sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

DECIDIR VIVER COMO FILHO, NÃO COMO ESCRAVO

Missa Maria, Mãe de Deus. Palavra de Deus: Números 6,22-27; Gálatas 4,4-7; Lucas 2,16-21.

  

            Ao celebrarmos Maria, Mãe de Deus Filho, queremos fazer a experiência do salmista: “Fiz calar e repousar meus desejos, como criança desmamada no colo de sua mãe” (Sl 131,2). Nossos desejos são atiçados o tempo todo não só pelo consumismo, mas também pelo excesso de informações e de estímulos das redes sociais. A correria da vida, somada ao excesso de palavras, mensagens, imagens e vídeos que recebemos todos os dias, nos cansam mentalmente e nos atrapalham diante da necessária tarefa de “discernir tudo e ficar somente com o que é bom” (cf. 1Ts 5,21). Para não nos perdemos diante de tantas solicitações, devemos nos colocar no colo de nossa Mãe e aprender com ela a ter uma postura sábia diante da vida: guardar todos os fatos que marcam a nossa história pessoal e social e meditar sobre eles em nosso coração (cf. Lc 2,19).

            O coração, na Bíblia, não é somente o lugar onde moram os nossos afetos, mas o lugar onde refletimos e tomamos as decisões que definem a direção que desejamos dar à nossa vida. Aqui vale a pena recuperar a verdade de que “o homem não é produto das circunstâncias; o homem é produto das suas decisões” (Victor Frankl). Normalmente, nós temos pouco ou nenhum controle sobre as circunstâncias que afetam a nossa vida, mas temos liberdade e responsabilidade na forma de nos posicionar diante dessas circunstâncias. Tudo aquilo que nos aconteceu e ainda não pudemos compreender, guardamos no coração e meditamos, na certeza de que, aos poucos, Deus nos revelará a razão de ser de cada acontecimento.

            Quando calamos e sossegamos nossos desejos, conseguimos ouvir dentro de nós um clamor: “Abbá, Papai”. Esse clamor não significa chamar para perto de nós o Pai que está distante, mas se trata de uma profissão de fé: ninguém de nós está sozinho nesse mundo; temos o Espírito Santo conosco, e ele comprova que nós somos filhos de Deus e que Ele, o Pai, está conosco. Diante de cada acontecimento que se dá em nossa história de vida, nós dizemos: “Abbá, Papai!”, confiando que tudo aquilo que o nosso Papai permite que nos aconteça tem um propósito de salvação para a nossa vida: “Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8,28), tudo, até mesmo as adversidades e contrariedades.

            Ter a consciência de que somos filhos nos liberta da necessidade de nos tornarmos escravos de coisas, de pessoas ou de situações doentias ou destrutivas, unicamente porque estamos buscando reconhecimento e aprovação: “Assim já não és mais escravo, mas filho” (Gl 4,7). Em nome da própria liberdade, muitas pessoas se tornam escravas de vícios, de padrões de comportamento (moda), sendo que a grande escravidão moderna é a busca de reconhecimento nas redes sociais. Diferente do escravo, o filho não vive atormentado pela busca de reconhecimento, porque sabe que é amado incondicionalmente pelo Pai. Sua liberdade nunca é usada para afastar-se do Pai, mas para fazer a Sua vontade, porque ele sabe que o que o Pai quer é verdadeiramente o seu bem e a sua salvação.

            Assim como Jesus foi circuncidado no oitavo dia de vida, recebendo a marca de pertença e de consagração a Deus, assim nós somos chamados a cuidar da nossa pertença e da nossa consagração. A verdadeira circuncisão não consiste em marcar um órgão do corpo, mas em manter a consciência e o coração voltados para Deus, segundo o princípio de Santo Inácio de Loyola: “aproximar-me das coisas e das pessoas tanto quanto elas me aproximam de Deus; afastar-me das coisas e das pessoas tanto quanto elas me afastam de Deus”. Portanto, trata-se de cortar hábitos e atitudes que enfraquecem a nossa pertença e atentam contra a nossa consagração a Deus.

