sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O GRITO DA ESPERANÇA


Missa do 1º.dom. do advento. Palavra de Deus: Jeremias 33,14-16; 1Tessalonicenses 3,12 – 4,2; Lucas  21,25-28.34-36.

            No mundo em que vivemos não há um lugar separado ou reservado apenas para os que creem, para os que são justos e íntegros. Os problemas que afetam a humanidade como as doenças, a violência, as drogas, as guerras, o risco do desemprego, o mercado desumano, as catástrofes ambientais, as injustiças sociais etc., produzem angústia e medo em todos os seres humanos. A diferença está na forma como as pessoas reagem ao que lhes acontece: enquanto muitos se desesperam, os cristãos são chamados à atitude da esperança, mantendo sua fé nas promessas de Deus e na sua justiça.
            O Evangelho que ouvimos deixa claro que a nossa fé e a nossa esperança em Jesus não nos livrarão dos problemas e da instabilidade política, econômica e emocional que atualmente afetam a humanidade, mas espera-se de nós uma postura de firmeza e de confiança em Deus, sabendo que a história humana caminha para a sua libertação definitiva, conforme o próprio Jesus afirmou: “Quando estas coisas começarem a acontecer, levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima” (Lc 21,28).
            Como estamos neste momento: levantados ou derrubados, em pé ou caídos? Caminhamos de cabeça erguida, firmados na esperança, ou nos arrastamos pela vida cabisbaixos, expressando uma total ausência de esperança em nosso olhar, em nossas palavras e em nossas atitudes? O tempo que iniciamos hoje se chama “advento”, cujo sentido está em “esperar Aquele que vem”. O Advento “nos ensina a gritar esperança no sofrimento, a confiar em tempos melhores, a provocá-los” (Pe. Adroaldo). É tempo de acordar a esperança, que talvez se encontre adormecida dentro de nós. Esperança é o oposto do derrotismo, da passividade, do negativismo; é uma maneira de enfrentar a vida: “Se nós trabalhamos e lutamos, é porque pomos a nossa esperança no Deus vivo, Salvador de todos os homens, sobretudo dos que têm fé” (1Tm 4,10).
            Muitas pessoas deixaram de esperar; elas deixaram de esperar em relação a si mesmas ou a alguma mudança/superação; elas deixaram de esperar em relação à outra pessoa ou ainda em relação a alguma situação econômica/social; muitos, infelizmente, têm deixado de esperar em Deus e por Ele. Mas a esperança nos faz desejar algo novo. Só quem está insatisfeito deseja algo novo. A insatisfação, a indignação, são forças de esperança atuando em nós. A esperança não funciona em nós como um tranquilizante; pelo contrário, ela nos inquieta, nos desinstala, nos faz buscar mudanças.
            Muitas pessoas têm dado respostas erradas à sua insatisfação, refugiando-se nas drogas, na bebida, na comida e no consumismo. Mas Jesus nos alerta: “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida” (Lc 21,34). Não podemos negociar a nossa esperança de um mundo melhor, trocando-a por compensações egoístas, baratas e ilusórias. Não podemos nos tornar insensíveis, no sentido de cairmos na indiferença para com as promessas de Deus e para com o destino da humanidade. Devemos tomar cuidado com tantas coisas que o mundo inventa para nos distrair: enquanto ficamos distraídos com elas, não nos damos conta de que estamos caminhando na direção da destruição de nós mesmos.
“Portanto, ficai atentos e orai a todo momento, a fim de terdes força para escapar de tudo o que deve acontecer e para ficardes em pé diante do Filho do Homem” (Lc 21,36). Eis a chave para reacender a nossa esperança e nos preparar para a segunda vinda de Jesus: a oração. Na verdade, só uma pessoa que tem esperança pode orar. “Cada oração é uma expressão de esperança. Uma pessoa que não espera nada do futuro não pode orar. Só pode haver vida e movimento quando você não aceita mais as coisas como são e olha para frente rumo ao que ainda não é... Um homem com esperança não se preocupa em saber como seus desejos serão cumpridos. Assim, sua oração não se dirige à graça, mas Àquele que a proporciona. É essencial para a oração de esperança que não se peçam garantias, não se imponham condições, nem se exijam provas, mas apenas que você espere tudo do Outro sem constrangê-Lo em momento algum... Sempre que orarmos com esperança, poremos nossa vida nas mãos de Deus. Medo e ansiedade desaparecem, tudo que recebemos e tudo de que somos privados não são nada senão um dedo apontando na direção da promessa de Deus de que vamos viver por completo” (Henri Nouwen, Oração, pp.43-50).
            Ao iniciarmos hoje o tempo do advento, que possamos percorrer este caminho como ele verdadeiramente deve ser, o caminho do homem em pé, do homem acordado, do homem que ora com esperança, sustentado por esta certeza: “Cristo virá para salvar aqueles que o esperam” (cf. Hb 9,28). Ele disse que quer nos encontrar em pé, e não caídos. Ainda que às vezes enfrentemos fortes tempestades e que os ventos contrários nos curvem até o chão, sejamos como o babu: podemos até ser curvados ao chão, mas jamais nos quebraremos; jamais ficaremos caídos, prostrados ao chão, derrotados pelo desânimo. A força da esperança nos haverá nos levantar novamente. Enfim, como desejou o apóstolo Paulo, que Cristo, ao chegar “com todos os seus santos”, encontre os nossos corações marcados por uma “santidade sem defeito aos de Deus, nosso pai” (cf. 1Ts 3,13).
            Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

