quinta-feira, 28 de março de 2019

PARA DEUS PAI, NENHUM FILHO SEU ESTÁ PERDIDO OU MORTO PARA SEMPRE

Missa do 4º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Josué 5,9a.10-12; 2Coríntios 5,17-21; Lucas 15,1-3.11-32.

            Como você imagina Deus? Qual imagem você tem d’Ele dentro de si? Jesus nos ensinou a ver Deus como Pai. Essa imagem nos ajuda a desenvolver um relacionamento íntimo e profundo com Deus se a experiência que tivemos com nosso pai terreno foi positiva, mas pode acontecer também que o nosso relacionamento com Deus fique bloqueado pelo fato de termos tido experiências negativas com nosso pai terreno. Para evitar isso, Jesus nos ensinou que Deus não é apenas nosso Pai, mas o Pai que “está no céu”, isto é, o Pai que está acima, que transcende todos os limites e as imperfeições do pai terreno, o Pai que nos ama com um amor incondicional, o Pai que ama todo ser humano, o Pai que, por querer que todas as pessoas sejam salvas (cf. 1Tm 2,4), não quer que nenhuma delas se perca (cf. Mt 18,14).
            Essa imagem de Deus como o Pai que não aceita perder nenhum de seus filhos foi rejeitada pelos fariseus e mestres da Lei que, ao verem Jesus em meio aos pecadores, o criticaram: “Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles” (Lc 15,2). Para muitas pessoas, é preciso que haja uma separação nítida e clara entre o sagrado e o profano, entre os puros e os impuros, entre os santos e os pecadores, entre os salvos e os perdidos. Jesus, no entanto, veio nos ensinar que, assim como o lugar do médico é junto daqueles que estão doentes, o seu lugar como Filho de Deus é junto dos homens e das mulheres que estão mortos e precisam voltar a viver, das pessoas que estão perdidas e precisam ser encontradas.
            Portanto, para corrigir em cada um de nós a imagem distorcida, traumatizada ou ignorada de Deus como Pai, Jesus nos contou esta parábola, a parábola do Pai misericordioso, uma parábola que começa com esta decisão do filho mais novo: “Pai, dá-me a parte da herança que me cabe” (Lc 15,12). Ora, o momento de se repartir a herança é quando o pai morre. Portanto, este filho mais novo retrata o nosso mundo, um mundo que rejeita a autoridade do pai, rejeita viver sob a sua orientação, rejeita ter que obedecer ao pai. De fato, a parábola afirma que o filho, depois de receber sua parte da herança, “juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada” (Lc 15,13).
            “Vida desenfreada”. Muitas pessoas não aceitam o freio da família, o freio da religião, o freio de qualquer autoridade. Elas querem ser livres e fazer o que sentirem vontade, sem se importar com o certo e o errado e sem querer arcar com as consequências. Ora, uma vida desenfreada cedo ou tarde se transforma numa vida que destrói a si mesma. Não é à toa que o filho que tinha tudo na casa do pai agora se encontra não só passando necessidade, mas passando fome, sem poder comer até mesmo a comida que ele dava aos porcos. Esse filho desceu ao mais profundo do poço, ao mais profundo do buraco que ele mesmo cavou.
            Quando nós rejeitamos depender de Deus, passamos a sofrer uma dependência imposta pelo mundo. Na verdade, são muito raras as pessoas que decidem “matar” Deus, isto é, “matar” o Pai dentro delas, mas são muitas as pessoas hoje em dia que vivem como se Deus não existisse – elas não cultivam nenhum relacionamento com Ele –, e ao escolherem viver assim, se tornam pessoas orfãs, sem Pai, pessoas entregues a si mesmas, entregues à desorientação do próprio coração. Rejeitando o cuidado do Pai, elas passam a ser um alvo fácil para o maligno ferir, perturbar, infernizar. Não há dúvida que Deus sofre profundamente ao ver tantos filhos Seus nessa situação, mas Ele respeita a liberdade que deu a cada um de nós, na esperança de que cada um possa “cair em si” e se dar conta do mal que está causando a si mesmo.
            Assim aconteceu com o filho mais novo: “Então caiu em si e disse: ‘(...) Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti’” (Lc 15,17-18). Se existe um caminho de distanciamento, existe também um caminho de reaproximação. Nada está perdido para sempre; nada está morto definitivamente! É possível voltar! Nós temos para onde voltar; mais do que isso, nós temos para Quem voltar! Qualquer que seja o nosso pecado, qualquer que tenha sido o nosso erro de matar o Pai dentro de nós, Ele continua vivo e de abraços abertos para nos receber de volta!  
            Eis, portanto, a verdadeira imagem de Deus que Jesus quis nos revelar: “Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos” (Lc 15,20). Embora muitas pessoas desistam de si mesmas, Deus não desiste de nenhum ser humano. Ele aposta continuamente na capacidade de cada pessoa cair em si, arrepender-se e decidir voltar para Ele. E quando a pessoa toma essa decisão, o próprio Deus sai correndo ao seu encontro, vibrando de alegria, fazendo a maior festa, “porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (Lc 15,24).
            Estamos a caminho da Páscoa, e esta festa é celebrada todo ano para renovar em nós a convicção de que aquele que está morto pode voltar a viver; aquele que está perdido pode ser encontrado, pode deixar-se encontrar. Jesus quer não somente que cada um de nós faça essa experiência pascal, mas que nós possamos nos tornar de tal modo uma presença pascal para que todos aqueles que, por algum motivo, se permitiram morrer ou perder, recobrem a fé de que existe um Deus que é Pai e que diariamente está correndo ao encontro deles de braços abertos, um Pai cujo amor incondicional tem o poder de fazê-los voltar a viver, de voltar a ser encontrados.
            “Deixai-vos reconciliar com Deus”, suplicou o apóstolo Paulo aos coríntios (cf. 2Cor 5,20). É isso o que nós somos chamados a anunciar às pessoas que à nossa volta estão mortas ou perdidas: ‘Deixem-se abraçar pelo Pai! Deixem-se ressuscitar por Deus! Deixem-se ser encontradas por Ele!’ Ao mesmo tempo, Paulo também nos convida a nos reconciliar com a imagem do Pai. Talvez a nossa relação com Deus Pai seja tão fria quanto à do filho mais velho, que passou toda a sua vida trabalhando para o pai, mas não se deixou amar por ele, e nem aprendeu a amar como ele. Todos nós precisamos nos deixar abraçar pelo Pai e permitir que Ele cure as nossas feridas paternas. Enfim, todos nós somos chamados a nos tornar filhos como o Filho, que dedicou sua vida em procurar e salvar o que estava perdido (cf. Lc 19,10).

