terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A SUA BÊNÇÃO, PAI!

Missa de Ano Novo. Palavra de Deus: Números 6,22-27; Gálatas 4,4-7; Lc 2,16-21.

Ouve-se dizer que 2014 foi um ano difícil para muitas pessoas, sobretudo no campo econômico. Ora, um ano não é nem bom, nem ruim em si mesmo; ele é o resultado das escolhas que as pessoas vão fazendo e das decisões que elas vão tomando nas várias áreas da vida: profissional, financeira, emocional etc. É claro que vale lembrar que não se trata somente de escolhas e decisões pessoais, mas também das escolhas e decisões que aqueles que nós escolhemos para nos representar (Senado e Congresso) e nos governar tomam, sobretudo em relação à economia, saúde, educação, transporte público etc.  
Nesta noite estamos virando mais uma página do nosso tempo, entrando num novo ano. Antes, porém, de virar a página, é importante refletir sobre a maneira como conduzimos a nossa vida, pessoal e social, para que os possíveis erros do ano que termina não se repitam no ano que se inicia. Mais do que isso, é importante nos perguntar se a maneira como conduzimos nossa vida até aqui está de acordo com o desígnio de Deus para nós: “Sim, eu conheço os desígnios que formei a vosso respeito..., desígnios de paz e não de desgraça, para vos dar um futuro e uma esperança” (Jr 29,11).
Eis a atitude de Maria, mencionada no Evangelho desta noite: ela “conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração” (Lc 2,19). Nenhum acontecimento é obra do acaso ou de um destino cego: ele sempre tem algo a nos dizer, a nos ensinar, e a pergunta principal diante de cada acontecimento que marcou a nossa história em 2014 não é POR QUÊ?, mas PARA QUE? Quando perguntamos “por quê?”, estamos procurando o culpado por aquilo que nos aconteceu, e nos colocando no papel de vítimas. Quando perguntamos “para que?”, estamos entendendo que tudo tem um propósito dentro do desígnio de Deus; todo acontecimento tem algo a nos ensinar, a nos corrigir, a nos alertar, e ao invés de perdermos tempo procurando pelo culpado, podemos nos lembrar de que, se nós nem sempre somos responsáveis por aquilo que nos acontece, nós sempre somos responsáveis pela maneira como lidamos com o que nos aconteceu. Em outras palavras, nós temos liberdade de escolha, até mesmo diante dos acontecimentos mais dramáticos e dolorosos que nos atingem.
SAÚDE e PAZ talvez sejam as palavras mais usadas ao se cumprimentar as pessoas na entrada do Ano Novo. Interessante como essas duas bênçãos não dependem somente de fatores externos, como vida digna; relações mais humanas e baseadas na justiça – “O fruto da justiça será a paz” (Is 32,17), o que significa que onde há injustiça não tem como haver paz; acesso igualitário aos serviços públicos etc. Saúde e paz dependem também de um fator interno: a sintonia, a coerência com a nossa essência, com a nossa verdade. Mais uma vez é importante lembrar: quanto mais distantes da nossa essência, da nossa verdade, mais doentes ficamos (física e emocionalmente falando) e mais sem paz nos sentimos.  
Um chavão para todo novo ano que nasce é este: PRÓSPERO ANO NOVO! Na noite do dia 31 de dezembro, milhares de fiéis lotam igrejas para clamar ao Senhor por prosperidade. A respeito disso, duas palavras bíblicas podem nos dar discernimento. A primeira é do livro dos Provérbios: “Afasta de mim a falsidade e a mentira; não me dês nem riqueza e nem pobreza, concede-me o meu pedaço de pão; não seja eu saciado, e te renegue, dizendo: ‘Quem é o Senhor?’ Não seja eu necessitado e roube e blasfeme o nome de meu Deus” (Pr 30,8-9). A segunda é do apóstolo Paulo: “Aprendi a viver em toda e qualquer situação: viver saciado e passar fome; ter abundância e sofrer necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4,11-13). Essas indicações bíblicas falam por si só...
O livro dos Números nos ensina a invocar por três vezes o nome do Senhor, pedindo que Ele nos proteja, nos abençoe, nos guarde, nos ilumine, nos seja favorável, nos mostre a Sua face e nos conceda a paz. Tão importante quanto pedir a bênção de Deus para o novo ano é abraçar a nossa vocação de portadores da bênção de Deus para as outras pessoas: “Seja uma bênção” (Gn 12,2d); “Abençoai os que vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis” (Rm 12,14). Da mesma forma, o apóstolo Paulo nos convida a viver a cada dia do novo ano como filhos livres e não como escravos – escravos presos ao ressentimento, ao luto, ao passado, ao rancor, ao sentimento de vingança. Deixemos com que o Espírito Santo confirme a nossa filiação divina e nos lembre em toda e qualquer situação que temos a Deus por Pai. Não estamos neste mundo como órfãos! Deixemo-nos educar, conduzir e proteger pelo nosso Pai.
O Espírito Santo nos foi dado não para nos livrar das dificuldades, mas para nos dar força para enfrentá-las. Permitamos que Ele realize a circuncisão do nosso coração, dando-nos o sentido de pertença total a Deus. Igualmente, que Ele testemunhe ao nosso coração que temos a Jesus como Salvador. Enfim, que ao virarmos a última página do ano de 2014, possamos dizer: Graças, Pai!

                                                                  Pe. Paulo Cezar Mazzi  


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

SOZINHO(A) OU EM COMUNHÃO?

Missa da Sagrada Família. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a.; Colossenses 3,12-21; Lucas 2,22-40.

            A vida nasce da comunhão, não da solidão. Cada um de nós nasceu porque houve uma comunhão entre duas pessoas, entre um homem e uma mulher. É verdade que essa comunhão às vezes acontece apenas na carne, não no espírito; uma comunhão imperfeita, incompleta, parcial, movida pelo instinto, sem a presença do amor; uma comunhão reduzida ao desejo sexual, mas não aberta ao afeto. Seja como for, nossa existência nasceu de uma comunhão, e a questão é saber se nossa sobrevivência também depende disso.
Sobreviver sem comunhão pode até ser possível. Não são poucas as pessoas que hoje escolheram viver sozinhas, que romperam com sua família, que escolheram a rua como lar, porque sua casa nunca foi um lar para elas. Não são poucas as pessoas para as quais “família” é uma palavra sem sentido, ou então sinônimo de conflito, de desentendimento, de rejeição. Infelizmente, para algumas pessoas viver na família se tornou insustentável, e a única forma que encontraram de sobreviver foi vivendo sozinhas.
São marcantes as palavras da serpente ao Pequeno Príncipe: “Onde estão os homens?”, perguntou o principezinho. “A gente está um pouco só no deserto”. “Entre os homens também”, disse a serpente (Exupéry, O Pequeno Príncipe, p.60). Sim. É possível sentir-se só, mesmo estando entre as pessoas, mesmo tendo uma família. Estar no seio de uma família por si só não significa não experimentar solidão. No entanto, quando nos sentimos sós, mesmo dentro de casa, precisamos nos perguntar: até que ponto eu estou sendo responsável pelo meu isolamento, pela minha solidão?
Muitas vezes, por trás do isolamento e da solidão de um dos membros da família está a comunhão com um alguém estranho à família: a “colega” de trabalho ou de faculdade do pai, o “colega” de trabalho ou de faculdade da mãe, a namorada do filho ou o namorado da filha, pessoas que, com a sua personalidade dominadora e com seu psiquismo doentio, transformam o outro num fantoche em sua mãos, quebrando a saudável comunhão que ele tinha com sua família.
O livro do Eclesiástico deixou claro que a presença do outro é benéfica na minha vida na medida em que respeita as minhas raízes: honrar o pai, respeitar a mãe, ampará-los na velhice, ser compreensivo com eles, sobretudo se vierem a perder a lucidez. Quando damos um corte em nossa convivência familiar para agradar à outra pessoa, estamos sendo tão insensatos quanto uma árvore que decide cortar as suas raízes porque se julga crescida e forte o bastante para se sustentar por si só.
Sabendo que a convivência em família é desafiadora, o apóstolo Paulo nos lembra as atitudes que precisam estar presentes em nosso dia a dia, sobretudo com as pessoas de casa: misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência; a esposa dedicando-se ao marido, o marido amando a esposa e não sendo grosseiro com ela, os filhos obedecendo em tudo aos pais, e os pais não intimidando os filhos. No fundo, trata-se de um cuidado para com o relacionamento com o outro, cuidado que nasce do amor. Quem ama, cuida.
O Evangelho de hoje nos revela que a Pessoa principal da nossa casa é Deus, e que o relacionamento que mais precisa ser cuidado é com Ele. Com quarenta dias de vida, José e Maria vão ao templo consagrar o filho a Deus, um sinal claro de que todo filho é um dom de Deus e não um direito dos pais, um dom que precisa ser diariamente colocado, consagrado, restituído às Mãos d’Aquele que confiou este filho aos cuidados provisórios dos pais. A presença de Simeão e Ana, duas pessoas idosas, questiona o lugar que os idosos ocupam em nossa casa. São cuidados, ouvidos, amados? A comunhão do novo com o velho é necessária e saudável, para nos lembrar que todos nós um dia envelheceremos, e a vida costuma devolver a nós a maneira como tratamos os outros.
Simeão faz duas profecias, uma a respeito de Jesus, e outra, de Maria. Eis a primeira profecia: “Este menino vai ser causa tanto de queda como de reerguimento para muitos...”. O mesmo Evangelho que pode reerguer uma família que nele crê e por ele dirige sua vida, pode também derrubar a família que decide afastar-se dos seus conselhos e guiar-se segundo a mídia. A segunda profecia é esta: “Quanto a ti, uma espada de dor te traspassará a alma”. Tanto a pessoa que decide conviver, se casar e ter filhos, quanto aquela que decide ficar só, o faz para ser feliz e não para ter dor. No entanto, viver dói. Quem se contenta em apenas sobreviver, provavelmente enfrentará menos dor, mas quem decide viver intensa e profundamente terá que lidar com a dor. Aliás, só sente dor quem está vivo.
Se existe um problema que afeta muitas famílias hoje, a questão não é o relacionamento em si, mas a dor que ele pode gerar na pessoa. Inúmeras propagandas de produtos mostram famílias onde todos estão sorrindo. É a falsa ideia de que uma vida feliz não tem espaço para a dor. Ora, se nenhuma vida humana é gerada sem comunhão, nenhuma vida nasce sem dor. No seio de uma família, a dor só aparece quando algo novo quer nascer, quando uma pessoa ou todas daquela casa precisam aprender algo que ainda não sabem a respeito de si mesmos ou do outro. “O homem é um aprendiz; a dor é o seu mestre” (Alfred de Musset).  
Hoje pedimos que o Espírito de Deus visite cada família, cada ser humano, ajudando-o a revisitar as suas raízes (pais, avós), derramando Seu bálsamo sobre todo relacionamento ferido, restaurando o que foi rompido, transformando o muro da solidão na ponte da comunhão, voltando o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais, do marido para a esposa e da esposa para o marido, aproximando as gerações (avós e netos), reerguendo cada família que tombou por ter se afastado do Evangelho, fortalecendo-nos e dando-nos sabedoria para lidar com a dor que é inerente ao bem estar do relacionamento e, sobretudo, direcionando o coração de cada família para Deus, o Pai. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi



quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

NASCEU PARA NÓS, NASCEU PARA TODO SER HUMANO

Missa do Natal do Senhor. Palavra de Deus: Isaías 9,1-6; Tito 2,11-14; Lucas 2,1-14.

Uma frase do Evangelho resume para nós o sentido de estarmos reunidos esta noite para celebrar o Natal: “Nasceu para vós um salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11). Para quem não sente a necessidade de um salvador, para quem não sente que precisa ser salvo, não há porque celebrar o Natal. O Natal só tem sentido em ser celebrado por quem tem consciência de que precisa de um Salvador.
Nós precisamos ser salvos: salvos do nosso egoísmo e do nosso individualismo; salvos dos nossos medos, dos nossos vícios e dos nossos pecados; salvos da nossa cegueira, dos nossos enganos, das nossas mentiras; salvos das injustiças que cometemos contra o próximo e que contribuem para a desumanização à nossa volta. Nossas famílias precisam ser salvas: salvas do desemprego, das doenças, do distanciamento, dos desentendimentos ou do esfriamento nos relacionamentos; salvas das agressões e das brigas; salvas dos tormentos causados pela bebida e pelas drogas. A humanidade precisa igualmente ser salva: salva do mercado desumano que tudo reduz ao lucro; salva do terrorismo, da fome, das epidemias, das guerras etc.
“Nasceu para vós um salvador”. Jesus nasceu como Salvador de todo ser humano. Isso está claro nas palavras do apóstolo Paulo, ao nos afirmar nesta noite que “a graça de Deus se manifestou, trazendo salvação para todos os homens” (Tt 2,11), isto é, para todas as pessoas. Jesus nasceu para todos porque o Pai ama e quer salvar a todos (cf. 1Tm 2,4). Mas o próprio Evangelho desta noite, ao narrar o nascimento de Jesus, afirma que “não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7). Muitas pessoas não têm consciência da salvação que é o próprio Jesus porque ainda não foram alcançadas pela luz e pela alegria do seu Evangelho. Além disso, não é no coração de todos que Jesus encontra lugar para nascer e se manifestar como Salvador.
Santo Agostinho disse: “Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti”. Se não há lugar em nossa vida para Jesus nascer a cada dia, nunca O sentiremos como nosso verdadeiro e único Salvador. É por isso que o apóstolo Paulo afirma que, a mesma graça de Deus, que veio trazer a salvação para todos os homens, “nos ensina a abandonar a impiedade e as paixões mundanas e a viver neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade” (Tt 2,12). Abraçar a salvação que o Pai nos oferece na pessoa de seu Filho Jesus implica em modificar aquilo que em nossa vida está em contradição com o Evangelho, que “é força de Deus para a salvação para todo aquele que crê” (Rm 1,16).
“Para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9,1). Essas palavras do profeta Isaías, escritas oito séculos antes de Jesus nascer, foram retomadas por Zacarias, pai de João Batista, ao anunciar o nascimento de Jesus como “Sol nascente que nos veio visitar, para iluminar os que se encontram nas trevas e na sombra da morte estão sentados” (Lc 1,78-79). Nós não podemos celebrar o Natal ignorando tantas pessoas à nossa volta que se encontram nas trevas e na sombra da morte: idosos esquecidos por seus próprios familiares, inúmeros irmãos nossos que se encontram desempregados, pessoas enfermas em suas casas ou nos hospitais, adolescentes e jovens que se encontram debaixo da sombra das drogas, famílias feridas pela separação ou pela violência do mundo moderno, inúmeras pessoas massacradas pelo terrorismo etc.
Todo Natal traz consigo um apelo: para que aqueles que se encontram nas trevas e na sombra da morte sejam visitados pela luz de Cristo, para que as botas de tropa de assalto e os trajes manchados de sangue sejam queimados e devorados pelas chamas (cf. Is 9,4), é preciso que cada um de nós se torne portador da luz de Cristo, portador da chama do seu amor pela humanidade, amor capaz amar até o fim, de curar toda e qualquer ferida, de derrubar muros e construir pontes, de procurar e salvar o que estava perdido; numa palavra, amor capaz de fazer passar da morte para a vida. Então, todo ser humano saberá que nasceu para si um Salvador, que é o Cristo Senhor. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

DEUS NÃO DESISTE DO SER HUMANO

Missa do 4º. dom. do advento – Palavra de Deus: 2Samuel 7,1-5.8b-12.14a.16; Romanos 16,25-27; Lucas 1,26-38.


No último dia 16, nove integrantes do Talibã, movimento fundamentalista islâmico, entraram numa escola do Paquistão administrada pelo Exército e mataram 132 crianças e adolescentes. O porta-voz do Talibã justificou o ataque, dizendo: “Queremos que eles (os pais) sintam a nossa dor”. Nós não precisamos visitar o Oriente Médio para nos dar conta do quanto o ser humano tem se desumanizado, seja por causa das injustiças sociais, da luta pelo poder ou do fanatismo religioso. Aqui mesmo no Brasil, devido à violência, à injustiça, à impunidade e à corrupção, é cada vez maior o número de pessoas que dizem não acreditar mais no ser humano.  
Embora a própria Escritura afirme que Deus também chegou ao ponto de ter se arrependido de criar o ser humano (cf. Gn 6,6), porque “viu que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo projeto de seu coração” (Gn 6,5), o Evangelho deste 4º. domingo do advento narra o momento na história da salvação em que Deus decide enviar seu Filho ao mundo, permitindo que Ele se fizesse pessoa humana no seio de Maria. Se por estar ferido e querer se vingar o ser humano quer que o seu semelhante sinta a sua dor, Deus escolheu se fazer humano por dois motivos: primeiro, para mostrar que Ele veio redimir o ser humano da sua dor; segundo, porque Ele quis assumir em Si mesmo a dor de cada ser humano. Decidindo gerar seu Filho no ventre de Maria, Deus revela que nunca desistirá do ser humano, quem quer que seja ele.
“O anjo Gabriel foi enviado por Deus... a uma virgem” (Lc 1,26). A iniciativa de salvar a humanidade é sempre de Deus, e o caminho que Ele escolhe para realizar a salvação é sempre surpreendente: uma virgem se tornará mãe, sem ter tido relação com um homem. A ausência do homem é proposital: Deus quer deixar claro que a obra é d’Ele e não nossa. Por isso, logo que assumiu seu ministério, o Papa Francisco disse que nós precisamos nos deixar surpreender por Deus. Ele entra em nosso cotidiano, como entrou no de Maria, e sua proposta provoca uma reviravolta em nossa vida, em nossos planos humanos, limitados pela visão estreita que temos de nós mesmos e da vida.
Diante da perturbação de Maria com essa visita inesperada de Deus em sua vida, o anjo lhe diz: “Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus” (Lc 1,30). O medo tem tomado cada vez mais conta do nosso coração. O termômetro do medo se chama ansiedade, uma ansiedade que surge em nós sempre que, consciente ou inconscientemente, nos sentimos ameaçados por algum perigo, real ou imaginário. Sentimos medo do ser humano, medo do mundo em que vivemos, medo do futuro, medo de fracassarmos, de não darmos conta da vida. Mas o Evangelho diz que Deus está conosco, que Ele acredita em nós, que Ele não desistiu da humanidade, mas quer salvá-la a partir da nossa abertura à Sua graça.
            “Eis que conceberás e darás à luz um filho...” (Lc 1,31). Apesar da ideologia do aborto, a qual afirma que cabe à mulher decidir sobre o seu corpo – como se o filho que ela está gerando fosse um órgão do seu corpo e não uma vida, uma pessoa; apesar da esterilidade; apesar de tantos filhos desejados, mas nunca gerados e de tantos filhos gerados, mas não desejados; apesar do medo de se gerar filhos num mundo como o nosso; apesar de todos os entraves físicos, psicológicos ou emocionais que estancam a vida dentro de nós, Deus acredita em nossa fecundidade; Ele sabe que somos capazes de ir além, de transcender o momento presente e de nos tornar grávidos de um futuro que ainda não se pode ver, mas que se deve esperar.
“O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (Lc 1,35). Quanto mais nos sentimos cobertos pela sombra do terrorismo, da violência, da injustiça e da maldade dos homens, mais precisamos nos refugiar em Deus, como faz o salmista: “Piedade de mim, ó Deus, tem piedade de mim, pois eu me abrigo em ti; eu me abrigo à sombra de tuas asas, até que passe o perigo” (Sl 57,2). O Espírito Santo é espírito de força, de fecundidade, de luz, de alegria, de vida. Ele nos faz experimentar que, verdadeiramente, “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37). Ele nos faz cantar: Por que tenho medo, se nada é impossível para ti? (3x) Por que ficar triste, se nada é impossível para ti? (3x) Nada é impossível para ti! (2x) Porque duvidar, se nada é impossível para ti? (3x) Nada é impossível para ti! (2x) (Adriana, Nada é impossível para ti).
            Enfim, se a iniciativa é de Deus, a resposta é nossa. E Maria responde: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!” (Lc 1,38). Nós estamos aqui como servos do Senhor ou como pessoas que querem se servir do Senhor? Quando ouvimos a sua Palavra, esperamos até que ela se cumpra em nós? Permitimos que a Palavra se cumpra em nós? O Pai poderia ter enviado seu Filho já adulto, mas escolheu este longo caminho da Encarnação: a fecundação, a gestação, o parto etc., até que Jesus se tornasse adulto e começasse o anúncio do Evangelho. Todo esse longo e demorado processo é um questionamento para cada um de nós: Eu confio no tempo de Deus para mim? Deixo-me surpreender por Ele? O que fala mais alto em mim: a crença de que a humanidade não tem mais jeito ou a certeza de que Deus nunca desiste do ser humano? Permito que o Espírito Santo me fecunde com a Sua graça? Aceito ficar debaixo da Sua sombra o tempo que for necessário? Acolho a Palavra de Deus de modo a esperar nela e a permitir que se realize em minha vida

                                            Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

MAIS PERTO DA SUA VERDADE, MAIS PERTO DA SUA ESSÊNCIA

Missa do 3º. dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 61,1-2a.10-11; 1Tessalonicenses 5,16-24; João 1,6-8.19-28.

“Quem é você?... O que você diz de si mesmo?” (Jo 1,19.22). As mesmas perguntas que os sacerdotes e levitas dirigiram a João Batista hoje são dirigidas a cada um de nós: ‘Quem é você?’ ‘Como você se vê?’ ‘O que você pensa de si mesmo(a)?’ Porém, considerando que nenhuma pessoa nasce pronta, mas vai se fazendo a cada dia, essas perguntas se desdobram em outras: ‘O que você tem se tornado?’ ‘Você se tornou a pessoa que gostaria de ser?’ ‘Você é feliz em ser quem é?’ ‘Você é a mesma pessoa dentro e fora de casa, dentro e fora da Igreja, quando está com os outros e quando está só?’.
Antes de João Batista ser questionado sobre a sua identidade, uma afirmação bíblica foi feita a respeito dele: “um homem enviado por Deus” (Jo 1,6). Esta afirmação diz que a nossa existência não é fruto do acaso. Você e eu existimos porque fomos enviados por Deus. Mas, enviados para quê? “Ele veio... para dar testemunho da luz, para que todos chegassem à fé por meio dele” (Jo 1,7). Cada um de nós é único e está no mundo para ser um sinal único que aponta para a luz, que é Cristo, para que as outras pessoas que convivem conosco possam se encontrar com a Verdade, que é o próprio Cristo, Verdade que liberta o ser humano das mentiras do mundo e do seu próprio autoengano: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).
Se, por acaso, neste momento você se pergunta: ‘Por que estou aqui, nesta casa, neste local de trabalho, nesta escola ou faculdade, nesta cidade etc.?’ lembre-se: é para que as pessoas que convivem com você possam chegar à fé, possam encontrar-se com a verdade de Cristo que liberta da mentira e do autoengano, e faz com que cada ser humano aproxime-se da sua verdadeira essência.
Antes de responder quem ele era, João precisou tomar consciência de quem ele não era: “Eu não sou o Messias” (Jo 1,20). Quantos de nós desconhecemos nossa própria essência, e nos vemos a partir dos olhos dos outros: dos pais, dos amigos, do pregador, da mídia etc.? Quantos têm uma imagem distorcida de si, ou no sentido de engrandecer-se, ou no sentido de diminuir-se? Quantos se definem a partir de um aspecto da vida, sem considerar o todo? Nós começamos a descobrir nossa verdadeira identidade quando começamos a ter coragem de questionar a ideia errada que temos de nós mesmos, ou que os outros sempre tiveram de nós: ‘Eu sou o que eu quero ser ou sou o que os outros querem que eu seja?’ ‘O que determina o rumo da minha vida é o meu passado ou as escolhas que eu faço no meu presente?’ ‘Eu sou doente ou estou doente?’ ‘Eu sou uma pessoa problemática ou estou com problemas, com os quais preciso lidar?’.
“O que você diz de si mesmo(a)?” A nossa cura, a nossa libertação, a nossa paz e a nossa alegria dependem da resposta a esta pergunta tão fundamental, pergunta que nos amedronta e diante da qual fazemos de tudo para não nos colocar... Mas esta pergunta quer apenas nos ajudar a dar passos na direção da nossa verdadeira essência. Talvez você se pergunte: ‘Qual é a minha essência?’ ‘Qual é a minha verdade?’ A resposta está aqui: quanto mais você se sente alegre e em paz com as suas atitudes e com as suas escolhas, mais você está próximo(a) da sua essência, da sua verdade.  
João entendeu qual era a sua essência, a sua verdade: “Eu sou a voz...”. Ser voz é ser canal para que a Palavra possa chegar aos ouvidos e ao coração dos que precisam ouvi-La. Jesus é, por excelência, o Enviado do Pai, o Ungido do Senhor, Aquele que veio trazer “a boa notícia aos humildes, curar as feridas da alma, pregar a redenção para os cativos e a liberdade para os que estão presos” (Is 61,1). Mas você e eu somos cristãos, ungidos pelo mesmo espírito de Cristo. Apesar das nossas imperfeições, precisamos fazer o que está ao nosso alcance para que as pessoas cheguem à fé por meio de nós (cf. Jo 1,7).
Terminemos esta reflexão considerando alguns apelos do apóstolo Paulo para nós: “Não apagueis o espírito!” (1Ts 5,19). O Espírito de Deus é o “Espírito da Verdade” (Jo 14,17; 15,26; 16,13). Não apagá-Lo significa não nos afastar da nossa verdade, por mais que nos custe permanecer nela. Não apagar o espírito significa também não esfriar em nossa vida de oração. “Examinai tudo e guardai o que for bom” (1Ts 5,21). A Verdade do Espírito deve ser o critério para nos guiar em nossas escolhas e decisões, a fim de nos mantermos fiéis à nossa essência. “Afastai-vos de toda espécie de maldade!” (1Ts 5,22), não apenas daquilo que é mal aos nossos olhos, mas sobretudo daquilo que é mal aos olhos de Deus. “(...) que tudo aquilo que sois – espírito, alma, corpo – seja conservado sem mancha alguma para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo!” (1Ts 5,23). Que todo o nosso ser permita-se ser curado, redimido e liberto pelo Espírito de Deus, a fim de irradiarmos a luz da sua Verdade aos que convivem conosco.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O CAMINHO EXISTE, MAS PRECISA SER DESOBSTRUÍDO

Missa do 2º. dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 40,1-5.9-11; 2Pedro 3,8-14; Marcos 1,1-8.

            Quantas vezes você já se encontrou numa rua sem saída? Quantas vezes, no labirinto da vida, você pensou que havia achado a saída, mas se deparou com uma nova parede? Talvez você tenha desistido de caminhar, porque chegou à conclusão de que não existe saída ou possibilidade de mudança, não existe mais caminho a ser percorrido. No entanto, neste segundo domingo do advento, a Palavra do Senhor afirma que existe um caminho para a cura e para a libertação; um caminho para o reencontro e para a restauração; um caminho para a mudança e para a transformação. Existe um caminho pelo qual Deus pode vir a nós, mas este caminho deve ser preparado por nós.
            “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada do nosso Deus. Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas” (Is 40,3-4a). Deserto e solidão são situações onde temos que nos deparar conosco mesmos, reconhecendo que o mal e a perversão também moram em nós. Deserto e solidão são situações onde não podemos fugir de nós mesmos, daquela verdade que à primeira vista parece insuportável, mas que temos que aceitar que é a nossa verdade. Deserto e solidão representam tudo aquilo com o qual eu devo lidar, eu e não outra pessoa.
            Para uma geração como a nossa, que tem se habituado não tanto a buscar Deus, mas apenas as consolações de Deus, Isaías nos lembra que a consolação só é alcançada depois do confronto com a desolação. O nosso encontro com Deus só se dá quando temos a coragem de descer ao porão da nossa casa interior, visitar o deserto da nossa desolação e suportar o medo, o vazio e a dor da nossa solidão. Por quê? Porque a nossa ferida é profunda, e não há outra forma de Deus curá-la, a não ser fazendo uma intervenção “agressiva”, dolorosa, em nós.  
Isaías nos propõe lançar um olhar realista para a estrada da nossa vida. Quantos vales foram abertos e quantos montes foram erguidos nela? Vales são buracos que foram se abrindo e se tornando profundos em nossa vida porque, nos nossos relacionamentos, só retiramos, consumimos, usufruímos e não tivemos o cuidado de repor, de preservar, de revitalizar a relação. Quantos vales hoje separam marido e mulher, pais e filhos, nós e o próximo, nós e Deus? Já os montes são tudo aquilo que pedia para ser enfrentado, mas nós deixamos que se acumulasse dentro de nós – raiva, ódio, ira, mágoa, ressentimento, sede de justiça etc. – e tudo isso acabou por formar um monte que não apenas nos separa do outro, mas nos impede inclusive de vê-lo.  
Para que haja um verdadeiro encontro entre o Senhor e nós, é necessário pôr em ordem a própria vida, endireitando o que está torto e alisando o que está áspero (cf. Is 40,4b). Alguém nasce torto? Alguém nasce áspero? Não. Nós podemos nos tornar tortos ou ásperos pela forma como lidamos com os acontecimentos que marcaram a nossa história de vida. A tortuosidade começa a surgir quando abandonamos a orientação da Palavra de Deus, quando desistimos de pagar o preço da fidelidade e decidimos deixar a vida nos levar para onde ela quiser. A aspereza, por sua vez, é a consequência do fato de termos nos recusado a nos deixar conduzir pelo Espírito de Deus e passado a nos deixar arrastar pela vontade cega do nosso próprio ego, que nos embrutece.  
João Batista foi enviado por Deus como mensageiro, para preparar a humanidade para a primeira vinda de Jesus. Ouvindo João, as pessoas confessavam os seus pecados e eram batizadas. Mas o próprio João disse que Jesus viria realizar não mais um batismo com água, mas o batismo como o Espírito Santo. Se a água pode apenas nos lavar de uma sujeira exterior, o fogo do Espírito tem o poder de penetrar nas profundezas do coração humano e purificá-lo a partir de dentro (cf. Ml 3,1-3). A imagem deste fogo foi mencionada por Pedro ao falar da segunda vinda de Cristo: “(...) os elementos, devorados pelas chamas, se dissolverão, e a terra será consumida com tudo o que nela se fez” (2Pd 3,10).
Todas as estruturas injustas que produzem opressão, sofrimento, humilhação e morte serão consumidas pelo fogo do julgamento de Deus, realizado na pessoa de seu Filho Jesus, que vem para cumprir a promessa do Pai de criar “novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). Por isso, a cada um de nós é dirigido este apelo: não abandonar a esperança na promessa de Deus; se ela ainda não se cumpriu é porque Deus está usando de paciência, pois ele não deseja que alguém se perca, mas quer que todos venham a se converter (cf. 2Pd 3,9). O importante é manter o nosso esforço diário em voltar para o Senhor o nosso coração, esforçando-nos por viver uma vida santa, piedosa, pura e pacífica. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi


quinta-feira, 27 de novembro de 2014

ESPERAR N'ELE E POR ELE

Missa do 1º. dom. do advento. Isaías 63,16b-17.19b; 64,2b-7; 1Coríntios 1,3-9; Marcos 13,33-37.