            O filho vive da bênção do Pai. A bênção que hoje pedimos a Deus não deve ser movida por interesses mundanos: prosperidade, sucesso, bem-estar egoísta. Essa bênção também não significa superproteção – o privilégio de passar pela vida sem sofrer. Diferente do pai terreno que busca poupar o filho de todo tipo de dor, nosso Papai não nos poupará de situações difíceis sempre que elas foram necessárias para o nosso crescimento, a nossa conversão e a nossa santificação. Deus nos quer fortes e capazes de olhar a vida nos olhos. Sempre que Ele permitir que a cruz atravesse o nosso caminho, será para que possamos dizer como o apóstolo Paulo: “Sei em quem coloquei a minha fé” (2Tm 1,12). Sei em quem eu me apoio para não tombar diante dos ventos contrários e prosseguir o meu caminho até alcançar a meta para a qual fui chamado.  

            Ao iniciarmos um novo ano, procuremos substituir saudações do tipo “Feliz Ano Novo!”, ou “Saúde e Paz!”, pela seguinte bênção: “O Senhor te abençoe e te guarde!”; ou: “O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face, e se compadeça de ti!”, ou ainda: “O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz!”. Neste dia mundial da paz, não nos esqueçamos de que a paz deve ser promovida, construída, e não apenas desejada: “Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9). Que cada um de nós tome a decisão diária de ser “um instrumento da paz” do nosso Deus no seio de uma humanidade tão necessitada de paz.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

FAMÍLIA: DE UM CAMPO DE BATALHA PARA UM HOSPITAL QUE CUIDA DAS FERIDAS

 Missa da Sagrada Família de Nazaré. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Colossenses 3,12-13.18-21; Lucas 2,22-40

 

            Nenhum lugar é mais sagrado do que a casa, a família. Ali deveria ser lugar de afeto, aconchego, refúgio, proteção, lugar onde nos sentimos bem. Mas, para muitos, a família sempre foi ou se tornou, ao longo do tempo, lugar de conflito, uma espécie de campo de batalha onde uns agridem os outros; lugar onde crianças são abusadas, mulheres são agredidas; lugar do qual alguns homens procuram se manter distantes – de preferência, nos bares, com os amigos –, muitas vezes para não serem cobrados por suas esposas quanto à educação dos filhos ou ao serviço da casa.

            A saúde emocional da família depende da colaboração de cada pessoa que mora na casa. Quando cada um faz sua parte, existe equilíbrio, harmonia, e ninguém se sobrecarrega. Quando cada um se omite das suas responsabilidades, alguém se sobrecarrega, o que leva a pessoa ao adoecimento, e a doença dessa pessoa atinge os demais da casa, da mesma forma como quando um membro do corpo está doente faz o corpo todo sentir o mal estar.

            Um dos maiores problemas da família é o dinheiro: a falta dele gera constantes brigas e discussões; a busca excessiva por ele distancia o casal um do outro e os pais dos filhos. Outro problema é o consumismo: “o que é demais nunca é o bastante”. 76% das famílias brasileiras estão endividadas. Aqui não se trata apenas de baixos salários, mas também da falta de administração da economia doméstica. Compra-se o que não se precisa; gasta-se além do que pode. Um terceiro problema é a inversão de valores: o filho tem (quase) tudo o que quer, menos um pai ou uma mãe que lhe ensine o que significa limite, educação, caráter, decência, honestidade, compaixão, responsabilidade, humanidade.

            “Uma espada te transpassará a alma” (Lc 2,35), disse Simeão a Maria. Não existe família sem dor, porque não existe vida sem dor. Pais que fazem de tudo para evitar que o filho sofra a dor de uma frustração tornam o filho incapaz de lidar com a vida e fazem dele um suicida em potencial. A espada corta, e o corte lembra a poda. Família é lugar de corte e de poda. Crianças não podadas são crianças sem limites. Não respeitam ninguém, não aceitam ouvir “não” e se tornam pessoas das quais todos queremos distância. Aqui uma pergunta se faz necessária: onde o filho dorme? O filho deve dormir no quarto dele e não dos pais. É gravíssimo quando a mulher “usa” o filho para distanciar-se sexualmente do marido. Nesse caso, cabe ao pai impor-se e “dar um corte” no filho, fazendo-o dormir no seu quarto, e não na cama com a mãe. Isso ajuda no fortalecimento da masculinidade do filho.

            Ainda a respeito desse assunto, embora os filhos pequenos exijam naturalmente muito dos pais, o casal não pode descuidar da saúde emocional e sexual do casamento. É necessário que periodicamente os filhos fiquem com os avós ou algum parente de confiança, para que o casal possa ter seu espaço e seu momento de diálogo, de revisão do funcionamento da casa e de manutenção da qualidade de vida afetiva e sexual.

            Por fim, como anda a espiritualidade da família? “Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22). Essa apresentação se inspira na atitude Ana, mãe do profeta Samuel: “Eu orava por este menino, e o Senhor atendeu à minha súplica. Da minha parte eu o dedico ao Senhor por todos os dias que viver, assim o dedico ao Senhor” (1Sm 1,27-28). A maioria das famílias não procura mais a Igreja para batizar seus filhos e um dos motivos é que muitas delas são “irregulares”, e nossa Igreja ainda não se faz próxima dessas famílias. Por isso, é cada vez mais comum que crianças cresçam sem espiritualidade, com pouquíssima ou nenhuma referência de fé dentro de casa.

            A apresentação, a dedicação ou a consagração de Samuel (AT) e do menino Jesus (NT) a Deus deixam uma pergunta: o filho pertence a quem? Ele não pertence aos pais, mas a Deus. Ele não nasceu para realizar o sonho dos pais, mas para descobrir a sua própria vocação, que é fazer da sua existência, que é única, uma palavra única que Deus deseja comunicar à humanidade. O papel dos pais não é criar o filho para si mesmos, mas para a vida; prepará-lo para abraçar a vida com os seus desafios e para prestar um serviço à humanidade. Pais que têm como objetivo tornar seu filho “um sucesso” se esquecem de que o primeiro preço que o sucesso cobra é que a pessoa jogue sua consciência e seu caráter no lixo. Neste sentido, faria muito bem aos pais que vivem postando fotos e vídeos de seus pequenos nas redes sociais se lembrarem da parábola da carroça vazia: quanto mais vazia uma pessoa é, mais barulho ela faz, para chamar a atenção dos outros sobre si.   

            Um último ponto que ainda precisa ser repensado em nossa vida de família: “Meu filho, ampara o teu pai na velhice e não lhe causes desgosto enquanto ele vive. Mesmo que ele esteja perdendo a lucidez, procura ser compreensivo para com ele” (Eclo 3,14-15). Como lidamos com os idosos da nossa família?

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

domingo, 24 de dezembro de 2023

O NATAL É UMA PALAVRA DO CÉU À TERRA (cf. Jo 1,14).

 Missa de Natal. Palavra de Deus: Isaías 9,1-6; Tito 2,11-14; Lucas 2,1-14; João 1,1-18.

 

            O contexto em que Jesus nasceu foi este: César Augusto, imperador de Roma, ordenou um recenseamento, o que obrigou José a ir com Maria, já no final da gravidez, a Belém. Não havia lugar para eles na hospedaria e Maria teve que dar à luz a Jesus numa estrebaria. O contexto em que nasceu Ezequias, filho do rei Acaz (sec. VIII aC), foi este: “botas de tropas de assalto, trajes manchados de sangue” (Is 9,4) – guerra. Exatamente quando a violência cobre o país com a sombra escura da morte, ouve-se o anúncio: “Nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho; ele traz aos ombros a marca da realeza; o nome que lhe foi dado é: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai dos tempos futuros, Príncipe da Paz” (Is 9,5).

            O contexto em que hoje celebramos o Natal é este: guerra na Ucrânia, na Palestina e em tantas outras partes do mundo que a mídia não divulga; mudanças climáticas que castigam o Sul com excesso de chuva, o Norte com uma seca histórica nunca vista, e nós, aqui no Sudeste, com ondas insuportáveis de calor e falta de chuva. O contexto em que algumas famílias terão que vivenciar o Natal hoje é de tristeza: alguém não estará na ceia ou no almoço de Natal, porque morreu de acidente, se suicidou ou foi levado deste mundo por uma doença muito grave.

            Essa é a realidade: o nascimento de Jesus não eliminou o mal do mundo, nem cancelou a dor, o sofrimento e a morte da nossa vida, mesmo porque o menino que nasceu o filho que nos foi dado, se tornará um “homem sujeito à dor, familiarizado com o sofrimento” (Is 53,3). Seu nome é “Deus conosco”, conosco em nossa dor, em nosso sofrimento, em nossa morte. Ao nascer, Jesus participou da nossa mesma condição mortal, para “libertar os que passaram a vida toda em estado de servidão, pelo temor da morte. Pois ele não veio ocupar-se com anjos, mas sim com a descendência de Abraão” (Hb 2,15-16).

            O nascimento de Jesus se deu numa estrebaria, onde os animais costumavam dormir e se alimentar, porque “não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7). Isso nos leva a reconhecer que, embora hoje a maioria das pessoas celebre o Natal, ainda não há lugar para Deus nascer na vida delas, porque seus corações estão voltados para o Palácio e não para a manjedoura, para o Imperador e não para um menino, para a grandiosidade e não para a simplicidade. A graça do Natal pode passar despercebida na vida da maioria das pessoas, porque muitas delas estão perdidas no ativismo, na correria, no consumismo, na superficialidade, no vazio, distanciando seu coração de Belém.

“Nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11). Nasceu aquele que “veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). Nasceu aquele a quem o Pai concedeu o poder sobre todo ser humano (cf. Jo 17,2). Por isso, nós celebramos o Natal na alegre certeza de que, ao nascer, Jesus é a “graça de Deus (que) se manifestou trazendo a salvação para todas as pessoas” (Tt 2,11). Ninguém está perdido para sempre. Ninguém está condenado para sempre. “Fiel é esta palavra(...): Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro” (1Tm 1,15). O Natal de Jesus aconteceu em favor da salvação de cada ser humano, sobretudo daquele que mais necessita ser salvo, qualquer que seja a situação.

            “Eu vos anuncio uma grande alegria” (Lc 2,10). “Alegrai-vos e exultai ao mesmo tempo, ó ruínas de Jerusalém, o Senhor consolou seu povo e resgatou Jerusalém” (Is 52,9). O anúncio do Natal precisa chegar às nossas ruínas. Quantas situações foram ou estão arruinadas em nossa vida ou na vida de pessoas que nós amamos? Nós não celebramos o Natal porque não temos ruínas em nossa vida, mas porque olhamos para as nossas ruínas como lugares de reconstrução, como situações perante as quais podemos ter atitudes diferentes, atitudes que transformem a lamentação pelo que perdemos em alegre esperança de que algo novo pode e deve ser construído ali.

O Natal é uma Palavra do céu à terra: “A Palavra se fez carne (pessoa humana) e veio habitar no meio de nós” (Jo 1,14). A existência de Jesus foi uma palavra de conforto a toda pessoa abatida; uma palavra de salvação a toda pessoa perdida; uma palavra de vida a toda pessoa que se sentia morta por dentro. Nós somos discípulos daquele que é “a Palavra que se fez carne”. Quanto mais o Natal perde o sentido para muitas pessoas, mais a nossa vida de discípulos precisa “dizer” o Evangelho – Palavra de Salvação – a todo ser humano que espera por essa Palavra.

Nesta noite de Natal, somos convidados a silenciar a nossa alma para acolher “a Palavra (que) se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Deus tem uma palavra a dizer a cada ser humano: uma palavra de cura para o doente, de direção para o que se sente perdido, de libertação para o que se sente preso, de força para o enfraquecido, de consolo para o que está triste, e essa Palavra é seu próprio Filho feito homem (cf. Hb 1,1-2), pessoa humana, que conhece o chão da nossa história, nossas misérias, nossas lutas e nossas esperanças. E aqui se revela a nossa tarefa como cristãos: fazer ecoar em nossas atitudes o “Verbo de Deus”, colocando-nos junto das pessoas abatidas para levar-lhes uma palavra de conforto da parte de Deus, o Consolador de todo ser humano.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

DEUS ESCOLHEU HABITAR EM NOSSA INSIGNIFICÂNCIA E DESAMPARO

 Missa do 4º dom. advento. Palavra de Deus: 2Samuel 7,1-5.8b-12.14a.16; Romanos 16,25-27; Lucas 1,26-38.

 

Onde Deus habita? Onde Ele escolheu habitar? A resposta se encontra no livro do profeta Isaías: “Eu, o Senhor, habito em lugar alto e santo, mas estou junto com o humilhado e desamparado, a fim de animar os espíritos desamparados, a fim de animar os corações humilhados” (57,15).

O rei Davi, sustentado por Deus, derrotou todos os seus inimigos e construiu um palácio majestoso em Jerusalém. Instalado no seu palácio, pensou em construir um Templo para Deus habitar, uma vez que a Arca da Aliança, símbolo da presença de Deus no meio de Israel, “habitava” numa tenda, símbolo não só de provisoriedade, mas também do Deus peregrino, que caminha com seu povo.

A ideia de Davi parecia boa, tanto que até o profeta Natã assinou embaixo! Mas Deus tinha outros planos: não era Davi que construiria uma casa (Templo) para Deus habitar, e sim o próprio Deus faria uma casa para Davi: “(...) o Senhor te anuncia que te fará uma casa... Tua casa e teu reino serão estáveis para sempre diante de mim” (2Sm 7,11.16). A “casa” era o juramento de que nunca faltaria no trono de Israel um descendente de Davi.

Quando Salomão, o filho de Davi, construiu o Templo de Jerusalém, Deus acolheu aquela construção enchendo-a com a nuvem da Sua presença, a ponto de Salomão se encher de orgulho e afirmar: “O Senhor decidiu habitar a Nuvem escura. Sim, eu construí para ti uma morada, uma casa em que habitas para sempre” (1Rs 8,12-13). Mas Salomão estava enganado. O Templo que ele construiu não era eterno. Destruído em 587 aC, pela Babilônia, e reconstruído mais tarde por Esdras e Neemias, o Templo de Jerusalém foi destruído pelo Império Romano no ano 70 dC, restando dele, até hoje, apenas uma parte da sua muralha externa, chamada de “muro das lamentações”. Curiosamente, no lugar do Templo foi construída a principal mesquita dos muçulmanos.

O que tudo isso tem a nos dizer? Nenhuma casa ou templo que possamos construir para Deus habitar é garantia de que Ele estará ali “para sempre”. Como afirmou Estêvão, “o Altíssimo não habita em obras de mãos humanas” (At 7,48). Nenhuma igreja ou religião pode se presumir “possuidora” de Deus. Deus é absolutamente livre e não cabe dentro de nenhum templo, nenhuma igreja, nenhuma ideia, nenhum conceito e nenhum sentimento ou emoção que possamos ter ou experimentar a respeito d’Ele.

Onde Deus habita? Onde Ele escolheu habitar? Ele escolheu habitar no seio de uma virgem, moradora da insignificante Nazaré. “De Nazaré pode sair algo de bom?” (Jo 1,45), perguntou Natanael. Por que Deus, ao desejar se fazer pessoa humana em seu Filho Jesus Cristo, não escolheu o seio de uma rainha, de uma mulher da corte, de uma habitante da capital de Israel, Jerusalém? Por que se fazer pessoa humana no seio de uma simples “Maria”, habitante de uma desprezada e até mesmo odiada Nazaré? Exatamente porque Ele escolheu fazer sua morada entre os insignificantes e entre os desamparados deste mundo.

A liturgia de hoje nos convida a reler a nossa história de vida. Nós acolhemos a nossa “insignificância” e o nosso “desamparo” perante o mundo? Talvez, o “Templo” que um dia construímos a Deus, na esperança de que Ele nunca nos abandonasse, na pretensão de que Ele ficasse conosco para sempre, tenha sido destruído. Não só isso; talvez a casa que Deus prometeu “ser estável para sempre” em nossa vida foi ou esteja sendo destruída. O que hoje é “estável para sempre”? Nada, absolutamente nada. Nossa fé não vive de estabilidade; ela vive de uma convicção: “Para onde ir longe do teu Espírito? Para onde fugir, longe da tua presença? Se subo aos céus, tu lá estás; se desço ao abismo, ali também te encontro” (Sl 139,7-8).     

Deus está conosco como Presença escondida, quer estejamos “para cima”, quer estejamos “para baixo”; quer a nossa casa esteja estável, quer ela esteja instável; quer ela ainda esteja em pé, quer ela tenha sido destruída. Da mesma forma como uma nuvem cobria a Tenda da Habitação no deserto (cf. Ex 40,36-38), assim o Espírito Santo cobriu Maria com sua sombra (cf. Lc 1,35), a fim de torná-la grávida de Jesus. Portanto, nós hoje suplicamos que essa mesma sombra do Espírito de Deus nos cubra e nos engravide de fé, de esperança, de alegria, de coragem, de perseverança, de suportação, de fidelidade, de confiança, de modo que possamos dizer a Deus o que Maria disse: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).

Nesta véspera de Natal oferecemos a Deus a nossa insignificância, a nossa instabilidade, a nossa casa, a nossa Nazaré, o nosso seio, a nossa humilhação, o nosso desamparo, e pedimos que Ele venha habitar em nós; que Ele venha reconstruir a nossa casa; que Ele venha nos ajudar a suportar a instabilidade deste mundo, fixando nossos corações onde se encontra a estabilidade do Seu Reino eterno. Que o Deus que escolheu estar junto com os humilhados e desamparados nos coloque também junto deles, onde podemos experimentar a “carne” de seu Filho Jesus, a verdade do seu Natal.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

ONDE ESTÁ A ALEGRIA?

Missa do 3º dom. advento. Palavra de Deus: Isaías 61,1-2a.10-11; 1Tessalonicenses 5,16-24; João 1,6-8.19-28.

 

            “Irmãos, estai sempre alegres!” (1Ts 5,16). O terceiro domingo do Advento é chamado “domingo da alegria”, devido à proximidade da celebração do Natal. De fato, na noite de Natal ouviremos o Anjo do Senhor dizer: “Eu vos anuncio uma grande alegria... Nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,10-11).

            Existem dois tipos de alegria: aquela que vem de fora e aquela que nasce a partir de dentro. A alegria que vem de fora depende totalmente das circunstâncias externas: que eu esteja bem na minha saúde, na vida financeira/profissional e na vida afetiva. A alegria que vem de dentro não depende do fato de que tudo à nossa volta esteja correndo segundo planejamos; ela nasce de uma convicção: eu fui desejado e sou amado por Deus, e estou neste mundo para cumprir uma missão. Minha alegria é que a minha existência leve as pessoas que eu amo a se encontrarem com Deus, fonte de perene alegria, exatamente como João Batista: “Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos chegassem à fé por meio dele” (Jo 1,7).

            O mundo em que vivemos sequestrou a nossa alegria e a condicionou à nossa capacidade de consumo: eu só sinto alegria quando posso consumir. No entanto, a alegria do consumo dura de uma a duas semanas, necessitando de novos consumos para voltar a ser experimentada. Além disso, o excesso de preocupação, a correria da vida, as cobranças do mercado e a falta de tempo para si mesmo tem levado muitas pessoas a “provocarem” alegria em suas vidas de maneira artificial: bebida alcoólica e drogas. Ambas são “alegrias depressivas”: primeiro, “jogam” a pessoa para cima; depois, a “empurram” para baixo.

