terça-feira, 31 de dezembro de 2019

BÊNÇÃO NÃO É "BLINDAGEM"


Missa Maria, mãe de Deus. Palavra de Deus: Números 6,22-27; Gálatas 4,4-7; Lucas 2,16-21.

            Quando um ano termina, é sempre uma tarefa arriscada avaliá-lo meramente como um “ano positivo” ou um “ano negativo”. A vida não se enquadra nessa matemática ingênua e superficial, segundo a qual o ano é visto como “bom” ou “ruim” a partir da soma dos acontecimentos: aconteceram mais coisas boas do que ruins, e vice-versa. Nossa vida não é definida a partir daquilo que nos acontece, mas a partir da forma como lidamos com o que nos acontece. Além disso, para aqueles que têm fé, é importante lembrar que “Deus faz com que tudo concorra para o bem daqueles que o amam” (Rm 8,28), o que significa que também as coisas ruins podem servir para a nossa correção, o nosso crescimento e a nossa salvação.
            Uma afirmação bíblica a respeito da Maria nos ilumina nesta passagem de ano: “Quanto a Maria, guardava todos estes fatos e meditava sobre eles em seu coração” (Lc 2,19). Como filhos de Maria, somos convidados a revisar os acontecimentos que nos afetaram neste ano que termina e nos perguntar como lidamos com eles, ou o que eles nos ensinaram, ou ainda, o que Deus nos disse por meio deles. Deus fala conosco o tempo todo, assim como a vida nos ensina o tempo todo, mas somente quem tem a coragem de, como Maria, meditar, refletir em seu coração a sua forma de lidar com os acontecimentos, consegue aprender algo novo, em vista do seu crescimento humano e espiritual.
            Esta celebração de Maria, mãe do Filho de Deus, nos lembra também que “Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei, a fim de resgatar os que eram sujeitos à Lei e para que todos recebêssemos a filiação adotiva” (Gl 4,5-6). A Lei a que o apóstolo Paulo se refere é a Lei judaica (religiosa), uma Lei extremamente exigente, diante da qual todo ser humano se sentia condenado, justamente por não conseguir cumpri-la integralmente. Podemos alargar o sentido dessa condenação. Todos nós estamos sujeitos às incertezas deste mundo, sujeitos à violência, às tragédias, às doenças, às turbulências na vida financeira ou afetiva etc. Mas Paulo nos lembra que Cristo nos deu uma nova identidade: não somos mais escravos, mas filhos – “E porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abá - ó Pai!” (Gl 4,6).
            Jesus viveu num mundo injusto e desigual como o nosso, um mundo também marcado por conflitos e tragédias. No entanto, ele escolheu se manter interiormente livre; escolheu ser conduzido pelo Espírito de Deus que afirmava constantemente dentro dele: “Você é Filho, não escravo”; “Você nem sempre escolherá qual acontecimento atravessará seu caminho, mas sempre poderá escolher a forma de lidar com ele”. Se nós recebemos esse mesmo Espírito de Jesus, que comprova que somos “filhos de Deus”, já passou da hora de nos libertarmos de comportamentos que nos mantém escravos da superstição, do medo e da ignorância, escravos do celular e da internet, escravos da bebida, das drogas e da pornografia, escravos do consumismo e de uma vida vazia e superficial, escravos das cobranças do mercado e da expectativa dos outros, escravos da nossa dependência afetiva e do nosso sentimento de inferioridade etc.
            Diante do novo ano que se abre, podemos nos perguntar: o que há novo nele? Tudo, e também nada. Não somente cada ano que nasce, mas também cada dia que desponta, é sempre uma página em branco: as linhas estão ali, mas somos nós que decidimos o que vamos escrever. Escrever as mesmas coisas é sempre mais fácil; é a vida no piloto automático; é a síndrome de Gabriela – “eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim”. Nada muda quando não nos damos ao trabalho de mudar. Nada melhora quando não nos esforçamos em melhorar. Nada se modifica quando não aceitamos corrigir atitudes que precisam ser corrigidas. Por isso, pedir a bênção de Deus para o novo ano significa também arregaçar as mangas e trabalhar no sentido da bênção que Deus, como Pai, quer dar a cada filho Seu na face da terra.
“O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face, e se compadeça de ti! O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz!” (Nm 6,24-26). Bênção não é mágica. Não adianta eu pedir a bênção de Deus, mas não aceitar obedecer à Sua voz em minha consciência. Não posso esperar que a bênção de Deus funcione como uma “blindagem” contra todo tipo de dor, dificuldade ou sofrimento. A vida não poupa ninguém de dificuldade. A terra não é o céu. Esperar que a estrada de 2020 seja totalmente asfaltada, pista dupla, sem pedágio, sobre a qual deslizaremos tranquilamente, sem enfrentar nenhum tipo de contratempo, é não ter senso de realidade. Deus nos quer fortes, e não covardes. Deus nos quer maduros, e não mimados. Deus nos quer em comunhão com a dor que afeta o nosso próximo, e não indiferentes, fechados em nossa bolha chamada “individualismo”.
Termino esta reflexão com uma proposta de oração para esta passagem de ano:
Meu Pai, em comunhão com Maria santíssima deposito diante de Ti todos os acontecimentos que atingiram a mim e à humanidade neste ano. Nem tudo eu consegui refletir ou assimilar. Nem sempre eu vi Tua mão me conduzindo. Alguns dos meus sofrimentos foram frutos da minha teimosia em fazer as coisas do meu jeito, sem obedecer à Tua voz em minha consciência.
Concede-me um coração filial, sempre mais consciente da voz do Teu Espírito em mim, Ele que comprova que não preciso viver como escravo(a) de coisas que me adoecem e destroem, mas como alguém que sempre tem a liberdade de escolher como lidar com aquilo que me acontece. Liberta-me não só das correntes de ferro que me prendem ao erro, mas, sobretudo, daquele fio de ouro que não tenho a coragem de cortar, porque me oferece falsas compensações.
Hoje peço Tua benção, Pai, sobre mim e sobre toda a humanidade. Torna-nos fortes diante da adversidade, perseverantes diante das tribulações, firmes na fé diante das provações, alegres por causa da esperança, fiéis à cruz de Teu Filho Jesus, capazes de solidariedade para com os que sofrem, construtores da paz e confiantes na força da Tua verdade que prevalecerá sobre toda mentira que há no mundo. Em nome de Jesus, amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

