quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

PESSOAS COMPROVADAS NA FÉ, NA ESPERANÇA E NO AMOR

Missa do 2º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 22,1-2.9a.10-13.15-18; Romanos 8,31-34; Marcos 9,2-10.   

            “Deus pôs Abraão à prova” (Gn 22,1). Existem as tentações e existem as provações. As tentações, como vimos no primeiro domingo da quaresma, vêm do maligno; ele se aproveita quando estamos fragilizados, vivendo uma experiência de deserto, e começa a nos confundir com suas mentiras e seus enganos, procurando nos afastar do caminho de Deus. Diferente das tentações, as provações não vêm do maligno, mas do próprio Deus, e elas chegam normalmente quando estamos bem, quando tudo está fluindo e funcionando perfeitamente: é quando Deus permite que uma contrariedade nos atinja, que uma situação desagradável venha nos trazer dor e preocupação.
            Por que precisamos enfrentar provações? Porque precisamos crescer, amadurecer. Sem as provações, nós permanecemos infantis em nossa fé e em nosso modo de lidar com a vida. Toda provação tem por objetivo comprovar a verdade da nossa fé, da nossa esperança e do nosso amor. Assim como numa escola ou faculdade a prova serve para comprovar aquilo que o aluno aprendeu, assim a nossa fé, a nossa esperança e o nosso amor precisam ser comprovados, isto é, precisam ser desafiados e se mostrarem verdadeiros, consistentes, e não teoria vazia, fogo de palha, neblina da manhã, que evapora quando exposta aos primeiros raios do sol (cf. Os 6,4).
            Eis a prova de Abraão: “Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, (...) e oferece-o (...) em holocausto sobre um monte que eu te indicar” (Gn 22,2). Isaac era para Abraão a prova viva do quanto Deus o amava. Isaac era o grande milagre de Deus na vida de Abraão, pois ele nasceu quando Abraão tinha 99 anos, e nasceu de Sara, uma mulher idosa e até então estéril. Além disso, Isaac era a garantia do futuro de Abraão, a única forma de sua família ter uma descendência. De repente, Deus chega e pergunta a Abraão e a cada um de nós: ‘Você continuaria a crer em mim, se eu permitisse que a vida tirasse de você aquilo que você mais ama? Você continuaria a confiar no meu amor por você, se eu permitisse que você ficasse doente, ou que perdesse o emprego, ou que sofresse uma violência ou uma injustiça? Você continuaria a ter esperança em mim, se eu permitisse que um grande sofrimento, uma grande dor, abalasse toda a sua esperança e você não enxergasse mais um futuro e um sentido para a sua vida?’          
Sempre que nós passamos por uma provação, precisamos nos lembrar de que Aquele que nos prova é o Pai, e o pai que verdadeiramente ama o filho só o coloca à prova porque quer prepará-lo para a vida, para enfrentar o mundo e não para fugir dele. O problema é que, quando somos provados, nós nos sentimos dentro de uma “noite escura”, onde não enxergamos Deus, nem conseguimos senti-Lo como um Pai que está junto de nós. Pelo contrário, a dor da prova abala a nossa fé de tal modo que nós passamos a enxergar Deus como nosso maior Inimigo, como Aquele que nos faz o mal, que nos faz sofrer, como Aquele que quer tirar de nós a razão de ser da nossa alegria, da nossa fé, da nossa esperança e do nosso amor.        
            É aqui que podemos compreender a grandeza da fé de Abraão: “Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu filho único... Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque me obedeceste” (Gn 22,12.18). O que Abraão fez foi dizer a Deus, com palavras e atitudes: ‘Ainda que o Senhor permita que eu perca o filho que amo mais do que tudo nesse mundo, eu continuarei a crer em Ti!’ Diante da fé comprovada de Abraão, nós hoje somos chamados a declarar com o salmista: “Guardei a minha fé, mesmo dizendo: ‘É demais o sofrimento em minha vida!’” (Sl 116,10). ‘Que eu perca tudo, Senhor, mas não perca a minha fé! Que a vida tire tudo de mim, menos a minha fé e a minha esperança em Ti! Posso aprender a viver sem saúde, sem riqueza, sem prestígio social; posso até aprender a lidar com a perda de alguém que amo, mas eu não conseguiria me manter vivo(a) sem a força da fé e da esperança em Ti!’
            Se é verdade que a provação muitas vezes nos faz duvidar do amor de Deus por nós e do seu cuidado para conosco, o apóstolo Paulo nos lembrou hoje de algo fundamental: “Deus que não poupou seu próprio filho, mas o entregou por todos nós, como não nos daria tudo junto com ele?” (Rm 8,32). Deus poupou Isaac do sacrifício, mas não poupou seu próprio Filho do sacrifício da cruz, para nos dar a certeza do seu amor para conosco. Ainda que Ele permita alguma perda em nossa vida, já nos deu o seu bem mais precioso – seu Filho Jesus – e juntamente com Ele nos dará todas as outras coisas. Isso significa que toda perda que possamos ter nessa vida já está recuperada e salva em Jesus Cristo. Ele é o Cordeiro que o Pai providenciou para ser sacrificado em lugar do nosso Isaac. O seu sacrifício da cruz nos livra de nos tornarmos “holocaustos”, isto é, de sermos mortos e queimados em consequência do nosso pecado.     
            Uma palavra final. Quando passamos por uma provação, nos desfiguramos, devido ao sofrimento que ela representa. Por isso, o Pai nos convida hoje a subir a montanha e contemplar a face transfigurada de seu Filho Jesus. Muito mais do que Abraão, Jesus é o filho obediente ao Pai. Com Ele aprendemos que sempre que desobedecemos a Deus, nossa vida começa a se desfigurar; sempre que O obedecemos, nossa vida se transfigura. O Pai hoje nos diz: “Este é o meu filho amado; escutai-o!” (Mc 9,7). Mantenhamos nossos olhos fixos em Jesus. Escutemos o que Ele nos diz; aprendamos com Ele, que foi provado em tudo como nós (cf. Hb 4,15), a lidar com as provações e a sairmos delas comprovados em nossa fé, em nossa esperança e em nosso amor.


Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A NECESSÁRIA EXPERIÊNCIA DE DESERTO

Missa do 1º. Dom. da quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 9,8-15; 1Pedro 3,18-22; Marcos 1,12-15.

“O Espírito levou Jesus para o deserto. E ele ficou no deserto durante quarenta dias” (Mc 1,12-13). O que significa esse período de quarenta dias? Biblicamente, o número quarenta indica o tempo necessário para que haja uma mudança, uma cura, uma transformação, um renascimento. Embora a nossa geração esteja mal habituada a querer que tudo seja resolvido de maneira rápida, imediata, Deus nos ensina que existe um tempo para que algo de significativo aconteça em nossa vida. Não se cura uma ferida de forma instantânea. Não se passa de uma situação de morte para uma situação de vida de maneira imediata. Existe um processo, e esse processo exige de nós tempo, paciência, confiança, determinação, firmeza de caráter.
O Espírito de Deus nos convida a viver esse tempo de quaresma como o “tempo favorável” (cf. 2Cor 6,2) para a nossa transformação interior. Mas, como é que o Espírito nos conduz “para o deserto”? Ele pode fazer isso permitindo que fiquemos doentes, ou que passemos por um período de aridez espiritual, ou que enfrentemos determinado sofrimento, ou que enfrentemos uma crise... E embora a experiência do deserto nos cause muito desconforto, é importante confiar que nela se dá o nosso amadurecimento, a nossa conversão. O Espírito de Deus sabe que o deserto é um “lugar” onde não queremos ir, mas onde precisamos às vezes ir; é o lugar onde tomamos consciência daquilo que é essencial para a nossa vida e para a nossa salvação. Além disso, se a nossa vida hoje é ocupada cada vez mais pelas redes sociais e nós somos invadidos por uma enxurrada de imagens e mensagens, o Espírito de Deus quer nos conduzir para fora dessas pressões externas, para que possamos voltar a ouvir a voz de Deus de maneira mais clara e profunda: “Eu a conduzirei ao deserto e ali lhe falarei ao coração” (Os 2,16).
Assim como aconteceu com Jesus, toda pessoa que entra numa experiência de deserto se dá conta de que há uma voz enganadora dentro dela: a voz do tentador. Essa voz fala conosco procurando nos confundir, abalar a nossa confiança em Deus e nos fazer pensar que, se Deus nos permitiu entrar numa situação de deserto, é porque não nos ama e não se importa conosco. O objetivo do tentador é nos fazer acreditar que nós estamos sozinhos, absolutamente sozinhos em nosso deserto, entregues ao nosso próprio sofrimento. Por isso, para não nos deixarmos enganar por ele, precisamos nos lembrar sempre de que o mesmo Espírito que amparou Jesus no momento das tentações está amparando a cada um de nós quando somos tentados, como diz a Escritura: “Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Mas, com a tentação, ele vos dará os meios de sair dela e força para a suportar” (1Cor 10,13).
Toda experiência de deserto é uma experiência de purificação da nossa fé, de correção da imagem de Deus que temos dentro de nós. Na época de Noé, Deus era interpretado como Aquele que decidiu exterminar, por meio do dilúvio, a vida do ser humano e dos animais da face da terra, por causa da maldade do próprio ser humano: “A terra está cheia de violência por causa dos homens, e eu os farei desaparecer da terra” (Gn 6,13). Porém, quando a experiência do dilúvio terminou, Noé e sua família puderam ter uma imagem mais clara de Deus, como Aquele que fez aliança com a terra e com toda vida que há nela, uma aliança que será lembrada toda vez que surgir um arco-íris: “Estabeleço convosco a minha aliança: nenhuma criatura será mais exterminada pelas águas do dilúvio, e não haverá mais dilúvio para devastar a terra” (Gn 9,11).
