quinta-feira, 30 de abril de 2020

SEM AFETO, NÃO EXISTE CUIDADO


Missa do 4. Dom. da Páscoa. Atos dos Apóstolos 2,14a.36-41; 1Pedro 2,20b-25; João 10,1-10.

            A Campanha da Fraternidade deste ano trouxe como lema o cuidado para com a vida, a partir da atitude do bom samaritano que, ao encontrar pelo caminho um homem ferido, “viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34). A vida pede para ser cuidada. Na verdade, tudo o que não cuidamos perdemos. Justamente por isso, tudo aquilo que nos é caro, precioso e significativo, pede para ser cuidado: nossa saúde, nossos relacionamentos, as pessoas que amamos, o meio ambiente, nossa própria espiritualidade etc.
            Todo ato de cuidar nasce de uma relação afetiva entre o cuidador e aquele ou aquilo que necessita ser cuidado. Ao mesmo tempo em que a imagem do cuidador é retratada na Sagrada Escritura pela pessoa do Pastor, a imagem daquele que necessita de cuidados é retratada pela ovelha. Antes de falar do relacionamento que existe entre o pastor e a ovelha, isto é, entre o cuidador e aquele que ele é chamado a cuidar, Jesus chama a nossa atenção para a porta: “Quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante” (Jo 10,1). O próprio Jesus dirá a seguir: “Eu sou a porta” (Jo 10,9).
            Na região onde Jesus viveu, existiam rebanhos de ovelhas e seus respectivos pastores. Ao final do dia, o pastor recolhia suas ovelhas no redil e sentava-se na porta do redil, dormindo ali mesmo. Era uma atitude de proteção: nenhuma pessoa e nenhum animal poderiam entrar no redil para roubar ou atacar uma ovelha sem passar pelo pastor. Em outras palavras, o corpo – a própria vida – do pastor era a porta que protegia as ovelhas. Jesus identifica-se com a porta, primeiramente porque seu corpo foi ferido na cruz para curar as feridas de todas as ovelhas do rebanho de Deus – a humanidade. Daí a palavra de Pedro: “Sobre a cruz, carregou nossos pecados em seu próprio corpo, a fim de que, mortos para os pecados, vivamos para a justiça. Por suas feridas fostes curados” (1Pd 2,24).
            Mas há também outro motivo. Ao identificar-se como porta do redil das ovelhas, Jesus se dirige aos líderes religiosos do seu tempo, afirmando que qualquer pessoa que tem como função cuidar dos outros, cuidar de valores que favoreçam a vida, precisa espelhar-se n’Ele. “Entrar pela porta” significa, portanto, configurar-se a Jesus, o bom Pastor. Jesus sempre será o modelo do autêntico cuidador. Toda pessoa que exerce liderança sobre outras, que tem a responsabilidade de educar, chefiar, liderar, governar, precisa aprender com Jesus como cuidar, permitindo que a vida que está sob seus cuidados desabroche em toda a sua capacidade e unicidade.
            Cuidar é uma questão de relacionamento e um relacionamento que se estabelece no afeto entre o cuidador e aquele que precisa ser cuidado. Cuidar não é uma questão somente efetiva, mas, sobretudo, afetiva. Quanto mais eu amo, mais cuido. Se eu, porventura, deixar de amar, deixarei também de cuidar. Isso vale para a minha própria vocação e também para as pessoas que Deus confiou aos meus cuidados, como consequência da minha vocação.
            Jesus nos ensina que o afeto entre o pastor e a ovelha é expresso pela voz do pastor: “as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora. E, depois de fazer sair todas as que são suas, caminha à sua frente, e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz” (Jo 10,3-4). A voz é a própria comunicação do afeto do pastor para com cada uma de suas ovelhas. Cada ovelha se sente amada pelo seu pastor porque ele a chama pelo nome; ela se encontra no meio de um imenso rebanho, mas sabe que é única para o seu pastor! Ela tem um nome, uma história, uma necessidade que só o seu pastor conhece. As ovelhas seguem a voz do pastor porque sua voz lhes transmite orientação, segurança, confiança, amparo.
            Como nós, ovelhas do rebanho do Senhor, estamos em relação a isso? Vivendo neste mundo cheio de ruído, cheio de barulho, ainda conseguimos identificar a voz de Jesus em nossa consciência? A voz do pastor indica a direção para a ovelha: eu sou uma pessoa dirigida a partir de fora (mundo) ou a partir de dentro (Jesus)?  
             A voz do pastor conduz as ovelhas “para fora” do redil. Todo autêntico líder provoca as pessoas que estão sob seus cuidados a virem para fora, a saírem da sua zona de conforto, a crescerem, a olharem a vida nos olhos, a enfrentarem os desafios. Todo cuidador que ama aqueles que estão sob seus cuidados provoca-os ao crescimento, ao amadurecimento, ao fortalecimento perante os desafios da vida. Superproteger as pessoas que nós amamos impede que elas cresçam e se responsabilizem pela vida. Precisamos evitar que as pessoas que estão sob nossos cuidados cresçam infantilizadas.  
            “Depois de fazer sair todas as que são suas, caminha à sua frente, e as ovelhas o seguem” (Jo 10,4). Por mais afeto e intimidade que exista entre pastor e ovelha, cada um precisa saber qual é o seu papel, qual é o seu lugar. Pais não são filhos e filhos não são pais. Como se costuma dizer, seu filho pode escolher amigos, mas ele não pode escolher pai ou mãe. Pais que se tornam “amigos” dos filhos e abrem mão do papel de cuidadores/orientadores, estão deixando seus filhos órfãos. A intimidade e a liberdade entre pais e filhos não pode anular o lugar que cada um ocupa na família e perante a vida. O lugar do cuidador é “à frente” daqueles que ele cuida, e não “ao lado”, muito menos “atrás”! A orientação a respeito da vida deve vir dos pais e não dos filhos. 
            Ao final do Evangelho, Jesus volta à imagem da porta: “Eu sou a porta. Quem entrar por mim será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem” (Jo 10,9). A porta serve tanto para nos deixar entrar quanto para nos deixar sair. Entrar pela porta que é Jesus significa saber que somente Ele pode nos dar acesso ao Pai. A única porta que a humanidade tem aberta para conhecer verdadeiramente o Pai é seu Filho Jesus. “por meio dele, nós... num só Espírito, temos acesso ao Pai” (Ef 2,18). Jesus “é capaz de salvar para sempre aqueles que, por meio dele, se aproximam de Deus” (Hb 7,25).
            “(...) entrará e sairá e encontrará pastagem” (Jo 10,9). Sair pela porta significa ser liberto de uma situação de não-vida. Nosso mundo ama a liberdade. No entanto, as inúmeras portas que nos oferece muitas vezes nos jogam em situações de aprisionamento, de adoecimento e de morte. Muitas pessoas abriram portas erradas e se permitiram prender a situações de adoecimento e de infelicidade. Jesus se oferece como a porta que nos dá acesso à libertação de tudo aquilo que nos escraviza e nos desumaniza. A porta está aberta: depende de cada um de nós se levantar e sair por ela, para encontrar a verdadeira vida que o Pai deseja oferecer à humanidade na pessoa do Filho.  
           
Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 23 de abril de 2020

RECONDUZIR O CORAÇÃO PARA A ALEGRIA E O ENCANTO

Missa do 3º dom. da Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 2,14.22-33; 1Pedro 1,17-21; Lucas 24,13-35.

Nossa vida é feita de acontecimentos. Alguns acontecimentos são bons; outros, ruins; alguns são consequência das nossas atitudes; outros, surgem sem que os tenhamos provocado. É verdade que nós nem sempre somos responsáveis por aquilo que nos acontece, mas sempre somos responsáveis pela maneira como estamos lidando com aquilo que nos acontece.
A morte de Jesus na cruz foi um acontecimento extremamente negativo para os discípulos. Ao vê-lo crucificado e morto, a esperança que haviam depositado n’Ele morreu também. É por isso que esses dois discípulos deixam Jerusalém, lugar da crucifixão e morte de Jesus, e dirigem-se para Emaús. O Evangelho nos revela a tristeza e o desencanto desses discípulos, tristeza e desencanto que algumas vezes marcam a nossa vida de maneira intensa e profunda.
Como lidamos com acontecimentos que nos deixam tristes e desencantados? A reação mais comum é o afastamento, o abandono. Por não acreditarem mais na possibilidade da mudança ou de uma recuperação, algumas pessoas abandonaram determinado relacionamento ou até mesmo a sua vida profissional. Outras talvez não chegaram à atitude radical do abandono, mas estão seguindo pela vida com o rosto nitidamente triste, expressando desencanto, como estavam os discípulos de Emaús.
Exatamente nessa situação de tristeza e desencanto Jesus se aproxima dos dois discípulos e começa a caminhar com eles. “Os discípulos, porém, estavam como que cegos, e não o reconheceram” (Lc 24,16). Eis aqui algo muito comum em nossa vida: não reconhecemos que Jesus caminha conosco! Nos esquecemos de que Ele mesmo prometeu: “Eu estarei convosco todos os dias...!” (Mt 28,20). Como é que não reconhecemos o Ressuscitado caminhando conosco? A razão é que nós estamos presos em nossa dor; nos deixamos cegar pela tristeza e pela falta de esperança; nos fechamos a qualquer tipo de ajuda que pudesse nos fazer compreender as coisas de uma outra maneira.
O que Jesus fez para ajudar os discípulos a saírem de dentro do túmulo da tristeza e do desencanto? Ele primeiro quis ouvi-los, deixou-os falar. Nós precisamos falar sobre o que sentimos, precisamos dar nome àquilo que está trancado em nossa alma ou entalado em nossa garganta. Quando falamos sobre o que sentimos, quando damos nome às nossas emoções, começamos a administrar o que está acontecendo conosco, deixando de simplesmente sofrer passivamente os acontecimentos. Sobretudo nos nossos relacionamentos, precisamos falar o que sentimos e precisamos igualmente ouvir o outro, ter a coragem de silenciar e deixar a outra pessoa falar como ela se sente em relação a nós ou àquilo que fizemos.
Após ouvir os discípulos, Jesus deu a sua interpretação sobre os acontecimentos que haviam enterrado a esperança deles: “‘Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?’ E, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele” (Lc 24,26-27). O que Jesus fez foi mostrar àqueles discípulos que a nossa vida não é fruto do acidente ou do acaso; há um propósito para cada um de nós estar no mundo. Diante de cada coisa que nos acontece, é importante nos perguntar: O que a vida (ou Deus) está tentando me dizer com isso? Qual atitude a vida (ou Deus) está pedindo que eu tenha diante desse acontecimento? Embora esse fato seja desagradável, sofrido, será que não há uma forma positiva, construtiva, de eu lidar com ele, dos que simplesmente desistir de tudo e ir embora para Emaús? 
A luz que começou a clarear a visão dos discípulos veio da Escritura. A Bíblia não é um livro de respostas fáceis e práticas a todas as perguntas que hoje temos no coração, mas é luz. Ela nos oferece a Palavra que pode ampliar nosso horizonte de compreensão das coisas e nos indicar caminhos diferentes para lidar com os acontecimentos, caminhos que nos tornem maduros e responsáveis para com a nossa própria história de vida. Enquanto a voz do nosso ego nos aconselha a fugir de toda experiência difícil, a voz de Deus na sua Palavra nos incentiva a enfrentar aquilo que está nos acontecendo com serenidade, liberdade e responsabilidade.  
Conversa vai, conversa vem, a noite chegou, e os dois discípulos pediram àquele homem que caminhava com eles: “‘Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!' Jesus entrou para ficar com eles. Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus” (Lc 24,29-31). Eis a maneira como Jesus, após a ressurreição, escolheu estar junto dos seus discípulos, junto da sua Igreja: pela Palavra da Escritura, (sobretudo, o Evangelho) e pelo partir o pão, que é a Eucaristia. Eis também uma indicação importante para nós, que comungamos a Eucaristia: nos colocar junto das pessoas que se afastaram das nossas celebrações ou que nunca estiveram nelas, pessoas que caminham por este mundo desorientadas e muitas vezes tomadas pela tristeza e pelo desencanto, e dialogar com elas, de modo que em seus corações renasça a alegria, a esperança, o sentido da própria vida, e elas possam confirmar: “Realmente, o Senhor ressuscitou...!” (Lc 24,34). 
Tenhamos a Escritura mais perto de nós! Permitamos que ela amplie a visão que temos da própria vida e nos ajude não somente a compreender melhor os acontecimentos, mas, sobretudo, a confirmar em nossos corações a convicção acerca da verdade da ressurreição: “Deus ressuscitou a Jesus, libertando-o das angústias da morte, porque não era possível que ela o dominasse... ‘Porque não deixarás minha alma na região dos mortos nem permitirás que teu Santo experimente corrupção’. É, portanto, a ressurreição de Cristo que (Davi) previu e anunciou com as palavras: ‘Ele não foi abandonado na região dos mortos e sua carne não conheceu a corrupção’” (At 2,24.27.31).
Retomemos diariamente o apelo do Papa Francisco em vista de nos tornarmos sempre mais uma “Igreja em saída”, uma Igreja que se coloca junto dos desencantados e dos entristecidos desse mundo, para ajudá-los a interpretar suas histórias de vida à luz da fé e do plano do Pai, de salvar todas as pessoas em seu Filho Jesus Cristo. Ajudemos as pessoas do nosso tempo a tomarem consciência de que a fé a esperança delas devem ser colocadas em Deus (cf. 2ª leitura).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 16 de abril de 2020

ASSIM COMO A FÉ, A RESSURREIÇÃO É FORÇA INTERIOR!


Missa do 2º dom de Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 2,42-47; 1Pedro 1,3-9; João 20,19-31.

            Na noite do domingo de Páscoa, “estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’” (Jo 20,19). Portas fechadas por causa do medo... A pandemia do novo coronavírus nos empurrou para dentro de casa e nos trancou no medo de sermos contaminados e morrermos. O sentimento do medo é hoje certamente o mais comum em nós. Existe também o medo quanto à nossa sobrevivência, uma vez que as previsões econômicas mundiais são sombrias, pessimistas, até mesmo ameaçadoras.
            A boa notícia da Páscoa é que o Senhor Ressuscitado entra e se coloca junto de nós! Ele atravessa nossas portas fechadas e dissipa o medo que nos angustia e nos paralisa, dizendo: “A paz esteja convosco” (Jo 20,19). “Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (Jo 20,20). A paz com a qual Jesus quer encher nosso coração é a paz que traz as marcas da cruz, do sofrimento, de quem lutou com a morte e venceu! Ao mostrar as suas chagas, Jesus quer nos encorajar a não ter medo de lutar em favor da vida, da justiça e da esperança. A paz que o Ressuscitado nos transmite é sinônimo da coragem que afasta o medo, da alegria que supera a tristeza e da esperança que dissipa o desespero.
            Nada mudou da porta para fora. O mundo continua o mesmo. Os problemas e os desafios continuam a existir, mas há uma mudança dentro dos discípulos – a mesma mudança que Jesus quer provocar dentro de cada um de nós! “Como o Pai me enviou, também eu vos envio... Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,21-22). O nosso lugar como discípulos do Senhor Ressuscitado é em meio a um mundo que precisa conhecer a verdade da ressurreição. Jesus não nos quer fechados em nossos próprios problemas, mas abertos à vida, abertos àquilo que a vida está nos pedindo neste momento, e a vida sempre nos pede para cuidar: cuidar dos pequenos, dos fracos, dos injustiçados, dos menos favorecidos; cuidar dos feridos, dos desemparados, dos esquecidos; numa palavra, cuidar daqueles que são as chagas vivas de Jesus em nosso tempo. E podemos abraçar com alegria a missão de cuidar, sabendo que somos cuidados pelo Espírito Santo, que é a própria força do Senhor Ressuscitado em nós!
            Oito dias depois, exatamente num domingo como hoje, Jesus quis voltar a se manifestar aos seus discípulos. Havia alguém que ainda estava fechado em sua falta de fé, alguém para quem não bastou o testemunho daqueles que viram o Senhor Ressuscitado. Tomé estava fechado em seu capricho pessoal: “Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” (Jo 20,25). Temos muito de Tomé em nós! Quem de nós não deseja um encontro pessoal com Jesus? Quem de nós não sente falta de uma experiência intensa de fé? Para muitos de nós não basta o testemunho dos apóstolos, não basta a voz da Igreja, não basta a palavra da Escritura, não basta nem mesmo a Eucaristia porque, apesar de tudo isso, não sentimos Jesus vivo em nós...
            Não é errado desejar ter um encontro íntimo com o Senhor, mas é muito perigoso quando nos fechamos nos nossos caprichos de fé e exigimos sinais ou revelações particulares para só então crermos. Eis porque Jesus disse a Tomé: “Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!” (Jo 20,29). Nós imaginamos que os apóstolos que viram o Senhor Ressuscitado eram mais felizes que nós! Mas isso é puro engano. Jesus garantiu que felicidade maior têm aqueles que, não o vendo, creem nele, creem na verdade da sua ressurreição, creem na pregação dos apóstolos, transmitida pela Igreja ao longo dos séculos, creem nas palavras da Escritura que testemunham a sua ressurreição e prometem a nossa futura ressurreição! Felizes os que, diante do Evangelho que a Igreja proclama a cada dia, entendem que tudo o que está escrito nele o foi “para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31).
            O que se pede de nós, cristãos do século XXI, é que resgatemos a atitude da perseverança, à semelhança dos primeiros cristãos: eles “eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações” (At 2,42). O que se pede de nós é que vivamos na alegria do Ressuscitado “embora seja necessário que agora fiqueis por algum tempo aflitos, por causa de várias provações. Deste modo, a vossa fé será provada como sendo verdadeira...” (1Pd 1,7).
            São Pedro nos deixa conscientes de que a nossa fé no Cristo Ressuscitado sempre será uma fé provada, combatida, questionada por um mundo que só crê naquilo que vê, que pode comprovar. Mas nós continuamos a manter no coração as palavras de Jesus: ‘Felizes os que creem em mim mesmo não me vendo! Felizes os que não reduzem sua fé ao que veem, comprovam ou experimentam em sua emoção! Felizes os que me reconhecem as minhas chagas (feridas) em todos aqueles que estão chagados (feridos) à sua volta!’. Se a nossa fé se tornar assim, madura, profunda, perseverante, “isso será para vós fonte de alegria indizível e gloriosa, pois obtereis aquilo em que acreditais: a vossa salvação” (1Pd 1,9).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sábado, 11 de abril de 2020

VIVER COMO PESSOA RESSUSCITADA!


Missa de Páscoa. Palavra de Deus: Atos dos Apóstolos 10,34a.37-43; Colossenses 3,1-4; João 20,1-9.

Na manhã do domingo de Páscoa, os discípulos de Jesus estavam desencantados. Todos tinham abandonado Jesus no momento da sua Cruz; sentiam-se com medo dos judeus e culpados por terem deixado Jesus sozinho. Além disso, nenhum deles esperava pela Ressurreição. Maria Madalena, livre do sentimento de culpa e com mais coragem que os outros discípulos, foi ao túmulo de Jesus. Mas, quando encontrou o túmulo aberto, também não pensou na Ressurreição; pensou, sim, que o corpo de Jesus havia sido roubado. Assim como os discípulos, nós demoramos a crer. Mesmo que a vida nos dê sinais de Ressurreição, nossos sentidos ainda estão presos na imagem daquilo que morre a cada dia em nós e no mundo.
A pandemia do coronavírus ressuscitou em nós a consciência da morte. As doenças, os acidentes, as guerras e a violência em nosso mundo nos lembram que a morte pode nos atingir de várias maneiras, a partir de fora. Mas o problema principal é quando nós nos deixamos morrer a partir de dentro! Algumas pessoas, depois de serem atingidas por algum tipo de morte, reagiram e decidiram ressuscitar, enquanto outras se entregaram e se deixaram morrer. Nós conhecemos países ou cidades que, depois de serem destruídos por uma catástrofe, conseguiram se levantar e se reconstruir, assim como conhecemos pessoas que, depois de um acidente, depois de uma doença, de uma grande perda, aos poucos foram reagindo, retomando o desejo de viver e hoje estão “ressuscitadas” no meio de nós. Mas também conhecemos pessoas que, por muito ou por pouco, entregaram-se ao desânimo, ao fatalismo, e estão como que mortas no meio de nós.
Como nos sentimos nesta manhã de domingo de Páscoa? Ainda estava escuro, quando Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus e viu que a pedra tinha sido retirada. Ainda está escuro para nós também. Ainda temos que viver em quarentena. Ainda precisamos praticar o isolamento social. Ainda não foi descoberta uma vacina para o novo coronavírus. Ainda nos sentimos ameaçados por ele. Ainda está escuro, mas o Evangelho deste domingo de Páscoa nos lembra que não existe noite escura que possa impedir o sol de nascer. Assim, quando os primeiros raios de sol começam a iluminar o dia, Maria Madalena vê que a pedra que lacrava o túmulo de Jesus havia sido retirada.
Algo surpreendente aconteceu! Antes de Jesus morrer, a morte colocava uma pedra em cima de tudo, um ponto final em nossa existência terrena. Mas a pedra foi removida, o ponto final foi retirado. O túmulo de Jesus não está apenas aberto, mas vazio! Este túmulo vazio é o primeiro sinal da Ressurreição de Jesus. O outro sinal, o mais importante, nos será mostrado nos próximos domingos do Tempo Pascal, quando o próprio Jesus se mostrar Ressuscitado “não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia escolhido, isto é, a nós, que comemos e bebemos com ele, após a ressurreição dos mortos” (At 10,40). Portanto, não é o túmulo vazio que fundamenta a nossa fé na Ressurreição, mas é a presença de Jesus Ressuscitado que explica porque o túmulo está vazio! E o Senhor Ressuscitado proclama: “Estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e da região dos mortos” (Ap 1,18). Se Jesus tem consigo as chaves da região dos mortos é porque ele tem poder de fazer sair da morte aqueles que nela entraram, seja os que morreram de fato, seja os que se deixaram morrer em tantos sentidos.
A pandemia do novo coronavírus ainda ferirá de morte inúmeras pessoas, lembrando-nos de que a morte nos iguala a todos, independente da raça, do nível social, da crença; a única coisa que nos diferencia é a nossa fé na Ressurreição. Quem crê na Ressurreição não apenas enxerga a morte de uma outra forma, como também vive sua vida de uma outra forma. A Ressurreição de Cristo não anula a nossa morte, mas nos desafia a enxergar a vida além dela! Crer na Ressurreição não significa crer que não vamos morrer, ou que vamos ser poupados de sofrimento, mas significa crer que vamos vencer a morte e o sofrimento. O nosso sofrer e a nossa morte não são a negação da Ressurreição, mas o lugar existencial onde experimentaremos a sua força (cf. 2Cor 5,2-4)!
Justamente neste domingo da Ressurreição de Jesus, São Paulo nos convida a viver como pessoas ressuscitadas, buscando “as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus” (Cl 3,1). Diante de cada escolha, de cada decisão, devemos nos perguntar: a minha escolha, a minha decisão, vai me levar para o alto, para Deus, ou para baixo, me enterrando na morte? Viver como ressuscitados significa aceitar o fato de que nossa verdadeira vida “está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3). “Vida escondida” significa que, aos olhos do mundo, nós, que cremos na Ressurreição, continuamos a ser simples mortais. Mas a nossa fé nos diz que quando Cristo, nossa vida, aparecer em seu triunfo, seremos revestidos de glória, seremos com Ele ressuscitados (cf. Cl 3,4)! Como diz a antiga canção: “E quando amanhecer o dia eterno, a plena visão, ressurgiremos por crer nesta vida escondida no Pão!”
Da mesma forma como Cristo Ressuscitado mandou os discípulos testemunharem sua Ressurreição ao mundo, Ele nos confia hoje a mesma missão. Diariamente encontramos pessoas que desistiram de buscar as coisas do alto e passaram a viver arrastadas pelas coisas da terra, pessoas que desistiram de crer na força da Páscoa, desistiram de se esforçar em fazer a passagem da morte para a vida porque esta passagem se apresenta, à primeira vista, humanamente impossível. Mas a Ressurreição de Cristo nos ensina que a Páscoa não é obra nossa, e sim obra de Deus em nós! É Ele quem nos faz passar! A fé na Ressurreição nunca é a fé naquilo que nós podemos fazer, mas sempre é a fé naquilo que Deus pode fazer em nós!

Abençoada e Santa Páscoa para você e os seus!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

           



sexta-feira, 10 de abril de 2020

DIANTE DOS ABALOS, UMA CERTEZA PERMANECE INABALÁVEL: A MISERICÓRDIA DO SENHOR NÃO SE AFASTARÁ DE NÓS!


Vigília Pascal. Gênesis 1,1.26-31a; Êxodo 14,15-15,1; Isaías 54,5-14; Romanos 6,3-11; Mateus 28,1-10

Na noite de quinta-feira santa, nós começamos a fazer a nossa Páscoa, juntamente com Jesus. Aquela noite nos lembrava que somos um povo pascal. Somos pessoas pascais não somente porque, como Jesus, chegará o momento de nós passarmos deste mundo para o Pai, mas, sobretudo, porque o nosso Deus é a Aquele que nos faz passar, que nos faz atravessar as noites escuras na direção da aurora de um novo dia. Na verdade, há passagens em nossa vida que só podem ser feitas se Deus abrir o caminho, a estrada, se Ele nos fizer passar.
            Toda Páscoa é um processo; toda passagem difícil, lenta e exige de nós firmeza, constância, perseverança em nosso propósito de passar, de atravessar. No meio do processo da páscoa dos hebreus, Deus disse a Moisés: “Por que clamas a mim por socorro? Dize aos filhos de Israel que se ponham em marcha” (Ex 14,15). Diante das situações difíceis, onde costumamos nos entregar ao desânimo e ao pessimismo, Deus nos convida a nos levantar, a retomar a marcha, a continuar a travessia iniciada, deixando para trás o Egito da nossa aflição e caminhando com Ele na direção da Sua promessa de uma vida nova.
            Ao longo da nossa existência, Deus nos convida a fazer muitas travessias, e nelas Ele se coloca sempre junto a nós. A presença de Deus junto a Israel podia ser vista numa nuvem, escura e tenebrosa para os egípcios, mas iluminadora e consoladora para os israelitas. Sempre que nós nos dispomos a fazer a travessia de uma situação de morte para uma situação de vida, sofremos “perseguições”: lembranças, pensamentos, fantasias e sentimentos vão nos provocar medo, ameaça, tentando nos convencer de que não dará certo, de que a travessia não vai funcionar. Não devemos prestar atenção a essa nuvem tenebrosa que está atrás de nós, como um passado que não quer perder o domínio sobre nós. Devemos manter nosso olhar na nuvem luminosa, que é o próprio Deus a nos dizer: “Dê mais um passo, eu ajudo você a atravessar. Eu caminho à sua frente. Eu farei você passar!”.
            Mas o futuro se mostra incerto e aparentemente impossível de ser alcançado! Há um mar de obstáculos à nossa frente! Se não queremos desanimar e desistir da travessia, precisamos nos lembrar de que, quanto maior o obstáculo, mais se mostra Deus vivo e verdadeiro em nossa vida. Devemos confiar! Se Ele nos convidou a fazer a passagem da escravidão para a liberdade, da morte para a vida, também abrirá o caminho, removerá o obstáculo, e nos fará passar! O nosso Deus nunca começa uma obra e depois a abandona pelo caminho. Ele completará a obra que começou em cada um de nós!
É certo que nenhum de nós passou pelas águas do Mar Vermelho! Mas, nesta vigília pascal, o apóstolo Paulo nos recorda que todos nós passamos pelas águas do Batismo. Para a maioria de nós, isso aconteceu quando éramos crianças, para nos lembrar que a salvação que o Batismo nos dá é graça de Deus e não mérito nosso. O apóstolo afirma que nós fomos batizados (mergulhados) na morte de Cristo. Isso significa que somos chamados a fazer um exercício diário de morrer para toda situação de pecado. Nossa tarefa diária consiste em morrer para o pecado e viver para Deus, imitando Jesus Cristo em sua obediência ao Pai. O Batismo nos identificou a Jesus Cristo por uma morte semelhante à sua, para nos assemelhar-mos a Ele também na sua ressurreição. Esta será a etapa final da nossa Páscoa!
É por isso que nesta noite de vigília o Evangelho nos transporta para “depois do sábado”. Depois do grande silêncio de Deus, da Sua aparente indiferença para com o sofrimento de todos os crucificados do nosso tempo, tem início uma nova semana. Mas nós nos perguntamos: Como recomeçar a vida depois que a morte sepultou consigo as nossas esperanças?
            As duas mulheres vão ver o sepulcro são surpreendidas por um grande tremor de terra. Quantos tremores de terra nos surpreenderam neste ano? Toda essa situação de pandemia, provocando inúmeras mortes em todo o mundo, trazendo tristeza para muitas famílias, uma sensação de ameaça para todos nós, um cansaço profundo para os profissionais da saúde, um verdadeiro terremoto para a economia de todos os países afetados pela pandemia... Como falar de ressurreição diante desses “tremores de terra” que abalaram e estão abalando a fé de muitas pessoas?
            Mas o forte tremor de terra que as mulheres ouviram foi o sinal claro da intervenção de Deus na morte de Jesus: o anjo do Senhor desceu e retirou a pedra que lacrava o sepulcro, não para que Jesus saísse, e sim para que as mulheres pudessem entrar e constatar que Ele não estava ali, pois havia ressuscitado: “Sei que procurais Jesus, que foi crucificado. Ele não está aqui! Ressuscitou, como havia dito! Vinde ver o lugar em que ele estava” (Mt 28,5-6).
            Na maioria das vezes, nós interpretamos os tremores de terra como experiências onde somos soterrados, onde grandes pedras caem sobre nós e esmagam nossos sonhos, sepultando nossas esperanças. Mas quando o nosso Deus permite que o chão da nossa vida se abale não é para nos fazer sentir medo. Pelo contrário. Tanto o anjo do Senhor quanto o próprio Jesus ressuscitado disseram às mulheres: “Não tenham medo!” Deus só permite os “tremores de terra” quando eles nos ajudam a despertar do sono da morte, quando eles quebram aquilo que se endureceu dentro de nós, quando eles arrebentam as grandes pedras que nós mesmos colocamos ou permitimos que os outros colocassem na entrada da nossa própria sepultura, onde permanecemos enterrados junto com os nossos medos.
            Nesta vigília pascal o Senhor Ressuscitado vem ao encontro de cada um de nós, como foi ao encontro das mulheres, e nos diz: “Alegrai-vos! Não tenhais medo!” A morte vai continuar a existir, mas ela não tem mais poder sobre nós. Ela pode apenas ferir o nosso corpo, mas não pode matar a nossa fé, a nossa esperança e o nosso amor. Diante de todos os tremores que possam acontecer na história da humanidade, nós prosseguimos confiantes em nossa travessia, em nosso seguimento de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, levando em nosso coração a Palavra do seu Deus e nosso Deus, do seu Pai e nosso Pai: “Podem os montes recuar e as colinas abalar-se, mas minha misericórdia não se apartará de ti, nada fará mudar a aliança de minha paz, diz o teu misericordioso Senhor” (Is 54,10).

Pe. Paulo Cezar Mazzi


quarta-feira, 8 de abril de 2020

SÚPLICA AO SENHOR CRUCIFICADO E RESSUSCITADO



Verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, crucificado e ressuscitado,
Nós vos adoramos, Senhor!
Nosso Salvador, Deus conosco, fiel e rico em misericórdia,
Nós vos adoramos, Senhor!
Rei e Senhor da criação e da história,
Nós vos adoramos, Senhor!
Vencedor do pecado e da morte,
Nós vos adoramos, Senhor!
Amigo do homem, ressuscitado e vivo à direita do Pai
Nós vos adoramos, Senhor!

Filho unigênito do Pai, descido do céu para a nossa salvação
Nós cremos em vós, ó Senhor!
Médico celeste, que vos dobrai sobre a nossa miséria,
Nós cremos em vós, ó Senhor!
Cordeiro imolado, que vos ofereceis para resgatar-nos do mal,
Nós cremos em vós, ó Senhor!
Bom Pastor, que dais a vida pelo rebanho que amais,
Nós cremos em vós, ó Senhor!
Pão vivo e remédio de imortalidade, que nos dais a Vida eterna,
Nós cremos em vós, ó Senhor!

Do poder, de Satanás e das seduções do mundo,
Livrai-nos, ó Senhor!
Do orgulho e da presunção de poder viver sem vós,
Livrai-nos, ó Senhor!
Dos enganos do medo e da angústia,
Livrai-nos, ó Senhor!
Da incredulidade e do desespero,
Livrai-nos, ó Senhor!
Da dureza de coração e da incapacidade de amar,
Livrai-nos, ó Senhor!

De todos os males que afligem a humanidade,
Salvai-nos, Senhor!
Da fome, da pobreza e do egoísmo,
Salvai-nos, Senhor!
Das doenças, das epidemias e do medo do irmão,
Salvai-nos, Senhor!
Da loucura devastadora, dos interesses implacáveis e da violência,
Salvai-nos, Senhor!
Das insídias, da má informação e da manipulação das consciências,
Salvai-nos, Senhor!

Olhai para a vossa Igreja, que atravessa o deserto,
Consolai-nos, Senhor!
Olhai para a humanidade, aterrorizada pelo medo e pela angústia,
Consolai-nos, Senhor!
Olhai para os doentes e os moribundos, oprimidos pela solidão,
Consolai-nos, Senhor!
Olhai para os médicos e os trabalhadores da saúde, exaustos de cansaço
Consolai-nos, Senhor!
Olhai para os políticos e os governantes, que carregam o peso das decisões,
Consolai-nos, Senhor!

Na hora da prova e da perturbação
Enviai-nos o vosso Espírito, Senhor!
No combate contra o mal e o pecado,
Enviai-nos o vosso Espírito, Senhor!
Na busca do verdadeiro bem e da verdadeira alegria,
Enviai-nos o vosso Espírito, Senhor!
Na decisão de permanecer em vós e na vossa amizade,
Enviai-nos o vosso Espírito, Senhor!

Se o pecado nos oprime,
Abri o nosso coração à esperança, Senhor!
Se o ódio nos fecha o coração,
Abri o nosso coração à esperança, Senhor!
Se a dor nos visita,
Abri o nosso coração à esperança, Senhor!
Se a indiferença nos angustia,
Abri o nosso coração à esperança, Senhor!
Se a morte nos aniquila,
Abri o nosso coração à esperança, Senhor!

Oremos: Ó Deus, nosso refúgio nas dificuldades, força na fraqueza e consolo nas lágrimas, compadecei-vos do vosso povo que padece sob a pandemia, para que encontre finalmente alívio na vossa misericórdia. Por Cristo, nosso Senhor. Amém!


AOS PÉS DA CRUZ, DIANTE DO TRONO DA GRAÇA


Celebração da Adoração de Cruz de nosso Senhor. Palavra de Deus: Isaías 52,13 – 53,12; Hebreus 4,14-16; 5,7-9; João 18,1 – 19,42.

Se fosse possível, nós atravessaríamos a vida nos desviando de toda forma de sofrimento. Muito da nossa energia emocional é gasto neste sentido. Para isso, recorremos à medicina, à ciência, à tecnologia, às filosofias de vida e às religiões que prometem nos livrar do sofrimento. Mas o dia de hoje nos convida a olhar, encarar, reconhecer o sofrimento que está presente em nossa vida, ou na vida de alguém próximo a nós.
Quando falamos a respeito do sofrimento, precisamos ter claro que existem sofrimentos em nossa vida que são consequência de atitudes erradas que tomamos, assim como existem sofrimentos que são consequência não tanto daquilo que nos acontece, mas consequência da maneira como lidamos com aquilo que nos acontece. Além disso, existem sofrimentos que são o resultado de uma vida coerente, pautada na retidão e na justiça, assim como existem sofrimentos que são o resultado da maldade dos homens e da injustiça que existe no mundo.
A maneira como Jesus lidou com a sua cruz nos ensina que não devemos buscar o sofrimento por si mesmo, mas também não devemos fugir dele quando se apresenta a nós como consequência da nossa fidelidade ao Pai. O Cristo que vemos na cruz é a atualização da figura do Servo Sofredor, descrita pelo profeta Isaías. “Ele cresceu diante do Senhor, como raiz em terra seca” (Is 53,2). Em toda estação da nossa vida podemos crescer. É possível crescer também no tempo da aridez, na experiência do sofrimento! “Ele não tinha beleza, não tinha aparência que nos agradasse” (Is 53,2). É fácil enxergar Deus quando tudo está colorido em nossa vida. É fácil sentir Deus junto a nós quando estamos felizes e tranquilos em nosso bem estar. Mas Deus também nos fala por meio do cinza e do preto e branco; Ele nos fala também por meio daquilo que não é bonito, daquilo que é doloroso e feio, por meio de situações que não nos agradam. Precisamos aceitar esse fato.
O profeta Isaías descreve o Servo Sofredor como um “homem coberto de dores, cheio de sofrimentos” (Is 53,3), uma pessoa ou situação que nos causa repulsa e que, justamente por isso, preferimos não ver. Quantas vezes, ao cruzar com um sofredor, julgamos que ele era alguém castigado por Deus ou pelo destino? No entanto, “ele foi ferido por nossos pecados, esmagado por nossos crimes” (Is 53,5). Para nós é sempre mais fácil colocar nas costas de Deus a responsabilidade pelo sofrimento que existe no mundo, quando deveríamos nos dar conta da nossa parcela de responsabilidade em criar ou alimentar situações de sofrimento à nossa volta. A verdade é que nossos pecados, nossos pequenos crimes cotidianos causam sofrimento nas pessoas e no ambiente ao nosso redor...
Jesus jamais buscou o sofrimento por ele mesmo. O que Ele decidiu fazer foi não desviar o seu rosto da dor humana, isto é, não se tornar indiferente ao sofrimento que atinge as pessoas. Na sua cruz, Ele abraçou a cada um de nós e nos amou até o fim. Por isso, podemos dizer com o apóstolo Paulo: “A minha vida neste mundo eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). Como disse o Papa Francisco, a cruz de Jesus nos dá a certeza do amor fiel de Deus por nós. Seus braços estendidos são um convite para nos abrigarmos em Seu amor. A cruz também nos ensina a olhar para o outro com misericórdia e amor, principalmente o que sofre, o que precisa de ajuda, quem espera uma palavra, um gesto nosso.
A carta aos Hebreus nos lembra que Jesus não está mais na cruz, mas no céu, como aquele que intercede por nós, alguém capaz de se compadecer das nossas fraquezas, pois ele foi provado em tudo como nós: “permaneçamos firmes na fé que professamos” (Hb 4,14), porque temos, no céu, Jesus, aquele que, com sumo sacerdote, intercede por nós: Ele “é capaz de se compadecer de nossas fraquezas” (Hb 4,15). Nada que nos acontece é estranho a Jesus. Nenhuma dor, nenhum sofrimento, nenhum absurdo pelo qual passamos é estranho ou desconhecido para Ele. Olhando para a maneira como Jesus lidou com o seu sofrimento, podemos aprender a transformar nossa dor em oração, uma oração que é verdadeira entrega ao Pai.
Meditando sobre o sofrimento de Cristo na cruz, o autor da carta aos Hebreus afirma que “mesmo sendo Filho, (Jesus) aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu” (Hb 5,8). Nós não gostamos de obedecer, porque queremos que prevaleça a nossa vontade, não só diante das pessoas, mas diante de Deus também. Não percebemos que, quanto maior é a nossa rebeldia, a nossa teimosia, a nossa auto-afirmação, mais o sofrimento pode se tornar necessário, até que aprendamos a obedecer a Deus.
Ao profetizar a sua morte de Cruz, Jesus disse: “Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). O que nos atrai hoje para a Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo é a sua atitude de recolher em si toda dor, todo sofrimento, toda morte, e entregar tudo ao Pai, o único que pode transformar a morte em vida. O que nos atrai para a Cruz de nosso Senhor é enxergar nela o trono da graça: “Aproximemo-nos... com toda a confiança do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento oportuno” (Hb 4,16). Na tarde desta Sexta-feira Santa, nos aproximamos do trono da graça com toda confiança, para pedir a Jesus Cristo por todos os crucificados, por todos nós, que fazemos nossa própria experiência de cruz. Especialmente, depositamos na Cruz de nosso Redentor todos os que morreram vítima do novo coronavírus em nosso mundo. Pedimos a Nossa Senhora, que permaneceu em pé diante da Cruz de seu Filho, que interceda por todos os profissionais da saúde, para que permaneçam firmes em sua sagrada missão de lutar em favor da vida até o fim.

Pe. Paulo Cezar Mazzi



terça-feira, 7 de abril de 2020

FAZER A PASSAGEM É SEMPRE NECESSÁRIO


Missa da Ceia do Senhor. Êxodo 12,1-8.11-14; 1Coríntios 11,23-26; João 13,1-15.


A nossa vida é feita de passagens: passamos da infância para a adolescência, da adolescência para a juventude, da juventude para a idade adulta, da idade adulta para a velhice, e um dia chegará o momento de passarmos deste mundo para o Pai. A leitura do Êxodo nos fala da páscoa dos hebreus, quando o Senhor Deus passou pela terra do Egito, fazendo justiça e libertando seu povo do sofrimento e da escravidão. Nós não estávamos lá, mas esta primeira páscoa também diz respeito a nós. Assim como o povo de Israel, nós também necessitamos ser libertos, necessitamos passar da doença para a saúde, do desemprego para o emprego, da solidão para a comunhão, da mágoa para o perdão, da tristeza para a alegria, da morte para a vida.
As famílias dos hebreus não foram atingidas pelo espírito exterminador porque marcaram as portas das suas casas com o sangue de um cordeiro. Aquele sangue prefigurava o sangue de Jesus, que seria derramado na cruz. Nesta noite, suplicamos ao Pai que o sangue precioso de Seu Filho proteja nossas famílias, para que não sejam atingidas pelo espírito do mal, que age no mundo; suplicamos que o sangue do Cordeiro de Deus cubra todas as casas, todas as famílias, a vida de cada ser humano, para nos libertar a todos da ameaça do novo coronavírus.
Contudo, é importante termos consciência de que o sangue na porta não é um sinal mágico. Sangue é sinônimo de sacrifício. Jesus derramou seu sangue na cruz porque amou até o fim. Nossas casas, nossas famílias só podem ser poupadas do extermínio quando nos dispomos a nos sacrificar por aqueles que amamos; quando, a exemplo de Jesus, nos dispomos a amar até o fim. O que tem sido sacrificado em nossa casa pelo bem da família? O que nossa família em particular está disposta a sacrificar pelo bem da família humana?
Dentro da celebração da Páscoa dos hebreus, Jesus celebrou a sua Última Ceia com seus discípulos: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Ao nos dar o seu Corpo e o seu Sangue na Eucaristia, Jesus nos convida a fazer a difícil passagem de quem desistiu de amar para quem decidiu amar até o fim. Jesus nos convida a uma constante atitude pascal para com as pessoas, o que significa amar até o fim aqueles que Deus confiou aos nossos cuidados. Além disso, ao nos fazer assentar à mesa da Eucaristia, Jesus nos convida a fazer também a difícil passagem de quem espera ser servido pelos outros para quem decide servir aos outros: “Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,14-15).
Muitos de nós comungamos, mas nem todos nós estamos dispostos a lavar os pés uns dos outros. Comungamos o Corpo e Sangue daquele que veio para servir, mas não nos dispomos a assumir nenhum tipo de serviço em favor do Evangelho e do bem comum da sociedade. Devemos reconhecer que somos pessoas que comungam do sacrifício de Cristo, mas que às vezes achamos que não vale a pena nos sacrificar pela sociedade humana, pela verdade e pela justiça. Por isso, precisamos manter os nossos olhos fixos naquele que nos deu o exemplo, naquele que “amou até o fim”.
Enquanto o evangelista João resumiu a vida de Jesus nas palavras “amou até o fim” (Jo 13,1), o apóstolo Paulo descreveu a pessoa de Jesus como “Corpo doado e Sangue derramado” (cf. 1Cor 11,24-25). Como trigo que se inclina para ser colhido e feito pão, como o cacho de uva se oferece para ser colhido e feito vinho, assim Jesus quis deixar, na Última Ceia, a lembrança do que foi a sua passagem pela terra: uma vida doada aos outros, uma vida que se inclinou sobre as feridas e sobre os sofrimentos dos outros. Assim devemos fazer se queremos ser reconhecidos como discípulos de Jesus Cristo. 
Nossa vida cristã é chamada a testemunhar o Senhor Jesus, morto e ressuscitado para a salvação de todo ser humano. Todas as vezes que comemos do Corpo e bebemos do Sangue do Cordeiro de Deus, estamos proclamando que Ele morreu por nós, que venceu a morte em nosso lugar; estamos proclamando que Ele nos amou até o fim; estamos pedindo que o seu Sangue esteja nas portas da nossa casa, para proteger a nossa família; estamos assumindo com Ele o serviço em favor dos que necessitam de nós; enfim, estamos aguardando a sua vinda definitiva, na esperança de sermos introduzidos no banquete do Reino de Deus. 
Concluindo, nesta noite rezamos por todas as pessoas que precisam de Páscoa, que precisam que o Pai passe por suas vidas, por suas casas, derramando novamente o sangue precioso de seu Filho, o Cordeiro de Deus, para que o mal não prevaleça sobre essas famílias. Nesta noite, comendo espiritualmente do mesmo pão e bebendo espiritualmente do mesmo cálice, anunciamos ao mundo a morte redentora de Jesus em favor de todos os homens, e proclamamos que Ele virá um dia para concluir a passagem de cada ser humano deste mundo para o Pai. Nesta noite, enfim, nos comprometemos a passar: passar pelas casas, pelas famílias, pela vida de tantas pessoas que precisam redescobrir em si mesmas a força da Páscoa, a força do Deus que, em seu Filho Jesus Cristo, nos faz passar da morte para a vida.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 2 de abril de 2020

TODA SITUAÇÃO, POR MAIS ABSURDA QUE SEJA, É LUGAR DA SALVAÇÃO DE DEUS


Missa do domingo de ramos. Palavra de Deus: Isaías 50,4-7; Filipenses 2,6-11; Mateus 26,47 – 27,54.

Muitos filmes já foram feitos para retratar a Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. E nós, diante desses filmes, sempre fomos expectadores. Mas nesse ano fomos jogados para dentro do filme: o novo coronavírus impôs uma forma mais intensa e real de cruz na vida de todos nós. Estamos vivendo o nosso momento de “paixão”, isto é, de sofrimento, de padecimento através da tristeza, do medo, da angústia e do sentimento de solidão.   
Os textos bíblicos que ouvimos hoje nos dizem que precisamos aprender com Jesus a partir da maneira como ele se posicionou diante da dor, do sofrimento, da cruz. Jesus foi alguém que aprendeu a ouvir Deus no sofrimento: “Ele me desperta cada manhã, para ouvir como um discípulo” (Is 50,4). Isso fez de Jesus uma pessoa capaz de “dizer palavras de conforto à pessoa abatida” (Is 50,4). Há muitas pessoas abatidas à nossa volta, precisando de uma palavra de conforto, e nós podemos lhes oferecer essa palavra na medida em que aprendemos a ouvir Deus a partir da nossa própria experiência de cruz.
O apóstolo Paulo afirmou que Jesus esvaziou-se da sua divindade até adquirir um aspecto humano (cf. Fl 2,6-9). Porque se humanizou, se expôs ao sofrimento. A ameaça de contaminação pelo novo coronavírus nos esvaziou das nossas falsas seguranças e revelou que a vida não está sob o nosso controle, como pensamos que estivesse. Agora temos que admitir que somos passíveis de adoecer, de sofrer e de morrer. Nem o dinheiro, nem a tecnologia, nem a ciência e nem mesmo a fé pode nos impedir de sermos atingidos pela morte.
A dor da morte começou a atingir Jesus muito antes da Cruz, logo após a última Ceia. “Jesus ainda falava, quando veio Judas, um dos Doze, com uma grande multidão armada de espadas e paus” (Mt 26,47). Judas, decepcionado com Jesus – pois esperava que ele fosse um líder político que libertaria, por meio da violência, o povo de Israel da dominação imposta pelo Império Romano – o entrega. Quais expectativas temos em relação a Deus? Como lidamos com as decepções? Judas desistiu de esperar em Jesus. E nós?
Um dos que estavam com Jesus tentou impedi-lo de ser preso usando uma espada. “Jesus, porém, lhe disse: ‘Guarda a espada na bainha! pois todos os que usam a espada pela espada morrerão’” (Mt 26,52). Quantos de nós acreditamos que a violência é a única forma de frear a violência em nosso país e no mundo? Quantos de nós desistimos de acreditar na força do bem e passamos a acreditar que o mal só pode ser combatido por meio de um mal mais forte?  
“Então todos os discípulos, abandonando Jesus, fugiram” (Mt 26,56). Em todos nós fala mais alto o instinto de sobrevivência. Quando nos sentimos ameaçados, desistimos até mesmo dos valores mais sagrados. Nós também defendemos a ideia de que é melhor um covarde vivo do que um herói morto. Quem de nós acha que jamais abandonaria Jesus precisa rever sua convicção e se perguntar se ela resistirá à ameaça contra a sua própria vida.
O primeiro julgamento de Jesus é religioso, diante do sumo sacerdote. Para acusar Jesus, ele se apoia em duas falsas testemunhas (cf. Mt 27,59). Quantas injustiças são hoje cometidas baseadas na mentira? Quantos advogados e juízes se afastaram da verdade para defender aquilo que lhes é mais conveniente? Quem de nós ainda acredita na Justiça? Quem de nós consegue ser verdadeiro e sincero nas coisas corriqueiras do dia a dia? Para quantos de nós a conveniência, sobretudo financeira, é muito mais importante do que a honestidade, a verdade?
“Pedro começou a maldizer e a jurar, dizendo que não conhecia esse homem! E nesse instante o galo cantou. Pedro se lembrou do que Jesus tinha dito: ‘Antes que o galo cante, tu me negarás três vezes’. E saindo dali, chorou amargamente” (Mt 27,74-75). Pedro é mais um exemplo de luta pela sobrevivência. Temendo ser preso por ser discípulo de Jesus, nega conhecê-lo. Ele escapa da prisão, mas fica preso na mentira, na negação e, pior ainda, na culpa. Nós ainda somos capazes de sentir culpa? O sentimento de culpa é importante quando nos leva à revisão das nossas atitudes e ao arrependimento. Reconhecendo sua covardia, Pedro “chorou amargamente”. Sempre há esperança para uma pessoa que é capaz de chorar amargamente pelos erros que cometeu.  
“Então Judas, o traidor, ao ver que Jesus fora condenado, ficou arrependido e foi devolver as trinta moedas de prata aos sumos sacerdotes e aos anciãos, dizendo: ‘Pequei, entregando à morte um homem inocente’. Eles responderam: ‘O que temos nós com isso? O problema é teu’” (Mt 27,3-4). Assim como Pedro, Judas também se arrependeu. Mas, diferente de Pedro, ele não foi capaz de se perdoar, nem confiou no perdão que certamente receberia de Jesus. Diante do triste suicídio de Judas precisamos nos dar conta de que esse problema é de todos nós. Nosso mundo está doente. Os transtornos mentais são cada vez mais comuns entre nós. Jamais podemos dizer a essas pessoas: “O problema é teu!”. O suicídio é um problema social, de todos nós. Oremos pelos que se suicidaram, bem como pelas famílias que sofrem profundamente com essa triste lembrança.   
“Pilatos bem sabia que eles haviam entregado Jesus por inveja” (Mt 27,18). Estamos agora diante do segundo julgamento de Jesus: o julgamento político. No interrogatório feito por Pilatos aparece o verdadeiro motivo da condenação de Jesus: a inveja que os sumos sacerdotes tinham de Jesus. A inveja pode nos levar a matar ou a desejar a morte de alguém. Ela está em todo lugar, sobretudo nos ambientes de trabalho, na política e mesmo nas igrejas e religiões. A inveja é fruto do nosso sentimento de inferioridade. Como não gostamos de nos sentir inferiores, ao nos compararmos com outras pessoas e nos sentirmos menos do que elas, desejamos ter o que elas têm e ser o que elas aparentam ser. Por não conseguirmos isso, ficamos com raiva e não suportamos que o outro, que aparentemente é mais do que nós, continue a “mexer” com o nosso sentimento de inferioridade. Daí o desejo de que ele deixe de existir.
“O governador tornou a perguntar: ‘Qual dos dois quereis que eu solte?’ Eles gritaram: ‘Barrabás’” (Mt 27,21). A escolha de Barrabás é a escolha do anti-herói. Ela reflete a inversão de valores que também marca fortemente o nosso tempo. O anti-herói está na moda. É moda defender o errado e desprezar o certo. Barrabás era “famoso”. Ser bom, ser correto, ser humilde e justo não torna ninguém famoso. Pelo contrário, famosos são os que matam, os que roubam, os que fazem guerra, os que têm uma vida vazia, pautada na aparência, mas sem nenhuma consistência interior, sem uma verdadeira essência. A multidão identificou-se com Barrabás, não com Jesus. Com que tipo de pessoa você se identifica atualmente?
“Pilatos viu que nada conseguia e que poderia haver uma revolta. Então mandou trazer água, lavou as mãos diante da multidão, e disse: ‘Eu não sou responsável pelo sangue deste homem. Este é um problema vosso!’” (Mt 27,24). Lavar as mãos significa tornar-se indiferente ao sofrimento dos outros; não responsabilizar-se por nada nem por ninguém. No entanto, nossa indiferença para com a desgraça alheia acaba por atrair a desgraça sobre nós. Precisamos reconhecer que a morte que a nossa indiferença “provoca” nos outros atinge a nós com a mesma intensidade e violência.
“Com ele também crucificaram dois ladrões, um à direita e outro à esquerda de Jesus” (Mt 27,38). O inocente está condenado entre os condenados. Aquele que não tinha pecado leva consigo o pecado de todos nós e sofre a nossa própria condenação. Quantas pessoas se sentem condenadas? Quantos estão condenados, se não a morrer, a viver uma vida sem dignidade, sem alegria e sem esperança? Toda pessoa que se sente condenada precisa saber que “não há mais condenação para aqueles que estão em Jesus Cristo” (Rm 8,1).  
“As pessoas que passavam por ali o insultavam... ‘Confiou em Deus; que o livre agora, se é que Deus o ama! Já que ele disse: Eu sou o Filho de Deus’’ (Mt 27,39.43). Insultos e ironia. Para aquelas pessoas, não bastava que Jesus tivesse sofrido agressões físicas; era preciso machucá-lo com palavras, machucá-lo em sua fé, confiança e esperança em Deus. Será que nós já pensamos, a respeito de uma pessoa que passa por um grande sofrimento: ‘De que valeu ela confiar em Deus? De que valeu ela ser fiel a Deus?’.  
“Pelas três horas da tarde, Jesus deu um forte grito: ‘Eli, Eli, lamá sabactâni?’, que quer dizer: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’” (Mt 27,46). Jesus expressa em sua oração o sentimento de abandono da parte de Deus. Quando o sofrimento se torna por demais intenso e cruel, não conseguimos sentir Deus junto a nós. Certamente, muitos enfermos pelo novo coronavírus se sentiram ou se sentem assim. O lugar de Deus neles foi ocupado por um vazio insuportável, por um amargo sentimento de abandono. No entanto, Deus está ali onde sofremos, nos sustentando, sofrendo conosco, embora não O sintamos. Nessa hora, precisamos professar nossa fé como o salmista: “Guardei a minha fé mesmo dizendo: ‘É demais o sofrimento em minha vida!’” (Sl 116,1).  
“E eis que a cortina do santuário rasgou-se de alto a baixo, em duas partes, a terra tremeu e as pedras se partiram. Os túmulos se abriram e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram!” (Mt 27,51-52). O céu que se rasga de alto a baixo e o terremoto que abala a terra fazendo as pedras se partirem são a resposta visível de Deus à oração de seu Filho. Deus intervém, revelando que a morte de seu Filho provoca a libertação definitiva daqueles que estavam presos na morte. Começa a ressurreição dos justos! Aquele que morreu venceu a morte e nos abriu o caminho para a nossa ressurreição!
                Vendo tudo o que tinha acontecido, o oficial e os soldados reconheceram: “Ele era mesmo Filho de Deus!” (Mt 27,54). Vendo a maneira como você lida com sua experiência de cruz, as pessoas podem ser sacudidas em sua fé adormecida, se abrirem para Deus e reconhecerem você como um verdadeiro filho de Deus. Nesta semana, voltemos o nosso olhar para nosso Senhor crucificado, lembrando que Ele “pela graça de Deus, provou a morte em favor de todas as pessoas” (Hb 2,9). Não nos esqueçamos: “Depois que Cristo morreu na cruz, toda situação, inclusive a mais frágil e trágica ou a aparentemente falimentar e maldita, pode tornar-se lugar e causa de salvação. Ou seja, se um crime horrendo foi o contexto histórico escolhido por Deus ou por meio do qual o Pai nos salvou, isso quer dizer que qualquer cenário histórico é ideal para se viver a própria história pessoal de salvação” (Amedeo Cencini).  

Pe. Paulo Cezar Mazzi