É POSSÍVEL DEFENDER-SE DE HERODES


Missa da Sagrada Família. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Colossenses 3,12-21; Mateus 2,13-15.19-23.

            Mesmo depois do nascimento de Jesus, mesmo depois que a luz brilhou nas trevas, o mundo continua sendo um lugar habitado pela escuridão e pela ação do mal. Jesus é uma proposta de paz da parte de Deus para a humanidade, uma oferta de salvação, não uma imposição. Por isso, enquanto alguns o acolhem, outros o rejeitam; enquanto alguns se deixam iluminar por sua verdade, outros mergulham ainda mais na própria escuridão.
            O Evangelho de hoje nos coloca diante de um momento difícil para a família de Nazaré: José precisa tomar sua esposa e seu filho e fugir para outro país (Egito), pois Herodes quer matar o menino. Essa cena infelizmente é muito atual! Algumas vezes nós já vimos nos noticiários milhares de famílias fugindo da guerra, da fome, da violência, da escravidão ou da perseguição religiosa. O Papa Francisco constantemente tem chamado a atenção do mundo para o fato de que o Mar Mediterrâneo se tornou um imenso cemitério, onde pais, mães e filhos morreram ou continuam a morrer afogados, ao tentarem encontrar possibilidade de vida digna em outros países.
            Diante de tragédias como essas, alguns perguntam onde está Deus. Por que Ele não põe fim às guerras, à fome, à violência, à morte de pais, mães e crianças inocentes? Mas aqui cabe outra pergunta: por que nós responsabilizamos Deus pelas atitudes homicidas dos Herodes do nosso tempo? O mesmo Deus que falou à consciência de José também fala à consciência dos Herodes de hoje. A diferença é que, enquanto alguns pais e mães estão atentos à voz de Deus e tomam atitudes para salvar suas famílias, os Herodes de hoje só escutam a voz da sua própria ganância, do seu desejo de poder, da sua loucura, da sua maldade e ambição, da sua paranoia.
            “Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito!” (Mt 2,13). Quanto mais amamos algo, quanto mais algo é precioso, mais aquilo precisa ser defendido! Nós não podemos ser ingênuos e aceitar tudo o que o mundo nos apresenta como bom e útil para a nossa felicidade. Há muitas coisas más, tóxicas e destrutivas nos sendo oferecidas sob a aparência de bem, de atraente e de vantajoso. Por isso, nossa consciência precisa estar desperta, esclarecida pela voz de Deus nela, para podermos perceber o que de fato convém e o que não convém a nós e àqueles que nós amamos. Embora Deus seja o primeiro a querer o nosso bem e o bem da nossa família, cabe a cada um de nós “se levantar” e reagir, tomar atitudes concretas para salvar nossos valores, nosso bem mais precioso, seja o casamento, seja o filho, seja a saúde física e emocional, seja a fé, a alma.  
            Hoje as pessoas se deslocam com muito mais frequência e rapidez do que há tempos atrás.  A mobilidade humana é uma constante nos dias atuais. Contudo, enquanto alguns se deslocam fugindo da guerra, da fome ou da perseguição religiosa, muitos se deslocam movidos unicamente por interesse financeiro, pelo desejo de se alcançar uma vida próspera e estável, materialmente falando. Quem se desloca em vista de se afastar do mal e se aproximar do bem? Quem se desloca em busca de Deus e da salvação que Ele oferece? Quem se esforça em sair da sua preguiça espiritual, em vista de aprofundar sua fé e sua comunhão com Deus?
