento de abandono por parte de Deus. Então, o melhor que temos a fazer é nos jogar nos braços do Pai dizendo o quanto estamos nos sentindo sozinhos, abandonados, esquecidos, ignorados por Ele!

Se muitas pessoas se escandalizam com o questionamento que o Filho faz ao Pai na hora da morte, um homem não se escandaliza; pelo contrário, se abre à fé, ao ver como Jesus morre: “Quando o oficial do exército, que estava bem em frente dele, viu como Jesus havia expirado, disse: 'Na verdade, este homem era Filho de Deus!’” (Mc 15,39). A maneira como lidamos com a nossa cruz, com a dor que atravessa o nosso caminho, com o sofrimento que atinge pessoas à nossa volta, pode levar outros à fé. Quem dera as pessoas, ao nos virem sofrer e até mesmo morrer, dissessem a nosso respeito: “Verdadeiramente, essa pessoa era uma filha de Deus!”. A experiência de cruz não se dá em nossa vida para destruir a nossa fé, mas para comprová-la! O Pai permite que a cruz atravesse o nosso caminho não para nos fazer desistir de sermos discípulos de seu Filho, mas para nos confirmar como tais.

Diante desse Pai, “Jesus deu um forte grito e expirou” (Mc 15,37). No grito de Jesus está o grito de cada ser humano por vida, por paz, por justiça, por misericórdia, por perdão... Expirando, Jesus entrega seu hálito de vida (seu espírito) a Deus. Expirar lembra término. Chegará o momento em que iremos expirar, como Jesus. Que o nosso expirar seja vivido segundo as palavras do apóstolo Paulo: “sei em quem depositei a minha fé” (2Tm 2,12). Sei nas mãos de quem eu entrego o meu espírito: nas mãos do Pai que conta cada um dos meus passos errantes e recolhe no seu odre cada uma das minhas lágrimas (cf. Sl 56,9), para enxugá-las e recompensá-las (cf. Is 25,8; Ap 7,17). Quer eu esteja vivo, quer eu morra, continuarei pertencendo ao Senhor Jesus (cf. Rm 14,7-8)!

 

 Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 14 de março de 2024

QUEM NÃO ACEITA "MORRER" NÃO VIVE DE VERDADE

 Missa do 5º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Jeremias 31,31-34; Hebreus 5,7-9; João 12,20-33.

 

O que faz a vida valer a pena? Dinheiro? Sexo? Poder? Fama? Sucesso? Bens materiais? Segundo Jesus, o que faz a vida valer a pena é dedicá-la a uma causa; é gastar a vida para deixar o mundo melhor depois de termos passado por ele.

Enquanto nós entendemos que viver significa preservar-se, poupar-se, Jesus nos faz esse alerta: “Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna” (Jo 12,26). Em outras palavras, enquanto nós entendemos a vida como desfrutar o máximo possível das coisas deste mundo, já que a nossa existência terrena é muito breve, Jesus nos fala de uma outra vida, uma vida plena, que não é atingida pela morte, uma vida verdadeira, mas que só pode ser alcançada quando não nos importamos em “perder”, em gastar, em dedicar a nossa existência terrena a uma causa maior, que não é o nosso bem-estar pessoal, e sim a salvação da humanidade.

Para nos ajudar a compreender o sentido da vida, a razão de ser da nossa existência, Jesus se utiliza da imagem de um grão de trigo: se ele quiser ser poupado, guardado, preservado de ser enterrado, permanecerá apenas um grão de trigo. Mas se ele aceitar ser enterrado e passar pelo processo de “morrer”, produzirá muito fruto. O que é esse “morrer”? É dedicar a nossa existência a algo que a própria vida nos chamou a fazer; é deixar vir para fora aquela fecundidade que está guardada dentro de nós e que nos foi dada por Deus não em função de nós mesmos, mas em função do bem da Igreja, das pessoas, da sociedade humana. O que Jesus está nos dizendo é que, quanto mais nos fechamos em nós mesmos, mais infelizes e vazios nos sentimos. Pelo contrário, quanto mais nos doamos às pessoas ou a uma causa que precisa de nós, mais nos sentimos felizes e realizados.