O tempo do Advento, que iniciamos hoje, além de nos preparar para celebrarmos o nascimento do nosso Salvador, Jesus Cristo, quer nos preparar para a sua segunda vinda, pois a Escritura diz: Cristo “virá uma segunda vez... àqueles que o esperam para lhes dar a salvação” (Hb 9,28). Por isso, o Advento se traduz por uma espera: esperar Aquele que vem. O problema é que nós desaprendemos esperar. Quando temos de esperar, ficamos frustrados. Mas esperar tem a ver com esperança. Nós esperamos no Senhor e pelo Senhor: “Esperamos n’Ele, até que nos salvou” (Is 25,9). Por isso, se você já desistiu de esperar em Deus e por Deus, desperte a sua esperança a partir desta declaração de fé do profeta Isaías: “Nunca se ouviu dizer... que um Deus, exceto tu, tenha feito tanto pelos que nele esperam” (Is 64,3).
A atitude da espera em Deus e por Deus foi descrita por Jesus no Evangelho usando a imagem do porteiro. É o porteiro quem deve abrir a porta para o dono da casa, assim que ele chegar. Além disso, na ausência do dono da casa, é o porteiro quem decide quem ou o quê entra na casa. A casa é um símbolo em aberto: ela pode significar nós mesmos, nosso corpo, nossa consciência (pensamentos), nosso coração (sentimentos); ela pode significar também nossa família, nosso local de trabalho, o meio ambiente etc. Uma vez que você é o porteiro, cabe perguntar-se: Para o quê eu tenho fechado a porta da minha vida e precisaria abri-la? Para o quê eu tenho aberto a porta da minha vida e precisaria fechá-la?’
            A responsabilidade do porteiro é vigiar a casa que está sob os seus cuidados. Vigiar supõe não dormir. Dormir, por sua vez, significa anestesiar a consciência, acomodar-se, distrair-se, fechar-se no próprio individualismo, não dar-se conta do perigo que ronda sua própria vida, abandonar o caminho da justiça, da coerência, da fidelidade ao Evangelho de Cristo. Dormir é fazer corpo mole quanto àquilo que diz respeito à sua própria salvação.  
O Deus em quem esperamos e a quem aguardamos é, segundo o profeta Isaías, “nosso pai” e “nosso redentor” (cf. Is 63,16b). A questão é: quem sente necessidade de um pai? Quem sente necessidade de um redentor? Para quantas pessoas, a figura do pai é desconhecida ou negativa? Quantos já se habituaram a viver a vida sem pai e não sentem necessidade alguma de um? Para quê precisamos de um redentor? Precisamos ser redimidos do quê? Muitos não esperam mais em Deus e por Ele porque acharam melhor aprender a sobreviver sozinhos e a contar unicamente consigo mesmos...
Já na sua época, o profeta Isaías constatou: “Não há quem invoque teu nome (abandono da oração), quem se levante para encontrar-se contigo (abandono da fé – deixar de buscar a Deus)” (Is 64,8). Mas no coração de toda pessoa que sente a necessidade de um pai e de um redentor, uma súplica não aceita ser abafada ou silenciada: “Ah! se rompesses os céus e descesses!” (Is 63,19b.). O Advento nos desafia a redobrar a nossa oração, a nossa busca por Deus, suplicando que os céus se abram e derramem a presença de Deus e da sua salvação no mundo, em cada casa, em cada ambiente de trabalho, no coração de cada ser humano, onde quer que haja guerra, violência, injustiça, doença, dependência química, falta de entendimento, desestruturação familiar, desemprego, fome, ideia de suicídio etc.
Deus faz pelos que n’Ele esperam (cf. Is 64,3). Deixar de esperar em Deus significa sair das Suas mãos, trancar a porta para que Ele não entre, desconectar o nosso coração do Seu, desistir de ficar on line, no que diz respeito à nossa espiritualidade. Deus vem, nos lembra o profeta Isaías, mas vem “ao encontro de quem pratica a justiça com alegria” (Is 64,4), de quem assume uma postura justa perante toda e qualquer circunstância, e não apenas quando está sendo visto, observado ou vigiado. Deus vem e se deixa encontrar por quem caminha nos Seus caminhos, com o coração e a consciência voltados para Ele.
Além de ser um tempo de espera, o Advento também é tempo de conversão, no sentido de reconhecer e nos dispor a rever toda atitude nossa que não deixa a vida se renovar em nós, à nossa volta e no mundo em que vivemos: “Nós pecamos..., nos tornamos imundície..., murchamos como folhas, e nossas maldades nos empurram como o vento” (Is 64,4b.5). Essa estranha sensação que temos de que o nosso mundo (ou casa, local de trabalho, igreja, vida) é manipulado, sacudido e jogado de um lado para outro por uma Mão invisível, que parece ter o prazer de nos jogar contra a parede, como se fôssemos uma bola de papel amassado, tem nome, endereço, RG, CPF, e-mail, telefone fixo, celular etc.: ela se chama “nossas maldades”
“Assim mesmo”, diz o profeta Isaías, apesar de nossa teimosia em assumirmos um comportamento maléfico para nós mesmos, para os que convivem conosco e para o nosso planeta; apesar de insistirmos em nos bater contra uma parede de concreto, nos esquecendo de que somos frágeis como um vaso de barro, temos um Deus a quem suplicar e por quem esperar como pai e redentor: “Assim mesmo, Senhor, tu és o nosso pai, nós somos barro; tu, nosso oleiro, e nós todos, obra de tuas mãos” (Is 64,7).
Portanto, neste início de Advento, nos coloquemos como barro nas mãos do nosso Oleiro... Quero colocar em Tuas mãos a minha vida, me deixar remodelar como um vaso do oleiro. O meu coração ponho hoje em Teu altar. Minha vida está pronta pra recomeçar ao lado Teu. Ser todo Teu, inteiro Teu. Quero ajuntar cada pedaço do meu ser. Ser todo Teu, inteiro teu. Quero Te dar os meus pedaços para que um vaso novo eu possa ser! (bis) (Música “Todo Teu”, de Eros Biondini.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

ENXERGAR PARA ALÉM DA TELA DO CELULAR

Missa de Cristo Rei – Palavra de Deus: Ezequiel 34,11-12.15-17; 1Coríntios 15,20-26.28; Mateus 25,31-46.

            “E nossa história não estará pelo avesso assim, sem final feliz...” (Legião Urbana, Metal contra as nuvens). Chegamos a mais um final de um ano litúrgico. Todo final é carregado de esperança. Quando lemos um livro ou assistimos a um filme ou novela, esperamos que o final nos traga respostas, decifre o mistério, faça justiça – no sentido de que a verdade prevaleça sobre a mentira, a luz prevaleça sobre a escuridão, a morte prevaleça sobre a vida, o bem prevaleça sobre o mal.  
            Se agora vemos as coisas de maneira confusa, no final veremos face a face; se agora as peças do quebra-cabeça da vida estão espalhadas, no final elas se encaixarão perfeitamente umas nas outras; se agora temos que lidar com muitos desencontros, no final haverá o grande encontro; se agora tudo parece estar misturado – a verdade com a mentira, a justiça com a injustiça, o bem com o mal – no final haverá uma separação: “Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros...” (Mt 25,32).
            Nesta cena do Evangelho, conhecida como julgamento final, separar significa fazer justiça: “Eu farei justiça entre uma ovelha e outra” (Ez 34,17). Ainda que estejamos acostumados com a injustiça e a impunidade, a Sagrada Escritura garante que, no final, “todos nós compareceremos perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal” (2Cor 5,10). Sim, mas o que significa fazer o bem ou fazer o mal numa sociedade como a nossa, onde os valores estão invertidos, onde aquilo que é o bem passa a ser rotulado de mal, e aquilo que é o mal passa a ser propagandeado como sendo o bem? (cf. Is 5,20).
            Para Jesus, fazer o bem ou fazer o mal se traduz concretamente na forma como nos envolvemos com a dor humana, isto é, se somos solidários ou indiferentes com quem sofre: “Vinde, benditos de meu Pai!... Pois eu estava com fome e me destes de comer... Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que fizestes!... Afastai-vos de mim, malditos!... Pois eu estava com fome e não me destes de comer... Todas as vezes que não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes!” (Mt 25,34.35.40.41.42.45).   
            O envolvimento com a dor alheia começa pelos olhos, chega ao coração e se concretiza nas mãos (atitudes). Tanto os que estavam à direita como os que estavam à esquerda de Jesus lhe perguntaram: “Quando foi que te vimos com fome...?” (Mt 25,37.44). A nossa geração se permite ser afetada pela dor alheia? Como nos envolver com a dor de quem está ao nosso lado, se nossos olhos estão, a maior parte do tempo, fixos na tela do nosso celular? Se é verdade que o que os olhos não veem o coração não sente, como o nosso coração pode ser afetado pela dor do outro, se a única coisa que os nossos olhos veem são os nossos “selfies”*?
            Numa época em que a prioridade dos pastores (líderes políticos e religiosos) deixou de ser cuidar do rebanho e passou a ser cuidar de si, inclusive às custas do rebanho, Deus disse: “Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas... vou resgatá-las de todos os lugares em que foram dispersadas num dia de nuvens e escuridão...” (Ez 34,11.12). As nuvens e a escuridão do individualismo e do narcisismo nos fecham em nós mesmos, nos fazem girar doentiamente em torno dos nossos caprichos e desejos, enquanto aqueles que a vida confiou aos nossos cuidados vão se dispersando pelos descaminhos deste mundo. Não é por acaso que aumenta o número de pessoas que se sentem perdidas, extraviadas, quebradas, doentes e injustiçadas...
            Prestemos atenção aos verbos que traduzem a atitude de Deus para com a dor humana: procurar, reconduzir, enfaixar, fortalecer, vigiar, fazer justiça... Ontem, essas palavras se encarnaram na pessoa de Jesus Cristo. Hoje, nós somos chamados a encarná-las em nossa vida de cristãos, acolhendo este convite de Deus: “Preciso das tuas mãos para continuar a abençoar; preciso dos teus lábios para continuar a falar; preciso do teu corpo para continuar a sofrer; preciso do teu coração para continuar a amar; preciso de ti para continuar a salvar” (Michael Quoist, Oração do sacerdote numa tarde de domingo). Na medida em que cada um de nós assumir a sua vocação de batizado, de filho do Pai que comunga da dor humana e irmão do Filho que está presente em cada ser humano que sofre, poderemos colaborar para que a nossa história não esteja mais pelo avesso assim, sem final feliz...   
           
* Selfie significa autoretrato, foto de si mesmo(a). 

                                                                       Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

DESENTERRE SEU TALENTO!

Missa do 33º. dom. comum. Palavra de Deus: Pr 31,10-13.19-20.30-31; 1Tessalonicenses 5,1-6; Mateus 25,14-30.

Muitas vezes ouvimos dizer que os consumidores estão mais exigentes, ou que o mercado exige maior qualificação profissional, ou que as empresas estão exigindo resultados, eficiência, metas etc. EXIGÊNCIA tem se tornado, de fato, uma das palavras mais usadas no mundo atual, palavra que ecoa dentro de nós não só como “cobrança”, mas às vezes também como “ameaça”: se eu não alcançar o resultado, se eu não atingir a meta exigida, serei punido(a) ou dispensado(a).
Da mesma forma, o Evangelho que acabamos de ouvir parece estar em pleno acordo com o mercado, exigindo de nós a produção de resultados, o alcance de metas, a multiplicação dos talentos que recebemos e em relação aos quais precisaremos um dia prestar contas a Deus. Mas, o que é um talento? Na época de Jesus, o talento era uma moeda que valia mais ou menos dois quilos de ouro, segundo a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). Jesus usa o talento de forma simbólica: ele representa todo e qualquer tipo de dom que Deus concedeu a cada ser humano. Dessa forma, o apóstolo Paulo pergunta: “O que é que você possui que não tenha recebido (de Deus)?” (1Cor 4,7).
O dom não é algo gerado ou produzido por nós, mas algo recebido de Deus, algo que Deus nos confia para ser trabalhado, cultivado, desenvolvido, amadurecido. Portanto, a primeira intenção de Jesus é nos tornar conscientes dos dons que Deus nos deu, da capacidade que temos de crescer, de nos superar, de transcender, de fazer o bem a nós mesmos, aos outros e ao mundo à nossa volta, como aparece na imagem da mulher forte, mencionada no livro dos Provérbios: “(...) com habilidade trabalham as suas mãos... Abre as suas mãos ao necessitado e estende suas mãos ao pobre” (Pr 31,19-20).
Enquanto muitas pessoas ignoram seus próprios talentos, isto é, desconhecem sua força e seu valor, outras avaliam o talento dos outros pela aparência do pacote que contém o talento. E aqui há surpresa e decepção. Surpresa porque, não poucas vezes, os dois quilos de ouro estão embrulhados num jornal – é o caso daquelas pessoas para as quais não damos importância e que nos surpreendem com atitudes de educação, de respeito, de inteligência, de sensibilidade, de honestidade, de caráter, de retidão de consciência, de humanidade etc. Decepção porque, algumas vezes, o pacote é encantador e enche os nossos olhos, mas quando o abrimos, dentro dele há apenas dois quilos de bijuteria e nada de ouro. Como disse o livro dos Provérbios, “o encanto é enganador e a beleza é passageira” (31,30).
O apóstolo Paulo nos faz um alerta: “(...) não durmamos como os outros, mas sejamos vigilantes e sóbrios” (1Ts 5,6), o que significa: vejamos se estamos desenvolvendo todo o nosso potencial (vigilância). Além disso, estejamos sóbrios, acordados, conscientes de quem somos e do bem que podemos fazer ao outros (sobriedade). Trata-se, portanto, de trabalhar nossos talentos e de fazê-los crescer, como agiram os dois primeiros servos da parábola contada por Jesus (cf. Mt 25,16-17).
Quando assumimos a tarefa de nos trabalhar, de colaborar com o nosso crescimento e amadurecimento, de forma a nos tornarmos melhores e ajudarmos a melhorar o mundo à nossa volta, experimentamos uma profunda alegria dentro de nós, uma alegria que vem de Deus, que nos vê caminhar na direção daquilo que Ele mesmo nos propôs como meta de crescimento humano e espiritual (cf. Mt 25,21.23). O triste é que algumas pessoas escolhem passar pela vida sem nada fazer, querendo apenas consumir e usufruir. O máximo de esforço que fazem é cavar um buraco e enterrar o talento que receberam. Dessa forma, cada um precisa se perguntar: Por que escondi o meu talento? Por que o enterrei? Onde o enterrei? Quantos talentos meus estão enterrados debaixo da raiva, da mágoa, do ressentimento, da desnecessária espera do reconhecimento e do aplauso dos outros?
“Como você foi fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais” (Mt 25,21.23). Jesus deixa claro que trabalhar, no sentido de multiplicar os talentos, é uma questão de ser fiel a si mesmo, à própria verdade, à própria essência. Não se trata de nos tornarmos uma outra pessoa, mas de nos tornarmos a pessoa que fomos chamados a ser quando Deus nos criou. Como diz a música Tocando em frente (Almir Sater): “Cada um de nós compõe a sua história, e cada ser em si carrega o dom de ser capaz e ser feliz”.
O servo que enterrou no chão o talento que recebeu de Deus foi chamado de “mau e preguiçoso” (Mt 25,26). Ser uma pessoa má não se restringe simplesmente em fazer o mal, mas também em não fazer o bem que tem condições de fazer. Olhe à sua volta. Olhe para dentro da sua igreja ou comunidade: o quanto ela poderia fazer a mais pelo Reino e pelo bem de muitas pessoas, mas não faz porque nela há muitos que, seja por preguiça, comodismo ou individualismo, não fazem o bem que poderiam fazer? Olhe para a sua rua, bairro ou cidade: quanta sujeira, quanto descuido com o meio ambiente, quanto desperdício de água e de energia, quantos bens públicos depredados porque você também está se deixando contaminar pela doença da maldade e da preguiça? Olhe para as pessoas à sua volta: quantas delas você despreza e ignora porque, apesar de serem verdadeiras pepitas de ouro, estão “embrulhadas” num jornal?
Uma palavra final: trabalhar para multiplicar os talentos que recebemos de Deus é algo que nos custa, e às vezes nos custa muito. Se você está cansado(a), desiludido(a) e acha que não vale mais a pena cultivar os verdadeiros valores na sua vida, reflita sobre essas palavras de Martin Valverde, na música SEGUE: Custa para você poder seguir? Custa para você? Tuas forças já não dão? E tua fé, já não pode mais? Segue! Embora sinta que já não consegue mais, segue! Embora já não Me sinta junto de você, segue! Você sabe a Quem está servindo; verá ao final uma linda luz, o rosto de Jesus que vem. Ele traz uma coroa para você, por ter seguido, por ter chegado. Segue, vamos! Segue orando! Segue! Segue n’Ele confiando! Tua oração Ele já olhou, apesar da tua pequena fé. Embora você sinta que está se afogando, segue irmão! Falta pouco para ver tua obra terminar, para que você veja tua fé vencer e tuas lágrimas serem convertidas em alegria. Você chegará! Você chegará! Segue! (minha tradução)
 
 Pe. Paulo Cezar Mazzi


sexta-feira, 7 de novembro de 2014

O LUGAR ONDE DEUS ESCOLHEU HABITAR

Missa da Basílica do Latrão. Palavra de Deus: Ezequiel 47,1-2.8-9.12; 1Cor 3,9c-11.16-17; João 2,13-22.

Hoje a nossa Igreja convida os católicos do mundo todo a se voltarem para a Basílica do Latrão, em Roma. A partir do século IV, esta Basílica se tornou a primeira catedral do mundo e por muito tempo foi considerada a Igreja-mãe de Roma. Ainda que as comunidades católicas estejam espalhadas por diversas partes do mundo, a Basílica do Latrão nos lembra que todos nós somos pedras vivas (cf. 1Pd 2,5) da única Igreja fundada sobre os apóstolos e que tem Jesus Cristo como pedra principal (cf. Ef 2,22). A expressão “pedra viva” nos fala, primeiramente da firmeza da nossa fé (imagem da pedra) no único Salvador dos homens, Jesus Cristo, o Filho do Deus vivo. Em segundo lugar, somos pedras “vivas” na medida em que nos tornamos habitação de Deus por meio do Espírito Santo (cf. Ef 2,22).
Quando Salomão construiu o Templo em Jerusalém, se encheu de orgulho e disse: “Sim, eu construí para ti uma morada, uma residência em que habitas para sempre” (1Rs 8,13). Pobre Salomão! Pobres de nós, que nos orgulhamos quando conseguimos reformar ou construir uma igreja, achando que aquela construção ‘garante’ a presença de Deus para sempre no meio de nós! Pobres de nós, padres, que às vezes ficamos fechados em nossas igrejas, agarrando-nos a 1 ovelha que quis ficar conosco, ao invés de termos disposição e coragem de sair das nossas igrejas para ir atrás das 99 ovelhas que se afastaram e se extraviaram, por não terem feito uma verdadeira experiência de Deus enquanto estavam dentro das nossas igrejas.
A construção de templos se multiplica diariamente em nosso país, desde os “templos” que funcionam em garagens de casas particulares até os “mega templos” que abrigam multidões de pessoas. A presença dessa multiplicidade de “templos” é ambígua: por um lado, aparenta ser uma presença de Deus onde as igrejas históricas não conseguiram – ou não tiveram interesse – em chegar; por outro lado, essa multiplicidade está destruindo a imagem de Deus no sacrário da consciência humana, na medida em que a Sagrada Escritura é ali banalizada, manipulada, distorcida e colocada a serviço dos sonhos de consumo dos que frequentam tais “templos”, sonhos que jamais se tornarão realidade porque Deus nunca aceitou ser um ídolo manipulado pela pregação de quem quer que seja.
Segundo o profeta Ezequiel, Deus quer que a Sua presença no meio dos homens seja como um templo, do interior do qual sai um rio de água que, por onde passa, converte a morte em vida: “Aonde o rio chegar, todos os animais que ali se movem poderão viver... haverá vida aonde chegar o rio. Nas margens junto ao rio... crescerá toda espécie de árvores... Seus frutos servirão de alimento e suas folhas de remédio” (Ez 47,9.12). Essa imagem de uma água que sai do Templo e cura quem está fora dele contrasta com a reportagem de capa da revista evangélica Ultimato, intitulada: “A igreja está tão doente quanto o mundo” (setembro-outubro de 2013, edição 344). A revista constata que as igrejas, na sua maioria, adotaram a linguagem do mundo para ser verem cheias de “fiéis”, e estão tendo que abrir mão de parte de suas doutrinas, se desejam que esses mesmos “fiéis” permaneçam dentro delas.
Que tipo de água as igrejas estão oferecendo para seus fiéis: uma água que eles PREFEREM beber ou uma água que eles PRECISAM beber? Que tipo de rio escorre das nossas igrejas: um rio que leva vida e ou que produz morte naquele que dele bebe? Quantas pessoas chegam doentes a uma igreja e encontram no sacerdote, no pastor ou no líder da comunidade alguém tão ou mais doente do que elas, alguém que se aproveita das suas feridas e da sua carência para lhes oferecer não uma cura, mas um momento de compensação, por meio de carícias ou de uma relação sexual, atitude que abre uma ferida ainda mais profunda na pessoa? Sim! Cabe ressaltar que este tipo de atitude algumas vezes também se dá em consultórios de diversos profissionais da área da saúde.
Para a Sagrada Escritura, a verdadeira habitação de Deus é o corpo de cada ser humano (cf. 1Cor 3,16-17; Jo 2,21). Sabemos que um corpo sadio depende de uma mente sadia. Quantas pessoas estão com o corpo definhado, caminhando pelas ruas como “zumbis”, porque sua mente foi esburacada pelo crack? O que tem adoecido a mente de tantos adolescentes e jovens a ponto de sentirem prazer em fotografar ou filmar o próprio corpo nu e postar na internet? O que leva algumas pessoas casadas a exporem a parte mais íntima do seu corpo diante da câmera do computador, para a pessoa que está conectada com elas na internet possa se masturbar?       
        Se muitos de nós estamos aderindo a atitudes permissivas, o problema não se encontra do nosso pescoço para baixo, mas do nosso pescoço para cima. Nós trocamos a voz da nossa consciência pela voz da mídia, que reduz a sexualidade humana ao erótico. Essa mesma mídia se escandalizou há dois anos atrás, quando a atleta Lolo Jones (Olimpíadas de Londres-2012) declarou ser virgem aos 30 anos de idade. Sendo ridicularizada pelas colegas, ela afirmou que competia por medalhas e que, se quisesse fama, teria aparecido nua. “Eu não corro para ser a pessoa mais famosa do mundo. Se eu quisesse isso, (...) faria um vídeo de sexo ou algo assim para ganhar fama”, completou a atleta. Na mesma linha desta atleta, inúmeros jovens em diversos países estão aderindo a uma atitude de vida em relação ao namoro e à própria sexualidade chamada: EU ESCOLHI ESPERAR. Confira isso nos seguintes sites: http://euescolhiesperar.com/ e https://www.youtube.com/watch?v=YxwzEGY0jbc
Ao ver o Templo de Jerusalém profanado por comerciantes, Jesus usou de uma saudável e necessária agressividade para expulsar todos dali, com um chicote na mão e dizendo bem alto: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” (Jo 2,16). Hoje essas palavras devem ser gritadas à consciência de pessoas “influentes” da nossa sociedade – alguns políticos, médicos, empresários, delegados, juízes etc., que pagam crianças e adolescentes para satisfazerem suas fantasias sexuais. Essas palavras também precisam ser gritadas à consciência de todos os líderes religiosos, muitos dos quais ornamentam suas casas e seus templos com ouro, prata, mármore, vitral, lustres etc., mas se mantém longe de pessoas cujos corpos estão violentados, subalimentados, consumidos pelo álcool e inúmeras outras drogas, pessoas desempregadas ou subempregadas, cuja referência de família se perdeu ou nunca existiu.
Algumas questões finais...
1) “Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá... vós sois esse santuário” (1Cor 3,17). Como você está em relação à pornografia na internet, ou em relação à bebida, ao cigarro e a outras drogas?  Você pensa em tatuar ou já tatuou seu corpo? Que tipo de tatuagem você fez? Que sentido ela tem para você? Quanto tempo seu corpo fica paralisado/anestesiado diante de um computador ou de um celular, ao mesmo tempo em que você afirma não fazer nenhuma atividade física por falta de tempo?
2) “Tirai isso daqui!” (Jo 2,16). Que tipo de desintoxicação você precisa se dispor a fazer, não só em relação ao seu corpo, mas também em relação à sua alma, ao seu espírito, à sua vida emocional? Sugestão de música para sua oração: PURIFICA-ME (Tony Allysson) 
3) “O zelo (cuidado) por tua casa me consumirá” (Jo 2,17). Você dedica tempo para cuidar da sua vida espiritual da mesma forma como encontra tempo para cuidar do seu físico? Você ajuda a cuidar e a preservar o meio ambiente? Você faz algo para restabelecer a dignidade do corpo do seu próximo que, por estar desempregado, subempregado ou viciado nas drogas, definha a cada dia?  
4) “Haverá vida aonde chegar o rio” (Ez 47,9). Mentalize seu próprio corpo ou o corpo de alguém que está doente, violentado, faminto, explorado sexualmente ou escravo da dependência química das drogas. Clame a Deus, “fonte de água viva” (Jr 2,13), para que a Sua água escorra por este corpo, banhando cada célula, irrigando cada neurônio, para que onde ali houver morte, a vida possa renascer... 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

domingo, 2 de novembro de 2014

A MASSACRANTE FELICIDADE DOS OUTROS

Há no ar um certo queixume sem razões muito claras. Converso com mulheres que estão entre os 40 e 60 anos,todas com profissão, marido, filhos, saúde, e, ainda assim, elas trazem dentro delas um não-sei-o-quê perturbador, algo que as incomoda, mesmo estando tudo bem. De onde vem isso? 
Anos atrás, a cantora Marina Lima compôs com o seu irmão, o poeta Antonio Cícero, uma música que dizia: 'Eu espero acontecimentos, só que quando anoitece é festa no outro apartamento'. Passei minha adolescência com a mesma sensação de que algo muito animado estava acontecendo em algum lugar para o qual eu não tinha convite.
É uma das características da juventude: considerar-se deslocado e impedido de ser feliz como os outros são - ou aparentam ser. Só que chega uma hora em que é preciso deixar de ficar tão ligada na grama do vizinho... As festas em outros apartamentos são fruto da nossa imaginação, que é infectada por falsos holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias. Os notáveis alardeiam muito suas vitórias, mas falam pouco das suas angústias, revelam pouco suas aflições, não dão bandeira das suas fraquezas... Então, fica parecendo que todos estão comemorando grandes paixões e fortunas, quando, na verdade, a festa lá fora não está tão animada assim!
Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco, com motivos pra dançar pela sala e também motivos pra se refugiar no escuro, alternadamente. Só que os motivos pra se refugiar no escuro raramente são divulgados.
Pra consumo externo, todos são belos, sexy, lúcidos, íntegros, ricos, sedutores, enfim, campeões em tudo! Fernando Pessoa também já se sentiu abafado pela perfeição alheia - e olha que na época em que ele escreveu estes versos não havia esta overdose de revistas que há hoje, vendendo um mundo de faz-de-conta: 'Nesta era de exaltação de celebridades - reais e inventadas - fica difícil mesmo achar que a vida da gente tem graça’. Mas tem. 
Paz interior, amigos leais, nossas músicas, livros, fantasias, desilusões e recomeços, tudo isso vale ser incluído na nossa biografia. Ou será que é tão divertido passar dois dias na Ilha de Caras fotografando junto a todos os produtos dos patrocinadores? Compensa passar a vida comendo alface para ter o corpo que a profissão de modelo exige? Será tão gratificante ter um paparazzo na sua cola cada vez que você sai de casa? Estarão mesmo todos realizando um milhão de coisas interessantes enquanto só você está sentada no sofá pintando as unhas do pé?
Favor não confundir uma vida sensacional com uma vida sensacionalista. As melhores festas acontecem dentro do nosso próprio apartamento...  

