quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A LEPRA MODERNA: A PERDA DA SENSIBILIDADE SOCIAL

 Missa do 6º dom. comum. Palavra de Deus: 2Reis 5,9-14; 1Coríntios 10,31 – 11,1; Marcos 1,40-45.

 

Na época bíblica, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, a doença mais temida e mais repulsiva era a lepra. “A lepra é uma doença infecciosa causada pela bactéria Mycobacterium leprae, que leva ao aparecimento de manchas esbranquiçadas na pele e alteração dos nervos periféricos, o que diminui a sensibilidade à dor, toque e calor” (https://www.tuasaude.com/lepra/). Muito interessante essa definição! A consequência da lepra é a diminuição da sensibilidade quanto à dor, ao toque e ao calor. “Diminuição da sensibilidade” é o retrato da nossa época, na qual há uma preocupação exagerada com a estética, com a aparência, com o cuidado com a pele, enquanto se ignora a importância da ética, da formação da consciência e do caráter, da sensibilidade para com o outro. Eis aqui um primeiro alerta da liturgia de hoje: Quantos de nós são saudáveis fisicamente, mas não têm “sensibilidade social”*, isto é, não se preocupam com quem sofre à sua volta?

Olhemos para a cura do leproso Naamã. Tendo sabido que no país de Israel havia um “homem de Deus” chamado Eliseu, Naamã viajou da Síria para Israel, na expectativa de ser curado da sua lepra. O problema é que Naamã havia criado uma expectativa para a sua cura: “Eu pensava que ele sairia para me receber e que, de pé, invocaria o nome do Senhor, seu Deus, e que tocaria com sua mão o lugar da lepra e me curaria” (2Rs 5,11). Como o profeta Eliseu ordenou a Naamã: “Vai, lava-te sete vezes no Jordão, e tua carne será curada e ficarás limpo” (2Rs 5,10), Naamã “ficou irritado” e foi embora, achando humilhante ter que mergulhar sete vezes em um rio cujas águas não eram famosas como as águas de dois rios do seu país de origem.

A arrogância de Naamã serve de alerta para nós. Enquanto não descemos do pedestal em que nos colocamos e não nos humilhamos, no sentido de sermos humildes (húmus significa terra), colocando os pés no chão e admitindo que somos simples mortais, independente da posição que ocupamos no mundo, não há chance de cura. A cura começa quando colocamos os pés no chão, quando nos despimos das máscaras e das armaduras que costumamos usar para nos mostrarmos como pessoas fortes e vencedoras, quando, na verdade, somos apenas um “cadáver”, isto é, “carne dada aos vermes”, carne que, por sua definição bíblica, significa: algo passível de apodrecimento.

Naamã, num primeiro momento, não aceitou o fato de que a cura da sua lepra dependia de um processo longo e demorado: mergulhar sete vezes nas águas humildes do rio Jordão. Eis aqui um segundo questionamento para nós: Estamos dispostos a passar por um processo longo e demorado de descontaminação daquilo que infectou nosso corpo, nossa alma ou nosso espírito, e que não pode ser removido de forma imediata?  

Antes de passarmos para a cura do leproso no Evangelho, consideremos essas palavras do salmo de hoje: “Eu confessei, afinal, meu pecado, e minha falta vos fiz conhecer. Disse: ‘Eu irei confessar meu pecado!’ E perdoastes, Senhor, minha falta” (Sl 32,5). Por que um salmo que fala da confissão de pecados no meio de dois relatos de cura de leprosos? Porque, na mentalidade bíblica, a lepra era sinal do pecado e da sua gravidade – aquilo que faz apodrecer o ser humano. Sendo assim, a cura da lepra aponta para a libertação do pecado, algo que só Jesus pode fazer (cf. Jo 8,33-36). O problema é: o que é pecado hoje?

De uma época onde “tudo era pecado”, passamos para uma outra época onde “nada é pecado”. No campo da Igreja, a mudança foi outra: de uma época onde se acentuavam os pecados sociais – não se preocupar com as injustiças e com o sofrimento do próximo – passamos para uma acentuação sobre os pecados individuais – sobretudo de cunho moral, quando, na verdade, tanto os pecados pessoais quanto os sociais são uma realidade que pede conversão. Se atualmente os pregadores moralistas fazem muito sucesso entre os “cristãos” das novas gerações, cuja consciência gira em torno do umbigo dos pecados de cunho moral/sexual, não nos esqueçamos de que Jesus nunca deixou de alertar para os pecados de cunho social. Portanto, a lepra do moralismo é um sério problema dentro da nossa Igreja atualmente, cuja maioria maciça de “cristãos” raramente ou nunca se questiona sobre a sua falta de sensibilidade para com as injustiças que ferem inúmeras pessoas e as mantém afastadas, isoladas, do mundo do consumo.

Enfim, olhemos para a cura do leproso no Evangelho. Desobedecendo à lei religiosa que proibia o leproso de se aproximar de qualquer pessoa (cf. Lv 13,46), esse homem “chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: ‘Se queres tens o poder de curar-me’” (Mc 1,40). A cura só começa a nascer em nós quando temos duas atitudes: a primeira é romper com o nosso isolamento, com o vitimismo; a segunda é declarar a nossa confiança absoluta em Jesus: “Tens o poder de curar-me”. Toda pessoa enferma precisa ter essa confiança, sabendo que o Pai concedeu ao Filho “o poder sobre toda a carne” (Jo 17,2). Jesus tem poder sobre tudo aquilo que em nós é passível de adoecimento, de apodrecimento e de morte. No entanto, esse poder não pode ser manipulado pela nossa urgência ou pelo nosso desespero: “Se queres”.

Muitas pessoas abandonaram a sua fé seja na existência de Deus, seja no seu poder de cura, porque se esqueceram de que Ele é soberano na sua vontade: Deus pode não querer curar, não porque Ele não ama a pessoa que está doente, mas porque, muito mais do que o seu bem físico, o que Ele visa é a sua salvação. Em breve ou muito tempo ainda, nós nos tornaremos cadáveres – nosso corpo morrerá e apodrecerá. Todo ser humano um dia será atingido pela lepra da morte, tenha ele fé ou não. A diferença é que nós, cristãos, temos uma fé que olha para além dessa vida temporária e cheia de ilusão, e se abre para a vida eterna, para a glorificação do nosso corpo (cf. Fl 3,20-21), operada por aquele que, “cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: ‘Eu quero: fica curado!’” (Mc 1,41).

Através da nossa fé no Evangelho e na Eucaristia, nós nos encontramos hoje diante do Senhor Jesus que, compadecido daquele homem até as entranhas, não apenas falou com ele, mas estendeu a mão e o tocou; tocou num homem de quem todos os demais procuravam se manter distantes. Hoje nós, discípulos de Jesus, somos chamados a estender a nossa mão para alcançar pessoas que, quem sabe, a nossa própria religião excluiu ou de quem ainda acha necessário se manter distante...

 

*No capítulo “As sombras de um mundo fechado”, da Fratelli Tutti, o Papa Francisco denuncia: “Reacendem-se conflitos que se consideravam superados. Surgem novas formas de egoísmo e de perda do sentido social” (FT 11).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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