quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

PASSADO, PRESENTE E FUTURO: A QUEM CONFIÁ-LOS?

Missa da Santa Mãe de Deus, Maria. Palavra de Deus: Números 6,22-27; Gálatas 4,4-7; Lucas 2,16-21.

            “O meu passado, Senhor, à Tua Misericórdia. O meu presente, ao Teu amor. O meu futuro, à Tua Providência” (São Padre Pio). A passagem de ano nos recorda que a nossa existência terrena é feita de passado, presente e futuro, e esta oração de São Padre Pio nos convida a entregar nosso passado, que não mais pode ser mudado, à Misericórdia de Deus; o nosso presente, com a sua possibilidade de escolhas e seus desafios, ao Amor de Deus; e o nosso futuro, com suas preocupações e incertezas, à Providência de Deus.
            Na verdade, na história de vida de cada um de nós há um passado que precisa ser aceito, um presente que precisa ser acolhido e um futuro que precisa ser confiado. Ao entrarmos no Ano Novo, é importante fazer um trabalho interior de reconciliação com o nosso passado, acolher o presente como a preciosa oportunidade que a vida nos dá, seja para confirmar o que vínhamos fazendo bem, seja para corrigir onde estávamos errando, e, enfim, confiar o nosso futuro às mãos do Pai que conhece as nossas reais necessidades e quer estender o Seu cuidado sobre nós.
            Todos nós acolhemos o Novo Ano com um desejo de paz: paz nas famílias, nas escolas, nos locais de trabalho; paz nas ruas, nas estradas, no trânsito; paz entre os países, as religiões, os povos. Ao mesmo tempo, porém, em que desejamos a paz, precisamos lembrar que ela depende da justiça: “O fruto da justiça será a paz” (Is 32,17). Ela deve ser promovida por meio de nossas atitudes diárias: “Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9). Ela só pode ser experimentada na medida em que voltamos o nosso coração para Deus (cf. Sl 85,9) e para os irmãos.
            Na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, o Papa Francisco nos convida a tomar cuidado com o mal da indiferença: indiferença para com o próprio Deus, para com os outros e para com o nosso planeta, a nossa “casa comum”. Como diz a música “Sal da Terra” (Beto Guedes), “Anda! Quero te dizer nenhum segredo. Falo desse chão da nossa casa; vem, que tá na hora de arrumar... Vamos precisar de todo mundo pra banir do mundo a opressão. Para construir a vida nova, vamos precisar de muito amor... Vamos precisar de todo mundo: um mais um é sempre mais que dois. Pra melhor juntar as nossas forças, é só repartir melhor o pão”.
            Neste Ano da Misericórdia, Francisco nos faz três apelos: que não estimulemos a violência entre as pessoas; que perdoemos as dívidas (inclusive financeiras); por fim, que cooperemos uns com os outros. Onde a indiferença tem criado um abismo entre as pessoas, que nós possamos construir a ponte da misericórdia, para reaproximar as pessoas umas das outras. Como disse Martin Luther King, “Temos de aprender a viver todos como irmãos ou morreremos todos como loucos”.
            Não sabemos o que a vida nos reservará ao longo do Novo Ano, nem quais desafios teremos, nem mesmo quais problemas enfrentaremos. No entanto, uma atitude é importante: aprender com Maria a guardar e meditar os acontecimentos no coração (cf. Lc 2,19). É ali, na escuta de Deus em nosso coração, que podemos compreender que em cada acontecimento que nos atinge há um “para que”, uma finalidade. É na presença de Deus que nos damos conta de que podemos ir além da mera reação diante daquilo que nos acontece; podemos tomar atitudes, uma vez que nós nem sempre somos responsáveis por aquilo que nos acontece, mas somos sempre responsáveis pela forma como lidamos com isso. O nosso coração, portanto, é o lugar certo para que tomemos a decisão mais conveniente, a fim de que determinado acontecimento se torne para nós ocasião de crescimento, de amadurecimento e de santificação. 
            Que a voz do Espírito Santo – “Abá – ó Pai!” (Gl 4,6) – nos dê a certeza de que não somos e nem estamos órfãos neste mundo, não somos filhos do acaso, mas temos um Pai que cuida de cada mínimo detalhe da nossa existência. Que Maria nos ensine a viver na perfeita obediência à voz do Pai, e que nos tornemos, como ela, portadores da misericórdia do Pai para as pessoas que cruzarem o nosso caminho ao longo deste novo ano. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

sábado, 26 de dezembro de 2015

CUIDAR DAS RAÍZES

Missa da Sagrada Família. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Colossenses 3,12-21; Lucas 2,41-52.
           
            Todos nós nascemos como uma planta, que aos poucos cresce e se torna uma árvore. Ao longo da existência, esta árvore expande seus galhos e oferece suas folhas como sombra e seus frutos como alimento. Quem se admira com a beleza da árvore e se beneficia da sombra e/ou dos frutos dela, normalmente não se lembra de considerar a importância das suas raízes. Mas são elas que mantêm a árvore em pé e lhe fornecem a seiva da vida. Nesta missa da Sagrada Família, nós olhamos para as nossas raízes: nossa família. Dessas raízes depende a saúde da árvore, a sua fecundidade, a sua resistência, a sua capacidade de não tombar facilmente diante dos ventos contrários.   
            Quando as raízes são atacadas, a árvore começa a adoecer, a definhar, a produzir poucos frutos – quando não, a produzir frutos doentes, “estragados”. Segundo a psicóloga Rosely Sayão*, a sociedade atual perturba a família ao priorizar o dinheiro e o consumismo: pai e mãe estão cada vez mais tempo fora de casa, trabalhando para ganharem dinheiro. Além disso, eles são seduzidos pela propaganda do “eternamente jovem”, adotando um estilo de vida que dá pouco espaço para os compromissos que o vínculo conjugal e familiar exige. Por fim, ao entender a felicidade como satisfação imediata, os pais trocam sucessivamente de relacionamentos amorosos.   
            Nos últimos anos, algumas pessoas que pensam a Educação no país (Governo) resolveram eleger a família como o maior inimigo dos filhos. Para essas pessoas, os pais são uma presença nociva para os filhos. Quanto mais cedo retirar os filhos dos pais, melhor. Então, a educação deve ser função da escola, uma escola que, por meio da ideologia de gênero, não veja o menino como menino, nem a menina como menina, mas ambos como pessoas que vão definir sua identidade sexual a partir de experiências com ambos os sexos. Contraditoriamente, o mesmo Governo que incentiva a ideologia de gênero adota, na campanha contra o câncer de mama e de próstata, slogans como “outubro rosa” e “novembro azul”.   
            Sim. Alguns pais são, de fato, uma presença nociva para os filhos, como, por exemplo, a mãe que não só apoia, mas incentiva o filho a agredir a professora. Um dos problemas da geração atual é a falta de modelos. Os modelos de muitas crianças e adolescentes não são os pais – muitos deles dependentes químicos –, mas o traficante, o criminoso, o vizinho da esquina que, como empresário, político, juiz ou policial corrupto, se enriqueceu rapidamente.     
            Da mesma forma como não se salva uma árvore cortando suas raízes, mas medicando-as, assim também não se salva uma sociedade desintegrando as famílias, mas diagnosticando seus males e tratando suas feridas. Para o autor do Eclesiástico, o remédio para recuperar a saúde das raízes consiste em que os pais aceitem viver sob a autoridade de Deus. Desse modo, o próprio Deus confirmará a autoridade deles sobre os filhos. Que os pais se façam respeitar pelos filhos, sendo coerentes, isto é, sustentando com atitudes o que dizem com as palavras. Que os filhos sejam ensinados a amparar os que estão na velhice. Neste caso, podemos nos perguntar: qual é o vínculo hoje entre netos e avós? Quantos filhos, já adultos, colocaram seus pais num asilo e não os visitam mais, e, quando morrem, aparecem rapidamente para se apropriarem de algum bem material, como se fossem abutres?   
            O apóstolo Paulo nos fala de alguns remédios capazes de restabelecer a saúde emocional das famílias: misericórdia, bondade, humildade, mansidão, paciência e, sobretudo, a capacidade de suportar o outro. O Evangelho, por sua vez, nos lembra que as perdas e os desencontros podem acontecer em qualquer família, inclusive naquelas que praticam uma religião. Deus não é antídoto contra dor, mas força para enfrentá-la. Enquanto Jesus ficou em Jerusalém, o pai achou que ele estava com a mãe, e a mãe, que estava com o pai. Quando o pai acha que cabe à mãe cuidar/educar o filho, e a mãe acha que isso é responsabilidade do pai, o filho acaba jogado de um lado para outro e não é cuidado/educado por ninguém.
            Jesus era obediente a Maria e a José. Por isso, crescia em sabedoria, estatura e graça. Crescimento supõe poda. Não se cresce de qualquer jeito, fazendo só o que dá vontade. O desafio dos pais é incentivar o crescimento dos filhos e realizar as podas necessárias para que o crescimento seja integral; não só físico, mas emocional e espiritual; não só capazes de compreender as ciências humanas, mas de compreender a si mesmos; não só preocupados com seu próprio bem, mas, sobretudo, com o bem do mundo ao seu redor.

*Rosely Sayão, Famílias em transformação, Folha de São Paulo, 29/09/2015.
                                                                                                                                                            Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

ISTO É NATAL: DESCER MISERICORDIOSAMENTE ONDE ALGUÉM CAIU MISERAVELMENTE

Missa do Natal. Palavra de Deus: Isaías 9,1-6; Tito 2,11-14; Lucas 2,1-14.

“O ser humano caiu, mas Deus desceu. O ser humano caiu miseravelmente, mas Deus desceu misericordiosamente. O ser humano caiu por orgulho, mas Deus desceu com a sua graça”. Essas palavras de Santo Agostinho nos ajudam a nos recuperar o sentido do Natal, o sentido do nascimento de Jesus Cristo como Salvador de todo ser humano, o sentido da Encarnação.
Encarnação: Jesus Cristo, o Filho de Deus, que existia na condição divina, abriu mão dessa condição e se fez carne (pessoa humana), para salvar todo ser humano (cf. Fl 2,6-7; Tt 2,11). Jesus, o Verbo de Deus, se fez carne (pessoa humana), porque a cura, a libertação e a salvação só acontecem quando Deus entra em comunhão com aquilo que nos adoece, nos aprisiona e nos destrói. Celebrar o nascimento do Filho de Deus na carne significa reconhecer, então, que não existe salvação sem encarnação: você só pode ajudar a “curar” a ferida de alguém depois que entrou em comunhão com a dor dessa pessoa; você só pode ajudar a “libertar” alguém depois que fez a experiência de estar preso com ele; você só pode ajudar a “salvar” uma pessoa depois de ter sentido em si mesmo a destruição que se abate sobre ela.
Se o Natal nos lembra que a salvação se dá na encarnação, nós somos desafiados a realizar o difícil diálogo de aceitação e de reconciliação com a nossa carne. O que é a nossa carne? Ela é não somente, mas também, aquilo que não gostamos em nós e nos outros: fraqueza, limite, imperfeição, processo, demora, necessidade de amadurecimento, contradição, ambiguidade, mortalidade, pecado. Este foi o caminho que Deus escolheu para vir até nós e nos salvar: comungar da nossa realidade humana, ou seja, usar de misericórdia para conosco comungando da miséria que cada um de nós carrega consigo.
            Este Natal está sendo celebrado dentro do Ano da Misericórdia. Por isso, recordamos as palavras do Papa Francisco, ao afirmar que “Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai... Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa, Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus”. O próprio Jesus nos convidou a sermos misericordiosos como o nosso Pai celeste é misericordioso (cf. Lc 6,36). Ser uma pessoa misericordiosa significa não se fechar na indiferença diante da dor do seu semelhante. Isso significa que não podemos nos esconder daquele que é a nossa carne (cf. Is 58,7), daquele que é um ser humano como nós.
            Quem se afasta da dor humana, quem se fecha no individualismo e na indiferença para com os outros, quem se mantém distante daquele que é sua carne – seu parente, seu amigo, seu colega de trabalho, seu irmão de igreja, seu conhecido ou um simples ser humano – ainda não acolheu o mistério do Natal, ainda não entendeu o desejo do Filho de Deus de comungar com a realidade humana para poder redimi-la, ainda não se assemelhou ao Pai misericordioso, ainda não quis refletir sobre esta verdade: “Se Deus é nosso Pai, quem é que não é nosso irmão?” (Cantores de Deus).    
Recordemos mais uma vez. O Natal é isso: “O ser humano caiu, mas Deus desceu. O ser humano caiu miseravelmente, mas Deus desceu misericordiosamente”. Onde há um ser humano caído, nós precisamos descer. Onde há uma pessoa caída na sua miséria ou derrubada / reduzida à miséria por causa da miséria da ambição do coração humano, precisamos descer com a nossa misericórdia.
Porque o nosso sistema político está caído na miséria da corrupção, alimentada pela impunidade, ele gera miséria na economia e derruba muitos na miséria do desemprego, da violência, da dependência química, da desestruturação familiar etc. Além disso, olhando além das fronteiras do nosso país, lembramos aqueles que estão diariamente sendo derrubados na miséria da migração forçada, fruto da miséria da guerra ou da perseguição religiosa. Messias só existe um; só um é o Salvador do mundo: Jesus Cristo, mas nós somos discípulos d’Ele. Reaprendamos com Ele a não nos esconder daqueles que estão à nossa volta e que são a nossa carne, pessoas humanas como nós. Com Jesus, desçamos misericordiosamente até aqueles que estão caídos miseravelmente perto de nós. Então todos reconhecerão de fato que Jesus se encarnou para ser o rosto misericordioso do Pai entre os homens.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

VISITA-ME, SENHOR, COM A TUA SALVAÇÃO!

Missa do 4o. dom. do Advento. Palavra de Deus: Miqueias 5,1-4a; Hebreus 10,5-10; Lucas 1,39-45.

A cena do Evangelho que acabamos de ouvir é chamada de “visitação” de Maria a Isabel. Quando foi a última vez que você recebeu uma visita? O que essa visita fez você sentir? Quando foi a última vez que você visitou alguém?
O individualismo tem nos fechado cada vez mais em nossa casa e nos isolado das pessoas, dificultando a possibilidade das visitas. Nós não apenas não encontramos tempo para visitar pessoas, como também nos incomodamos com o fato de que alguém venha nos visitar e atrapalhar os nossos afazeres. No entanto, a Sagrada Escritura nos fala de Deus como Aquele que nos visita...
Para falar da cura da esterilidade de Sara, mulher de Abraão, a Escritura diz que “o Senhor visitou Sara, como dissera, e fez por ela como prometera. Sara concebeu e deu à luz um filho...” (Gn 21,1-2). Para anunciar o nascimento de Jesus, nosso Salvador, Zacarias disse: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu seu povo... Graças ao misericordioso coração de Deus, o sol nascente nos veio visitar, para iluminar os que se encontram nas trevas e na sombra da morte estão sentados” (Lc 1,68.78-79). Depois que Jesus ressuscitou o filho da viúva de Naim, o povo louvou a Deus reconhecendo: “Deus visitou o seu povo” (Lc 7,16).
Você tem permitido que Deus visite sua casa, sua vida, sua consciência, seu coração? Você tem acolhido as visitas de Deus? Jesus chorou sobre Jerusalém, lamentando o seu fechamento à salvação, com essas palavras: “(...) não reconheceste o tempo em que foste visitada!” (Lc 19,44). Você reconhece, nas diversas situações da vida, o tempo em que Deus te visita? No Salmo 106,4 o salmista pede: “Lembra-te de mim, Senhor, (...) visita-me com a tua salvação”. Você deseja a visita de Deus?      
Talvez nós não desejemos a visita de Deus, porque ela também significa o momento em que temos que nos encontrar com a nossa verdade. De fato, a Escritura também fala da visita de Deus como o momento em que Ele faz justiça, elimina a mentira e faz prevalecer a verdade: “No dia da minha visita, eu punirei o pecado deles” (Ex 32,34). Sim. A visita de Deus também significa o fim da injustiça, da impunidade, o acerto de contas do ser humano com a sua consciência, a hora de Deus retribuir a cada um de acordo com a sua conduta. Mesmo assim, nós precisamos dessa visita. Por isso, clamamos como o salmista: “Despertai vosso poder, ó nosso Deus, e vinde logo nos trazer a salvação! (...) Visitai a vossa vinha e protegei-a!” (Sl 80,3.15).
A visita de Maria fez com que a criança pulasse de alegria no ventre de Isabel e ela ficasse cheia do Espírito Santo (cf. Lc 1,41). Olhe para o “ventre” da sua casa, para o âmago da sua família. O que existe ali: vida/alegria ou morte/tristeza? Maria e Isabel eram primas; a primeira era jovem, e a segunda, idosa. O Evangelho está nos desafiando a visitar nossos familiares, a romper o silêncio, a diminuir a distância, a derrubar o muro de separação, a passar por cima do nosso orgulho, a diluir o nosso ressentimento, a vivermos a experiência do milagre da reconciliação. Há quanto tempo você não visita seus familiares (pais, irmãos, sogros, tios, avós, primos etc.)? Uma visita parece quase nada, mas ela pode devolver vida e alegria a uma casa, ao coração de uma pessoa!   
            O Natal se aproxima. Todos nós desejamos ser visitados por Deus! Todos nós precisamos nos encontrar com Aquele que pode devolver a paz às nossas famílias, ao nosso local de trabalho, às nossas cidades, ao nosso mundo. Mas, para isso, não podemos ignorar o tempo em que Ele nos visita, assim como não podemos nos fechar em nosso ressentimento, decidindo não mais visitar esta ou aquela pessoa da nossa família.
            Uma casa está precisando da sua visita. Uma pessoa está precisando de uma palavra sua, de um abraço seu. Neste sentido, se você quiser fazer como Jesus ensina no Evangelho (cf. Lc 14,12-14), dê um passo a mais e visite alguém que não pode retribuir a sua visita, alguém que está injustiçado, que se sente esquecido e abandonado pelos outros, alguém que está na solidão, ou doente, ou desempregado, ou de luto... Sua visita a essa pessoa pode ser para ela a experiência de ter sido visitada pela misericórdia do próprio Deus e voltar a sentir alegria em seu coração.  
            Oração: “Lembra-te de mim, Senhor, (...) visita-me com a tua salvação” (Sl 106,4). Lembra-te desta pessoa por quem eu oro neste momento, Senhor; ela que se encontra necessitada, numa situação de sofrimento; visita-a com a tua salvação. Lembra-te dos imigrantes que estão sendo obrigados, a fugirem de seu país por causa da guerra ou da perseguição religiosa; visita-os com a tua salvação. Lembra-te da situação política e econômica do nosso país, Senhor, ferida gravemente pela corrupção; visita os nossos políticos com a tua verdade, a tua justiça e a tua salvação... Por Cristo, nosso Senhor. Amém! 

                                                    Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

FAZER, MAS TAMBÉM PERMITIR QUE DEUS FAÇA EM VOCÊ

Missa do 3º. dom. do advento. Palavra de Deus: Sofonias, 3,14-18a.; Filipenses, 4,4-7; Lucas 3,10-18.

O terceiro domingo do advento é um convite à alegria: “Canta de alegria... Alegra-te e exulta de todo o coração!” (Sf 3,14). “Com alegria, bebereis no manancial da salvação... Exultai cantando alegres” (Is 12,3.6). “Alegrai-vos sempre no Senhor... Alegrai-vos” (Fl 4,4). Quando foi a última vez que você se sentiu alegre ou experimentou alegria? O que te dá alegria? O que tira a sua alegria? Do que depende a sua alegria?
No sentido humano ou mundano, a alegria só é experimentada quando não há dor, perda, fracasso, problema, sofrimento ou dificuldade. Além disso, nós nos acostumamos a pensar que a alegria depende do sucesso, da vitória, de se ter conseguido aquilo que se queria. Mas, no sentido cristão, de fé, a alegria depende de uma única coisa: de saber que o Senhor, nosso Deus, está no meio de nós como Aquele que nos salva.
Quando o profeta Sofonias convidou Jerusalém a se alegrar, disse claramente o motivo dessa alegria: “O Senhor, teu Deus, está no meio de ti” (Sf 3,17). Em toda celebração eucarística, por duas vezes o sacerdote diz: ‘O Senhor esteja convosco!’ e nós respondemos: ‘Ele está no meio de nós!’. Então, aqui cabe perguntar: nós cremos verdadeiramente que o Senhor, nosso Deus, está no meio de nós? Onde e de que maneira percebemos a Sua presença?   
A presença de Deus junto ao seu povo, à sua Igreja, a cada um de nós, muitas vezes não é perceptível, seja porque nós estamos ‘distraídos’, mergulhados na luta pela sobrevivência, seja porque Deus é Deus, soberanamente livre, e é Ele quem decide quando, como e se é conveniente ou não fazer-Se sentir por nós. Portanto, dizer que ‘o Senhor, nosso Deus, está no meio de nós’ é muito mais uma convicção de fé do que uma experiência sensível da nossa parte.   
Convidando Jerusalém a recobrar a fé na presença de Deus no meio dela, o profeta Sofonias fez este apelo: “Não temas (...), não te deixes levar pelo desânimo!” (Sf 3,16). Motivos para desanimar certamente não nos faltam, mas não devemos nos deixar arrastar e enterrar pelo desânimo. Precisamos reagir ao medo e ao desânimo, recordando as palavras do salmista: “Alegre-se o coração dos que procuram o Senhor!” (Sl 105,3). A nossa procura diária por Deus na oração, na Palavra, na Eucaristia e nos acontecimentos deve, por si só, despertar em nós o sentimento de alegria. E, ainda que tenhamos necessidades que nos preocupem, devemos apresentá-las a Deus na oração, para que a Sua paz tranquilize nosso coração e nossa mente (cf. Fl 4,6-7).  
 Diante da proximidade da vinda de Jesus, o povo perguntava a João Batista: “Que devemos fazer?” (Lc 3,10). Atualizando a resposta de João, a melhor forma de nos preparar para acolher Jesus é: socorrer os necessitados, ser justo, não abusar do poder sobre os outros e não se corromper. O que cada um de nós deve fazer é ‘deixar Deus fazer’; colocar-se como barro nas mãos d’Ele, o nosso Oleiro, e permitir que Ele faça em nós o que deseja fazer. O que também cada um de nós deve fazer é deixar de fazer o mal a si mesmo, aos outros e ao planeta; deixar de alimentar rancor e distanciamento em relação a alguém da nossa família; deixar de procurar a alegria onde ela não pode ser encontrada: em nosso pecado pessoal e na injustiça social.
Desde quando assumiu seu serviço em favor da Igreja na condição de Papa, Francisco tem nos alertado sobre o perigo de termos uma cara de funeral: falamos do Deus vivo, mas O sentimos morto dentro de nós. Essa cara de funeral é consequência da perda da alegria interior, da perda do sentido do ministério, da perda do contato com a fonte interior e com a simplicidade de vida.
Se quisermos reencontrar a alegria, precisamos deixar de buscá-la por si mesma. Ela brota espontaneamente dentro de nós sempre que readequamos a nossa vida ao querer de Deus. Ela não depende dos resultados que alcançamos com o nosso trabalho, mas da consciência tranquila e agradecida de termos feito o que era o nosso dever e a nossa possibilidade fazer pelo bem da humanidade, pelo bem das pessoas à nossa volta. Então, deixe Deus fazer; deixe Deus devolver-lhe a verdadeira alegria; deixe Deus manifestar a alegria d’Ele na vida dos outros por meio de você.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sábado, 5 de dezembro de 2015

O CAMINHO ESTÁ DESOBSTRUÍDO?

Missa do 2º. dom. do advento. Palavra de Deus: Baruc 5,1-9; Filipenses 1,4-6.8-11; Lucas 3,1-6.

Viver significa percorrer um caminho. Cada ser humano é chamado a fazer seu caminho de vida neste mundo. O próprio Jesus se definiu como Caminho, dizendo que fora d’Ele ninguém de nós chega ao Pai (cf. Jo 14,6). Portanto, a meta final do nosso caminho de vida é o Pai. Se o nosso caminhar neste mundo não nos levar a Deus, nós teremos desperdiçado nossas energias e tornado inútil o nosso caminhar. Por isso, enquanto caminhamos, precisamos nos perguntar: meu caminho de vida está me conduzindo para Deus? Eu estou seguindo meu próprio caminho, ou estou me deixando levar por caminhos que não têm nada a ver comigo, com os meus valores, com a minha fé?
João Batista recebeu de Deus a missão de ajudar a humanidade a preparar o caminho para receber Jesus pela primeira vez. Como o tempo do Advento não apenas prepara a comemoração desta primeira vinda, mas nos convida a estarmos preparados para a segunda vinda de Jesus, nós ouvimos hoje a voz de João Batista nos dizendo: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas” (Lc 3,4). Em que sentido devemos preparar o caminho para que Jesus tenha acesso a nós? O próprio João Batista explicou: é preciso que o vale seja aterrado, a montanha e a colina sejam rebaixadas, as passagens tortuosas sejam endireitadas e os caminhos acidentados sejam aplainados (cf. Lc 3,5).
Olhe para o caminho da sua existência neste mundo, para a estrada da sua vida. Deus tem tido acesso ao seu coração? É Deus que não tem vindo ao seu encontro, ou é você que O mantém distante, obstruindo o caminho para que Ele não chegue perto? João Batista fala de montanhas, colinas e vales. Montanhas e colinas são imagens do orgulho humano, mas também podem ser mágoas e ressentimentos que se acumularam dentro de nós. Os vales nos lembram que nós costumamos retirar mais do que colocamos, deixando que alguns buracos comecem a se abrir na estrada da nossa vida. Por sua vez, a tortuosidade pode significar uma consciência corrompida, não mais direita, enquanto que os caminhos acidentados são aqueles buracos que nós não nos demos ao trabalho de tapar.
Tanto as montanhas e colinas quanto os vales se formam ao longo dos anos em nossa vida. Não se trata de lamentar as irregularidades do nosso caminho de vida, mas de perceber o quanto fomos ou somos responsáveis por essas irregularidades. Certamente foram algumas das nossas atitudes que fizeram com que, ao longo do tempo, se levantassem montanhas e colinas, ou se abrissem vales profundos na estrada da nossa vida. A questão é: o que eu posso fazer para colocar em ordem o meu caminho de vida, para que o Senhor tenha acesso a mim e me traga a sua salvação? Que vales precisam ser aterrados e que montes e colinas precisam ser rebaixados em meu relacionamento, para que eu e a outra pessoa possamos nos reencontrar?
Ao afirmar que “todas as pessoas verão a salvação de Deus” (Lc 3,6), João Batista deixa claro que Deus quer manifestar a Sua misericórdia e a Sua justiça (cf. Br 5,9) a todo ser humano: a misericórdia, no sentido de socorrer, de comungar da dor, de se fazer presente junto a todo ser humano que sofre; a justiça, no sentido de corrigir, de acordar a consciência de quem tem praticado o mal e aberto feridas profundas na sociedade. Justamente porque somos filhos de Deus, a nossa presença junto às pessoas e no seio da sociedade humana deve ser uma presença que favoreça a misericórdia – sensibilidade para com a dor do outro – e a justiça – combater, o quanto depende de nós, toda forma de injustiça.
Quando Jerusalém estava caída, de luto e aflita, porque seus filhos haviam sido levados para o cativeiro da Babilônia, o profeta Baruc a convidou a levantar-se, a olhar para o oriente e a se alegrar, porque Deus estava devolvendo seus filhos, que haviam sido levados embora pelos inimigos (cf. Br 5,1.5.6). Hoje nós nos voltamos para o Senhor nosso Deus e suplicamos por todas as situações de luto e de aflição: a perseguição aos cristãos em alguns países do Oriente Médio, onde meninas são arrancadas de suas famílias e vendidas para a prostituição; a violência praticada, ora por policiais, ora por traficantes, contra adolescentes e jovens no Brasil; mas suplicamos, sobretudo, misericórdia e justiça ao Senhor por todo o caminho percorrido pela lama tóxica (62 milhões de metros cúbicos de rejeitos) que, por onde passa, deixa a morte atrás de si. Segundo biólogos que estão nas regiões atingidas, a vida nesses lugares demorará muito tempo para voltar a existir. Diante dessa tragédia, a Samarco, empresa responsável pelo desastre, desvia dinheiro de suas contas oficiais para não pagar indenizações, enquanto a presidente Dilma emite nota oficial afirmando que a tragédia foi um “desastre natural”. Que de Deus, e das pessoas decentes e conscientes, venha a misericórdia para com a vida, duramente golpeada por esta tragédia, e a justiça em relação aos verdadeiros responsáveis por ela.
Uma palavra nos anima no início desta segunda semana do advento: “Tenho a certeza de que aquele que começou em vós uma boa obra há de levá-la à perfeição até o dia (da vinda) de Cristo Jesus” (Fl 1,6). Confiemos no Pai, que ao enviar seu Filho ao mundo começou em nós a obra da salvação. Ele tem o poder de concluí-la. Nossas contradições humanas não têm força suficiente para anular o que o Pai tem feito em nós e por nós. Deixemo-nos salvar por Deus. Deixemo-nos abraçar por Sua misericórdia e santificar por Sua justiça. Deixemo-nos aperfeiçoar – no sentido de amadurecimento espiritual – para o encontro com Cristo Jesus. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

EM PÉ E DE CABEÇA ERGUIDA

Missa do 1º. dom. do advento. Palavra de Deus: Jeremias 33,14-16; 1Tessalonicenses 3,12–4,2; Lucas 21,25-28.34-36.

No calendário civil, nós nos encontramos no fim do ano; fim que possivelmente traga consigo um pouco de cansaço, desânimo, decepção ou frustração. Por quê? Porque algo que esperávamos realizar ainda não realizamos; algo que esperávamos que chegasse ainda não chegou. Contudo, no calendário religioso, nós nos encontramos no início de um novo ano litúrgico, que marca a caminhada da nossa fé. Justamente porque estamos no início, o ano litúrgico se abre com o tempo do “advento”, palavra que significa “vinda”, “chegada”, no sentido de espera por algo que deve vir; mais do que isso, espera por Alguém que deve chegar. Desse modo, mais do que olhar para trás, para o passado, e recordar Alguém que veio, o advento nos convida a olhar para frente, para o futuro, na espera por Aquele que está vindo. 
Para onde seus olhos estão voltados neste momento da sua vida? Para trás, lamentando um passado que não volta mais, ou para frente, esperando por um futuro prometido por Deus, que hoje mesmo está nos dizendo: “Farei cumprir a promessa de bens futuros” (Jr 33,14)? Você ainda consegue esperar em Deus e por Deus? Muitos deixaram de ter esperança, no sentido de que deixaram de esperar em relação a si mesmos, ou em relação às outras pessoas, ou em relação a alguma situação, ou mesmo em relação a Deus. Mas o que alimenta a nossa esperança é a palavra do Senhor, que hoje nos diz: “Farei brotar... a semente da justiça, que fará valer a lei e a justiça na terra” (Jr 33,15).
Semente: algo está enterrado e, aparentemente, morto. No entanto, debaixo da terra, sem que nossos olhos possam ver, a semente está brotando. Você tem aberto o terreno do seu coração para acolher as sementes de Deus? Você confia que, mesmo não vendo e não podendo comprovar, cada semente que Deus lança no terreno da sua vida brotará? Lembre-se: a obra é d’Ele. Ele garante: “Farei cumprir... Farei brotar” (Jr 33,14.15). É Deus quem faz, mas é preciso que você permita que Ele faça em você. É Deus quem lança a semente, mas é preciso que você acolha a semente no terreno da sua vida e regue diariamente esse terreno com a água da esperança.   
Jesus, ao falar da sua segunda vinda, nos chama à esperança. Ele desperta a nossa consciência para nos darmos conta do que está acontecendo. Aos poucos, a humanidade vai sendo contagiada por angústia e pavor, por causa do mal que se multiplica grandemente. Isso faz com que o medo tome conta das pessoas, principalmente daquelas que não estão firmes na fé. Mas, “quando essas coisas começarem a acontecer, levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima” (Lc 21,28). Enquanto muitos caem no desespero e caminham de cabeça baixa, porque abandonaram sua esperança, Jesus diz que precisamos confiar na sua promessa de vir ao nosso encontro e nos trazer a libertação definitiva.
Qual é o grande perigo? Como não sabemos quando Jesus virá, podemos ser tentados a desistir de esperá-Lo; podemos abandonar a nossa fé e passar a crer que tudo o que fizemos em favor da salvação nossa e da humanidade foi uma grande perda de tempo; podemos chegar à conclusão de que a vida aqui não tem muito sentido e o melhor que temos a fazer é desfrutar do que o mundo tem a nos oferecer, antes que tudo seja destruído pela injustiça, pela corrupção e pela maldade do próprio ser humano que, de humano, demonstra ter cada vez menos.
Como não deixar morrer nossa esperança? Como não desistir de esperar em Deus e por Ele? Jesus nos deu uma pista: “(...) ficai atentos e orai a todo momento, a fim de terdes força para escapar de tudo o que deve acontecer e para ficardes de pé diante do Filho do homem” (Lc 21,36). Orar a todo momento não significa apenas recobrarmos a consciência da importância da oração em nossa vida, mas também entendermos que tudo o que fazemos devemos fazê-lo com a consciência e o coração voltados para Deus. Para quem ainda tem dificuldade em criar o hábito diário de orar, vale esta definição de oração de Santa Teresa de Jesus: “Orar é estar a sós, muitas vezes, com quem sabemos que nos ama”.   
Jesus deixa claro que, quando vier, quer nos encontrar “em pé” e não deitados, caídos, desprovidos de fé, de esperança e de amor. Ele quer nos encontrar como homens e mulheres que, mesmo vivendo num país cuja lama tóxica da corrupção, da maldade e da injustiça vai aos poucos contaminando todos os setores da sociedade, não desistiram de semear a honestidade, o bem e a justiça com as nossas atitudes diárias. Jesus não quer nos encontrar presos na armadilha da distração, do vício e da falta de sensibilidade para com o que acontece à nossa volta. E aqui vale à pena, mais uma vez, nos questionar a respeito do uso diário do celular. Há no seu celular algum aplicativo que alimente a sua oração, a sua fé, a sua intimidade com o Senhor? Ou ele está funcionando como uma “armadilha” para manter você distante de Deus, do próximo que está à sua volta e da sua responsabilidade para com a salvação da humanidade?
Neste início de advento, coloque-se em pé, levante sua cabeça, abra as janelas e portas da sua casa interior e permita que o vento da esperança renove os ares da sua existência. Abra-se ao futuro de Deus. Abra-se Àquele que vem. Abra-se ao novo que Deus quer fazer brotar em você e, por meio de você, no coração da humanidade. Lembre-se: “O melhor do Deus que vem é que Ele se manifesta de maneiras inesperadas: desfaz certezas, rompe convenções, renova sonhos. A esperança abre passagem por onde menos esperamos. E Deus continua aparecendo onde e quando ninguém espera” (Pe. Adroaldo). 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

ELA ESPERA POR VOCÊ ABAIXO DA SUA CAMADA DE CONCRETO

Missa de Cristo Rei. Palavra de Deus: Daniel 7,13-14; Apocalipse 1,5-8; João 18,33b-37.

            Sem ela você não tem paz. Quanto mais distante dela, menos alegria você sente. Por ignorá-la, muitos fazem mal a si mesmos e aos outros. Por desconhecê-la, muitos vivem presos a situações de dor e de sofrimento desnecessários. Só ela cura; só ela liberta; só ela pode nos devolver paz, alegria e liberdade interior. Do quê estamos falando? Da Verdade; Verdade com “V” maiúsculo, porque não se trata da minha ou da sua verdade, mas da Verdade em si.  
Jesus acabou de nos dizer: “Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37). A Verdade é tão necessária em nossa vida, que o apóstolo Paulo chega a afirmar que Deus “quer que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4). Por outro lado, o desconhecimento da Verdade é tão prejudicial ao ser humano que Deus afirma pelo profeta Oséias: “Meu povo está sendo destruído por falta de conhecimento” (Os 4,6). Quando você desconhece a sua verdade como pessoa e como filho(a) de Deus, corre o risco de ter atitudes que causam destruição para si, para os outros, para a sociedade e para o Planeta. Por desconhecerem a Verdade sobre si mesmos, muitos aderem à violência e às drogas. Por não suportarem a Verdade sobre si mesmos, muitos se refugiam na bebida ou num comportamento autodestrutivo.  
 Mas, o que é a Verdade? O próprio Jesus disse que Ele é a Verdade (cf. Jo 14,6). Em que sentido? Jesus é a Verdade a respeito de Deus e a Verdade a respeito do ser humano. Sendo verdadeiramente Deus, Jesus corrige nossas imagens distorcidas de Deus. Sendo verdadeiramente homem, ele corrige a imagem distorcida que possamos ter de nós mesmos e dos outros. Por isso, ele disse: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). É possível que você passe uma vida inteira preso(a) a uma imagem errada de Deus, de si mesmo(a) ou dos outros, sofrendo, carregando algum tipo de culpa, de condenação ou de rejeição, fazendo mal a si mesmo(a) e aos outros, simplesmente por desconhecer a Verdade. Essa é a importância da Verdade: só ela nos liberta da culpa que nos adoece e do medo que nos paralisa e nos aprisiona.      
Se pudéssemos usar uma imagem para representar a Verdade, ela seria como uma água cristalina dentro de nós. Mas sobre esta água foi construída uma camada de concreto que não nos deixa ter acesso a ela. Quem construiu essa camada de concreto? Uma parte fomos nós mesmos, para nos “defender” da Verdade que desmascara as nossas ilusões; a outra parte foram pessoas ou o “mundo”, que nos dizem quem devemos ser e como devemos nos comportar, se quisermos ser reconhecidos como alguém que tem valor.   
Essa camada de concreto pode ser quebrada, para que possamos ter acesso a essa água cristalina da Verdade? Sim, mas não sem esforço, não sem dor, não sem sofrimento, não sem uma certa “violência”. Normalmente, essa camada de concreto se quebra quando tomamos a coragem de encarar uma terapia, ou quando sofremos um choque na vida (doença, acidente, perda) que nos faz “acordar”; é quando nos damos conta de que não podemos mais continuar a sobreviver na mentira, isto é, na superfície de Deus e de nós mesmos. Se quisermos verdadeiramente viver, precisamos começar a mergulhar na Verdade de Deus a nosso respeito, Verdade que se encontra no profundo de nós mesmos.
Jesus disse: “Todo aquele que é da verdade escuta (obedece) a minha voz (na consciência e no coração)” (Jo 18,37). O problema é que eu possa escutar, mas decidir não obedecer. Eu posso me encontrar com a Verdade, mas não me deixar convencer por ela. Porém, eu devo ter consciência de que tudo na vida tem um preço. Quem decide não mexer na sua camada de concreto e manter-se distante da Verdade, paga um preço. Quem decide o contrário, paga outro preço. O importante é recordar esta afirmação bíblica: “Nós nada podemos contra a verdade, mas só temos poder a favor dela” (2Cor 13,8). Em outras palavras, eu só me sinto forte, só experimento alegria e paz, quando vivo e me comporto em sintonia com a Verdade. Quanto mais distante dela, mais angústia, mais medo, mais falta de paz e mais sofrimento psíquico me acompanham.
Oração: Pai, Tu és chamado “o Deus da Verdade” (Is 65,16). Coloco diante de Ti todas as imagens erradas que tenho a Teu respeito, bem como a respeito de mim, dos outros e da vida, e Te peço: “Guia-me com a tua verdade, ensina-me, pois tu és o meu Deus salvador” (Sl 25,5). “Envia tua luz e tua verdade: elas me guiarão” (Sl 43,3). “Que Deus envie sua graça e verdade!” (Sl 57,4). Compreendo que o melhor que tenho a fazer é parar de fugir da Verdade e deixar-me encontrar, curar e libertar por ela. Só nela eu tenho “poder”; só nela eu consigo me manter em pé diante dos ventos contrários da vida; só nela eu encontro verdadeiramente paz, alegria e liberdade. Peço Tua Verdade, Senhor, para a consciência e o coração de cada pessoa, sobretudo para aqueles que, por desconhecê-la, estão fazendo o mal a si mesmos, aos outros e ao mundo. Que a Tua Verdade liberte os que estão aprisionados em todo tipo de sofrimento e de injustiça provocados por aqueles que, por meio da religião, da economia e da política, ignoram a Verdade sobre Ti e sobre o ser humano. Concede-nos escuta obediente à voz de Teu Filho Jesus Cristo, que veio nos trazer “a Palavra da verdade” (Ef 1,13) que nos liberta e nos salva. Amém! 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

DEPOIS DO "FIM"

Missa do 33º. dom. comum. Palavra de Deus: Daniel 12,1-3; Hebreus 10,11-14.18; Marcos 13,24-32.

            “O céu e a terra passarão” (Mc 13,31). Todo espetáculo, todo show, toda novela, todo filme, todo livro, toda história tem um fim. O fim é desejado e esperado com ânsia por alguns – os que sofrem, os que estão doentes, os que perderam alguém, os que estão no meio da guerra/da violência, os que estão tristes ou injustiçados etc. Mas o fim também é temido e nada desejado por outros – os que estão felizes, em “lua-de-mel” com a vida, desfrutando de suas conquistas e de sua prosperidade.
           Queiramos ou não, desejemos ou não, o fim é uma realidade. Ele nos diz que, enquanto estamos aqui, nada é definitivo; nenhuma situação que vivemos – boa ou ruim – é definitiva. Tudo vai passar. Mas, passar em que sentido? Tudo vai passar por uma transformação. Tudo tende para um desfecho. Sim, mas qual desfecho? Segundo Jesus, o desfecho é esse: depois da grande tribulação, as luzes se apagarão. Então, nós O veremos vindo nas nuvens com grande poder e glória. Será o momento em que os anjos recolherão os eleitos de Deus da face da terra (cf. Mc 13,24-27).  
            Para o profeta Daniel, o fim será precedido por um tempo de grande angústia. Isso coincide com o que Jesus chama de “grande tribulação”. Embora essa profecia soe muito negativa, o tempo da grande angústia ou da grande tribulação é muito importante, pois “nesse tempo, teu povo será salvo” (Dn 12,1). No meio da angústia e da tribulação que se abaterá sobre a humanidade, se levantará Miguel, cujo nome significa “Quem é (forte/poderoso) como Deus?”. A pergunta “Quem é como Deus?” se dirige a cada um de nós: Quem é a tua força, o teu porto seguro, a tua segurança, o teu apoio, a tua esperança? Às mãos de quem você se confia, neste tempo da angústia e de tribulação?
            Em meio à sua angústia e à sua tribulação, o salmista declara: “Meu destino está seguro em vossas mãos” (Sl 16,5). Consciente de que até mesmo a sua vida terrena teria um fim, ele proclama: “Não haveis de me deixar entregue à morte, nem teu servo conhecer a corrupção” (Sl 16,10). Tendo a convicção de que o fim é apenas um desdobramento, ele afirma: “Vós me ensinais vosso caminho para a vida” (Sl 16,11).  
            Por meio dos acontecimentos e, sobretudo, por meio da transitoriedade de todas as coisas, Deus tem nos ensinado o caminho para a Vida. Estamos aprendendo o Seu ensinamento? Estamos procurando viver segundo o bem, a verdade e a justiça, para que o nosso nome seja inscrito no livro da Vida (cf. Dn 12,1)? No meio da noite escura, isto é, convivendo com tantas pessoas que desistiram da bondade, da justiça e da verdade, nós estamos procurando manter a nossa luz acesa, como a de uma estrela que brilha num céu totalmente escuro? (cf. Dn 12,3).  
            “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mc 13,31). Jesus é a palavra definitiva do Pai para a humanidade: palavra que cura o doente, que perdoa o pecador, que corrige o injusto, que cala a voz do mal; palavra que abre os olhos e alarga o horizonte de visão, que faz sair do túmulo e faz passar da morte para a vida, que julga as intenções do coração de cada um; palavra que nos garante que, depois do fim de todas as coisas, nos aguarda o encontro com ele, Jesus, e o Pai.

            Oração: Pai, este é um tempo de muitas incertezas; um tempo forte de angústia e de grandes tribulações. Justamente porque ele também está sendo um tempo de perda de fé para muitos, eu Te peço por minha fé. Agarro-me em Tuas mãos e declaro que a minha vida, o meu destino, o meu “fim”, o desdobramento da minha vida está em Tuas mãos. Ninguém é como Tu! Ninguém é forte, poderoso, misericordioso e amoroso como Tu. Estende a Tua mão poderosa sobre a humanidade, Pai. Resgata os que estão no pó da terra. Põe fim às lutas, às guerras, à corrupção, à impunidade! Põe fim à dor, ao sofrimento, à tristeza, ao desespero! Põe fim ao mal que, embora vencido na cruz de Teu Filho, grita como um desesperado, e no seu desespero ainda fere a muitos. Venha a nós o Teu reino! Venha a nós o Teu Filho Jesus, salvador e redentor de todo ser humano. Venham a nós o novo céu e a nova terra que a Tua palavra nos prometeu, onde habitará a justiça! (cf. 2Pd 3,13). Que o meu coração se prepare a cada dia para o encontro com Teu Filho Jesus. Amém!

                                                                    Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

QUEM DEVORA RECEBERÁ A PIOR CONDENAÇÃO

Missa do 32º. dom. comum. Palavra de Deus: 1Reis 17,10-16; Hebreus 9,24-28; Marcos 12,38-44.

“Tomai cuidado com os doutores da lei! Eles devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações” (Mc 12,38.40). Atualizando: tome cuidado com toda pessoa que exerce a função de autoridade – políticos, juízes, líderes religiosos, policiais, diretores, chefes, professores e, inclusive, pais. Por que devemos tomar cuidado com toda pessoa que tem um cargo de autoridade? Porque a autoridade me dá “poder” sobre o outro, e se eu sou uma pessoa mal resolvida, psicologicamente doentia, ou se sou mal intencionado, posso usar da minha autoridade para “devorar” os outros.
Como é que eu “devoro” uma pessoa. Eu a devoro aproveitando-me das suas carências afetivas para satisfazer as minhas fantasias sexuais; eu a devoro tirando dinheiro dela, convencendo-a de que está ajudando a igreja que eu represento ou a causa que eu defendo; eu a devoro transformando-a em minha admiradora e em minha fiel seguidora, porque o meu narcisismo é insaciável; eu devoro pessoas quando as envolvo no trabalho pastoral não em vista de evangelização, mas para que a minha paróquia se projete na Diocese e eu seja futuramente indicado para bispo...
Segundo Jesus, quem conscientemente usa da sua função de autoridade para “devorar” pessoas em vista dos seus projetos pessoais, muitas vezes doentios e sem nenhuma ética, receberá a pior condenação (cf. Mc 12,40). Por que a “pior condenação”? Porque se aproveitou do fraco; porque abusou da inocência alheia; porque traiu a confiança de quem se confiou aos seus cuidados; porque – no caso de alguns líderes religiosos – profanou o nome de Deus, de Cristo e da sua Igreja; em suma, porque escandalizou a pessoa, no sentido de fazê-la perder a fé.
“(...) eles receberão a pior condenação” (Mc 12,40). Eles quem? Investidores estrangeiros e donos de bancos que devoram países e povos com a especulação financeira e os juros abusivos; policiais que abusam do poder, que “modificam” a cena do crime para incriminarem os que eles mataram injustamente; juízes que vendem sentenças; políticos e empresários que se beneficiam com a corrupção; traficantes e bandidos do crime organizado que exploram crianças e adolescentes e os tornam criminosos precocemente; países ricos que financiam armas para alimentar a guerra civil em outros países, por causa de interesses financeiros como o petróleo, o minério ou a água...
            No mundo atual está difícil encontrar alguém que não seja “devorador” do outro. Todos nós estamos nos habituando a só enxergar as pessoas quando elas podem nos “dar” alguma coisa. Para nos curar dessa doença, para nos livrar desse mal, Jesus nos convida a olhar para uma “pobre viúva” que “deu duas pequenas moedas, que não valiam quase nada” (Mc 12,42). E Jesus faz esta comparação: “Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver” (Mc 12,44).
            O grande mal da sociedade moderna, aquilo que acaba com um relacionamento, que joga no descrédito tantas autoridades, aquilo que “desautoriza” tantos de nós, é dar para os outros aquilo que temos de sobra, quando sobra e se é que sobra. Se sobra tempo, disposição, vontade ou energia, eu me dou para o outro, eu penso em alguém além de mim mesmo(a), eu me envolvo numa causa social, eu sirvo a Deus, eu me comprometo com a minha igreja. Se sobra... Caso contrário, não.
            Só existe cura, conserto, restauração, só existe mudança, libertação, transformação quando paramos de devorar os outros e passamos a oferecer-lhes tudo aquilo que possuímos para viver, ou seja, o melhor de nós. Sim, pode ser que você acredite que oferecer as suas duas moedas não vai resolver nada, não vai fazer diferença. Afinal, elas não valem quase nada, não é? Engano seu. Não é verdade que o seu abraço, o seu olhar, o seu ouvir, a sua palavra não valem quase nada para a outra pessoa. Não é verdade que a sua atitude em economizar água e energia não vale nada para o planeta. Não é verdade que a sua decisão em ser honesto(a) e ter um comportamento justo não vai fazer diferença para o seu ambiente de trabalho, ou para a sua cidade ou para o nosso país. O seu gesto, a sua atitude, a sua decisão aparentemente “não vale quase nada”, mas é isso que faz a diferença, é isso que salva, é isso que começa a pôr fim nessa atitude desumana, antiética e anticristã de “devorar” os outros.

Para a sua oração: Minha essência (Thiago Brado)

                                                                 Pe. Paulo Cezar Mazzi

sábado, 31 de outubro de 2015

NOSSO CORPO SERÁ "ABRAÇADO" PELA RESSURREIÇÃO DE CRISTO

Missa dos fiéis defuntos. Palavra de Deus: Isaías 25,6a.7-9; Romanos 8,14-23; Mateus 25,31-46.

                        O que existe depois da morte? Segundo Jesus acabou de nos dizer, depois da morte existe um encontro entre nós e Ele. É o momento em que a Luz da Verdade, que é Jesus, clareia toda a nossa história de vida, revelando não somente os nossos atos, mas com qual intenção fizemos aquilo que fizemos. Por isso, o momento depois da morte é também o momento da justiça, o momento do julgamento. Aquela justiça que muitas vezes não encontramos no mundo, devido à corrupção e à impunidade; aquela justiça que tantos esperaram de Deus e “não veio” – e por isso muitos deixaram de crer em Deus – aquela justiça se dará neste encontro de cada ser humano com o Filho de Deus, a quem o Pai concedeu o poder de julgar segundo a verdade e a justiça.
                        Sabemos que Jesus não veio para condenar a humanidade, mas sim para salvá-la. No entanto, cada ser humano pode, na sua liberdade, se condenar ou se salvar, na medida em que rejeita ou acolhe a oferta de salvação que Jesus Cristo nos traz. No entanto, para surpresa nossa, o nosso julgamento não consistirá em verificar se observamos normas, regras ou mandamentos, mas como tratamos o nosso próximo, sobretudo aquele que precisa de nós.
                        Neste Evangelho, Jesus revela que, antes de nos encontrarmos definitivamente com Ele após a morte, esse encontro já se deu inúmeras vezes durante a nossa vida terrena: “Eu tive fome e me destes de comer... Eu tive fome e não me destes de comer...” (Mt 25,35.42). Numa época de forte individualismo e de indiferença para com a dor dos outros, Jesus nos deixa conscientes de que a salvação não é uma questão entre nós e Deus, mas entre nós, o nosso próximo e Deus. Assim como Deus é misericórdia – se deixa afetar pela dor do outro – assim devemos ser misericordiosos. “O julgamento será sem misericórdia para quem não pratica a misericórdia. Mas a misericórdia triunfa sobre o julgamento” (Tg 2,13). Quem pratica a misericórdia não teme o julgamento.
                        Um cuidado devemos ter, quando pensamos na ajuda aos necessitados. Segundo Madre Teresa de Calcutá, a pergunta de Deus para nós, no momento do julgamento, não será: “Quantas coisas boas você fez na sua vida?”, mas será: “Quanto amor você colocou naquilo que fez?”. Também o apóstolo Paulo afirma: “Ainda que eu desse todos os meus bens aos pobres (...), seu eu não tivesse amor, isso de nada me serviria” (1Cor 13,3).
                        Neste dia de Finados, o profeta Isaías nos oferece uma imagem do Céu: ele é como “um banquete de ricas iguarias” (Is 25,6), preparado para todos os povos, porque Deus quer que toda a humanidade seja salva (cf. 1Tm 2,4). A Eucaristia que celebramos neste dia não é apenas para pedir perdão a Deus pelos pecados dos que partiram desta vida, mas, sobretudo, para proclamar a nossa fé n’Aquele que “não é o Deus dos mortos, mas dos vivos, pois para Ele todos vivem” (Lc 20,38), n’Aquele que “eliminará para sempre a morte, e enxugará as lágrimas de todas as faces... Este é o nosso Deus, esperamos nele, até que nos salvou” (Is 25,9).
                        Renovando nosso encontro com Jesus e nossa fé em Deus Pai, nós nos alegramos pelo Espírito Santo que nos foi dado, por meio do qual podemos não somente clamar, mas também proclamar: “Abá, ó Pai!” (Rm 8,15). Assim como Jesus, na proximidade da sua morte, disse aos discípulos: “Eu não estou sozinho; o Pai está comigo” (Jo 16,32), assim o Espírito Santo nos consola com a certeza de que, quer estejamos vivos, quer tenhamos morrido, continuamos a pertencer ao Pai (cf. Rm 14,8); estamos, portanto, guardados pelas Suas mãos e no Seu coração.   
Mesmo que tenhamos que enfrentar “os sofrimentos do tempo presente”, nós os enfrentamos com confiança, sabendo que eles nos abrirão para “a glória futura que será revelada em nós” (Rm 8,18). Se a nossa presença no cemitério nos faz tomar consciência (deveria fazer) de que a nossa fé em Deus nunca nos impedirá de morrer, ela também deve nos tornar mais conscientes ainda do gemido que se encontra no mais profundo do nosso ser, gemido que expressa a nossa pertença a Deus e o desejo do nosso corpo ser abraçado pela ressurreição de Cristo. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

MARCA DE PERTENÇA

Missa de todos os santos. Palavra de Deus: Apocalipse 7,2-4.9-14; 1João 3,1-3; Mateus 5,1-12a.

            No dia a dia, nós recebemos uma série de “cobranças”: ‘Você precisa ter um corpo sarado; ser bonito(a); ser visto(a)! Você precisa conquistar, ser vitorioso(a); ser bem sucedido(a), fazer sucesso, brilhar! Você precisa ser admirado(a)/invejado(a)!’... No entanto, ninguém nos cobra santidade: ‘Você precisa ser santo!’
            Ser santo não é um valor para o mundo atual. Pelo contrário, ser santo é entendido como ser ‘certinho’, ser ‘chato’, ser ‘do contra’, ser ‘ultrapassado’ etc. Jesus tem um outro conceito de santidade, como acabamos de ver no Evangelho. Para ele, essas são as atitudes próprias de quem é santo aos olhos de Deus: a pessoa é pobre em espírito, ou seja, tem a Deus como seu único e verdadeiro bem; a pessoa se aflige, isto é, sofre com a dor do outro; a pessoa é capaz de mansidão, ao lidar com os conflitos; os santos são pessoas que têm fome e sede de justiça; são misericordiosas; são puras de coração; se esforçam em promover a paz. Além disso, são pessoas perseguidas por causa da justiça e de Jesus Cristo.
            Dizendo de outra maneira, sabe aquele jovem que decidiu morar com os avós, que estão bastante idosos e com Alzheimer, para cuidar deles ao invés de colocá-los num asilo? Sabe aquela mulher que passou casada a vida toda com um marido infiel, e agora que ele se encontra doente, cuida dele? Sabe aquela pessoa que por anos e anos carregou consigo uma doença ou uma ferida e nunca reclamou disso com ninguém? São santos de carne e osso!
            Para o Apocalipse, as pessoas santas trazem consigo a marca do Deus vivo. Diferente de uma tatuagem, essa marca não pode ser vista, porque ela se encontra na consciência da pessoa. É uma marca de pertença (cf. Ap 7,2.3): ‘Eu pertenço a Deus. Só n’Ele encontro alegria e paz. Fora d’Ele não encontro nenhum bem. Só quando me deixo conduzir pelo Espírito de Deus é que experimento felicidade, porque a vontade de Deus a meu respeito é a minha felicidade’.
            Mas, de que maneira a marca do Deus vivo é dada às pessoas santas? Por meio de uma grande tribulação (cf. Ap 7,14). Da mesma forma que depois de uma queimadura ou de um corte profundo fica uma marca no corpo da pessoa, assim a marca de pertença a Deus nos é dada depois de termos enfrentado uma dor, um sofrimento, uma luta, uma tribulação. Alguns não querem essa marca, porque ela é vista somente como algo que “mancha” a imagem da pessoa. Mas outros sentem um saudável “orgulho” dela, porque sabem que a luta que enfrentaram serviu para lhes amadurecer, corrigir e santificar. 
              Engana-se quem pensa que as pessoas santas vivem longe dos conflitos do mundo. Pelo contrário. Os maiores conflitos e as grandes perseguições se desencadeiam na vida de quem não aceita tomar a forma do mundo, mas procura viver com sua consciência voltada para Deus. Engana-se também quem pensa que as pessoas santas têm uma fé inabalável e vivem numa constante harmonia com Deus. Madre Teresa de Calcutá viveu um longo período de aridez espiritual que durou 50 anos! Apesar disso, todos os dias ela rezava, adorava Jesus Eucarístico, participava da missa e socorria Jesus na pessoa dos pobres. Questionada, certa vez, se ela um dia seria declarada Santa pela Igreja, respondeu: “Se um dia eu for Santa, serei com certeza a santa da escuridão. Estarei continuamente ausente do Paraíso”.
            “Escuridão” e “ausência do Paraíso” significam que pessoas santas são aquelas que muitas vezes não sentem Deus e, no entanto, passam a vida servindo-O, anunciando-O, lutando com Ele como Jacó (cf. Gn 32,23-33); lutando consigo também, com o seu ego; lutando com um mundo que sistematicamente exclui Deus da política e da economia, mas questiona Sua existência diante das injustiças humanas e das catástrofes naturais.   
            Se você quiser saber se a santidade ainda é um valor para você, pergunte-se: Eu procuro agir de acordo com a minha consciência ou de acordo com a minha conveniência? Eu aceito ser conduzido(a) pelo Espírito de Deus também quando a direção que Ele quer dar à minha vida não é aquela que eu quero? Eu suporto “não sentir” Deus e mesmo assim anunciá-Lo com a minha vida ao mundo? Eu me deixo afetar pela dor do outro? Eu sou solidário com quem sofre porque tenho fome e sede de justiça ou porque tenho fome e sede de ser reconhecido como “bom” e, portanto, ser “promovido”?  