            Além disso, não pensemos apenas nos deslocamentos geográficos. O deslocamento psíquico, emocional e espiritual às vezes é muito mais exigente! Quantas pessoas mudam de casa, de trabalho, de curso, de relacionamento, de corte de cabelo, mudam o “look” (visual), mudam inclusive de igreja, de religião e de partido político, mas não enfrentam o Herodes que mora dentro delas? São pessoas que destroem seus próprios sonhos, que sabotam a si mesmas, que giram, giram, mas não saem do lugar, porque não se dão ao trabalho de fazer mudanças em si, porque não admitem que elas são Herodes (inimigas) de si mesmas, e acham mais fácil viver culpando Deus, o mundo, os outros, pela sua própria infelicidade.
            Outro alerta precisa ser feito, quando refletimos sobre nossa vida de família. Em muitos casos, Herodes mora dentro de nossas casas, e não fora. Herodes “interage” com os pais ou os filhos dependendo do que eles assistem na Netflix e na Internet; Herodes mora em algumas famílias, abusando sexualmente de crianças e adolescentes, agredindo-os verbal e fisicamente; Herodes também mora nas igrejas, seja nos ministros religiosos que abusam de menores (pedofilia), seja nos que se insinuam sexualmente para homens que estão nas pastorais das paróquias. Portanto, a melhor coisa que os pais têm a fazer é ensinar seus filhos desde pequenos a reconhecerem, se defenderem e se afastarem dos Herodes do nosso tempo!  
            Por fim, não menos importante do que fugir de Herodes, Deus nos orienta a reconhecer e a tratar nossas feridas familiares. Não há relacionamentos isentos de feridas, mas toda ferida pode ser tratada e curada. O primeiro passo é reconhecer a ferida; o segundo é comunicar a dor – a outra pessoa precisa tomar consciência da dor que estou sentindo, assim como, se for o caso, eu também preciso estar aberto para ouvir e me tornar consciente do quanto a feri; o terceiro passo é colocar remédio sobre a ferida, por meio do diálogo, do perdão, da reaproximação ou da mudança de atitude. Seja no livro do Eclesiástico, seja na carta de São Paulo aos Colossenses, o Senhor nos oferece pistas importantes a respeito da restauração dos nossos relacionamentos, do fortalecimento dos nossos vínculos e da superação das distâncias ou das atitudes que precisam ser modificadas em vista da nossa cura emocional.  
            Mudar é preciso. Deslocar-se é necessário. Tratar as feridas é a única possibilidade de cura para os nossos relacionamentos. Acolhamos os alertas que Deus nos faz quanto a tudo aquilo que ameaça machucar ou destruir o que mais amamos, ou roubar nosso bem mais precioso. Que em nossa casa cada um reconheça não apenas sua parcela de responsabilidade quanto ao que nela se vivencia diariamente, mas, sobretudo, sua potencialidade em mudar, em tornar-se melhor e em dedicar o melhor de si para revigorar a saúde emocional e espiritual de nossa família.