Doar-se, dedicar-se a uma causa, gastar a vida para tornar a humanidade melhor é um processo doloroso. Jesus também experimentou repulsa diante da dor e da morte: “Agora sinto-me angustiado. E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora!’? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome!” (Jo 12,27-28). Jesus nos encoraja a reconhecer nossos sentimentos e a dialogar com eles. Apesar de todo ser humano mentalmente saudável desejar viver e não morrer, sempre em nossa vida chegará a hora da angústia, a hora de submeter o nosso instinto de sobrevivência à missão ou à causa que abraçamos, a hora de fazermos não a nossa vontade, mas a vontade do Pai, que é doar aquele momento da nossa vida para gerar vida em outras pessoas ou em situações que não nos dizem respeito diretamente, mas que dizem respeito ao bem da humanidade.

“Foi precisamente para esta hora que eu vim” (Jo 12,27). Na vida de cada um de nós existe a hora da cruz, a hora do sacrifício, da renúncia, para nos mantermos fiéis à missão que somos, à tarefa que a vida nos confiou. Por fugir dessa hora, por não aceitá-la em sua história de vida, muitas pessoas abandonaram o casamento, a família, os filhos, os pais, a Igreja, o serviço que haviam abraçado em prol de um mundo melhor. Por não admitirem sofrer, muitas pessoas decidiram tornar-se indiferentes a tudo e a todos, fechando-se em si mesmas e tornando-se grãos de trigo guardados numa gaveta. Elas até podem se sentir “preservadas” da dor de não ter que morrer para gerar vida no mundo ao seu redor, mas já estão mortas por dentro, porque decidiram sabotar a própria fecundidade e esvaziar o sentido da sua própria existência.

Jesus nos propõe viver, e viver em plenitude, mas essa experiência só se dá quando não fugimos da nossa hora de cruz, de sacrifício, de doação, de renúncia; numa palavra, de obediência à vontade do Pai. “Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu” (Hb 5,8). Ninguém de nós aprende a obedecer a Deus sem dor, sem sofrimento, não porque Deus deseje nos ver sofrer, mas porque o nosso ego não aceita se submeter à vontade de Deus. De uma coisa devemos ter certeza: nós só seremos felizes e nos sentiremos realizados fazendo a vontade de Deus, isto é, sendo fiéis à tarefa que Ele nos confiou ao nos chamar à existência, mas viver segundo essa vontade nos custará muitas vezes lágrimas, muitas lágrimas, exatamente como aconteceu com Jesus. Contudo são essas mesmas lágrimas que, caindo no solo onde nosso grão de trigo foi enterrado e aceitou morrer, fará germinar a vida fomos chamados a gerar a partir da nossa “morte”.

De novo a pergunta: O que faz a vida valer a pena? A vida vale a pena não pelo tanto que você vive, mas pelo tanto que você aceitar morrer para gerar vida à sua volta.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

quinta-feira, 7 de março de 2024

AMAR SIGNIFICA SACRIFICAR-SE POR AQUILO QUE SE AMA

 Missa do 4º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Crônicas 36,14-16.19-23; Efésios 2,4-10; João 3,14-21.

 

Nós já percorremos três semanas do nosso caminho quaresmal. Agora que estamos iniciando a quarta semana, já é possível ver algo despontando no horizonte: alguém foi levantado numa cruz! A explicação dessa imagem nos é dada pelo próprio Jesus: “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3,14-15). Da mesma forma como o povo de Israel, picado por serpentes venenosas no deserto, encontrou cura e salvação ao olhar para a imagem de uma serpente de bronze, fabricada por Moisés por ordem de Deus (cf. Nm 21,8-9), assim Jesus se tornará na cruz uma imagem da salvação de Deus para a humanidade, mas essa salvação depende da fé: “É necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3,14-15).

A fé que nos salva não está na imagem do Crucificado, e sim no que ela significa, e o próprio Jesus explica: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). A primeira verdade na qual somos chamados a crer é esta: Deus ama a humanidade, e a prova desse amor está explícita na cruz de seu Filho. Porém, muitos perguntam que amor é esse que parece ter abandonado a humanidade a si mesma; que amor é esse que permite o câncer e tantas outras doenças, as catástrofes, as guerras, a violência, a desintegração das famílias, a desorientação da humanidade etc.

