Missa
da Sagrada Família. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a.; Colossenses
3,12-21; Lucas 2,22-40.
A vida nasce da comunhão, não da
solidão. Cada um de nós nasceu porque houve uma comunhão entre duas pessoas,
entre um homem e uma mulher. É verdade que essa comunhão às vezes acontece
apenas na carne, não no espírito; uma comunhão imperfeita, incompleta, parcial,
movida pelo instinto, sem a presença do amor; uma comunhão reduzida ao desejo
sexual, mas não aberta ao afeto. Seja como for, nossa existência nasceu de uma
comunhão, e a questão é saber se nossa sobrevivência também depende disso.
Sobreviver sem comunhão pode até ser possível.
Não são poucas as pessoas que hoje escolheram viver sozinhas, que romperam com
sua família, que escolheram a rua como lar, porque sua casa nunca foi um lar
para elas. Não são poucas as pessoas para as quais “família” é uma palavra sem
sentido, ou então sinônimo de conflito, de desentendimento, de rejeição. Infelizmente,
para algumas pessoas viver na família se tornou insustentável, e a única forma
que encontraram de sobreviver foi vivendo sozinhas.
São marcantes as palavras da serpente ao
Pequeno Príncipe: “Onde estão os homens?”, perguntou o principezinho. “A gente
está um pouco só no deserto”. “Entre os homens também”, disse a serpente (Exupéry,
O Pequeno Príncipe, p.60). Sim. É
possível sentir-se só, mesmo estando entre as pessoas, mesmo tendo uma família.
Estar no seio de uma família por si só não significa não experimentar solidão. No
entanto, quando nos sentimos sós, mesmo dentro de casa, precisamos nos
perguntar: até que ponto eu estou sendo responsável pelo meu isolamento, pela
minha solidão?
Muitas vezes, por trás do isolamento e
da solidão de um dos membros da família está a comunhão com um alguém estranho
à família: a “colega” de trabalho ou de faculdade do pai, o “colega” de
trabalho ou de faculdade da mãe, a namorada do filho ou o namorado da filha,
pessoas que, com a sua personalidade dominadora e com seu psiquismo doentio, transformam
o outro num fantoche em sua mãos, quebrando a saudável comunhão que ele tinha com
sua família.
O livro do Eclesiástico deixou claro que
a presença do outro é benéfica na minha vida na medida em que respeita as
minhas raízes: honrar o pai, respeitar a mãe, ampará-los na velhice, ser
compreensivo com eles, sobretudo se vierem a perder a lucidez. Quando damos um
corte em nossa convivência familiar para agradar à outra pessoa, estamos sendo
tão insensatos quanto uma árvore que decide cortar as suas raízes porque se
julga crescida e forte o bastante para se sustentar por si só.
Sabendo que a convivência em família é desafiadora,
o apóstolo Paulo nos lembra as atitudes que precisam estar presentes em nosso
dia a dia, sobretudo com as pessoas de casa: misericórdia, bondade, humildade,
mansidão e paciência; a esposa dedicando-se ao marido, o marido amando a esposa
e não sendo grosseiro com ela, os filhos obedecendo em tudo aos pais, e os pais
não intimidando os filhos. No fundo, trata-se de um cuidado para com o
relacionamento com o outro, cuidado que nasce do amor. Quem ama, cuida.
O Evangelho de hoje nos revela que a
Pessoa principal da nossa casa é Deus, e que o relacionamento que mais precisa
ser cuidado é com Ele. Com quarenta dias de vida, José e Maria vão ao templo
consagrar o filho a Deus, um sinal claro de que todo filho é um dom de Deus e
não um direito dos pais, um dom que precisa ser diariamente colocado,
consagrado, restituído às Mãos d’Aquele que confiou este filho aos cuidados
provisórios dos pais. A presença de Simeão e Ana, duas pessoas idosas,
questiona o lugar que os idosos ocupam em nossa casa. São cuidados, ouvidos,
amados? A comunhão do novo com o velho é necessária e saudável, para nos
lembrar que todos nós um dia envelheceremos, e a vida costuma devolver a nós a
maneira como tratamos os outros.
Simeão faz duas profecias, uma a
respeito de Jesus, e outra, de Maria. Eis a primeira profecia: “Este menino vai
ser causa tanto de queda como de reerguimento para muitos...”. O mesmo
Evangelho que pode reerguer uma família que nele crê e por ele dirige sua vida,
pode também derrubar a família que decide afastar-se dos seus conselhos e
guiar-se segundo a mídia. A segunda profecia é esta: “Quanto a ti, uma espada
de dor te traspassará a alma”. Tanto a pessoa que decide conviver, se casar e
ter filhos, quanto aquela que decide ficar só, o faz para ser feliz e não para ter
dor. No entanto, viver dói. Quem se contenta em apenas sobreviver,
provavelmente enfrentará menos dor, mas quem decide viver intensa e
profundamente terá que lidar com a dor. Aliás, só sente dor quem está vivo.
Se existe um problema que afeta muitas
famílias hoje, a questão não é o relacionamento em si, mas a dor que ele pode gerar
na pessoa. Inúmeras propagandas de produtos mostram famílias onde todos estão
sorrindo. É a falsa ideia de que uma vida feliz não tem espaço para a dor. Ora,
se nenhuma vida humana é gerada sem comunhão, nenhuma vida nasce sem dor. No
seio de uma família, a dor só aparece quando algo novo quer nascer, quando uma pessoa
ou todas daquela casa precisam aprender algo que ainda não sabem a respeito de si
mesmos ou do outro. “O homem é um aprendiz; a dor é o seu mestre” (Alfred de
Musset).
Hoje pedimos que o Espírito de Deus
visite cada família, cada ser humano, ajudando-o a revisitar as suas raízes
(pais, avós), derramando Seu bálsamo sobre todo relacionamento ferido,
restaurando o que foi rompido, transformando o muro da solidão na ponte da
comunhão, voltando o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos
para os pais, do marido para a esposa e da esposa para o marido, aproximando as
gerações (avós e netos), reerguendo cada família que tombou por ter se afastado
do Evangelho, fortalecendo-nos e dando-nos sabedoria para lidar com a dor que é
inerente ao bem estar do relacionamento e, sobretudo, direcionando o coração de
cada família para Deus, o Pai.
Pe. Paulo Cezar Mazzi
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