            ORAÇÃO: Pai nosso, Pai de todos os seres humanos, inúmeras pessoas sentem-se órfãs em nosso mundo. Além disso, muitas outras pessoas Te rejeitam porque não querem viver sob a orientação da tua Palavra. Reconhecemos que todos nós somos filhos que algum dia já se perderam de Ti e acabaram provocando sofrimentos desnecessários a si mesmos. Ajuda-nos a voltar para a Tua casa, para os Teus braços, para o Teu perdão.
            Cristo Jesus, nosso irmão, Tua vida foi dedicada a procurar e salvar quem estava perdido. Obrigado por nos revelar o verdadeiro rosto do Pai, o rosto da misericórdia. Obrigado por nos ensinar que aquilo que morreu em nós pode voltar a viver, assim como aquilo que se perdeu em nós pode voltar a ser encontrado, porque o amor do Pai por nós é um amor incondicional, amor que tudo cura, resgata e transforma.
            Espírito Santo, nosso consolador, visita todos aqueles que se permitiram morrer por dentro, que se deixaram perder nos descaminhos deste mundo. Alcança-os com a Tua luz, ilumina-os com a Tua verdade, devolve-lhes a certeza de que não são órfãos, mas filhos, e que o Pai jamais desistirá de procurá-los e de trazê-los de volta ao Seu coração, para que recuperem a dignidade perdida, a alegria e a paz. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 21 de março de 2019

TODA TRAGÉDIA TEM ALGO A NOS DIZER

Missa do 3º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Êxodo 3,1-8a.13-15; 1Coríntios 10,1-6.10.12; Lucas 13,1-9

