quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

JOSÉ: TORNAR-SE CUIDADOR(A) DAQUILO QUE ESTÁ ÓRFÃO À SUA VOLTA

 Missa do 4º dom. advento. Palavra de Deus: Isaías 7,10-14; Romanos 1,1-7; Mateus 1,18-24.

 

            Os textos bíblicos deste último domingo do Advento nos colocam diante de dois homens, chamados a se tornarem pais: o rei Acaz (séc. 8 aC) e o carpinteiro José (séc. 1 dC). Enquanto o filho de Acaz representa a promessa, o filho de José representa o cumprimento, a realização da promessa, para mostrar que Deus “vigia sobre a sua Palavra até que ela se realize” (cf. Jr 1,12). Isso significa que nenhuma das promessas de Deus ficará esquecida ou perdida no tempo, mas todas se cumprirão no seu devido tempo.

            O rei Acaz é chamado a tornar-se pai num contexto de ameaça de guerra. A guerra destrói tudo, trazendo consigo a morte e a perda de confiança no futuro. Exatamente na iminência de estourar uma guerra que destruirá o seu reino, Acaz recebe uma promessa de Deus: “Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Emanuel” (Is 7,14). A virgem, nesse caso, é a esposa de Acaz; o filho é Ezequiel, futuro rei de Israel, garantia de que haverá um futuro para um reino que está ameaçado de ser eliminado da face da terra.

            Muitos casais optam hoje por não terem filhos. Para que colocar um filho neste mundo tão desumano e ameaçador? Só para sofrer? No entanto, o nascimento de uma criança afirma que “Deus está conosco” – esse é o significado do nome Emanuel. Séculos mais tarde, o apóstolo Paulo perguntará: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós?” (Rm 8,31). O nascimento de uma criança é o sinal mais evidente de que nós, humanidade, sempre poderemos encontrar em Deus um futuro e uma esperança.

            Mas o filho de Acaz, Ezequiel, era apenas uma promessa, um símbolo bíblico para falar de um outro nascimento, de um outro menino, do verdadeiro Emanuel: Jesus Cristo, o “Deus conosco” (Mt 1,23), ele que nos garantiu: “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20). E o evangelho de hoje nos fala da “origem” humana de Jesus, uma origem que se dá num contexto de forte crise para o coração de José, que será chamado a ser pai de um filho que ele não gerou.   

            A gravidez de Maria pegou José de surpresa e o jogou numa profunda crise, enchendo seu coração de perguntas que ele não conseguia responder. Se a palavra “virgem”, aplicada à esposa do rei Acaz, designava sua idade jovem, em Maria ela designava literalmente a sua virgindade, pois ela nunca havia tido relação sexual com homem algum (cf. Lc 1,34). Portanto, desconhecendo o plano de Deus, era natural que José concluísse que a gravidez de Maria era fruto de uma traição, uma traição cujo preço era o apedrejamento até à morte, segundo a lei religiosa da época.

            E aqui entra a grandeza de José, aquilo que o evangelho chama de “justiça”: “José, seu marido, era justo” (Mt 1,19). Para não denunciar Maria publicamente como uma mulher que havia traído o seu futuro esposo e engravidado de um outro homem, José decide abandonar Maria em segredo, assumindo a “culpa” de ter engravidado Maria e não ter assumido a responsabilidade pelo filho. José poderia ter exigido “justiça” e entregue Maria ao apedrejamento, mas ele não o fez. Quantas injustiças nós causamos aos outros ao exigir justiça? Quantas vidas inocentes foram mortas em nome de uma falsa justiça? (No filme “Frankenstein de Mary Shelley” há uma cena dramática de uma jovem, morta por enforcamento, acusada injustamente de ter raptado uma criança).

            Assim como José, existem acontecimentos que transtornam a nossa vida, e nós não conseguimos raciocinar. Um monte de perguntas toma conta do nosso coração e nossas emoções turvam a nossa razão, dificultando que nossa consciência ouça e voz de Deus. Nesse caso, a única chance de Deus ser ouvido é por meio do sonho, pois ali o nosso consciente “desliga” e dá espaço para que o nosso inconsciente fale conosco. Enquanto o nosso consciente se defende daquilo que a vida está nos pedindo, o nosso inconsciente é livre para expressar aquilo que deve ser acolhido por nós como chance de uma reviravolta na nossa vida, como ampliação do horizonte da nossa existência. Desse modo, no sonho Deus fala com José e esclarece a “origem” da gravidez de Maria: ela é obra do Espírito Santo. Além disso, José é convidado por Deus a se tornar pai de um filho que não é seu, mas de Deus! José acorda do sonho e responde a Deus com a “obediência da fé” (Rm 1,5). Ele abre mão de seus planos humanos e se ajusta aos planos de Deus.

            A quantos de nós a vida está pedindo para cuidar de algo – ou de alguém – que não geramos, que não foi querido ou “causado” por nós, mas que depende absolutamente do nosso cuidado, para ter prosseguimento e futuro? Quantos casais, impossibilitados de terem filhos, não se abriram à possibilidade de adotarem um filho que não foi gerado por eles? A vida de muitos de nós pode ganhar um sentido totalmente novo quando aceitamos cuidar de algo que não é nosso, mas que Deus colocou em nosso caminho, na esperança de que abracemos aquilo como sendo nossa responsabilidade.  

            José não teve participação alguma na geração de Jesus no ventre de Maria, mas cabe a ele dar um nome àquele menino: “Tu lhe darás no nome de Jesus” (Mt 1,21), que significa “Deus salva”. Toda criança que nasce precisa de uma mãe ou de um pai que lhe dê um nome, uma identidade, os meios para que aquela vida, absolutamente depende de cuidado, tenha possibilidade de desenvolver-se, de ter um futuro e de se tornar aquilo que foi chamada a ser, para o bem da humanidade. Sabemos que mais da metade das famílias brasileiras não tem o pai dentro de casa. A maioria das crianças está crescendo como pequenos “Barrabás”, nome que significa “filho de um pai que ninguém sabe quem é”. A ausência de José na maioria das famílias hoje abre uma lacuna enorme na formação da personalidade dos filhos, por mais que a mãe seja uma heroína e os crie sozinha.

            Deus procura hoje por “Josés”. Deus procura pelos inúmeros homens ausentes das nossas celebrações, cuja igreja é o bar, o campo de futebol, a boca de fumo, a internet, o pedal, a trilha, a Netflix... Deus nos desafia como Igreja a sermos a presença de José junto às inúmeras crianças carentes de pai, crianças “adotadas” precocemente pelo tráfico de drogas e pelo mundo da criminalidade. Que a presença discreta e silenciosa de José na Sagrada Escritura nos inspire a ocuparmos o nosso lugar na história da salvação. Assim como ele, que nós nos tornemos homens e mulheres “justos”, dispostos a ajustar a nossa vida aos projetos de Deus, que visam o bem e a salvação nossa e da humanidade.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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