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

NÃO SOMENTE VER COM OS OLHOS, MAS TAMBÉM ENXERGAR COM O CORAÇÃO

Missa do 30º. dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 31,7-9; Hebreus 5,1-6; Marcos 10,46-52.

            Nós vemos, mas nem sempre enxergamos. Todos os dias, uma infinidade de palavras e imagens entra pelos nossos olhos, mas nosso cérebro não consegue processar todas as informações, assim como nosso coração não consegue reconhecer todos os sentimentos. Então, nem tudo o que vemos de fato enxergamos. Além disso, não se trata apenas de ver com os olhos; é preciso enxergar com o coração: “O essencial é invisível para os olhos; só se vê bem com o coração” (Exupéry). Se os nossos olhos enxergam, mas o nosso coração está cego, nós frequentemente batemos com a cabeça na parede.
            Diante de pergunta de Jesus: “O que queres que eu te faça?”, o cego Bartimeu rapidamente respondeu: “Mestre, que eu veja!” (Mc 10,51). Pareceria óbvio que alguém que não enxerga quisesse enxergar. Mas não! Quantos pais não querem enxergar que seu filho é um dependente químico? Quantas pessoas não querem enxergar que estão doentes? Quantos não aceitam enxergar que a relação que vivem é nociva e já passou da hora de romper com ela?
            Por que nós às vezes preferimos não enxergar? Porque quando nos fazemos de cegos podemos vez ou outra receber esmolas de alguém. Bartimeu era cego e mendigo (cf. Mc 10,46). A cegueira nos faz mendigos: dependentes da visão dos outros, das esmolas dos outros. É uma situação que pode nos acomodar: vivo da compaixão dos outros, das esmolas que me dão. Não preciso caminhar: posso permanecer sentado à beira da estrada... Então, é preciso perguntar: quem de nós de fato pediria a Jesus: “Que eu veja!”? ‘Que eu enxergue a saída para essa situação! Que eu enxergue a minha responsabilidade na situação em que me encontro! Que eu enxergue meus erros e me corrija deles!’ Quem de nós pediria isso de coração a Jesus?
            A cegueira também pode, de alguma forma, ser comparada com a fé. Nós não enxergamos Deus, mas cremos n’Ele. Por isso o apóstolo Paulo afirma: “Caminhamos pela fé e não pela visão” (2Cor 5,7). Portanto, aquilo que nos paralisa na vida não é a cegueira, mas a falta de fé. Recobrar a fé significa que eu não vejo a Deus, mas me deixo conduzir por Ele, por sua Palavra, por seu Espírito. Mesmo em meio às lágrimas, quando eu não consigo ver direito, preciso lançar as sementes. Mesmo não enxergando nenhum sinal de chuva, eu preciso confiar que ela virá, e por isso lanço as sementes, como nos ensina o Salmo 126.
            Oração: Deus Pai, quando Agar estava desesperada no meio do deserto, com seu filho pequeno nos braços, o senhor abriu-lhe os olhos e a fez enxergar um poço, ao qual ela deu o nome de “o poço do Deus vivo que me vê” (cf. Gn 16,13; 21,19). Tu és o Deus vivo que não somente me vê, mas que vê muito além do que eu tenho conseguido ou desejado ver. Abre os olhos do meu coração, Pai, para que eu enxergue a mim, aos outros, a vida e a Ti como preciso enxergar. Mesmo não Te vendo, quero deixar-me conduzir por Ti, pela verdade da Tua palavra. Como Jeremias, eu também suplico: “Salva, Senhor, teu povo” (Jr 31,7), desencantado com as Instituições e cada vez mais corrompido em sua consciência. Reconduz nossos cativos, todos os que estão oprimidos por algum tipo de vício ou de situação injusta. Muda, Senhor, a nossa sorte; muda a consciência ou o que ainda resta dela naqueles que nos representam na política. Dá a cada ser humano uma saudável “revolta”, aquela coragem necessária para se levantar, para jogar fora o seu manto, para romper com uma vida que se contentou em viver de esmolas. Assim como Bartimeu, ajuda-nos a gritar, a não nos calar diante das injustiças. Sobretudo, que como ele possamos seguir ao Teu Filho Jesus continuamente pelo caminho da vida, não somente vendo com os olhos, mas também enxergando com o coração. Amém!  

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

RITO DE PASSAGEM

Missa do 29º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 53,10-11; Hebreus 4,14-16; Marcos 10,35-45.

Quanto vale a vida de alguém que você ama? Quanto você estaria disposto(a) a pagar/sofrer para resgatar/trazer de volta aquilo que é mais precioso para a sua vida? Você é capaz de “morrer” para salvar/resgatar/recuperar seu casamento, sua família, seu filho, o ambiente em que trabalha, a igreja que frequenta, o planeta em que vive?
Aceitar ser macerado/esmagado com sofrimentos. Aceitar fazer de sua vida uma expiação/um contínuo pedido de perdão pelos pecados os outros. Aceitar carregar sobre si as culpas dos outros. Só um aceitou viver assim: Jesus, o Servo Sofredor. Embora instintivamente nós fujamos (ou tentemos fugir) da dor, Jesus quis ir ao encontro dela para nos ensinar que não se trata de buscar o sofrimento pelo sofrimento, mas de entrar em comunhão com todo aquele que sofre.
Sim. É verdade que o confronto com a dor, com o sofrimento, nos faz vacilar na fé. Contudo, devemos aprender a permanecer “firmes na fé que professamos” (Hb 4,14), pois não há dor neste mundo que Jesus não tenha conhecido, experimentado, carregado sobre si e redimido. Ele é, diante de Deus, o nosso Intercessor, o “sumo sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb 4,15). Não há culpa/condenação neste mundo que Jesus não tenha absolvido, expiado, perdoado.
Existem expressões bíblicas que precisam ser aprofundadas. Ser “macerado” (Is 53,10) significa ser moído como trigo, esmagado como uva. Há situações que exigem isso de nós: fidelidade, coerência, santidade. Trata-se de moer/esmagar o próprio ego, a tendência a se fechar, a se acomodar, a não ajudar, a deixar morrer algo que podemos impedir que morra. Ser “provado” (Hb 4,15)/experimentado no sofrimento significa tornar-se adulto diante da vida; agir como adulto diante das escolhas que fizemos. É uma espécie de “rito de passagem”. Quem não aceita ser provado/experimentado na dor permanece na infância ou na adolescência de si mesmo, da sua fé, da compreensão da vida; ainda não se tornou adulto, nem como pessoa, nem como cristão.
“Queremos que faças por nós o que vamos pedir... Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda quando estiveres na tua glória!” (Mc 10,35.37). Assim como Tiago e João, nós também queremos a glória, a coroa, a vitória, o troféu, o reconhecimento, o prêmio... Mas ninguém recebe isso sem lutar (cf. 1Cor 9,24-25)! A vida é luta; a fé é luta: luta consigo, com os próprios instintos, com o ego que quer tudo para si e se recusa a não ser o centro, a não ser tratado como príncipe; luta com uma sociedade que busca a sua própria glória à custa do sofrimento dos outros; luta contra a tentação de ser reconhecido como vencedor sem ter tido que lutar.  
Antes de sentar-se na glória, é preciso ter a capacidade de beber o cálice da dor e de mergulhar (batismo) no sofrimento do mundo. Você está disposto(a)? Mais uma vez é importante deixar claro: não se trata de programar seu GPS interior para ir de encontro à dor, mas de aprender a lidar com ela, caso cruze o seu caminho. Trata-se de não desistir dos nossos objetivos ou dos ideais que abraçamos simplesmente porque agora nos deparamos com a dor. “Quando começou a doer, eu larguei, eu desisti”: é assim que você se comporta diante das escolhas que faz na vida?
Jesus afirma que “veio para servir e dar sua vida como resgate para muitos” (Mc 10,45). Todo resgate tem um preço. Eu só aceito pagar o preço do resgate por algo que é por demais precioso para mim. Qual é o preço do resgate? O preço é a doação da vida, o sacrifício de si mesmo. Justamente porque cada ser humano é precioso para Deus, Jesus suportou morrer, isto é, ser moído, esmagado, sofrer, para ter você de volta, para te resgatar, para te salvar. E você, está disposto(a) a fazer o mesmo para salvar aquilo ou aqueles aos quais você ama? 

Pe. Paulo Cezar Mazzi