Pe. Paulo Cezar Mazzi    



terça-feira, 24 de dezembro de 2019

NOSSA CARNE REDIMIDA POR AQUELE QUE SE FEZ CARNE


Missa de Natal. Palavra de Deus: Isaías 9,1-6; Tito 2,11-14; Lucas 2,1-14; João 1,1-5.9-14.  

                A Sagrada Escritura nos ensina que “Deus é Espírito” (Jo 4,24), mas o ser humano é “carne” (Is 40,6). Enquanto “Espírito” significa vida, força e imortalidade, “carne” significa aquilo que perece, envelhece, adoece e morre. “Carne” significa aquilo que apodrece, que se corrompe, que se estraga. Nós somos “carne”! Apesar dessa verdade nua e crua, o nascimento de Jesus Cristo foi anunciado por João com essas palavras: “E toda carne verá a salvação que vem de Deus” (Lc 3,6). Por isso, Santo Agostinho afirmou, em sua homilia de Natal: “Por tua causa Deus se fez homem. Estarias morto para sempre, se ele não tivesse nascido no tempo. Jamais te libertarias da carne do pecado, se ele não tivesse assumido uma carne semelhante à do pecado. Estarias condenado a uma eterna miséria, se não fosse a sua misericórdia. Não voltarias à vida, se ele não tivesse vindo ao encontro da tua morte. Terias perecido, se ele não te socorresse. Estarias perdido, se ele não viesse salvar-te”.
            Natal é a festa da “Encarnação”, pois “a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Jesus, Palavra viva do Pai, por meio da qual tudo foi criado – “Tudo foi feito por ela” (Jo 1,3) – assumiu a nossa “carne”, isto é, a nossa condição humana. Ele assumiu a nossa carne, justamente para redimi-la, para libertá-la da estreiteza do seu egoísmo, da cegueira do seu horizonte fechado, do círculo vicioso do seu pecado e de todo tipo de opressão e injustiça a que o ser humano está exposto neste mundo. É por isso que o profeta Isaías proclama: “(...) para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9,1), e o Evangelho afirma a respeito do nascimento de Jesus: “Era a luz da verdade que, vindo ao mundo, ilumina todo ser humano” (Jo 1,9).
            Quando os anjos anunciam aos pastores: “Hoje... nasceu para nós um salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11), estão afirmando que Jesus nasceu como salvador de todo ser humano. Ele não nasceu apenas para Maria e José, como também não nasceu apenas para o povo judeu; ele nasceu para todo ser humano, porque “a graça de Deus se manifestou, trazendo a salvação para todos os homens” (Tt 2,11), isto é, para todas as pessoas. Onde quer que exista uma “carne”, isto é, um ser humano ferido, violentado, injustiçado, fragilizado, desrespeitado, entristecido, sem esperança, é ali que Jesus quer se fazer presente, assumindo toda a sua situação de sofrimento para libertá-lo, redimi-lo, salvá-lo.           
            Se queremos celebrar verdadeiramente o Natal, precisamos nos lembrar deste conselho de Deus: “Não se esconda daquele que é sua própria carne” (Is 58,7), ou seja, não ignore o sofrimento daquele que é humano como você; não se torne indiferente às pessoas à sua volta; não se desumanize, pois o Filho de Deus se fez pessoa humana e veio devolver humanidade ao nosso coração, ferido pelo ódio, adoecido pelo rancor, endurecido pela maldade que há em nosso mundo. “Não esconder-se da sua própria carne” também significa olhar com coragem e sinceridade para si mesmo, para aquilo que em você é frágil, imperfeito, doente, deformado pelo mal, e acolher-se, reconciliar-se com sua própria história, dialogar com sua própria verdade, admitir sua absoluta necessidade de ser redimido, liberto, salvo.
            A manjedoura onde Jesus foi colocado após seu nascimento, “pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7), nos remete para tantas situações da nossa vida onde o ideal foi ocupado pelo real. Quantos ideais, quantos sonhos e quantos projetos nossos foram desfeitos, modificados, atropelados por acontecimentos que viraram a nossa vida do avesso? E, no entanto, Deus, ao permitir que Seu Filho nascesse naquela situação de total desamparo, está nos dizendo que Ele está conosco em toda e qualquer situação. Embora nem sempre consigamos perceber, Ele está nos acompanhando nas nossas noites escuras, conduzindo os acontecimentos de modo que tudo concorra para o nosso bem, segundo o Seu amor e seu desígnio de salvação para conosco. Portanto, justamente ali, onde pensamos “não haver lugar” para a vida nascer, para a esperança nos visitar, para a nossa situação se transformar, é ali que Deus nos surpreende com a sua Providência e nos revela que a luz sempre encontra uma forma de vencer as trevas.
Porque Jesus Cristo é “a luz da verdade que, vindo ao mundo, ilumina todo ser humano” (Jo 1,9), nesta noite de Natal nós suplicamos por todas as pessoas e situações em nosso mundo que precisam ser iluminadas pela verdade da encarnação, para que cada ser humano experimente em sua própria “carne”, em sua própria condição de finitude, de fragilidade, de sofrimento e de morte, a graça da redenção, a certeza de ser infinitamente amado pelo Pai que enviou seu Filho para nos salvar.    
      
            ORAÇÃO: “Para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9,1). Deus da luz, em Ti não há trevas! Desce a nós, Pai das luzes! Visita-nos em nossas trevas. Visita especialmente todas as pessoas que se encontram na sombra escura da bebida e das drogas, do desemprego, da violência, da angústia, da depressão ou da falta de sentido para a vida. “Botas de tropa de assalto, trajes manchados de sangue, tudo será queimado e devorado pelas chamas” (Is 9,4). Deus forte, Príncipe da paz, desarma o coração daqueles que promovem guerras; livra nosso mundo da violência do tráfico e do trânsito, da intolerância e da perseguição política e religiosa. Derruba os muros que levantamos e ensina-nos a construir pontes em nossas famílias, igrejas e ambientes de trabalho. “Nasceu para nós um salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11). Que a luz do Teu nascimento, Senhor Jesus, resplandeça sobre toda consciência e todo coração, de modo que nenhuma pessoa seja tomada pelo desespero, mas experimente a graça da Tua libertação e salvação. “E a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Habita em nós, Senhor Jesus! Toca em nossa carne, abraça nossa fragilidade mais profunda, reconcilia-nos com a nossa própria humanidade e liberta-nos de nós mesmos! Amém!  