Nossa época é muito parecida com a de Noé, uma época marcada fortemente pela violência que extermina a vida de inúmeras pessoas, uma violência que passou a habitar dentro de nós e é perceptível na intolerância, irritação, agressividade e impaciência com que tratamos as pessoas no dia a dia. Mas o apóstolo Pedro, retomando o acontecimento do dilúvio, nos lembrou hoje que nós fomo banhados nas águas do batismo, batismo que nos deu a consciência de filhos de Deus e de irmãos uns dos outros, de modo que Jesus afirmou: “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8). Embora o diabo seja homicida e procure alimentar em nós a violência, nós devemos rejeitar as suas propostas e nos deixar orientar pelo Espírito de Deus, ajudando as pessoas do nosso tempo a não se afogarem nas águas da agressividade e da violência que produzem morte em nossa sociedade.
Ao narrar, ainda que de maneira muito resumida, as tentações de Jesus, o evangelista Marcos quer nos lembrar que Jesus, assim como nós, nunca teve uma vida fácil e poupada de lutas ou dificuldades. Além de se deparar com as forças contrárias a Deus presentes no mundo, ele teve que lidar com as forças do mal dentro de si, exatamente como acontece conosco. Por isso, devemos manter nossos olhos fixos em Jesus, aprendendo com ele a desmascarar as mentiras do tentador, a nos deixar conduzir pelo Espírito de Deus e a manter a nossa fidelidade a Deus, buscando tornar o seu Reino presente entre nós. Jesus nos convida a crer na força que o Evangelho tem de transformar a consciência e o coração de quem nele crê e por ele se deixa converter, corrigir e orientar.         

Oração: “O Espírito levou Jesus para o deserto” (Mc 1,12). Espírito de Deus, quero me deixar conduzir por Ti e por Tua verdade. Mesmo sabendo que todo deserto é uma situação de sofrimento, quero confiar quando Tu permites que eu experimente o deserto, sabendo que aquilo é necessário para a minha conversão e para a minha santificação.
            “Jesus ficou no deserto durante quarenta dias” (Mc 1,13). Senhor, quero confiar que existe um tempo para tudo debaixo do céu. Existe um tempo para que a minha ferida seja curada, para que a minha pergunta seja respondida e para que eu possa fazer a passagem da morte para a vida. Sustenta-me na travessia do meu deserto, renovando a minha confiança nos Teus propósitos a meu respeito. 
“Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças” (1Cor 10,13). Senhor, o tentador conhece as minhas fraquezas; ele sabe como me seduzir e me enganar, e eu muitas vezes caio nas suas armadilhas. Concede-me forças para resistir e lutar contra o mal. Dá-me um coração obediente a Ti. Sei que eu não posso passar por este mundo sem ter que lidar com diversas tentações. Concede-me a força da tua graça, para que eu não caia em nenhuma tentação, mas saia desse combate fortalecido(a). Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