            Uma das perguntas mais antigas da humanidade é esta: “Por que algumas pessoas sofrem mais do que outras?” Ou então: “Por que meu casamento não deu certo, mas o dos outros deu?” Ou ainda: “Por que meu filho morreu de câncer ou de acidente, mas os filhos dos outros estão vivos e esbanjando saúde?” Por trás da pergunta “por quê?” há uma outra pergunta: “De quem é a culpa?”, ou então, “Quem é o responsável pelas tragédias que atingem algumas pessoas?”
            Desde a época de Jesus até hoje, muitas pessoas julgam ter encontrado a resposta para essas perguntas: “Deus é o responsável pelo mal que existe no mundo, e Ele envia o mal para punir toda pessoa que peca”. Portanto, quando alguma tragédia atinge determinadas pessoas é porque aquelas pessoas fizeram por merecer; elas tinham alguma culpa e esta culpa tinha que ser expiada, redimida, através daquele sofrimento. 
            Jesus rejeita totalmente essa teoria. Assim como de uma fonte de água não tem como jorrar água doce e salgada, assim também é com Deus: Ele é amor, Pai rico em misericórdia e em perdão. Ele não se alegra com a morte do pecador, mas deseja que ele se converta e viva (cf. Ez 18,23). Além disso, todos nós estamos num mundo onde o mal encontra espaço de sobra para agir, e Deus não vai colocar uma redoma de vidro para proteger alguns das tragédias e deixar propositalmente outros expostos a essas mesmas tragédias. Ao invés de julgarmos as pessoas atingidas por tragédias merecedoras das mesmas, devemos refletir seriamente sobre essas palavras de Jesus: “Se vocês não se converterem, morrerão todos do mesmo modo” (Lc 13,3.5).
            No início da quaresma, meditamos sobre a importância da conversão por meio de um exemplo muito simples: se você se dá conta de que está dirigindo seu carro numa estrada que vai terminar num abismo, você mudaria de direção? Embora a resposta pareça óbvia, não são poucas as pessoas que se recusam a mudar suas atitudes, mesmo sabendo que a vida delas está caminhando na direção de um abismo. Na Sagrada Escritura, essa mudança de atitude, essa mudança de direção, se chama conversão. Pelo fato de Deus ser amor, misericórdia e perdão, muitas pessoas escolhem adiar sua conversão e continuarem numa situação de pecado, situação que, de alguma forma, lhes proporciona alguma vantagem. No entanto, Jesus diz claramente: “Mude, antes que seja tarde! Pare de ser irresponsável com sua vida. Você está se destruindo! Você está criando condições para que a destruição atinja sua família, aquilo que você mais ama!”
            O salmo de hoje nos fala de Deus como Aquele que “perdoa toda a tua culpa... O Senhor é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e compassivo” (Sl 103,3.8). Mas tome cuidado: existe perdão para uma pessoa que erra, que se engana, que faz algo errado por ignorar o erro que está cometendo, mas não existe perdão para quem sabe que está errado e não aceita mudar suas atitudes. A graça de Deus sempre respeita a nossa natureza, a nossa liberdade. Deus não pode me mudar se eu não quero mudar. Portanto, quando Jesus afirma: “Se vocês não se converterem, morrerão todos do mesmo modo” (Lc 13,3.5), está nos tornando conscientes disso: não existe perdão para quem, sabendo que está errado, não aceita mudar suas atitudes; não existe perdão para quem faz corpo mole, para quem é preguiçoso e para quem tem má vontade em mudar suas atitudes. A vida sempre nos confrontará com as consequências das nossas atitudes.  
            Diante de todo ser humano, Jesus sempre procurou agir com misericórdia e amor, apostando na sua capacidade de mudança, de conversão, de regeneração. De fato, Jesus não veio quebrar a cana que estava rachada, nem veio apagar o pavio que ainda fumegava (cf. Is 42,3). No entanto, após semear sua Palavra em nossa consciência, após ter adubado devidamente as raízes da árvore que somos, ele tem todo o direito de nos cobrar os frutos de que somos capazes de produzir. Eis, portanto, a parábola que ele nos conta no final do Evangelho de hoje: “Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi até ela procurar figos e não encontrou. Então disse ao vinhateiro: ‘Já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro. Corta-a! Por que está ela inutilizando a terra?’” (Lc 13,6-7).
            Há quanto tempo a vida tem dado sinais de que você precisa mudar suas atitudes? Quantas tragédias ainda serão necessárias para você se dar conta de que está se destruindo, ou destruindo pessoas à sua volta? Deus plantou você neste mundo como uma árvore fecunda, capaz de produzir bons frutos. Até quando você vai se comportar na vida como uma árvore inútil, que tem preguiça de fazer o bem de que é capaz? Um dia eu e você seremos cortados da terra, isto é, seremos recolhidos por Deus. Como nos apresentaremos diante d’Ele: com as nossas mãos vazias ou com as nossas mãos cheias das boas atitudes que tomamos em favor do bem da humanidade?
            Diante da iminência de se cortar a figueira que não estava produzindo frutos, o servo sugeriu: “Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás” (Lc 13,8-9). Este servo representa Jesus. Ele é não somente nosso intercessor junto do Pai, mas também aquele que diariamente lança o adubo do Evangelho nas raízes da nossa consciência, na esperança de que voltemos a produzir frutos, fazendo o bem que somos capazes de fazer. Temos mais este ano, mais esta quaresma, mais um tempo para sairmos da nossa preguiça espiritual e nos dedicarmos com seriedade à nossa conversão. Quando menos imaginarmos, este tempo terminará e o Senhor nos visitará. Será a hora do nosso julgamento. Que ele seja um julgamento de salvação e não de condenação.   

