terça-feira, 26 de março de 2024

POSICIONAR-SE DIANTE DO SOFRIMENTO

Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Palavra de Deus: Isaías 52,13 – 53,12; Hebreus 4,14-16; 5,7-9; João 18,1 – 19,42.

 

Aquilo que mais faz as pessoas se afastarem da fé em Deus é a experiência do sofrimento. Nós inventamos uma forma de ver a vida onde Deus e o sofrimento são inconciliáveis: onde está Deus não pode estar o sofrimento; onde está o sofrimento não pode estar Deus. Um exclui o outro. Logo, para muitos, a ferida do sofrimento que atinge cada vez mais pessoas no mundo é a “prova” de que, ou Deus não existe, ou, se existe, não se preocupa com o mundo. Quem afirma isso se esquece de que “o discurso de Deus é a própria vida, a vida que é uma correção constante, e por vezes dolorosa, dos nossos desejos e ilusões” (Tomás Halík, A noite do confessor, p.106).

Embora tenhamos a tendência a nos desviar do sofrimento, o profeta Isaías nos coloca frente a frente com o Servo Sofredor, “um homem tão desfigurado pelo sofrimento que não parecia ter aspecto humano” (Is 52,14). De fato, ele “não tinha beleza nem aparência que nos agradasse” (Is 53,2). Quando nos deixamos levar por uma sociedade que valoriza a estética, a aparência, e despreza aquilo que não tem beleza, acabamos por não conseguir enxergar Deus no rosto de alguém coberto de dores e cheio de sofrimentos. Com que olhos você se vê quando está sofrendo? Você vê apenas a casca, ou é capaz de enxergar mais profundamente as transformações que estão acontecendo em você com a experiência da dor?          

“Ele cresceu diante do Senhor, como raiz em terra seca” (Is 53,2). É possível crescer na dor, na aridez, na experiência do sofrimento! Para nós, ele era “alguém castigado por Deus” (Is 53,4) ou pelo destino; mas “ele foi ferido por nossos pecados, esmagado por nossos crimes” (Is 53,5). Antes de jogarmos nas costas de Deus a responsabilidade pelo sofrimento que existe no mundo, é importante nos perguntar qual é a nossa parcela de responsabilidade em criar ou alimentar situações de sofrimento à nossa volta. Nossos pecados, nossos pequenos crimes causam sofrimento nas pessoas e no ambiente ao nosso redor.

O maior desafio no sofrimento é readquirir a confiança em Deus. Ao invés de abandonar a fé, somos chamados a nos abandonar nas mãos de Deus: “Em vossas mãos entrego o meu espírito, porque vós me salvareis, ó Deus fiel. Como um vaso espedaçado, a vós eu me confio, e afirmo que só vós sois o meu Deus. Eu entrego em vossas mãos o meu destino” (cf. Sl 31,6.15). Quem consegue dar esse passo, comunica aos outros, com a sua maneira de lidar com o sofrimento, uma mensagem: “Tende coragem, todos vós que ao Senhor vos confiais!” (Sl 31,25).

Meditando sobre o sofrimento de Jesus, a carta aos Hebreus nos lembra que ele não está mais na cruz, mas no céu, como aquele que intercede por nós. Por isso “permaneçamos firmes na fé que professamos” (Hb 4,14), pois Jesus é capaz de se compadecer de nossas fraquezas, uma vez que foi provado em tudo como nós. Nada que nos acontece é estranho a Jesus. Nenhuma dor, nenhum sofrimento, nenhum absurdo pelo qual você passa é estranho ou desconhecido para ele. “Aproximemo-nos então com toda a confiança do trono da graça” (Hb 4,16), que é a sua Cruz, e oremos por toda a humanidade, sabendo que Jesus “provou a morte em favor de todos os homens” (Hb 2,9).

A maneira como Jesus lidou com seu sofrimento de cruz tem muito a nos ensinar. “Então Jesus disse a Pedro: ‘Guarda a tua espada na bainha. Não vou beber o cálice que o Pai me deu?’” (Jo 18,11). Beber o cálice é compreender que a dor deve doer. A dor da renúncia para nos manter fiéis à missão que Deus nos confiou deve doer. A dor da fidelidade, do não nos conformar com esse mundo, do fazer em tudo a vontade de Deus deve doer.

“Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz" (Jo 18,37). Jesus não veio ao mundo nos oferecer uma vida de ilusão e fantasia, mas o confronto com a verdade que, embora doa, é necessária para a nossa cura e a nossa salvação.  

“Tu não terias autoridade alguma sobre mim, se ela não te fosse dada do alto. Quem me entregou a ti, portanto, tem culpa maior” (Jo 19,11). Quando nos confiamos a Deus, não precisamos temer as pessoas. Nada nos atingirá, sem o consentimento do Pai. Além disso, toda autoridade precisa saber que prestará contas a Deus. Exercer o poder sobre os outros é uma grande responsabilidade.

“Ele tomou o vinagre e disse: ‘Tudo está consumado’. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19,30). Cumpri minha missão. “Conclui a obra que me encarregaste de realizar” (Jo 17,4). “Não perdi nenhum daqueles que tu me deste” (Jo 17,12). Como concluiremos a nossa vida?

“Olharão para aquele que transpassaram” (Jo 19,37). Nesta tarde, em que Jesus foi elevado da terra para atrair tudo a si (cf. Jo 12,32), para reunir todos os filhos de Deus dispersos (cf. Jo 11,52), nós nos colocamos aos pés da sua cruz, diante do trono da graça, permanecendo firmes em nossa fé e rezando por toda a humanidade.

“Então José veio tirar o corpo de Jesus. Chegou também Nicodemos... Levou uns trinta quilos de perfume feito de mirra e aloés. Então tomaram o corpo de Jesus e envolveram-no, com os aromas, em faixas de linho, como os judeus costumam sepultar” (Jo 19,38.39.40). Como Nicodemos, queremos espalhar perfume da vida onde existe o mau cheiro da morte; o perfume da esperança onde há o mau cheiro do desespero; o perfume da consolação onde há o mau cheiro da desolação; o perfume da solidariedade onde há o mau cheiro da indiferença; o perfume da palavra de conforto onde há o mau cheiro do abatimento; o perfume da reconciliação onde há o mau cheiro da inimizade...

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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