VOLTAR PARA NÃO PRECIPITAR-SE NO ABISMO

Missa da 4ª. feira de cinzas. Palavra de Deus: Joel 2,12-18; 2Coríntios 5,20–6,2; Mateus 6,1-6.16-18.

            Quem de nós alguma vez não fez escolhas erradas ou não tomou decisões erradas? Quem de nós alguma vez não errou o caminho? Não há ser humano que nunca tenha cometido algum erro, que nunca tenha se enganado, ao fazer uma escolha ou ao tomar uma decisão. O tempo da quaresma existe para nos darmos conta dos nossos erros e do estrago que eles têm causado à nossa vida, à vida das pessoas que convivem conosco, à vida da Igreja e da sociedade, à vida do planeta... Mais do que isso, o tempo da quaresma existe para nos lembrar de que é possível corrigir o rumo que temos dado à nossa vida afetiva, profissional, social e espiritual. Se o caminho que estamos percorrendo está nos levando à destruição, é possível voltar, é possível mudar de direção.
            Eis, portanto, o apelo de Deus para nós: “Voltai para mim, com todo o vosso coração” (Jl 2,12). Se não queremos continuar a nos destruir e a destruir a vida à nossa volta, precisamos voltar, precisamos nos converter. Todos os anos a Igreja nos convida a viver o tempo da quaresma porque a conversão não é algo que se dá de uma vez para sempre; ela é um processo que acompanha – ou deveria acompanhar – toda a nossa vida, porque sempre precisamos fazer ajustes em nossa caminhada. O próprio Jesus diz à sua Igreja, no Apocalipse: “Você abandonou o seu primeiro amor. Recorde onde você caiu, converta-se e retome a conduta de antes” (Ap 2,4-5).
            Na sua mensagem para a quaresma deste ano, o Papa Francisco nos lembra esta advertência de Jesus: “Por causa da maldade no mundo, o amor de muitas pessoas se esfriará” (Mt 24,12). É possível que você tenha esfriado no seu amor para com Deus e para com o seu semelhante. De tanto ver violência e injustiça no mundo, de tanto ver corrupção e impunidade em nosso país, é possível que o amor à verdade, à justiça, ao bem e à solidariedade esteja esfriando dentro de muitos de nós. E quando o amor se esfria dentro de nós, é sinal de que o mal está tomando conta do nosso coração. O Papa Francisco nos lembra de que, no livro “A Divina Comédia”, Dante Alighieri descreve o inferno como um lugar onde o diabo está sentado num trono de gelo. A maldade do diabo reina onde o amor esfriou. Por isso, a Campanha da Fraternidade desse ano tem como tema “Fraternidade e superação da violência” e como lema é “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8). Nós não podemos permitir que a maldade e a violência social esfriem o amor, a fraternidade e a solidariedade em nosso coração. Jesus nos convida a promover a paz, a trabalhar em favor da paz, a nos desarmar e a aprendermos a dialogar com a nossa agressividade.
Voltemos a falar sobre a nossa necessidade de conversão. Por meio do profeta Joel, Deus ordena: “Prescrevei o jejum sagrado” (Jl 2,15). Jejuar também tem o sentido de desintoxicar-se. Precisamos nos desintoxicar da violência. Antes que Caim, por não saber lidar com a sua agressividade, derramasse o sangue de seu irmão Abel na terra (cf. Gn 4,1-12), o ser humano não se alimentava de carne, isto é, não derramava o sangue de animais para se alimentar (cf. Gn 1,29). Abster-se de carne também tem o sentido de entender que eu não preciso derramar sangue na terra para me alimentar; eu não preciso matar o outro para sobreviver. Eu preciso, na verdade, perceber o quanto tenho me tornado uma pessoa meramente instintiva, agindo cegamente a partir da minha agressividade.
Além de propor o jejum como meio de recuperarmos o domínio sobre nós mesmos, sobre os nossos instintos e os nossos afetos, Jesus nos fala da esmola como forma de voltar a enxergar o outro como nosso irmão: “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8). Não podemos permitir que o individualismo do mundo moderno nos torne cegos para as necessidades do nosso irmão. Por meio da prática da esmola, Jesus nos desafia a nos fazer próximo de toda pessoa que necessita de nós.
Por fim, Jesus nos fala da oração como forma de restabelecer o nosso relacionamento com Deus. O nosso mundo se torna cada vez mais um lugar onde não há lugar para Deus, e muitos de nós, que nos dizemos cristãos, temos vivido na prática como se Deus não existisse. A verdadeira oração nasce da convicção de que nós precisamos ser salvos e não há salvador fora de Deus. Mas Jesus nos orienta que a nossa oração não deve ser ocupada o tempo todo com nossas palavras, nossos pedidos e nossas urgências (cf. Mt 6,7); ela deve se tornar o espaço onde voltamos a ouvir Deus e nos permitimos ser curados por sua Palavra. A oração é o “momento favorável” onde a graça de Deus pode realizar a nossa conversão, onde o fogo do Espírito de Deus pode voltar a aquecer o que em nós se esfriou.   
 Uma última palavra. Hoje ouvimos o profeta Joel dizer: “Chorem... os ministros sagrados do Senhor” (Jl 2,17). Como ministros de Deus, choremos nossa infidelidade; choremos o esfriamento da nossa fé e da nossa vida de oração; choremos a perda de sentido do nosso ministério; choremos o enfraquecimento da nossa ação evangelizadora; choremos as nossas tantas liturgias vivenciadas pelo nosso povo como ritos mortos, porque descomprometidas com o sofrimento real das pessoas que não nos preocupamos em atingir com a nossa ação evangelizadora... Que as nossas lágrimas sejam o sinal do derretimento do gelo, sinal da conversão da frieza de um coração que, voltando-se para o Senhor, voltou a sentir-se aquecido por Sua Palavra, voltou a pulsar segundo o Seu Espírito.
Supliquemos: Vem, Espírito de Deus, fazer a grande conversão! Vem, Espírito de Deus, pela poderosa intercessão do nosso Senhor. Liberta e restaura os corações, derrama a efusão em todos nós, envolva-nos em Tuas grandes asas, aquece-nos e queima com Teu fogo! Vem, Espírito Santo, vem! Desfaz toda impureza. Vem, Espírito Santo, vem! Derrama Teus santos dons!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