            ORAÇÃO: Deus Pai, Tu és misericórdia e perdão; és bondoso e paciente. Peço-Te perdão por ter julgado as pessoas que morreram vítimas de tragédias como mais pecadoras do que eu. Diante dos acontecimentos que se dão todos os dias, ensina-me a ouvir o que estás querendo me dizer, em vista da minha conversão e salvação.
            Senhor Jesus, Tu és a presença da misericórdia do Pai em nosso meio. Muito obrigado por Tua intercessão diante d’Ele em favor da minha salvação. Eu acolho com alegria o adubo do Teu Evangelho nas raízes da árvore da minha vida, na esperança de que ela volte a produzir frutos que comprovem a minha conversão.
            Espírito Santo, visita-me na minha infertilidade. Neste tempo de outono, quando as folhas começam a cair e as árvores começam a dormir, que a minha consciência se mantenha desperta e que a graça da Tua fecundidade abençoe meus pensamentos, meus sentimentos e minha atitudes, ajudando-me a produzir os frutos de que sou capaz, para a salvação minha e da humanidade. Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 14 de março de 2019

A ORAÇÃO NOS TRANSFIGURA QUANDO NOS ABRE À VONTADE DO PAI

Missa do 2º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 15,5-12.17-18; Filipenses 3,17 – 4,1; Lc 9,28b-36.

            “Quem vê cara, não vê coração”. Este ditado nos ensina que a aparência muitas vezes nos engana. Para conhecer uma pessoa, é preciso ver não o que ela aparenta ser, mas ver as suas atitudes, o seu comportamento. “Quem vê cara, não vê coração”. No entanto, o rosto reflete o estado da alma: se estamos alegres ou tristes, tranquilos ou preocupados, serenos ou angustiados, isso se reflete em nosso rosto.
            Como está o rosto das pessoas à nossa volta? Quando olhamos o rosto delas nas redes sociais, nós as vemos sempre felizes e sorrindo; mas quando olhamos esse rosto ao vivo, no dia a dia, ele muitas vezes se apresenta bem diferente, pois o coração está tomado de preocupação e ansiedade, de medo e de incerteza, de tristeza e de angústia.
            O Evangelho de hoje nos fala da transfiguração do rosto de Jesus. Ele havia acabado de anunciar aos discípulos que deveria sofrer muito em Jerusalém, ser morto, mas que ressuscitaria ao terceiro dia (cf. Lc 9,22). Essas palavras certamente provocaram tristeza no coração dos discípulos, desfigurando o rosto deles e o do próprio Jesus. Então, “mais ou menos oito dias depois dessas palavras, Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc 9,28-29).
            Na quarta-feira de cinzas, Jesus nos falou a respeito da atitude correta na oração – entrar no quarto da nossa consciência, fechar a porta para todo barulho exterior, e orar ao Pai que se encontra no mais íntimo de nós mesmos (cf. Mt 6,6). Na última terça, Jesus nos ensinou a oração do Pai Nosso (cf. Mt 6,9-13). Na última quinta, ele nos falou da importância de rezarmos com absoluta confiança no Pai (cf. Mt 7,7-11), e no Evangelho de hoje, Jesus nos mostra o efeito da oração em nossa vida: ela nos transfigura; ela transforma o nosso rosto entristecido, angustiado e preocupado num rosto alegre, sereno e confiante.
            O que aconteceu enquanto Jesus rezava? O mesmo que aconteceu com Abraão. Num momento de grande angústia e de incerteza, quando Abraão começava a desacreditar da promessa divina de se tornar pai de uma grande multidão, “o Senhor conduziu Abraão para fora e disse-lhe: ‘Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz!’ E acrescentou: ‘Assim será a tua descendência’” (Gn 15,5). Quando estamos angustiados, tristes e preocupados, ficamos fechados em nossa própria dor, nos sentindo como se estivéssemos trancados num quarto escuro, sem conseguirmos achar a porta de saída. Mas a oração tem esse poder de nos conduzir para fora desse lugar. A oração tem esse poder de tirar os nossos olhos daquele horizonte estreito do nosso problema, e de dirigi-los para o céu, para a infinidade das estrelas que brilham no escuro, lembrando-nos de que “Deus tem o poder de realizar por nós infinitamente além do que podemos pedir ou conceber, mediante o seu poder que age em nós” (Ef 3,20).  
            O rosto de Jesus se transfigurou porque, enquanto rezava, o Pai o conduziu para fora da sua angústia e da sua tristeza e fez também com que Pedro, Tiago e João, antes angustiados e tristes com a notícia da morte de Jesus, agora pudessem ver a sua glória (cf. Lc 9,32). Mas, será que a oração tem mesmo esse poder mágico de transformar rapidamente um rosto desfigurado num rosto transfigurado? Na verdade, não. O que acontece é que, quando nossa oração é verdadeira, sincera, bem feita, nós saímos dela dispostos a fazer a vontade de Deus e é isso que transfigura o nosso rosto, porque devolve paz ao nosso coração. Sempre que nos afastamos da vontade de Deus, começamos a perder a paz de espírito, e essa perda de paz se reflete em nosso rosto. Por outro lado, sempre que, por meio da oração, voltamos a alinhar o nosso coração ao coração de Deus, acolhendo e abraçando a sua vontade, voltamos a sentir paz, e o nosso rosto consequentemente irradia essa paz.
            No final do Evangelho, São Lucas mostra que a oração de Jesus não trouxe benefícios apenas a ele; ela também fez com que a nuvem da presença de Deus envolvesse Pedro, Tiago e João. Na oração, nós subimos a Deus e Ele desce a nós, nos envolvendo na sua Presença misteriosa, uma Presença que não podemos tocar, mas que nos envolve na verdade do seu amor e da sua graça para conosco. “Da nuvem... saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!’” (Lc 9,35). Se, na oração, nós desejamos ter um contato direto com Deus e receber respostas diretas para as questões que nos angustiam, o Pai nos convida a escutar o que o seu Filho nos diz no Evangelho de cada dia.
Enfim, se Pai nos convida a escutar seu Filho, o Filho, por sua vez, escuta o Pai na oração, e porque o escuta, seu rosto se transfigura. Nós, escutando o Filho, podemos ter também a nossa vida transfigurada ao menos momentaneamente, pois a nossa transfiguração definitiva e completa se dará no momento da ressurreição, como indica o apóstolo Paulo: “De lá (do céu) aguardamos o nosso Salvador, o Senhor, Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso, com o poder que tem de sujeitar a si todas as coisas” (Fl 3,20-21).

                ORAÇÃO: Pai, as preocupações e angústias do tempo presente me fazem sentir-me dentro de um quarto escuro, sem que eu veja uma saída. Peço-Te: conduz-me para fora como conduziste Abraão, e faz-me erguer os olhos para contemplar as estrelas do céu, pois eu creio que tens o poder de fazer por mim infinitamente além do que posso pedir ou imaginar.
            Senhor Jesus Cristo, nas noites escuras da minha vida, leva-me contigo à presença do Pai. Concede-me um coração verdadeiramente orante, capaz de apresentar ao Pai tudo aquilo que aflige a minha alma, depositando nas mãos d’Ele minhas preocupações. Mais do que isso, que a minha oração seja tão verdadeira e tão eficaz, que eu possa sair dela disposto(a) a abraçar a vontade do Pai em minha vida.
            Espírito Santo, Tu és a força de Deus que transfigura a partir de dentro tudo aquilo que está desfigurado. Vem sobre nós com o Teu poder! Transfigura-nos na imagem do Filho Jesus, e faz de cada um de nós uma presença capaz de transfigurar o ambiente em que nos encontramos, ajudando cada pessoa a reencontrar a sua alegria e a sua paz na conformação da sua vida à vontade do Pai. Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 7 de março de 2019

UM DIÁLOGO QUE ACONTECE DENTRO DE NÓS TAMBÉM

Missa do 1º. dom. da quaresma. Palavra de Deus: Deuteronômio 26,4-10; Romanos 10,8-13; Lucas 4,1-13.

            Na última quarta-feira, iniciando o nosso tempo de quaresma, Jesus nos convidou a rever o nosso relacionamento com o próximo (esmola), conosco mesmos (jejum) e com Deus (oração). Sobre este último, Jesus nos deu uma dica: “Quando você orar, entre no seu quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai que está oculto” (Mt 6,6). Deus pode ser encontrado no quarto da nossa consciência. Quando entramos ali e fechamos a porta para todo barulho exterior, podemos ouvir Sua voz. Mas ali também costuma falar conosco uma outra voz, a  voz do maligno, do tentador, a mesma voz que falou com Jesus na sua quaresma, para tentar desviá-lo do caminho de Deus.
“O antigo inimigo, ‘disfarçando-se em anjo de luz’ (2Cor 11,14) não cessa de armar por toda parte as ciladas da mentira e de procurar de todo modo corromper a fé dos crentes. Sabe a quem incutir o ardor da cobiça, a quem oferecer os atrativos da gula, a quem inflamar com a luxúria, em quem infiltrar o veneno da inveja. Sabe a quem perturbar com a tristeza, a quem iludir com a alegria, a quem oprimir com o temor, a quem seduzir pela vaidade. Observa os costumes de todos, investiga as preocupações, perscruta os sentimentos; e procura meios de fazer mal onde vê alguém ocupar-se em algo com interesse” (São Leão Magno). Essas palavras de São Leão Magno nos tornam conscientes de que o tentador conhece cada um de nós; ele sabe onde se encontra o nosso ponto fraco; ele sabe de quê maneira nos tentar.
O Evangelho afirma que Jesus “foi tentado pelo diabo durante quarenta dias” (Lc 4,2), uma indicação simbólica para falar que Jesus, assim como qualquer ser humano, foi tentado durante toda a sua vida. Não é que o maligno nos tente 24 horas por dia. O diabo esperou Jesus sentir fome, para começar a tentá-lo. O maligno sabe a hora certa de nos tentar: a hora em que nos sentimos carentes, em que não estamos bem, em que sentimos falta de alguma coisa. E sua proposta é muito prática: “(...) manda que esta pedra se transforme em pão” (Lc 4,3).
Por trás desta primeira tentação está a proposta enganadora de que você não precisa sentir fome, não precisa sofrer carência alguma. Sua fome é legítima e você tem o direito de satisfazê-la, não importa como; os fins justificam os meios. Desse modo, nós nos tornamos pessoas meramente instintivas. Nossa fome manda em nós. Nossa carência determina nossas atitudes. Tudo o que existe e todas as pessoas à nossa volta se tornam “pães” a serem comidos, devorados, consumidos por nós.  
Para não cairmos nessa tentação, Jesus nos adverte: “Não só de pão vive o homem” (Lc 4,4). Existe uma fome em nós que nem a comida, nem o dinheiro, nem o sexo podem saciar. A carência e o vazio que às vezes sentimos apontam na direção de Deus. Sempre que damos uma resposta errada ao nosso vazio aumentamos ainda mais o nosso vazio. Por isso, é importante dialogar com a nossa fome, com a nossa carência, e identificar do quê realmente estamos famintos, sedentos e como podemos lidar com essa necessidade sem nos intoxicar com coisas que nos fazem mal.  
Eis a segunda tentação: “O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo e lhe disse: ‘Eu te darei todo este poder e toda a sua glória (...). Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu’” (Lc 4,5-7). Nós não gostamos de nos sentir fracos, pequenos e também não gostamos de ser ignorados pelo mundo. É por isso que não resistimos a essa tentação, pois o tentador nos promete força, poder, grandeza, glória, projeção social; ele nos promete tirar do lugar baixo e insignificante em que julgamos estar e nos colocar no topo, no lugar mais alto, onde seremos vistos e aplaudidos por todo o mundo. E quando caímos nessa tentação, nos afastamos das nossas raízes; somos levados pela mania de grandeza e, na hora em que menos imaginamos, despencamos das alturas e nos arrebentamos no chão.      
Jesus desmascarou a mentira do tentador: “Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (Lc 4,8). Quando Deus ocupa o lugar central em nossa vida, e nós aprendemos a usar das coisas tanto quanto elas nos aproximam de Deus, assim como aprendemos a nos afastar delas tanto quanto elas nos afastam d’Ele, nossa vida retorna ao seu lugar; tudo fica em ordem dentro de nós e somos gratos por estar onde estamos. Não temos mais que nos preocupar se os olhos dos outros nos enxergam, porque vivemos sob o olhar do Deus que nos chamou à vida e nos ama incondicionalmente.
Enfim, eis a terceira tentação: “(...) o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, e lhe disse: ‘Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’” (Lc 4,9-10). Nós caímos nessa tentação sempre que brincamos de ser Deus; sempre que nos consideramos inatingíveis, acima do bem e do mal; sempre que vivemos de maneira irresponsável, esquecendo-nos de que tudo na vida tem consequências.
Jesus também aqui nos dá a chave para silenciarmos a voz do tentador: “Não tentarás o Senhor teu Deus” (Lc 4,12). Deus nos deu inteligência e liberdade. Não podemos usar delas para ter atitudes inconsequentes e depois nos fazer de vítimas diante do sofrimento que provocamos em nós mesmos. Trata-se de viver a vida como uma pessoa adulta, madura e responsável, e não como um adulto infantilizado, que vive responsabilizando os outros pela sua infelicidade.
No final desta narrativa das tentações, São Lucas evangelista nos deixa um alerta: “Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (Lc 4,13). Sempre que, pela graça de Deus, vencemos o tentador, não podemos baixar a guarda e achar que ele nunca mais voltará a nos incomodar. Enquanto estivermos vivos e o sangue estiver correndo em nossas veias, seremos tentados; sempre haverá em nossa vida um momento oportuno para o tentador voltar e nos encontrar fragilizados. Portanto, sejamos humildes e realistas. Peçamos diariamente a graça de não cairmos em tentação.

Oração: Aqui estou, Senhor Jesus, com a minha fome, com a minha carência. O tentador sabe onde sou fraco(a) e onde costumo cair. Neste início de quaresma venho Te pedir a graça de resistir à tentação, a graça de dialogar com meus afetos e de colocá-los em ordem, em vista da minha conversão, do meu amadurecimento e da minha santificação.
Ensina-me a dar respostas mais maduras e mais profundas para a minha fome de sentido e de felicidade. Ensina-me a lidar com as frustrações e livra-me de me tornar escravo(a) dos meus afetos desordenados. Faz-me descer do pedestal da arrogância e da mania de grandeza. Que os meus pés toquem no chão da realidade e que eu ocupe o lugar que sou chamado(a) a ocupar neste mundo.
            Enfim, concede-me sabedoria para usar a minha liberdade de modo a me tornar responsável por minhas atitudes. E quando o tentador voltar a me procurar no momento oportuno, que a força do Espírito Santo venha em socorro da minha fraqueza, ajudando-me a resistir à tentação e permanecendo fiel à vontade do Pai. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

terça-feira, 5 de março de 2019

PODEMOS DAR UMA OUTRA DIREÇÃO À NOSSA VIDA


Missa de Cinzas. Palavra de Deus: Joel 2,12-18; 2Coríntios 5,20 – 6,2; Mateus 6,1-6.16-18.

            Se você se dá conta de que está dirigindo seu carro numa estrada que vai terminar num abismo, você mudaria de direção? Embora a resposta pareça óbvia, não são poucas as pessoas que se recusam a mudar suas atitudes, mesmo sabendo que a vida delas está caminhando na direção de um abismo. Na Sagrada Escritura, essa mudança de atitude, essa mudança de direção, se chama conversão, uma conversão que expressa neste apelo de Deus: “Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; (...) voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo” (Jl 2,12-13).
            Quaresma é um tempo forte de conversão, de revisão de vida, de mudança de atitude: “É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (2Cor 6,2). Na Sagrada Escritura, o número quarenta tem um significado espiritual de renascimento: é o tempo necessário para que o nosso coração de pedra seja convertido em coração de carne, ou para que o nosso homem velho dê lugar ao homem novo. Da mesma forma como o nosso afastamento de Deus e da Sua vontade nunca se dá de uma hora para outra, mas é um processo, também o nosso retorno para Deus e a conformação da nossa vida à Sua vontade exige um tempo – um tempo de quarenta dias – no qual a cada dia procuramos dar um passo a mais na direção de Deus, nos afastando, assim, da direção do abismo para o qual estava caminhando a nossa vida.  
            Durante este período de quaresma, somos convidados por Jesus a rever as três principais relações da nossa vida: a relação com o próximo (esmola), a relação com Deus (oração) e a relação conosco mesmos (jejum). A relação com o próximo é retratada a partir da esmola porque o próximo é, sobretudo, o necessitado, alguém que à nossa volta está prejudicado e precisa da nossa caridade. Uma vez que o individualismo nos faz enxergar somente a nós mesmos e os nossos interesses, a prática da esmola nos desafia a olhar à nossa volta e a dedicar uma parte do nosso tempo e dos nossos recursos a alguém que necessita da nossa atenção, do nosso cuidado.
            A segunda relação que precisamos rever é aquela entre nós e Deus. Aqui se trata de rever a nossa vida de oração, prejudicada pela correria da vida moderna e pelas inúmeras solicitações das redes sociais. O conselho de Jesus – “quando tu orares, entra no teu quarto, fecha a porta, e reza ao teu Pai que está oculto” (Mt 6,6) – nos oferece uma pista importante de como recuperar a nossa intimidade com Deus na oração. Todos os dias precisamos criar um espaço dentro de nós para a oração, entrando na intimidade de nós mesmos (quarto) e fechando a porta para o barulho, para aquela infinidade de solicitações exteriores, para só então nos colocar como barro nas mãos do nosso Oleiro. Sem esse espaço, sem esse tempo diário de oração, perdemos a nossa alma, enquanto tentamos dar conta de tudo o que o mundo exige de nós.
            A terceira relação que somos chamados a rever é aquela conosco mesmos. Mas, porque ela aparece na prática do jejum? Porque o jejum é um exercício de autodomínio. Nós estamos nos tornando pessoas cada vez mais sem autodomínio, pessoas incapazes de dizer “não” aos seus desejos e ambições, além de nos tornarmos incapazes de lidar com frustrações. Nós acabamos abrindo mão da liberdade diante dos nossos instintos e permitimos que eles passassem a controlar a nossa vida. Neste sentido, o jejum é um exercício de recuperação da nossa liberdade interior, uma purificação dos nossos instintos e desejos, uma revisão dos nossos valores, resgatando a noção daquilo que é verdadeiramente essencial em nossa vida.       
            Ao nos convidar a melhorar a nossa relação com o próximo (esmola), com Deus (oração) e conosco mesmos (jejum), Jesus sempre chama a atenção para a verdadeira intenção que trazemos no coração. A melhora nesses relacionamentos não pode ser tão superficial quanto fazer uma maquiagem; pelo contrário, tem que atingir as raízes mais profundas do nosso coração, onde está o Pai que vê o oculto, o escondido, as verdadeiras intenções com que fazemos tudo o que fazemos. Se não formos verdadeiros conosco mesmos, com a nossa consciência, com o nosso coração, nada mudará em nós nesta quaresma; chegaremos ao final dela sem nenhuma transformação interior.    
            Um gesto importante que nos introduz no tempo da quaresma é a imposição das cinzas em nossa cabeça. O significado dessas cinzas se encontra no livro do Gênesis: “Lembre-se de que você é pó e ao pó voltará” (Gn 3,19). As cinzas são colocadas em nossa cabeça para que tenhamos consciência de que o pecado produz morte em nós. Além disso, ter consciência da nossa morte pode nos ajudar a rever os nossos valores e a viver a nossa vida de outra maneira. Quem tem consciência da própria morte não vive perdido em meio a coisas urgentes e acidentais, mas mantém o foco naquilo que é essencial, e o essencial é a nossa salvação.
            Por fim, procuremos viver esta quaresma iluminados pela Campanha da Fraternidade deste ano, cujo tema é “Fraternidade e Políticas Públicas” e cujo lema é: “Serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1,27). A Igreja nos estimula a participar de políticas públicas que fortaleçam a cidadania e o bem comum em nossa sociedade. Esclarecendo, políticas públicas são ações e programas que são desenvolvidos pelo Estado para garantir e colocar em prática direitos que são previstos na Constituição Federal e em outras leis.
            Oração da CF 2019 – Pai misericordioso e compassivo, que governais o mundo com justiça e amor, dai-nos um coração sábio para reconhecer a presença do vosso Reino entre nós. Em sua grande misericórdia, Jesus, o Filho amado, habitando entre nós testemunhou o vosso infinito amor e anunciou o Evangelho da fraternidade e da paz. Seu exemplo nos ensine a acolher os pobres e marginalizados, nossos irmãos e irmãs com políticas públicas justas, e sejamos construtores de uma sociedade humana e solidária. O divino Espírito acenda em nossa Igreja a caridade sincera e o amor fraterno; a honestidade e o direito resplandeçam em nossa sociedade e sejamos verdadeiros cidadãos do “novo céu e da nova terra” Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi