quinta-feira, 20 de novembro de 2014

ENXERGAR PARA ALÉM DA TELA DO CELULAR

Missa de Cristo Rei – Palavra de Deus: Ezequiel 34,11-12.15-17; 1Coríntios 15,20-26.28; Mateus 25,31-46.

            “E nossa história não estará pelo avesso assim, sem final feliz...” (Legião Urbana, Metal contra as nuvens). Chegamos a mais um final de um ano litúrgico. Todo final é carregado de esperança. Quando lemos um livro ou assistimos a um filme ou novela, esperamos que o final nos traga respostas, decifre o mistério, faça justiça – no sentido de que a verdade prevaleça sobre a mentira, a luz prevaleça sobre a escuridão, a morte prevaleça sobre a vida, o bem prevaleça sobre o mal.  
            Se agora vemos as coisas de maneira confusa, no final veremos face a face; se agora as peças do quebra-cabeça da vida estão espalhadas, no final elas se encaixarão perfeitamente umas nas outras; se agora temos que lidar com muitos desencontros, no final haverá o grande encontro; se agora tudo parece estar misturado – a verdade com a mentira, a justiça com a injustiça, o bem com o mal – no final haverá uma separação: “Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros...” (Mt 25,32).
            Nesta cena do Evangelho, conhecida como julgamento final, separar significa fazer justiça: “Eu farei justiça entre uma ovelha e outra” (Ez 34,17). Ainda que estejamos acostumados com a injustiça e a impunidade, a Sagrada Escritura garante que, no final, “todos nós compareceremos perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal” (2Cor 5,10). Sim, mas o que significa fazer o bem ou fazer o mal numa sociedade como a nossa, onde os valores estão invertidos, onde aquilo que é o bem passa a ser rotulado de mal, e aquilo que é o mal passa a ser propagandeado como sendo o bem? (cf. Is 5,20).
            Para Jesus, fazer o bem ou fazer o mal se traduz concretamente na forma como nos envolvemos com a dor humana, isto é, se somos solidários ou indiferentes com quem sofre: “Vinde, benditos de meu Pai!... Pois eu estava com fome e me destes de comer... Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que fizestes!... Afastai-vos de mim, malditos!... Pois eu estava com fome e não me destes de comer... Todas as vezes que não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes!” (Mt 25,34.35.40.41.42.45).   
            O envolvimento com a dor alheia começa pelos olhos, chega ao coração e se concretiza nas mãos (atitudes). Tanto os que estavam à direita como os que estavam à esquerda de Jesus lhe perguntaram: “Quando foi que te vimos com fome...?” (Mt 25,37.44). A nossa geração se permite ser afetada pela dor alheia? Como nos envolver com a dor de quem está ao nosso lado, se nossos olhos estão, a maior parte do tempo, fixos na tela do nosso celular? Se é verdade que o que os olhos não veem o coração não sente, como o nosso coração pode ser afetado pela dor do outro, se a única coisa que os nossos olhos veem são os nossos “selfies”*?
            Numa época em que a prioridade dos pastores (líderes políticos e religiosos) deixou de ser cuidar do rebanho e passou a ser cuidar de si, inclusive às custas do rebanho, Deus disse: “Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas... vou resgatá-las de todos os lugares em que foram dispersadas num dia de nuvens e escuridão...” (Ez 34,11.12). As nuvens e a escuridão do individualismo e do narcisismo nos fecham em nós mesmos, nos fazem girar doentiamente em torno dos nossos caprichos e desejos, enquanto aqueles que a vida confiou aos nossos cuidados vão se dispersando pelos descaminhos deste mundo. Não é por acaso que aumenta o número de pessoas que se sentem perdidas, extraviadas, quebradas, doentes e injustiçadas...
            Prestemos atenção aos verbos que traduzem a atitude de Deus para com a dor humana: procurar, reconduzir, enfaixar, fortalecer, vigiar, fazer justiça... Ontem, essas palavras se encarnaram na pessoa de Jesus Cristo. Hoje, nós somos chamados a encarná-las em nossa vida de cristãos, acolhendo este convite de Deus: “Preciso das tuas mãos para continuar a abençoar; preciso dos teus lábios para continuar a falar; preciso do teu corpo para continuar a sofrer; preciso do teu coração para continuar a amar; preciso de ti para continuar a salvar” (Michael Quoist, Oração do sacerdote numa tarde de domingo). Na medida em que cada um de nós assumir a sua vocação de batizado, de filho do Pai que comunga da dor humana e irmão do Filho que está presente em cada ser humano que sofre, poderemos colaborar para que a nossa história não esteja mais pelo avesso assim, sem final feliz...   
           
* Selfie significa autoretrato, foto de si mesmo(a). 

                                                                       Pe. Paulo Cezar Mazzi

Nenhum comentário:

Postar um comentário