LEPRAS ATUAIS: COISAS QUE PODEM NOS APODRECER COMO SERES HUMANOS E COMO CRISTÃOS

Missa do 6º. dom. comum. Palavra de Deus: Levítico 13,1-2.44-46; 1Coríntios 10,31–11,1; Marcos 1,40-45. 

            Diariamente o noticiário tem nos falado da febre amarela, da preocupação das pessoas que moram em áreas de risco de contaminação, da problemática da vacinação e da atitude desesperada de algumas pessoas que mataram centenas de macacos, desconhecendo o fato de que o transmissor da febre amarela não é o macaco, mas um tipo de mosquito. O macaco, na verdade, é um importante sinal que mostra em qual região está o vírus da doença e quais pessoas precisam efetivamente ser vacinadas.
            A primeira leitura e o Evangelho de hoje não nos falam de febre amarela, mas de lepra, uma doença contagiosa e muito temida. O medo atual da febre amarela tem uma certa semelhança com o medo da lepra no mundo bíblico. Na época de Moisés, o cuidado para se evitar a contaminação com a lepra era tão grande que o leproso deveria andar “com as vestes rasgadas, os cabelos em desordem e a barba coberta, gritando: ‘Impuro! Impuro!’” (Levítico 13,45), para que ninguém se aproximasse dele. Embora isso nos pareça até desumano, o objetivo era evitar o contágio e a proliferação da doença. Mas, antes de ver como Jesus lida de uma outra forma com essa questão, vamos analisar o significado bíblico da lepra para o nosso tempo.
            A lepra é uma doença que surge na pele e que, se não tratada, leva ao apodrecimento daquela região corporal. Ora, a pele lembra a preocupação excessiva da nossa sociedade com a aparência, descuidando da essência. Desse modo, nós temos pessoas esteticamente belas e fisicamente saudáveis, mas corrompidas em sua consciência, em sua honestidade, em sua fidelidade. Temos um cuidado excessivo com a estética, mas um grande descuido com a ética, com o comportamento reto e justo. Além disso, uma vez que a lepra pode levar ao apodrecimento de determinada região do corpo, podemos nos perguntar: O que está apodrecendo em nós e em nossa sociedade? O que dizer da lepra da corrupção, que apodrece a Política e a Justiça em nosso país? O que dizer da lepra da droga e da violência, da lepra da pornografia e da infidelidade? O que dizer da lepra da ideologia de gênero, que está apodrecendo a formação da identidade sexual de muitas crianças? Até que ponto nós também não estamos contaminados com algum tipo de lepra?*
            Embora todo leproso devesse manter-se distante das pessoas para não contaminá-las com sua doença, o Evangelho nos mostra um leproso que, numa atitude de desespero, rompe com a lei religiosa de Moisés, se aproxima e se ajoelha diante de Jesus, suplicando: “Se queres, tens o poder de curar-me” (Mc 1,40). Na verdade, o que faz com que esse leproso se aproxime de Jesus não é só o desespero do seu sofrimento, mas principalmente a sua fé: “Tens o poder de curar-me!” Só a força da fé pode nos fazer sair da nossa situação de desespero e nos lançar aos pés de Jesus, a quem o Pai concedeu o poder de curar, de salvar e de dar a vida eterna a todo ser humano (cf. Jo 17,2). Sem a força da fé, nós ficamos fechados em nossa dor, isolados em nossa solidão, apodrecendo em nossa doença.
            Mas a fé desse leproso comporta um elemento muito importante: o reconhecimento de que Deus é livre e nunca pode ser pressionado ou obrigado a fazer por nós aquilo que Lhe pedimos. Eis o respeito pela liberdade de Deus: “Se queres”. Certamente há uma urgência em nós pela cura, pela libertação de alguma situação de sofrimento. Mas como é importante respeitar a vontade de Deus! Como é importante aproximar-se d’Ele com humildade e respeito, jamais determinando o que Ele deve fazer para nós e quando Ele deve agir em nossa vida! Como é importante não só ter fé no poder de Deus, mas também confiar nos Seus propósitos a nosso respeito, dizendo-Lhe: “Se queres”; ‘Se for da Tua vontade’; ‘Se o Senhor achar que isso é importante e necessário para a minha vida, para a minha salvação’...
            Diante dessa fé humilde e confiante do leproso, “Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele e disse: ‘Eu quero: fica curado!’ No mesmo instante a lepra desapareceu e ele ficou curado” (Mc 1,41-42). A primeira atitude de Jesus para com o leproso é a compaixão, compaixão que significa sentir a dor do outro, permitir que a dor do outro me afete. Desse modo, Jesus nos convida a não sermos indiferentes diante daqueles que sofrem. A segunda atitude de Jesus é estender a mão e tocar no leproso. Diante da lepra do individualismo e da frieza nos relacionamentos, diante do fato de que os nossos dedos tocam diariamente a tela de um celular, mas tocam cada vez menos nas pessoas que moram, estudam, trabalham conosco ou cruzam o nosso caminho, Jesus nos convida a humanizar e a devolver vida aos nossos relacionamentos. As pessoas precisam ser tocadas para sentirem que existem, para saberem que não estão abandonadas em sua solidão, em seu isolamento ou sofrimento. Enfim, ao tocar no leproso, Jesus de uma certa forma lhe disse: ‘Eu não tenho medo de ser contaminado por você, por sua doença, por sua imperfeição’. Precisamos combater o contágio do preconceito e ver o outro não como um perigo a ser evitado, mas como um irmão a ser amado e ajudado.
            O leproso havia suplicado: “Se queres, tens o poder de curar-me!” (Mc 1,40). E Jesus agora responde: “Eu quero: fica curado!” (Mc 1,41). Sim. Deus quer a nossa cura. Deus quer a cura dos políticos e dos juízes do nosso país. Deus não quer que a nossa sociedade apodreça na corrupção, nas drogas e na violência. Deus não nos quer apodrecidos em nossa consciência. Deus quer, sim, a restauração das famílias, a cura dos relacionamentos, mas nós também precisamos querer; precisamos não só querer, mas também ter a coragem de tocar nas nossas feridas, para tratá-las, para possibilitar que sejam curadas; precisamos reconhecer a nossa lepra, reconhecer o quanto estamos contaminados por ideias, contravalores, sentimentos e atitudes que estão nos apodrecendo como pessoas e como cristãos, para que, então, o Senhor Jesus possa, com a verdade do seu Evangelho, nos descontaminar e nos curar.

Oração: Senhor Deus, sei que Tu vês não apenas a minha pele, mas a minha alma e as profundezas do meu coração. Sob a luz da Tua palavra eu reconheço que também eu estou sujeito à contaminação da lepra da corrupção, da violência, da inversão de valores, da infidelidade, da entrega da minha sexualidade à cegueira dos meus afetos desordenados. Cura-me, Senhor! Descontamina-me! Não permita que eu apodreça como ser humano e como cristão(ã). Devolve não somente a saúde ao meu corpo, mas, sobretudo, a integridade, pureza e retidão à minha alma e ao meu coração.
            Senhor Jesus, estende Tua mão e toca nas minhas feridas, nas minhas lepras. Livra-me do apodrecimento físico, moral e espiritual. Diante da verdade do Teu Evangelho comprometo-me a me afastar de tudo aquilo que possa me contaminar, me adoecer e me corromper como ser humano e como cristão(ã). Ensina-me a me deixar afetar pela dor do meu semelhante. Ensina-me a usar as minhas mãos para tocar aqueles que precisam do meu afeto, do meu respeito, da minha solidariedade, da minha compaixão. Eu creio que tens o poder de curar-me, de curar a cada um de nós. Assim, como esse leproso do Evangelho, eu agora Te suplico: https://www.youtube.com/watch?v=oSdOBQrOMik (Música “Se queres”, Ministério Amor e Adoração).  

*No canal do Youtube, há um vídeo muito interessante do filósofo Mário Sérgio Cortella, intitulado “Gente podre por dentro”. Vale a pena assistir:

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

A FONTE DA NOSSA CURA

Missa do 5º. dom. comum. Palavra de Deus: Jó 7,1-4.6-7; 1Coríntios 9,16-19.22-23; Marcos 1,29-39.
   
            Na Bíblia houve um homem que teve a coragem de “brigar” com Deus. Seu nome era Jó. Depois de perder todos os seus filhos e todos os seus bens materiais, ele perdeu sua saúde e, na sua doença, começou a enfrentar sérios questionamentos em relação à ideia que ele tinha a respeito de Deus. Na verdade, Jó nunca brigou com Deus; ele brigou com ideias erradas que passaram para ele a respeito de Deus, ideias do tipo: “O sofrimento é castigo de Deus”, ou “Coisas ruins só acontecem com pessoas ruins”, ou ainda “Quem caminha com Deus nunca será atingido por alguma dor ou por algum problema”...
            Assim como Jó, nós também temos muitos questionamentos a respeito de Deus como, por exemplo: Por que Ele permite o mal? Por que Ele permite que uma criança morra de câncer? Por que Ele permite que o mal e a injustiça atinjam pessoas boas e inocentes? Por que Ele aparentemente não se importa com aqueles que sofrem? Assim como Jó, a imagem que nós temos de Deus se quebra diante de todo sofrimento que nos parece injusto e totalmente sem sentido. E quando acontece isso, nós somos desafiados e compreender que perder a imagem que nós tínhamos de Deus antes de passar por aquele sofrimento não significa perder Deus. Na verdade, aquela experiência de sofrimento só é permitida por Deus para purificar a imagem que temos d’Ele, para conhecê-Lo melhor e para nos firmar ainda mais em nossa fé no Seu amor para conosco.
            Jesus é a resposta de Deus à pergunta angustiante que o ser humano traz em seu coração quando se depara com a dor e o sofrimento. Nós o vemos hoje entrando na casa de Pedro e curando sua sogra: “Jesus se aproximou dela, tomou-a pela mão e a fez levantar-se” (Mc 1,31). Nós o vemos recebendo, na casa de Pedro, multidões de pessoas doentes e atormentadas pelo mal. “Jesus curou muitas pessoas, que eram atormentadas por várias doenças, e expulsou muitos demônios” (Mc 1,34). Na pessoa de Jesus Cristo se cumprem as palavras do salmo que meditamos hoje: “Ele conforta os corações despedaçados, ele enfaixa suas feridas e as cura” (Sl 147,3).
            Todos nós temos nossas feridas. Muitos de nós temos alguma doença ou enfermidade, e necessitamos de cura. No entanto, sempre que procuramos por Jesus para sermos curados, precisamos nos lembrar da sua pergunta aos dois cegos, que lhe pediram para serem curados: “Vocês creem que eu lhes posso fazer isso?” (Mt 9,28). Nunca podemos nos esquecer de que, embora Jesus tenha o poder de curar todo tipo de doença e enfermidade, ele sempre deixou claro que a porta de entrada para a cura é a fé: “Filha, a sua fé salvou você. Vai em paz e fique curada de sua doença” (Mc 5,34). Além disso, precisamos estar dispostos a modificar aqueles comportamentos que costumam nos adoecer, pois não teria sentido pedirmos a Jesus a cura quando não nos dispomos a mudar atitudes que alimentam ou provocam doenças em nós e no ambiente à nossa volta.
            Há dois detalhes importantes no Evangelho de hoje. O primeiro deles é o fato de Jesus se retirar para um lugar deserto para orar a sós. Todo cuidador também precisa ser cuidado. Toda pessoa que cuida dos outros precisa cuidar de si; mais do que isso, precisa se permitir ser cuidada por Deus. Jesus sempre teve consciência de que, sem o Pai, sem a força do Espírito do Pai, ele não podia fazer nada. Na verdade, a força da sua cura vinha justamente da oração, da sua união com o Pai. Essa atitude de Jesus, de nunca descuidar da sua vida de oração, nos lembra esta importante verdade: “Temos de moldar nosso deserto onde possamos nos retirar todos os dias, livrar-nos das cobranças e das expectativas do mundo e habitar na presença salvífica de nosso Senhor. Sem esse deserto, perdemos nossa alma, enquanto anunciamos o Evangelho aos outros. Portanto, é responsabilidade nossa reservar tempo e lugar para estar com Deus e só com ele” (Pe. Henri Nouwen, A fornalha da transformação).
            Um segundo detalhe importante é o fato de Jesus não se deixar “devorar” pela necessidade das pessoas; muito menos, cair na armadilha da vaidade, da fama, do perigoso sentimento de ser insubstituível. Quando os discípulos o encontraram orando e lhe disseram: “Todos te procuram”, ele respondeu: “Vamos a outros lugares, às aldeias da vizinhança, para que eu pregue também lá. Porque foi para isso que eu vim” (Mc 1,38). É extremamente importante que cada um de nós abrace a missão para a qual foi chamado; que cada um de nós se dedique à evangelização das pessoas do nosso tempo com a mesma fidelidade do apóstolo Paulo, fazendo-nos tudo para todos a fim de salvar alguns a todo custo (cf. 1Cor 9,22). No entanto, tomemos cuidado com a vaidade, com o culto de si mesmo, com o pautar o nosso ministério pela projeção de nós mesmos, fazendo de Jesus e da Igreja o palco para a exaltação do nosso próprio ego. Não nos esqueçamos da razão pela qual viemos, da razão pela qual nos tornamos discípulos de Jesus Cristo e anunciadores do seu Evangelho.

Pe. Paulo Cezar Mazzi