A imagem do Crucificado coloca em crise a nossa ideia a respeito do amor. Para nós, quem ama faz de tudo para que o amado não sofra. No entanto, Deus vê as coisas de outra maneira. Quem ama educa e corrige o amado (cf. Hb 12,5-13). Quem ama permite situações difíceis na vida do amado, para que ele cresça, amadureça e se torne forte perante os desafios da vida. No Antigo Testamento, Deus amou Israel, e, no entanto, permitiu que seu povo fosse exilado na Babilônia por vários anos (cf. 2Cr 36,19-20). Estando naquela situação de sofrimento, Israel se sentiu abandonado e esquecido por Deus, mas o próprio Deus lhe garantiu: “Se de ti, Jerusalém, algum dia eu me esquecer, que resseque a minha mão! Que se cole a minha língua e se prenda ao céu da boca, se de ti não me lembrar! Se não for Jerusalém minha grande alegria!” (Sl 137,5-6).

A humanidade tem feito inúmeras experiências de exílio, não porque Deus assim o queira, mas justamente por ter virado as costas para Deus. O mundo moderno empurrou Deus para fora; consequentemente, ele se sente tomado por um grande vazio, traduzido em insegurança, medo, apatia, desencanto, orfandade etc. Assim como a experiência do exílio foi uma correção para o povo de Israel, assim Deus permite exílios para corrigir o ser humano, na esperança de que ele reveja as suas atitudes, pare de ferir a si mesmo e ao seu semelhante, e decida voltar a se deixar amar e cuidar por Deus.

Embora o pessimismo tenha tomado conta do coração de muitas pessoas, Jesus nos lembra de uma outra grande verdade: “Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). Todo pregador que distorce a Palavra de Deus para incutir medo e ameaçar pessoas não entendeu o Evangelho. Justamente porque ama a humanidade, Deus “deseja que todos os homens sejam salvos” (1Tm 2,4). É nossa missão nos colocar junto de pessoas que desistiram não somente de Deus, mas também de si mesmas, e anunciar que não há fim de linha nem estrada sem saída para ninguém. “Não existe mais condenação para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8,1).

Se é verdade que Jesus veio ao mundo para salvar, não para condenar, existe a possibilidade de condenação por parte da pessoa que escolhe as trevas e não a luz: “A luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más” (Jo 3,19). O que Jesus está nos dizendo é que escolher a luz implica em renunciar às trevas, e muitas pessoas, apesar de desejarem a luz – ser salvas –, não estão dispostas a pagar o preço de renunciar às trevas, porque estas lhes dão algum tipo de ganho ou de compensação. Em outras palavras, quem faz o mal não o faz por ser mal, mas por querer ganhar algo com o mal que faz. Só quem aceita perder esse ganho, abrir mão dessa compensação que tem como custo o mal provocado a si mesmo, aos outros, à humanidade, consegue sustentar a sua escolha pela luz.

Jesus entende que escolher a luz significa agir conforme a verdade: “Quem age conforme a verdade aproxima-se da luz, para que se manifeste que suas ações são realizadas em Deus” (Jo 3,21). Em outras palavras, ninguém é salvo por saber ou conhecer a verdade, mas por decidir viver segundo ela. A verdade é o Evangelho (“Palavra da verdade”, cf. Ef 1,13). Quando agimos conforme a verdade, sentimos paz e temos saúde física, emocional e alegria espiritual. Quando agimos em desacordo com a verdade, perdemos nossa paz, começamos a adoecer e a tristeza passa a morar em nosso espírito.   

Três perguntas podem nos ajudar a rezar a nossa vida diante da Palavra de Deus, neste quarto domingo da Quaresma: 1) Eu creio no amor de Deus pela humanidade, manifestado visivelmente na cruz de seu Filho Jesus? 2) Qual sentimento é mais frequente em meu interior: o de condenação ou o de salvação? 3) Eu me esforço para viver segundo a verdade do Evangelho no meu dia a dia?

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

SEU CORPO É UM TEMPLO HABITADO POR DEUS OU OCUPADO POR DEMÔNIOS?

 Missa do 3º. Dom. Quaresma. Palavra de Deus: Êxodo 20,1-3.7-17; 1Coríntios 1,22-25; João 2,13-25.  

 

            Geralmente, a imagem que os Evangelhos nos dão de Jesus é a de um homem sereno, pacífico, manso e humilde. Mas a cena do Evangelho de hoje nos apresenta um Jesus enérgico, “agressivo”, que, ao ver o Templo, a casa do seu Pai, ser corrompido em casa de comércio, faz um chicote de cordas e expulsa todos do Templo. Essa atitude enérgica de Jesus tem uma justificativa: a religião jamais pode estar a serviço do enriquecimento dos seus dirigentes, sobretudo quando esse enriquecimento é fruto da exploração da miséria dos que buscam na religião o socorro de Deus. Além disso, a religião também não pode ser distorcida em autoajuda, em motivação empresarial, de modo que Deus seja instrumentalizado e colocado a serviço da ambição ou dos sonhos de enriquecimento dos “fiéis” que a frequentam.

“Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” (Jo 2,16). Quantos de nós temos uma relação “comercial” com Deus? Temos sonhos, projetos, desejos, e achamos que Deus é o encarregado de realizá-los. Consciente ou inconscientemente, muitas pessoas estão nas igrejas não para servirem a Deus, mas para se servirem d’Ele, em vista dos seus desejos egoístas. Essa maneira comercial de viver a fé foi chamada por Rodrigo Bibo, autor do livro “O Deus que destrói sonhos”, de “teologia da Xuxa”, uma vez que a mesma costumava cantar uma música cuja letra dizia: “Tudo o que eu quiser, o cara lá de cima vai me dar” (Lua de Cristal).

  A verdade é que, num primeiro momento, ninguém procura Deus gratuitamente, mas sempre movido por uma necessidade. Normalmente é a dor, e não o amor, que move as pessoas a irem a um templo e a orarem a Deus. Mas Jesus deseja nos conduzir a um nível mais profundo de fé, onde aquilo que nos move na direção de Deus não seja uma necessidade, mas simplesmente o amor, como um filho que procura o pai não porque precisa de algo, mas porque ama o pai e quer ficar na presença dele.

Ao ser questionado sobre seu “ataque” ao sistema corrompido do judaísmo do seu tempo, Jesus fez uma revelação surpreendente, que não foi compreendida de imediato: “Jesus estava falando do Templo do seu corpo” (Jo 2,21). Existem incontáveis templos na face da terra, mas somente Jesus é o verdadeiro Templo, porque somente por meio d’Ele podemos ter acesso ao Pai (cf. Ef 2,18). Numa época em que a descrença e a indiferença religiosa crescem mais do que a procura por Deus nas diversas religiões, todos precisamos ser “chicoteados” por essas palavras do apóstolo Paulo: “Os judeus pedem sinais milagrosos... Nós, porém, pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus... Esse Cristo é poder de Deus” (1Cor 1,22.23.24). O Corpo crucificado de Jesus, presente nos crucificados do nosso tempo, é o lugar do encontro com o verdadeiro Deus.

Se Jesus entendeu o seu Corpo como Templo de Deus, nós também devemos recobrar a consciência de que o Espírito de Deus habita em nós, o que significa que também o nosso corpo é templo de Deus (cf. 1Cor 3,16-17; 6,19). Desse modo, as palavras de Jesus – “Tirai isso daqui!” – também devem ser entendidas em relação ao nosso corpo. Justamente porque vivemos numa sociedade erotizada, que reduz o afeto ao prazer e à satisfação dos nossos desejos instintivos, o corpo é hoje um templo profanado por inúmeros comerciantes. A pornografia é uma das cinco indústrias mundiais que mais ganha dinheiro. Segundo a neurociência, o seu poder de viciar é mais forte que o da cocaína. Temos também a indústria do tráfico de órgãos: pessoas pobres são sequestradas e têm seus órgãos retirados para a venda no mercado clandestino, “salvando” a vida dos ricos que podem pagar por órgãos traficados. A série “Coração marcado” denuncia isso claramente. Temos ainda o problema da pedofilia e da prostituição infantil, conhecidas, toleradas e praticadas por “gente grande” em muitas partes do nosso País: políticos, juízes, médicos etc.   

“Tirai isso daqui!”. Esta ordem de Jesus precisa questionar a presunçosa autonomia dos que afirmam: “meu corpo, minhas regras”. Como alguém sabiamente disse: “Seu corpo tem suas regras? A vida tem seus direitos!”. Um embrião ou um feto não é um órgão que pertence ao corpo da mulher e que ela pode decidir extirpar dele, se assim o desejar. Além disso, devemos considerar o fenômeno atual das tatuagens. Buscando modelos ou ídolos – destaque para os jogadores de futebol –, as novas gerações mergulham de cabeça na onda de tatuar-se. Ignorando totalmente o próprio corpo como templo de Deus, tatuam-se de maneira cada vez mais extravagante, nunca se dando ao trabalho de perguntar a Deus na sua consciência o que Ele acha daquela tatuagem (Elas conhecem os dez mandamentos???). São “templos pichados” com toda espécie de imagens, frases (inclusive bíblicas!) ou símbolos – um comportamento próprio de uma geração paganizada.  

Muito mais do que diante do chicote de Jesus, o Evangelho de hoje quer nos colocar diante dessa verdade: Jesus “conhecia o homem por dentro” (Jo 2,25). Diante de uma geração como a nossa, excessivamente preocupada com o corpo, mas desleixada quanto à consciência, Jesus nos vê no profundo de nós mesmos; Ele sabe o que se esconde dentro de nós e que ninguém vê. Ele conhece cada pensamento, sentimento e desejo que se escondem nas regiões mais profundas e obscuras de nós mesmos. Ele conhece o lixo que se acumula dentro de nós há muito tempo. Ele enxerga não somente as nossas tatuagens, mas principalmente os motivos que nos levaram a fazê-las. Deixemos com que Ele nos diga o que deve ser tirado do nosso corpo, da nossa alma e do nosso espírito, para que o templo que somos seja reconstruído e volte a ser o lugar da habitação de Deus e não dos demônios que permitimos que passassem a morar dentro de nós.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

SEM SACRIFÍCIO LIVRE E CONSCIENTE NÃO HÁ TRANSFIGURAÇÃO

 Missa do 2º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 22,1-2.9a.10-13.15-18; Romanos 8,31b-34; Marcos 9,2-10.

 

Os textos bíblicos de hoje nos colocam sobre dois montes: o monte Moriá e o monte Tabor. Sobre esses dois montes estão dois filhos e dois pais: Isaac, o filho único de Abraão, e Jesus, o Filho único do Pai. A diferença é que Isaac é poupado do sacrifício, enquanto que Jesus abraça livre e conscientemente a missão de sacrificar-se para salvar todo ser humano. Entre o (quase) sacrifício de Isaac e o sacrifício de Jesus, o apóstolo Paulo nos coloca uma pergunta: “Deus que não poupou seu próprio filho, mas o entregou por todos nós, como não nos daria tudo junto com ele?” (Rm 8,32). Jesus está prefigurado em Isaac: enquanto Deus Pai poupa o filho único de Abraão do sacrifício, não poupa, mas permite que seu Filho único seja entregue “por todos nós”, do sacrifício da cruz.

A primeira palavra que precisa falar ao nosso coração, na liturgia de hoje, é SACRIFÍCIO. Pelo quê eu me sacrifico no dia a dia da minha vida? Pela minha sobrevivência? Pelo bem-estar da família e dos filhos? Movido(a) pela competição e pelo consumismo? Até onde estou disposto a me sacrificar pela restauração do meu casamento, para me manter fiel ao chamado que Deus me fez, ou para manter a minha consciência reta diante de Deus, em vista da minha salvação? O meu sacrifício é imposto a partir de fora (como o de Isaac), ou abraçado livre e conscientemente por mim (como o de Jesus)?

Deus não permitiu o sacrifício de Isaac para que Abraão – e cada um de nós – compreendesse que Ele não se alimenta do sangue de crianças inocentes, como se fosse um ídolo pagão. No entanto, Ele pediu o sacrifício de Isaac para colocar à prova Abraão e cada um de nós, através de uma pergunta: “Você continuaria a crer em mim e a caminhar comigo se Eu permitisse que perdesse aquilo que você mais ama nesta vida?”. Por trás do pedido que Deus fez a Abraão, de sacrificar Isaac, seu filho único, está uma verdade difícil de compreendermos e aceitarmos: Deus não é somente Aquele que dá, mas também Aquele que tira. Não nos esqueçamos das palavras de Jó: “O Senhor deu, o Senhor tirou, bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1,20).  

“O mistério do mal e do sofrimento tem conduzido pessoas para Deus, mas também as afastado d’Ele. Que sentido tem um Deus que não sabe o que fazer do sofrimento, ou, se o sabe, não nos quer ajudar? Mas se nós Lhe viramos as costas, será que isso ajuda a nos livrar do sofrimento, ou será que, pelo contrário, nos privará da força para confrontarmos e fazermos frente ao mal e ao sofrimento?” (Tomás Halík, A noite do confessor).

O Evangelho de hoje nos revela que, durante a Quaresma, Jesus quer que subamos com Ele a uma montanha, lugar da comunhão com Deus, lugar onde nos afastamos da compulsão do mundo consumista e da correria de uma vida desenfreada, para ouvirmos o Pai, para recuperarmos a consciência de que nós somos uma missão nesta terra e é só na fidelidade a essa missão que a nossa vida tem sentido. Jesus quis que Pedro, Tiago e João vissem a sua transfiguração, antes de o verem desfigurado na cruz. Da mesma forma, Jesus quer nos ajudar a enfrentar as situações de desfiguração, sabendo que elas não são o rosto definitivo nem nosso, nem da humanidade, nem do nosso mundo: “Os sofrimentos da desfiguração do tempo presente não se comparam com a alegria da transfiguração que se revelará em nós e em toda a criação” (citação livre de Rm 8,18).

As duas outras palavras que precisam falar ao nosso coração são: DESFIGURAÇÃO e TRANSFIGURAÇÃO. Aquilo que se desfigura em minha vida ou à minha volta é algo necessário, como parte de um processo de transformação, ou consequência de atitudes injustas e erradas da minha parte ou da parte de outras pessoas? A desfiguração da amizade social, provocada pelo individualismo e pela indiferença para com o outro, também é produzida por mim, na minha relação com as pessoas no dia a dia? Eu também alimento e ajudo a propagar a desfiguração do Papa Francisco e da CNBB, criticados e atacados por grupos católicos de extrema direita nas redes sociais? Minha presença na Igreja (paróquia, comunidade) tem ajudado a transfigurá-la?

Enquanto olhavam para Jesus transfigurado, Pedro, Tiago e João foram encobertos por uma nuvem e escutaram a voz do Pai: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” (Mc 9,7). O momento mais difícil de escutar Deus é quando estamos enfrentando uma situação de desfiguração. No entanto, é o momento mais necessário. Aliás, sempre que estamos desfigurados, precisamos fazer nossas as palavras do salmista: “Guardei a minha fé, mesmo dizendo: ‘É demais o sofrimento em minha vida!’” (Sl 116,10). Por maior que seja o sofrimento que estamos enfrentando e que está nos desfigurando, precisamos guardar a nossa fé, no sentido de mantê-la viva, tendo a mesma certeza do apóstolo Paulo: o mesmo Deus, que sustentou o seu Filho na desfiguração da cruz, em nosso favor, também nos sustentará. Além disso, devemos confiar que nenhuma desfiguração pode destruir essa verdade: Jesus Cristo morreu, ressuscitou e está à direita do Pai, intercedendo por nós! (cf. Rm 8,34). É graças à sua intercessão que a nossa desfiguração se converterá em transfiguração!

Enfim, tenhamos consciência de que TRANSFIGURAÇÃO e SACRIFÍCIO estão interligados. O sacrifício mais custoso é a nossa obediência a Deus, buscando conformar a nossa vida à Sua vontade. Sempre que nos sacrificamos nesse sentido, a nossa vida se transfigura, como consequência de quem está em paz porque sabe que está fazendo exatamente aquilo que foi chamado a fazer; está sendo fiel à sua missão de ajudar a transfiguração o pequeno espaço em que se encontra, como Jesus sempre fez.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi