quinta-feira, 2 de abril de 2020

TODA SITUAÇÃO, POR MAIS ABSURDA QUE SEJA, É LUGAR DA SALVAÇÃO DE DEUS


Missa do domingo de ramos. Palavra de Deus: Isaías 50,4-7; Filipenses 2,6-11; Mateus 26,47 – 27,54.

Muitos filmes já foram feitos para retratar a Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. E nós, diante desses filmes, sempre fomos expectadores. Mas nesse ano fomos jogados para dentro do filme: o novo coronavírus impôs uma forma mais intensa e real de cruz na vida de todos nós. Estamos vivendo o nosso momento de “paixão”, isto é, de sofrimento, de padecimento através da tristeza, do medo, da angústia e do sentimento de solidão.   
Os textos bíblicos que ouvimos hoje nos dizem que precisamos aprender com Jesus a partir da maneira como ele se posicionou diante da dor, do sofrimento, da cruz. Jesus foi alguém que aprendeu a ouvir Deus no sofrimento: “Ele me desperta cada manhã, para ouvir como um discípulo” (Is 50,4). Isso fez de Jesus uma pessoa capaz de “dizer palavras de conforto à pessoa abatida” (Is 50,4). Há muitas pessoas abatidas à nossa volta, precisando de uma palavra de conforto, e nós podemos lhes oferecer essa palavra na medida em que aprendemos a ouvir Deus a partir da nossa própria experiência de cruz.
O apóstolo Paulo afirmou que Jesus esvaziou-se da sua divindade até adquirir um aspecto humano (cf. Fl 2,6-9). Porque se humanizou, se expôs ao sofrimento. A ameaça de contaminação pelo novo coronavírus nos esvaziou das nossas falsas seguranças e revelou que a vida não está sob o nosso controle, como pensamos que estivesse. Agora temos que admitir que somos passíveis de adoecer, de sofrer e de morrer. Nem o dinheiro, nem a tecnologia, nem a ciência e nem mesmo a fé pode nos impedir de sermos atingidos pela morte.
A dor da morte começou a atingir Jesus muito antes da Cruz, logo após a última Ceia. “Jesus ainda falava, quando veio Judas, um dos Doze, com uma grande multidão armada de espadas e paus” (Mt 26,47). Judas, decepcionado com Jesus – pois esperava que ele fosse um líder político que libertaria, por meio da violência, o povo de Israel da dominação imposta pelo Império Romano – o entrega. Quais expectativas temos em relação a Deus? Como lidamos com as decepções? Judas desistiu de esperar em Jesus. E nós?
Um dos que estavam com Jesus tentou impedi-lo de ser preso usando uma espada. “Jesus, porém, lhe disse: ‘Guarda a espada na bainha! pois todos os que usam a espada pela espada morrerão’” (Mt 26,52). Quantos de nós acreditamos que a violência é a única forma de frear a violência em nosso país e no mundo? Quantos de nós desistimos de acreditar na força do bem e passamos a acreditar que o mal só pode ser combatido por meio de um mal mais forte?  
“Então todos os discípulos, abandonando Jesus, fugiram” (Mt 26,56). Em todos nós fala mais alto o instinto de sobrevivência. Quando nos sentimos ameaçados, desistimos até mesmo dos valores mais sagrados. Nós também defendemos a ideia de que é melhor um covarde vivo do que um herói morto. Quem de nós acha que jamais abandonaria Jesus precisa rever sua convicção e se perguntar se ela resistirá à ameaça contra a sua própria vida.
O primeiro julgamento de Jesus é religioso, diante do sumo sacerdote. Para acusar Jesus, ele se apoia em duas falsas testemunhas (cf. Mt 27,59). Quantas injustiças são hoje cometidas baseadas na mentira? Quantos advogados e juízes se afastaram da verdade para defender aquilo que lhes é mais conveniente? Quem de nós ainda acredita na Justiça? Quem de nós consegue ser verdadeiro e sincero nas coisas corriqueiras do dia a dia? Para quantos de nós a conveniência, sobretudo financeira, é muito mais importante do que a honestidade, a verdade?
“Pedro começou a maldizer e a jurar, dizendo que não conhecia esse homem! E nesse instante o galo cantou. Pedro se lembrou do que Jesus tinha dito: ‘Antes que o galo cante, tu me negarás três vezes’. E saindo dali, chorou amargamente” (Mt 27,74-75). Pedro é mais um exemplo de luta pela sobrevivência. Temendo ser preso por ser discípulo de Jesus, nega conhecê-lo. Ele escapa da prisão, mas fica preso na mentira, na negação e, pior ainda, na culpa. Nós ainda somos capazes de sentir culpa? O sentimento de culpa é importante quando nos leva à revisão das nossas atitudes e ao arrependimento. Reconhecendo sua covardia, Pedro “chorou amargamente”. Sempre há esperança para uma pessoa que é capaz de chorar amargamente pelos erros que cometeu.  
“Então Judas, o traidor, ao ver que Jesus fora condenado, ficou arrependido e foi devolver as trinta moedas de prata aos sumos sacerdotes e aos anciãos, dizendo: ‘Pequei, entregando à morte um homem inocente’. Eles responderam: ‘O que temos nós com isso? O problema é teu’” (Mt 27,3-4). Assim como Pedro, Judas também se arrependeu. Mas, diferente de Pedro, ele não foi capaz de se perdoar, nem confiou no perdão que certamente receberia de Jesus. Diante do triste suicídio de Judas precisamos nos dar conta de que esse problema é de todos nós. Nosso mundo está doente. Os transtornos mentais são cada vez mais comuns entre nós. Jamais podemos dizer a essas pessoas: “O problema é teu!”. O suicídio é um problema social, de todos nós. Oremos pelos que se suicidaram, bem como pelas famílias que sofrem profundamente com essa triste lembrança.   
“Pilatos bem sabia que eles haviam entregado Jesus por inveja” (Mt 27,18). Estamos agora diante do segundo julgamento de Jesus: o julgamento político. No interrogatório feito por Pilatos aparece o verdadeiro motivo da condenação de Jesus: a inveja que os sumos sacerdotes tinham de Jesus. A inveja pode nos levar a matar ou a desejar a morte de alguém. Ela está em todo lugar, sobretudo nos ambientes de trabalho, na política e mesmo nas igrejas e religiões. A inveja é fruto do nosso sentimento de inferioridade. Como não gostamos de nos sentir inferiores, ao nos compararmos com outras pessoas e nos sentirmos menos do que elas, desejamos ter o que elas têm e ser o que elas aparentam ser. Por não conseguirmos isso, ficamos com raiva e não suportamos que o outro, que aparentemente é mais do que nós, continue a “mexer” com o nosso sentimento de inferioridade. Daí o desejo de que ele deixe de existir.
“O governador tornou a perguntar: ‘Qual dos dois quereis que eu solte?’ Eles gritaram: ‘Barrabás’” (Mt 27,21). A escolha de Barrabás é a escolha do anti-herói. Ela reflete a inversão de valores que também marca fortemente o nosso tempo. O anti-herói está na moda. É moda defender o errado e desprezar o certo. Barrabás era “famoso”. Ser bom, ser correto, ser humilde e justo não torna ninguém famoso. Pelo contrário, famosos são os que matam, os que roubam, os que fazem guerra, os que têm uma vida vazia, pautada na aparência, mas sem nenhuma consistência interior, sem uma verdadeira essência. A multidão identificou-se com Barrabás, não com Jesus. Com que tipo de pessoa você se identifica atualmente?
“Pilatos viu que nada conseguia e que poderia haver uma revolta. Então mandou trazer água, lavou as mãos diante da multidão, e disse: ‘Eu não sou responsável pelo sangue deste homem. Este é um problema vosso!’” (Mt 27,24). Lavar as mãos significa tornar-se indiferente ao sofrimento dos outros; não responsabilizar-se por nada nem por ninguém. No entanto, nossa indiferença para com a desgraça alheia acaba por atrair a desgraça sobre nós. Precisamos reconhecer que a morte que a nossa indiferença “provoca” nos outros atinge a nós com a mesma intensidade e violência.
“Com ele também crucificaram dois ladrões, um à direita e outro à esquerda de Jesus” (Mt 27,38). O inocente está condenado entre os condenados. Aquele que não tinha pecado leva consigo o pecado de todos nós e sofre a nossa própria condenação. Quantas pessoas se sentem condenadas? Quantos estão condenados, se não a morrer, a viver uma vida sem dignidade, sem alegria e sem esperança? Toda pessoa que se sente condenada precisa saber que “não há mais condenação para aqueles que estão em Jesus Cristo” (Rm 8,1).  
“As pessoas que passavam por ali o insultavam... ‘Confiou em Deus; que o livre agora, se é que Deus o ama! Já que ele disse: Eu sou o Filho de Deus’’ (Mt 27,39.43). Insultos e ironia. Para aquelas pessoas, não bastava que Jesus tivesse sofrido agressões físicas; era preciso machucá-lo com palavras, machucá-lo em sua fé, confiança e esperança em Deus. Será que nós já pensamos, a respeito de uma pessoa que passa por um grande sofrimento: ‘De que valeu ela confiar em Deus? De que valeu ela ser fiel a Deus?’.  
“Pelas três horas da tarde, Jesus deu um forte grito: ‘Eli, Eli, lamá sabactâni?’, que quer dizer: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’” (Mt 27,46). Jesus expressa em sua oração o sentimento de abandono da parte de Deus. Quando o sofrimento se torna por demais intenso e cruel, não conseguimos sentir Deus junto a nós. Certamente, muitos enfermos pelo novo coronavírus se sentiram ou se sentem assim. O lugar de Deus neles foi ocupado por um vazio insuportável, por um amargo sentimento de abandono. No entanto, Deus está ali onde sofremos, nos sustentando, sofrendo conosco, embora não O sintamos. Nessa hora, precisamos professar nossa fé como o salmista: “Guardei a minha fé mesmo dizendo: ‘É demais o sofrimento em minha vida!’” (Sl 116,1).  
“E eis que a cortina do santuário rasgou-se de alto a baixo, em duas partes, a terra tremeu e as pedras se partiram. Os túmulos se abriram e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram!” (Mt 27,51-52). O céu que se rasga de alto a baixo e o terremoto que abala a terra fazendo as pedras se partirem são a resposta visível de Deus à oração de seu Filho. Deus intervém, revelando que a morte de seu Filho provoca a libertação definitiva daqueles que estavam presos na morte. Começa a ressurreição dos justos! Aquele que morreu venceu a morte e nos abriu o caminho para a nossa ressurreição!
                Vendo tudo o que tinha acontecido, o oficial e os soldados reconheceram: “Ele era mesmo Filho de Deus!” (Mt 27,54). Vendo a maneira como você lida com sua experiência de cruz, as pessoas podem ser sacudidas em sua fé adormecida, se abrirem para Deus e reconhecerem você como um verdadeiro filho de Deus. Nesta semana, voltemos o nosso olhar para nosso Senhor crucificado, lembrando que Ele “pela graça de Deus, provou a morte em favor de todas as pessoas” (Hb 2,9). Não nos esqueçamos: “Depois que Cristo morreu na cruz, toda situação, inclusive a mais frágil e trágica ou a aparentemente falimentar e maldita, pode tornar-se lugar e causa de salvação. Ou seja, se um crime horrendo foi o contexto histórico escolhido por Deus ou por meio do qual o Pai nos salvou, isso quer dizer que qualquer cenário histórico é ideal para se viver a própria história pessoal de salvação” (Amedeo Cencini).  

Pe. Paulo Cezar Mazzi


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