            “Irmãos, estai sempre alegres!” (1Ts 5,16). Será mesmo possível estarmos “sempre” alegres? Existem duas coisas que fazem parte da vida e que nós entendemos serem inimigas da nossa alegria: a frustração e o tédio. O papel da frustração é nos tirar da fantasia e nos trazer de volta à realidade: ninguém pode ser, nem ter tudo. A frustração nos recorda que o mundo não gira em torno de nós e que um “não” que a vida nos dá pode ser muito mais benéfico a nós do que um “sim”. Além disso, só quem aprende a lidar com a frustração se torna uma pessoa adulta, madura, no lidar com o mundo emocional. O tédio, por sua vez, tem sua importância: é condição necessária para termos saúde mental. Sem o espaço do tédio, não temos criatividade, nem produtividade naquilo que fazemos. Um estudo científico sobre o tédio revelou que a maioria das pessoas prefere fazer qualquer coisa a não fazer nada, mesmo que seja algo negativo.

            Onde buscar alegria? “Exulto de alegria no Senhor e minh'alma regozija-se em meu Deus” (Is 61,10). A alegria sempre surge quando você está vivendo segundo a vontade de Deus, o que, na prática, significa fazer aquilo que você foi chamado a fazer; tornar-se a pessoa que você foi chamado a se tornar. Ela se encontra na resposta a uma pergunta: “Quem é você? O que você diz de si mesmo?” (cf. Jo 1,19.21.22). Você não é o centro do mundo, mas sua existência contém uma palavra única de Deus a ser pronunciada em favor da humanidade. Além disso, a verdadeira alegria só pode ser experimentada quando você sai de si e se dedica ao próximo ou a uma causa: “Há mais alegria em dar do que em receber” (At 20,35).

            Como perder a alegria? Vendo as postagens dos outros nas redes sociais. Ninguém posta fotos ou fatos a respeito de si quando não está bem. Os momentos de alegria, muitas vezes artificiais e temporários, que as pessoas postam, falando de si mesmas, têm o poder de nos fazer pensar e sentir que nós somos os únicos que não estão alegres nesse mundo.

Enfim, deixo aqui algumas frases sobre a alegria: “A alegria está na luta, na tentativa, no sofrimento envolvido e não na vitória propriamente dita” (Ghandi); “A alegria de fazer o bem é a única felicidade verdadeira” (Tolstói); “O sábio não se senta para lamentar-se, mas se põe alegremente em sua tarefa de consertar o dano feito” (William Shakespeare); “Não há satisfação maior do que aquela que sentimos quando proporcionamos alegria aos outros” (Masaharu Taniguchi).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

A TERRA, FERIDA PELA INJUSTIÇA, SERÁ CONSUMIDA, PARA DAR LUGAR A UMA TERRA ONDE HABITARÁ A JUSTIÇA

 Missa do 2º dom. do advento. Isaías 40,1-5.9-11; 2Pedro 3,8-14; Marcos 1,1-8.

 

            As duas primeiras semanas do tempo do Advento se concentram na segunda vinda de Cristo (Parusia), enquanto que as duas últimas semanas têm como foco a celebração da primeira vinda (Natal). Por isso, nossa reflexão de hoje vai se debruçar de modo especial na segunda leitura, cujo teor é a Parusia.

            Os primeiros cristãos também esperavam pela segunda vinda de Cristo, e eles tinham uma forte expectativa de que a Parusia aconteceria logo. Porém, os anos passaram, aqueles que conviveram pessoalmente com Jesus morreram e a espera pela Parusia foi substituída pela descrença quanto à volta de Jesus. É por isso que o autor da segunda carta de Pedro se preocupa em nos recordar que o tempo de Deus não é o nosso. Aquilo que nós costumamos interpretar como ilusão – não há por quem nem pelo quê esperar – o autor bíblico chama de “paciência de Deus”, pois Ele deseja que todos se convertam e sejam salvos.  

            Assim como os primeiros cristãos, nós também gostaríamos que Deus interviesse na história humana para acabar de uma vez por todas com a injustiça e o mal. Isso de fato acontecerá, mas do jeito e no tempo de Deus. Se nós não confiarmos na sabedoria, na paciência, na misericórdia e na justiça de Deus, acabaremos por abandonar nossa espera pela volta de Jesus, o que implicará em levarmos uma vida inconsequente, buscando ser felizes aqui e agora, mesmo que essa felicidade destrua a vida de pessoas à nossa volta e a vida do nosso planeta.  

            A grande maioria das pessoas ignora ou não crê na volta de Jesus. Exatamente por isso, elas gastam suas energias naquilo que é transitório, aparente e ilusório, descuidando daquilo que é definitivo, essencial e verdadeiro. São pessoas escravas do consumismo e prisioneiras da inveja, preocupando-se excessivamente com a aparência, enquanto descuidam do próprio caráter. São pessoas que “ignoram os segredos de Deus, não esperam pelo prêmio da santidade, não creem na recompensa das almas puras” (Sb 2,22).  

            Mas aqui está o choque de realidade: “O dia do Senhor chegará como um ladrão, e então os céus acabarão com barulho espantoso; os elementos, devorados pelas chamas, se dissolverão, e a terra será consumida com tudo o que nela se fez” (2Pd 3,10). A imagem do ladrão nos fala da surpresa: no exato momento em que uma pessoa pensa estar no auge da sua carreira profissional, do seu enriquecimento, do seu sucesso mundano, ela será “arrancada” desse mundo e será julgada não segundo os bens que acumulou, mas segundo a maneira como tratou seu semelhante, especialmente os que sofriam à sua volta.

            “A terra será consumida com tudo o que nela se fez”, e mesmo assim, a maioria aposta o melhor de si naquilo que é terreno e passível de destruição: ficar rico, fazer sucesso, garantir (financeiramente) um futuro tranquilo para si e para os seus. Enquanto isso, a Terra queima, o planeta aquece, e esse fogo que tudo consumirá não foi aceso por Deus, mas pelo próprio ser humano consumista e ganancioso, que esgota os recursos do meio ambiente e que não se dispõe a mudar seus hábitos, porque isso implica em ganhar menos, em aprender a viver com menos.    

            O autor bíblico nos pergunta: “Se desse modo tudo se vai desintegrar, qual não deve ser o vosso empenho numa vida santa e piedosa, enquanto esperais com anseio a vinda do Dia de Deus?” (2Pd 3,11-12). O “Dia de Deus” é o dia da justiça, o dia em que o mal cessará definitivamente, o dia em que a morte será definitivamente eliminada, o dia em que as lágrimas serão enxugadas, o dia em que o trigo será recolhido no celeiro (salvação dos justos) e as uvas serão esmagadas no lagar do furor de Deus (condenação dos maus, conforme Ap 14,14-20).

            O “Dia de Deus” deve ser esperado, e não temido! “O que nós esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). A destruição do mundo injusto é necessária e permitida por Deus para dar lugar a um mundo novo, “onde habitará a justiça”. Enquanto esperamos por novos céus e uma nova terra, temos uma tarefa: cuidar da nossa santificação – “Caríssimos, vivendo nesta esperança, esforçai-vos para que ele vos encontre numa vida pura e sem mancha e em paz” (2Pd 3,14). Essa santificação pode ser traduzida, na prática, no nivelar os vales, rebaixar os montes, endireitar o que é torto e alisar as asperezas, de modo que o Senhor tenha acesso à nossa consciência e ao nosso coração.

            O caminho da vida de cada um de nós precisa ser limpo. Ninguém está totalmente pronto para o encontro com o Senhor. A vida austera e simples de João Batista, que veio preparar a primeira vinda de Cristo, questiona a inversão de valores em que vivemos, os excessos que nos intoxicam: excesso de consumismo, de barulho, de imagens, de informações, de exterioridade. É no deserto de nós mesmos que o caminho precisa ser preparado; é na solidão do nosso interior que a estrada precisa ser aberta, para que o Salvador se encontre conosco. O caminho deve ser aberto em nossa própria carne, naquilo que mais dói em nós e nos custa mudar.

 

 Pe. Paulo Cezar Mazzi