Martha Medeiros (Texto resumido) 


A PERDA DA TERCEIRA PERNA

       Preste atenção a estas palavras: “Eu anseio pela minha morte, mas ela não vem; eu a procuro como quem procura um tesouro; eu me alegraria se estivesse diante do meu túmulo e exultaria se encontrasse minha sepultura” (citação livre de Jó 3,20-22). Assim como Jó, você alguma vez já desejou morrer? Você conhece alguém que procura a morte como quem procura um tesouro? O que faria com que uma pessoa não apenas desejasse sua própria morte, mas que a provocasse, por meio do suicídio?
       De janeiro a setembro deste ano, nove pessoas se suicidaram em Jaboticabal (SP). As causas para o suicídio podem ser muitas, mas há uma que vem se acentuando cada vez mais: a incapacidade em lidar com a frustração. Nós estamos nos tornando cada vez mais intolerantes em relação à frustração. Parece que tudo tem que funcionar na hora em que queremos; tudo e todos têm que estar em função da satisfação das nossas necessidades. Neste sentido, é preocupante ver como muitos pais e avós criam seus filhos e netos fazendo de tudo para não frustrá-los, procurando satisfazer as suas vontades. Desse modo, eles se tornarão pessoas despreparadas para a vida, pois quem é que vai passar pela vida sem nunca ser frustrado nos seus desejos, nos seus sonhos, nas suas expectativas ou nas suas vontades?
        Por mais que não gostemos de ouvir “não”, a vida muitas vezes vai dizê-lo a nós, esvaziando a nossa bola, cortando o nosso barato e jogando um balde d’água fria em cima do fogo do nosso desejo. E aí? Vamos apelar feio e tirar a nossa própria vida, ou vamos aproveitar a oportunidade para aprendermos a dura lição de lidar com a frustração? Apesar de toda a beleza da sua plumagem, o pavão estava triste e foi reclamar com o Criador: “Por que não fui criado também com os pés e a voz bonitos?” E o Criador respondeu: “Porque ninguém pode ter tudo”. 
        Esta é a verdade que estilhaça o espelho do nosso narcisismo: ninguém pode ter tudo. Além disso, se queremos ter os pés no chão, se queremos acolher a vida como ela é e não como gostaríamos que fosse, se queremos viver a vida por inteiro, precisamos aprender a lidar com perdas. Perder é uma das maiores frustrações que existe. Muitas pessoas se suicidam por não suportarem o rompimento de uma relação, quando a outra pessoa deixa claro que nós não somos necessários para ela como ela o é para nós.
        Se você está vivendo uma situação de perda, reflita sobre essas palavras de Clarice Lispector: “Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável. Esta terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta... Estou desorganizada porque perdi o que não precisava?” (do livro A paixão segundo G.H., pp.11-12).
         Esta é uma das lições mais importantes que a vida nos dá: quando perdemos a nossa “terceira perna”, temos a oportunidade de aprender a andar e a nos sustentar em pé com as nossas próprias pernas. Além disso, se você se sente vítima do destino e acha que os outros são muito mais felizes do que você, ou que as coisas dão certo para todo mundo, menos para você, leia o texto de Martha Medeiros, intitulado "A massacrante felicidade dos outros". 

                                     Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

IMPORTA VIVER ANTES DE MORRER, ASSIM COMO NÃO MORRER ANTES DA HORA

Missa dos fiéis defuntos. Palavra de Deus: Jó 19,1.23-27a.; Romanos 5,5-11; João 6,37-40.

“Eu tenho medo de não mais ser lembrado” – palavras do livro que virou filme: A culpa é das estrelas. O dia de finados nos convida a nos lembrar daqueles que recentemente ou há muito tempo partiram desta vida. Depois que morrermos, nós seremos lembrados por alguém? Por quanto tempo? Silvia Schmidt escreveu: “Eu tive que aceitar as minhas fragilidades, os meus limites, a minha condição de ser mortal, de ser atingível, de ser perecível. Eu tive que aceitar que a VIDA sempre continuaria com ou sem mim, e que o mundo em pouco tempo me esqueceria” (Eu tive que aceitar). Ao nos fazer lembrar daqueles que morreram, o dia de hoje também nos faz um questionamento: quantos não são mais lembrados por nós, apesar de ainda estarem vivos entre nós? Quantos idosos, solitários em suas casas ou nos asilos, não são lembrados por seus filhos e netos?
Jó acabou de nos dizer: “Gostaria que minhas palavras... fossem escritas e... cravadas na rocha para sempre!” (Jó 19,23-24). Sim, em praticamente todos os túmulos encontramos gravados em placas de metal ou no mármore os nomes de pessoas que faleceram. Mas o que Jó quis que fosse gravado na rocha para sempre é uma certeza de fé que devemos ter, quando tomamos consciência de que um dia vamos morrer: “Eu sei que o meu redentor está vivo e que, por último, se levantará sobre o pó; e depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne verei a Deus” (Jó 19,25-26).
Enquanto nossa vida é feita de inúmeras incertezas, a morte é nossa única certeza. Mas a fé nos convida a olharmos para além da morte, a olharmos para o nosso Redentor, que está vivo, o Senhor Jesus, que nos resgata e nos arranca das mãos da morte. Mesmo que a nossa pele seja destruída na morte, nós veremos a Deus, e O veremos com o nosso corpo, que se tornará um corpo glorificado (cf. Fl 3,20-21). Por isso, disse o salmista: “Espera no Senhor e tem coragem, espera no Senhor!” (Sl 27,14).
A esperança à qual se refere o salmista não é uma esperança ilusória, mas uma esperança que não nos decepciona, porque está garantida pelo Espírito Santo, O qual ressuscitou Jesus e ressuscitará também a cada um de nós. Desse modo, o apóstolo Paulo nos convida a não temermos a morte, nem o momento do nosso encontro com Deus, pois já estamos reconciliados com o Pai, por meio do sangue de seu Filho derramado na cruz. No momento da nossa morte, Deus nos espera como Pai, mais do que como Juiz (cf. Rm 5,5-11).
Quando morre alguém da nossa família, dizemos: “Eu perdi meu pai, minha filha, minha irmã, meu avô...” No entanto, Jesus nos garante que Ele não perderá nenhum daqueles que o Pai confiou aos Seus cuidados. A morte pode arrancar de nossas mãos pessoas que amamos, mas o Pai confiou cada um de nós às mãos e aos cuidados de seu Filho Jesus Cristo que, por ter vencido a morte, nos faz esta promessa: ‘Eu não vou perder nenhum daqueles que o Pai me confiou. Além disso, vou ressuscitá-los no último dia’ (citação livre de Jo 6,39).
Antes que chegue o nosso “último dia”, precisamos rever como temos vivido cada um dos nossos breves dias neste mundo. Dalai Lama disse que o que mais chama a sua atenção é que as pessoas hoje, obcecadas em ganhar dinheiro, “vivem como se nunca fossem morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido”. Já Cora Coralina nos alerta sobre o perigo de morrermos antes da hora, ao escrever: “Eu sei que algum dia alguém terá que me enterrar, mas eu não vou fazer isso comigo”. Da mesma forma, Albert Schweiter disse: “A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva”.
Refletir sobre a morte, neste dia de finados, pode nos ajudar a valorizar cada momento que vivemos na vida, sabendo que ele é único e nunca mais se repetirá. Assim, da mesma forma como iniciamos esta reflexão citando palavras do livro A culpa é das estrelas, assim também podemos terminá-la, mencionando uma parte do “Elogio Fúnebre” de Hazel Grace a Augustus Waters, dois jovens atingidos pelo câncer: “Queria mais números do que provavelmente vou ter, e, por Deus, queria mais números para o Augustus Waters do que os que ele teve. Mas, Gus, meu amor, você não imagina o tamanho da minha gratidão pelo nosso pequeno infinito. Eu não o trocaria por nada nesse mundo. Você me deu uma eternidade dentro dos nossos dias numerados, e sou muito grata por isso”. Sejamos gratos pelos “pequenos infinitos” que vivemos na companhia daqueles que já partiram, sabendo que um dia iremos reencontrá-los na eternidade de Deus, onde nossos dias não serão mais numerados... 

                                    Pe. Paulo Cezar Mazzi