QUEM OU O QUÊ EXERCE DOMÍNIO SOBRE VOCÊ?

Missa de Cristo Rei do Universo. Palavra de Deus: Daniel 7,13-14; Apocalipse 1,5-8; João 18,33b-37
  
         Quem precisa de um rei? Na época em que vivemos, a figura do rei é totalmente simbólica e mesmo desnecessária. Mas na época bíblica, ela tinha um grande significado: o rei era o grande pastor do povo. Sua função era tão importante que ele tinha que ser ungido pelo Espírito de Deus, para poder governar seu povo com sabedoria e justiça.
A história do povo de Israel foi marcada por inúmeros reis, sendo que a maioria deles foi reprovada por Deus, conforme as palavras: Tal rei “fez o que é mau aos olhos de Deus”. Este refrão se repete na história da maioria dos reis de Israel, conforme o segundo livro dos Reis. Somente quatro reis fizeram o que é agradável aos olhos de Deus, sendo que o principal deles foi o rei Davi, chamado biblicamente de “um homem segundo o coração de Deus” (cf. 1Sm 13,14). Contudo, Davi era um rei humano, no sentido de imperfeito, limitado e falho. Foi preciso esperar por um outro rei, um homem verdadeiramente segundo o coração de Deus, um autêntico pastor: Jesus Cristo, o Bom Pastor, Aquele que hoje celebramos como Rei do Universo.
Para compreendermos o alcance dessa proclamação – Jesus Cristo, Rei do Universo –, devemos nos lembrar de que o Pai concedeu ao seu Filho Jesus o poder sobre todo ser humano (cf. Jo 17,2), não o poder de dominar, mas de salvar de todo ser humano. Contudo, o reinado de Jesus não é algo que se impõe pela força, mas algo escolhido por cada pessoa. Cada um de nós precisa fazer uma escolha: quem eu quero que reine sobre mim? Quem ou o quê eu permito que exerça domínio sobre a minha vida? Foi por isso que o apóstolo Paulo escreveu aos romanos: “Que o pecado não reine mais em vosso corpo mortal” (Rm 6,12). Não teria sentido algum nós, cristãos, proclamarmos Jesus Cristo Rei do Universo, quando nossa afetividade e nossa sexualidade, ao invés de submeterem-se à santidade de Cristo, deixam-se escravizar pelo pecado.
Há um fato interessante na vida de Jesus com relação ao título de “rei”. Após a multiplicação dos pães, a multidão quis fazer de Jesus seu rei, mas ele se retirou para um lugar afastado (cf. Jo 6,15), recusando-se a assumir tal papel. O que Jesus quer nos ensinar com isso? Ele quer nos dizer que não devemos esperar nem d’Ele, nem muito menos de qualquer ser humano, a função de solucionador de todos os nossos problemas e de provedor de todas as nossas vontades e necessidades. Sobretudo em nosso país, existe atualmente um clima propício para o messianismo: espera-se por um messias, deseja-se um “rei” que tenha autoridade suficiente para colocar ordem na casa e resolver todos os problemas que afetam o nosso país, como se nós, povo brasileiro, não tivéssemos que fazer a nossa parte.
“Não ponhais vossa fé nos que mandam, não há homem que possa salvar” (Sl 146,3). Nenhum rei, nenhum messias, nem mesmo Jesus pode fazer aquilo que cabe a cada um de nós fazer por si mesmo, por sua família, por sua cidade, por seu país. Se nós proclamamos que Jesus é Rei do Universo, devemos nos colocar sob sua autoridade espiritual, orientando a nossa consciência pelo seu Evangelho, no qual hoje Ele se declara rei a partir dessas palavras: “Eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37).
A única riqueza que Jesus possui como Rei é a verdade. Pelo fato de Jesus pautar a sua vida segundo a verdade, ele jamais foi escravo de alguém ou de alguma situação. E ele veio para nos conduzir à verdade: “Vocês conhecerão a verdade, e a verdade os libertará... Se o Filho libertá-los, vocês serão verdadeiramente livres” (Jo 8,32.36). Enquanto não nos abrirmos à verdade, seremos pessoas dominadas pela mentira, pelo engano, pela ignorância e por todo tipo de atitude que nos adoece e nos destrói.
            Uma pessoa que se encontrou com a sua própria verdade torna-se livre e readquire o domínio sobre si mesma. Ela deixa de ser um joguete nas mãos das suas próprias emoções, dos seus medos e do seu inconsciente. Uma pessoa que escolheu viver a partir da verdade de Deus jamais se tornará “súdita” ou escrava de qualquer rei deste mundo, de qualquer coisa ou pessoa que queria impôr-se a ela como dominador. Mas é preciso ter muita coragem de se abrir à verdade, pois ela dói; ela exige que encaremos nossos demônios, nossos medos, nossos traumas. O encontro com a verdade só se dá em meios a muitas lágrimas e muita persistência, mas é um encontro que nos cura e nos liberta.
            “Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (Jo 18,37). Enquanto muitas pessoas escolhem passar pela vida fugindo da voz de Jesus em sua consciência e iludindo-se com a voz das suas próprias mentiras, nós somos desafiados por Jesus a escutar a sua voz, permitindo que ela nos questione e nos convença a abandonar todo tipo de máscara que possamos usar para sermos reverenciados como reis por outras pessoas. Enquanto muitas pessoas acreditam que não bastam as suas duas pernas para pararem em pé – elas precisam de uma terceira perna; elas precisam de alguém que constantemente exerça domínio sobre elas –, Jesus nos convida a confiar na verdade das nossas duas pernas, na verdade de que não precisamos viver de maneira infantil, imatura, sempre querendo que algum “rei” nos ofereça colo, segurança, proteção contra a vida; pelo contrário, nós podemos nos tornar conscientes da nossa verdade e olhar a vida nos olhos, abraçando o desafio diário de nos tornarmos pessoas mais livres, mais maduras, mais autênticas, pessoas capazes de autodomínio.    
            Mais uma vez é importante ter claro que uma pessoa que conhece a verdade sobre si mesma adquire uma liberdade interior diante de todas as circunstâncias externas. Essa é a imagem de Jesus diante de Pilatos: sendo julgado, desprezado, ridicularizado e condenado, ele permanece em pé, íntegro, inteiro, livre, sereno, porque está assentado sobre a sua verdade interior. Nesta época de profunda desorientação, onde muitas pessoas confiam sua vida a pessoas ou situações doentias e destrutivas, que você possa conhecer a sua verdade interior, assentando sobre ela sua existência, como uma árvore se assenta sobre raízes profundas e não tomba diante dos ventos contrários.

            Oração: Senhor nosso Deus, estende o Teu domínio sobre todo ser humano, libertando-o do domínio do mal, de todas as coisas, pessoas ou situações que possam adoecê-lo ou destruí-lo. Reina sobre nós com Teu amor e Tua misericórdia. Reina com a Tua paz sobre nossas famílias, nossas escolas e nossos locais de trabalho.
            Senhor Jesus Cristo, o Pai concedeu a Ti o poder sobre todo ser humano. Ele quis restaurar em Ti todas as coisas. Estende a Tua mão sobre a face da terra, para curar os enfermos, procurar os que estão perdidos, reunir os dispersos e fortalecer os que vacilam. Que a força da Tua paz faça desaparecer do mundo a guerra e a violência.
            Espírito Santo, concede-nos a verdade capaz de nos libertar de todo tipo de mentira e de engano que nos adoecem e nos destroem. Reina sobre nós com a Tua graça. Defende-nos do inimigo. Liberta-nos do domínio do maligno e do nosso próprio pecado. Destina cada um de nós ao Reino eterno de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.   

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

O QUE HÁ DEPOIS DO FIM?


Missa do 33º. dom. comum. Palavra de Deus: Daniel 12,1-3; Hebreus 10,11-14.18; Marcos 13,24-32.

Tudo acabará. Tudo chegará a um fim. Nada perdurará para sempre. Nada permanecerá como está. Isso é bom ou ruim? Depende. Para quem está vivendo uma situação de felicidade, a consciência do fim é entendida como um estraga-prazer, mas para quem está vivendo uma situação de dor, de injustiça, de sofrimento, a consciência do fim é um alívio, uma esperança que ajuda a pessoa a não se desesperar.
Tanto o profeta Daniel quanto Jesus nos falam do fim. Fim do mundo? Não exatamente. Eles nos falam do fim de um tipo de mundo: o nosso mundo, marcado pela injustiça, ferido pela violência, agredido por muitos de nós, seres humanos. Haverá um fim para a injustiça, para a violência, para o sofrimento, para tudo aquilo que produz morte. Mas esse fim, segundo o profeta Daniel, será precedido por “um tempo de angústia” – não é exatamente esse o tempo em que estamos vivendo atualmente? – mas, “nesse tempo, teu povo será salvo” (Dn 12,1).
Ao anunciar o fim deste mundo marcado pela injustiça, Daniel quer nos ajudar a despertar a nossa fé e a nossa esperança. A angústia do tempo em que estamos vivendo precisa ser entendida como dores de parto. Deus nos fez uma promessa: “O que nós esperamos, conforme a sua promessa, são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). Quanto mais se aproxima a hora do cumprimento dessa promessa, quanto mais se aproxima a hora do parto, maiores são as dores. Nós, que cremos nas promessas de Deus, precisamos suportar a dor com alegria e esperança porque se aproxima a hora da nossa salvação definitiva!
Mas há um outro aspecto extremamente positivo, lembrado por Daniel: a hora do fim é a hora onde Deus fará justiça; é a hora onde cada ser humano será colocado diante de Deus para prestar contas de como viveu sua breve vida sobre a face da terra. Se a morte iguala todos os seres humanos, o jugalmento de Deus os diferencia: haverá um destino diferente para os que fizeram o bem e para os que fizeram o mal, para os que lutaram para viver segundo a justiça e para os que escolheram seguir o caminho da injustiça (cf. Dn 12,2). Isso significa que nossos esforços por um mundo melhor não se perderão. Todo bem que fizemos em favor da salvação nossa e da humanidade será recolhido e levado à perfeição por Deus.
Jesus, ao nos tornar conscientes do fim, nos convida a nos preparar para o encontro definitivo com Ele: “Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória. Ele enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra” (Mc 13,26-27). Jesus recolherá os Seus da face da terra, assim como recolherá cada gota de suor e cada lágrima que os Seus derramaram na luta para tornar o mundo um lugar menos injusto e menos desumano. Tudo será recolhido por Ele e transformado. Até mesmo o nosso corpo, humilhado e exposto à morte, será transformado num corpo glorioso (cf. Fl 3,20-21)!
É preciso que se diga mais uma vez: Jesus não quer provocar angústia em nós, mas nos tornar conscientes da necessidade de nos preparar para uma passagem. O fim é o momento da passagem mais importante da nossa vida e da história humana. O provisório precisa dar lugar ao definitivo; a visão não clara precisa dar lugar ao ver face a face; as perguntas precisam dar lugar às respostas; a mentira precisa dar lugar à verdade; a injustiça precisa dar lugar à justiça. O fim é tudo isso. O fim é o momento em que as feridas serão definitivamente curadas e as lágrimas definitivamente enxugadas.
É verdade que, para muitas pessoas, o fim já aconteceu há muito tempo. Para uma mãe ou um pai que perdeu o filho numa doença ou num acidente, o fim já aconteceu. Para um filho que perdeu a mãe ou o pai, o fim já aconteceu. Para um noivo ou uma noiva, um marido ou uma esposa que perdeu a pessoa amada, o fim já aconteceu. Mas não! Esse tipo de fim tem um desdobramento. O fim é a ressurreição, o reencontro com aqueles que partiram antes de nós, conforme a promessa de Deus (cf. 1Ts 4,13-18). Talvez aqui caibam as palavras da letra de uma música do Legião Urbana: “E nossa história não estará pelo avesso, assim, sem final feliz. Teremos coisas bonitas pra contar. E até lá vamos viver. Temos muito ainda por fazer. Não olhe pra trás; apenas começamos. O mundo começa agora; apenas começamos” (Metal contra as nuvens, 1991).
Quanto a nós, que aqui estamos, a pergunta principal não é “quando Jesus virá?”, mas “como Ele vai me encontrar?”. O próprio Jesus nos questiona: “Quando o Filho do homem voltar, encontrará fé sobre a terra?” (Lc 18,8). Como Jesus me encontrará: como alguém que desistiu do bem e passou a fazer o mal, ou como alguém que perseverou no caminho do bem? Como alguém que lutou o quanto pôde para se manter honesto, fiel e justo, ou como alguém que abandonou esses valores e seguiu o fluxo do mundo? Enfim, que possamos meditar no coração essas palavras de São João da Cruz: “No entardecer da vida, seremos julgados a respeito do amor”.
Ao final dessa homilia, façamos nossa a oração do salmista: “Ó Senhor, sois minha herança e minha taça, meu destino está seguro em vossas mãos! Tenho sempre o Senhor ante meus olhos, pois se o tenho a meu lado não vacilo. Eis por que meu coração está em festa,  minha alma rejubila de alegria e até meu corpo no repouso está tranquilo; pois não haveis de me deixar entregue à morte nem vosso amigo conhecer a corrupção. Vós me ensinais vosso caminho para a vida; junto a vós, felicidade sem limites, delícia eterna e alegria ao vosso lado!” (Sl 16,5-6.8-11).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

A VERDADEIRA DOAÇÃO CUSTA E DÓI


Missa do 32º. dom. comum. Palavra de Deus: 1Reis 17,10-16; Hebreus 9,24-28; Marcos 12,38-44.

Existem doações que não nos custam nada, porque damos daquilo que temos de sobra. Não nos custa nada doar algum dinheiro, ou doar uma parte do nosso tempo para ajudar alguém, quando temos dinheiro e tempo de sobra. Mas os tempos em que vivemos são outros; são tempos difíceis, onde o dinheiro e o tempo ficaram curtos para a grande maioria. É verdade que ainda há pessoas que têm muito dinheiro e muito tempo, mas muitas delas estão ocupadas apenas consigo mesmas. Desse modo, vivemos uma época onde a caridade se esfria, onde doar algo de si aos outros custa muito, e por isso as doações diminuem. Mesmo que não poucas pessoas ainda hoje doem algo material, é cada vez menor o número daqueles que doam de si mesmos aos outros – algo do seu tempo, da sua atenção, da sua presença.
O Evangelho de hoje começa com um alerta. Jesus pede para tomarmos cuidado para não nos tornarmos cristãos indiferentes para com a situação social dos mais necessitados. Pior ainda: jamais podemos nos tornar pessoas que se beneficiam da exploração dos mais fracos. Cristãos que, além de não se importarem com as injustiças sociais, usam da inocência religiosa dos mais pobres para enriquecerem suas igrejas “merecerão a pior condenação” (Mc 12,40). O que Jesus está nos dizendo é que uma igreja ou uma religião que se mantém na indiferença para com o sofrimento dos pobres nada significa para Deus e torna-se igualmente insignificante para a humanidade. Esse é um cuidado que devemos tomar.    
Depois desse alerta, Jesus nos convida a refletir sobre algo que está caindo em desuso hoje: a doação. Jesus escolheu fazer de sua vida uma total doação em favor da salvação da humanidade. Ele não apenas doou algo do seu tempo ou da sua atenção para ajudar pessoas, mas foi uma doação viva, um sacrifício vivo. Justamente por isso, sua Presença entre nós se dá no pão – trigo que se doa para ser triturado, e no vinho – uva que se doa para ser esmagada. E nós, que comungamos do seu Corpo e do seu Sangue, somos chamados a nos tornar cristãos capazes de nos doar pela salvação da humanidade.
Mas há um problema nessa doação. O Papa Francisco disse, certa vez: “Desconfio da caridade que não custa nada e não dói”. Foi o que Jesus percebeu nos ricos que depositavam suas grandes ofertas no cofre das esmolas do Templo (cf. Mc 12,41). Quando vivemos nossa vida voltados unicamente para nós mesmos, distantes da dor das pessoas, alheios às injustiças sociais, precisamos desconfiar: algo está errado conosco, com a nossa fé, com a nossa religião. O sentido da nossa vida não está em nos poupar, mas em nos doar, e nos doar dói, exige sacrifício da nossa parte.
Surpreendentemente aparece uma pobre viúva diante do cofre das esmolas. Ninguém se deu conta dela, ninguém a enxergou porque, além de ser mulher, de ser pobre e de ser viúva, o que ela ofertou foi totalmente insignificante, enquanto valor material: “duas pequenas moedas que não valiam quase nada” (Mc 12,42). Mas essa mulher chamou a atenção de Jesus a tal ponto que ele convidou seus discípulos a refletirem sobre a atitude dela: “Esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que ofereceram esmolas. Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver” (Mc 12,43-44).
Como entender a atitude dessa viúva do Evangelho? Como entender a atitude da viúva de Sarepta que, morrendo de fome – ela e seu filho , teve a coragem de preparar um último pãozinho e dar de comer primeiro ao profeta Elias e somente depois a ela mesma e ao filho? (cf. 1Rs 17,13.15). A Palavra de Deus está nos dizendo que é mais fácil você encontrar generosidade em quem tem pouco do que em quem tem muito. É mais fácil você encontrar humanidade e solidariedade em quem sofre do que em quem tem uma vida poupada de inúmeros sofrimentos. É mais fácil você encontrar fé em pessoas pobres, que pouco ou nada estudaram, do que em alguns líderes religiosos que estudaram Filosofia e Teologia.
As duas pobres viúvas mencionadas hoje na Sagrada Escritura estão aqui para sacudir a nossa consciência, anestesiada por uma vivência religiosa que se mantém tranquilamente distante do drama humano daqueles que são injustiçados. Uma igreja ou uma religião que não se importa com a ferida social da humanidade e acomoda-se ao “serviço espiritual”, além de ser uma traição ao Evangelho colabora também para o ateísmo no mundo, pois anuncia, com a sua distância em relação aos que sofrem, que Deus, se existe, não se importa como sofrimento humano, além d’Ele parecer compactuar com as injustiças sociais.
Duas breves reflexões nos ajudam a repensar nossa atitude para com os necessitados. A primeira é de São Basílio Magno: “O pão que tu reténs pertence ao faminto, o manto que guardas no armário é de quem está nu; os sapatos que apodrecem em tua casa pertencem ao descalço; o dinheiro que tens enterrado é do necessitado. Porque tantos são aqueles aos quais fazes injustiças, quantos aqueles que poderias socorrer”. A segunda é de Santo Agostinho: “O supérfluo dos ricos é propriedade dos pobres”. Se esses dois santos vivessem na nossa época, seriam chamados de “esquerdistas” ou “comunistas”. No entanto, eles apenas entenderam perfeitamente o alerta de Jesus no Evangelho de hoje.

Oração: Senhor Deus, percebo minhas mãos fechadas. Tenho medo de abri-las e de me doar. O individualismo me tornou uma pessoa mesquinha, fechada nos meus próprios interesses. Mas hoje essa pobre viúva do Evangelho me questiona e me convida a abrir as mãos. Ela me pergunta se eu entendi o significado da Eucaristia que eu comungo, a qual me convida a doar-me sem reservas, como o teu Filho sempre faz por mim.
Senhor Jesus, liberta-me do consumismo; ajuda-me a me desfazer do meu supérfluo; abre os olhos da minha alma para que eu possa enxergar os necessitados à minha volta e os ajude, repartindo com eles o meu pão, como fez a viúva em relação ao profeta Elias. Concede ao meu coração a confiança na providência do Pai, que não apenas nada deixará faltar à minha sobrevivência, mas sempre me dará algo a mais para ser partilhado com os pobres.
Espírito Santo, tu és chamado “Pai dos pobres”. Liberta cada cristão, e especialmente os líderes da nossa Igreja, de todo tipo de ganância e de corrupção. Torna-nos próximos dos pobres, solidários com os necessitados, defensores dos injustiçados, protetores dos indefesos, cuidadores dos que estão feridos à nossa volta. Alimenta em nós uma espiritualidade verdadeiramente segundo o Evangelho de Jesus Cristo, para que o nome de Deus seja santificado e glorificado nos lábios e no coração dos pobres deste mundo. Amém.

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

A BIOMETRIA DO NOSSO ESPÍRITO

Missa de todos os santos. Palavra de Deus: Apocalipse 7,2-4.9-14; 1João 3,1-3; Mateus 5,1-12a.

Cada vez mais a tecnologia avança, se reinventa, e muda os nossos hábitos. Se antes, para acessar a nossa conta bancária num caixa eletrônico, era necessário digitar nossa senha, agora basta a nossa impressão digital (biometria). Faz parte também da biometria o reconhecimento da íris, a qual contém em si como que a “impressão digital” no olho da pessoa. Já existem sistemas de segurança onde a porta só se abre mediante o reconhecimento da íris.
Seja a nossa impressão digital, seja a nossa íris, sejam os traços do nosso rosto, isso tudo nos lança algumas perguntas: Como um cristão é ou deveria ser reconhecido? Qual é a “biometria” que distingue ou deveria distinguir uma pessoa cristã no meio da humanidade? Qual “impressão digital”, presente na íris de um cristão, é capaz de abrir-lhe a porta do Reino de Deus? A resposta para todas essas pergunta é a santidade.
Hoje celebramos o dia de todos os santos, essa “multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7,9) que se encontra de pé – porque estão ressuscitadas –, revestidas de branco –, porque foram purificadas de seus pecados pelo sangue do Cordeiro –, e com palmas na mão – porque venceram as tribulações e guardaram a fé. Contudo, o livro do Apocalipse tem o cuidado de afirmar que a nossa santificação se dá na terra, em meio a muitas tribulações. É em meio a uma sociedade de valores invertidos e marcada por um forte pluralismo que cada cristão é chamado a ter mãos puras, um coração marcado pela inocência e uma mente não dirigida para o mal (cf. Sl 24,4).
  Na sua exortação apostólica sobre a santidade, o Papa Francisco afirma que “todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra” (GE, n.14)*. É na rotina de cada dia, nas ocupações diárias, que cada um de nós é chamado a santificar-se e a santificar o mundo. De que maneira? Santidade tem a ver com separação. O cristão está no mundo, mas não pertence ao mundo. Ser santo significa separar-se de tudo aquilo que não convém ao cristão como autêntico filho de Deus; significa separar-se da corrupção do mundo, mas mergulhar na realidade social, que pede nosso sal e nossa luz, que precisa do testemunho da nossa santidade (pertença ao Senhor). Ser santo significa você não se conformar com o mundo (cf. Rm 12,1), isto é, não permtir que o mundo o(a) deforme, mas procurar distinguir qual é a vontade de Deus diante de cada escolha que você faz, de cada decisão que você toma e de cada situação que você vive.
Retomando a exortação do nosso Papa a respeito da santidade no mundo atual, Francisco nos faz um alerta muito importante: “Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo” (GE, n.101). As pessoas santas não são aquelas que se mantêm distantes da dor humana; pelo contrário, são aquelas que enxergam onde há injustiça e se colocam na defesa dos injustiçados. Eis porque o Evangelho de hoje nos fala da santidade a partir das bem-aventuranças. Segundo o próprio Jesus nos ensina, ser santo significa ser pobre no coração, reagir com humildade e mansidão, saber chorar com os outros, buscar a justiça com fome e sede, olhar e agir com misericórdia, manter o coração limpo de tudo o que mancha o amor, semear a paz ao nosso redor, abraçar diariamente o caminho do Evangelho, mesmo que nos acarrete problemas.
Ser santo nunca esteve tão fora de moda quanto atualmente. Devemos ter consciência de que a busca da nossa santificação não é algo que tenha valor para o mundo em que vivemos. O apóstolo João deixou isso claro: o mundo não nos reconhece como santos (cf. 1Jo 3,1), justamente porque o mundo ama somente aquilo que é seu, aqueles que falam a sua linguagem e que comungam dos seus contra-valores. Todo cristão que busca sua santidade deve aprender a suportar não apenas ser ignorado ou tratado com indiferença pelo mundo, mas também ser criticado, ridicularizado e perseguido pelo mesmo.      
Outra verdade importante que o apóstolo João nos lembra é que a santidade não é algo dado e acabado (concluído) em nós, mas um processo em andamento: “desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos” (1Jo 3,2). Enquanto caminhamos neste mundo enfrentando inúmeras tribulações, devemos manter a nossa esperança em Jesus, buscando viver como ele viveu: “quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele” (1Jo 3,2). Jesus iniciou o processo da nossa santificação perdoando nossos pecados na cruz. Ele nos dará a veste branca e a palma na mão desde que permaneçamos firmes na fé que professamos e não desistamos de crer e de esperar por Ele enfrentando as tribulações deste mundo.
Por fim, lembremos as palavras do Papa Francisco a respeito da santidade: “Está em jogo o sentido da minha vida diante do Pai que me conhece e ama, aquele sentido verdadeiro para o qual posso orientar a minha existência e que ninguém conhece melhor do que Ele” (GE, n.170). O sentido da nossa vida está em ser aquilo que fomos chamados a ser: santos, como o nosso Deus é Santo. A meta final é que todos nós, filhos de Deus, nos configuremos ao Filho Santo de Deus, Jesus Cristo. O Pai que nos chama à santidade nos chama a pertencer a Ele de todo o coração. Peçamos ao Espírito Santo a graça da santificação:
“Espírito Santo, termina em nós a obra começada por Jesus. Dá entusiasmo ao nosso apostolado, para que atinja todos os homens e todos os povos, resgatados, todos eles, pelo sangue de Cristo. Acelera em cada um de nós o despertar de uma profunda vida interior. Apaga em nós a autossuficiência e eleva-nos até ao nível de uma humildade santa, do verdadeiro temor de Deus, da coragem generosa. Que nenhum apego terrestre nos impeça de honrar a vocação a que fomos chamados. Que nenhum interesse possa, por covardia nossa, abafar dentro de nós as exigências da justiça. Que cálculos medíocres e mesquinhos não reduzam às estreitezas do nosso egoísmo os imensos espaços da caridade. Que grande seja em nós a procura da Verdade, até a pronta aceitação do sacrifício, mesmo até a cruz, até a morte. Que tudo, enfim, responda à oração suprema que o Filho dirigiu ao Pai. E que esta graça, Espírito de Amor, pela vontade do Pai e do Filho, se derrame sobre a Igreja, sobre todas as instituições, sobre todos os povos e sobre cada um de nós. Amém” (Oração ao Espírito Santo, S. João XXIII)

*Gaudete et exsultate (Alegrem-se e exultem)

Pe. Paulo Cezar Mazzi