quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

SEM SACRIFÍCIO LIVRE E CONSCIENTE NÃO HÁ TRANSFIGURAÇÃO

 Missa do 2º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 22,1-2.9a.10-13.15-18; Romanos 8,31b-34; Marcos 9,2-10.

 

Os textos bíblicos de hoje nos colocam sobre dois montes: o monte Moriá e o monte Tabor. Sobre esses dois montes estão dois filhos e dois pais: Isaac, o filho único de Abraão, e Jesus, o Filho único do Pai. A diferença é que Isaac é poupado do sacrifício, enquanto que Jesus abraça livre e conscientemente a missão de sacrificar-se para salvar todo ser humano. Entre o (quase) sacrifício de Isaac e o sacrifício de Jesus, o apóstolo Paulo nos coloca uma pergunta: “Deus que não poupou seu próprio filho, mas o entregou por todos nós, como não nos daria tudo junto com ele?” (Rm 8,32). Jesus está prefigurado em Isaac: enquanto Deus Pai poupa o filho único de Abraão do sacrifício, não poupa, mas permite que seu Filho único seja entregue “por todos nós”, do sacrifício da cruz.

A primeira palavra que precisa falar ao nosso coração, na liturgia de hoje, é SACRIFÍCIO. Pelo quê eu me sacrifico no dia a dia da minha vida? Pela minha sobrevivência? Pelo bem-estar da família e dos filhos? Movido(a) pela competição e pelo consumismo? Até onde estou disposto a me sacrificar pela restauração do meu casamento, para me manter fiel ao chamado que Deus me fez, ou para manter a minha consciência reta diante de Deus, em vista da minha salvação? O meu sacrifício é imposto a partir de fora (como o de Isaac), ou abraçado livre e conscientemente por mim (como o de Jesus)?

Deus não permitiu o sacrifício de Isaac para que Abraão – e cada um de nós – compreendesse que Ele não se alimenta do sangue de crianças inocentes, como se fosse um ídolo pagão. No entanto, Ele pediu o sacrifício de Isaac para colocar à prova Abraão e cada um de nós, através de uma pergunta: “Você continuaria a crer em mim e a caminhar comigo se Eu permitisse que perdesse aquilo que você mais ama nesta vida?”. Por trás do pedido que Deus fez a Abraão, de sacrificar Isaac, seu filho único, está uma verdade difícil de compreendermos e aceitarmos: Deus não é somente Aquele que dá, mas também Aquele que tira. Não nos esqueçamos das palavras de Jó: “O Senhor deu, o Senhor tirou, bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1,20).  

“O mistério do mal e do sofrimento tem conduzido pessoas para Deus, mas também as afastado d’Ele. Que sentido tem um Deus que não sabe o que fazer do sofrimento, ou, se o sabe, não nos quer ajudar? Mas se nós Lhe viramos as costas, será que isso ajuda a nos livrar do sofrimento, ou será que, pelo contrário, nos privará da força para confrontarmos e fazermos frente ao mal e ao sofrimento?” (Tomás Halík, A noite do confessor).

O Evangelho de hoje nos revela que, durante a Quaresma, Jesus quer que subamos com Ele a uma montanha, lugar da comunhão com Deus, lugar onde nos afastamos da compulsão do mundo consumista e da correria de uma vida desenfreada, para ouvirmos o Pai, para recuperarmos a consciência de que nós somos uma missão nesta terra e é só na fidelidade a essa missão que a nossa vida tem sentido. Jesus quis que Pedro, Tiago e João vissem a sua transfiguração, antes de o verem desfigurado na cruz. Da mesma forma, Jesus quer nos ajudar a enfrentar as situações de desfiguração, sabendo que elas não são o rosto definitivo nem nosso, nem da humanidade, nem do nosso mundo: “Os sofrimentos da desfiguração do tempo presente não se comparam com a alegria da transfiguração que se revelará em nós e em toda a criação” (citação livre de Rm 8,18).

As duas outras palavras que precisam falar ao nosso coração são: DESFIGURAÇÃO e TRANSFIGURAÇÃO. Aquilo que se desfigura em minha vida ou à minha volta é algo necessário, como parte de um processo de transformação, ou consequência de atitudes injustas e erradas da minha parte ou da parte de outras pessoas? A desfiguração da amizade social, provocada pelo individualismo e pela indiferença para com o outro, também é produzida por mim, na minha relação com as pessoas no dia a dia? Eu também alimento e ajudo a propagar a desfiguração do Papa Francisco e da CNBB, criticados e atacados por grupos católicos de extrema direita nas redes sociais? Minha presença na Igreja (paróquia, comunidade) tem ajudado a transfigurá-la?

Enquanto olhavam para Jesus transfigurado, Pedro, Tiago e João foram encobertos por uma nuvem e escutaram a voz do Pai: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” (Mc 9,7). O momento mais difícil de escutar Deus é quando estamos enfrentando uma situação de desfiguração. No entanto, é o momento mais necessário. Aliás, sempre que estamos desfigurados, precisamos fazer nossas as palavras do salmista: “Guardei a minha fé, mesmo dizendo: ‘É demais o sofrimento em minha vida!’” (Sl 116,10). Por maior que seja o sofrimento que estamos enfrentando e que está nos desfigurando, precisamos guardar a nossa fé, no sentido de mantê-la viva, tendo a mesma certeza do apóstolo Paulo: o mesmo Deus, que sustentou o seu Filho na desfiguração da cruz, em nosso favor, também nos sustentará. Além disso, devemos confiar que nenhuma desfiguração pode destruir essa verdade: Jesus Cristo morreu, ressuscitou e está à direita do Pai, intercedendo por nós! (cf. Rm 8,34). É graças à sua intercessão que a nossa desfiguração se converterá em transfiguração!

Enfim, tenhamos consciência de que TRANSFIGURAÇÃO e SACRIFÍCIO estão interligados. O sacrifício mais custoso é a nossa obediência a Deus, buscando conformar a nossa vida à Sua vontade. Sempre que nos sacrificamos nesse sentido, a nossa vida se transfigura, como consequência de quem está em paz porque sabe que está fazendo exatamente aquilo que foi chamado a fazer; está sendo fiel à sua missão de ajudar a transfiguração o pequeno espaço em que se encontra, como Jesus sempre fez.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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