Pe. Paulo Cezar Mazzi    

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

OCUPE SEU LUGAR NA HISTÓRIA DA SALVAÇÃO!


Missa do 4º dom. do Advento. Palavra de Deus: Isaías 7,10-14; Romanos 1,1-7; Mateus 1,18-24.

Que lugar eu ocupo no mundo? Minha existência faz alguma diferença para a humanidade? Por mais que existam pessoas consideradas “importantes”, “absolutamente necessárias”, “insubstituíveis”, a verdade é que ninguém é o centro do mundo, ninguém é o centro do universo: todos nós somos mortais e, de certa forma, “substituíveis”; nem o mundo, nem a história da humanidade, começaram conosco ou tem em nós o seu eixo. Pode até ser que muita coisa dependa de nós nesse momento, mas quando viermos a faltar, a vida passará por um processo de adaptação e seguirá seu curso, assim como a história humana continuará a ser escrita por outras pessoas. Então, mais uma vez a pergunta: Minha existência faz alguma diferença para a humanidade?
No centro do Evangelho que hoje ouvimos está a figura de José, um homem que não teve qualquer palavra registrada na Sagrada Escritura, um homem silencioso e humilde, mas cuja presença na vida de Jesus – uma presença querida por Deus – nos ensina que cada um de nós ocupa um lugar importante, único e específico dentro da história da salvação. Enquanto as narrativas do nascimento e da infância de Jesus dão muito destaque à figura de Maria, o evangelista Mateus quis resgatar a figura de José, para nos falar da importância de compreendermos a nossa existência como uma vocação, como um convite a fazer da nossa vida uma “palavra de salvação” para o mundo.
            Assim como José, nós passamos por situações onde a vida parece virar de cabeça para baixo. Quando tudo estava caminhando segundo os nossos sonhos e projetos, um acontecimento estranho chegou e tirou o chão debaixo dos nossos pés, nos enchendo de medo, de raiva, de angústia e de incompreensão. É a nossa noite escura; é quando não entendemos mais o que está acontecendo e não conseguimos nos conectar com Deus, para receber uma mensagem Sua que responda às nossas perguntas. No entanto, apesar de estar com sua vida totalmente “desajustada”, o Evangelho afirma que José “era justo”. Não compreendendo a origem da gravidez de Maria, ele toma a decisão de abandoná-la em segredo. Fazendo assim, Maria não seria vista como adúltera, enquanto José seria visto como um homem irresponsável, que engravidou sua noiva e depois a abandonou.
A resposta que José não encontrou nos seus pensamentos embaralhados pelo medo, pela angústia, pela raiva e pela incompreensão, ele a encontrou quando conseguiu dormir, isto é, quando se desarmou. Como escreveu o Pe. Pagola, “acordado, consciente, o homem se defende, censurando aquilo que não quer. No sono, se desarma, e pode receber aquilo que Deus quer dar-lhe”. Quantas vezes rezamos “armados” em relação a Deus? Reclamamos das nossas feridas, mas não permitimos que Ele toque nelas; sofremos com determinadas situações, mas não aceitamos que Ele nos torne conscientes sobre a nossa responsabilidade em relação às mesmas. É verdade que Deus tem algo novo para nos dar, mas nossas mãos estão firmemente fechadas, assim como fechados estão os nossos pensamentos e também o nosso coração. E quanto mais nós estamos fechados, mais Deus precisa bater, quem sabe até nos “quebrar”, até abrir uma brecha através da qual fazer brilhar a Sua luz no meio da nossa sofrida noite escura...
Deus encontrou uma abertura na mente, na psique, na alma de José, e ampliou o seu horizonte de compreensão: se José não foi de modo algum “necessário” para o filho de Deus vir ao mundo, ele era “absolutamente necessário” para impor o nome ao Menino, isto é, para ajudá-lo a tornar-se consciente da sua própria identidade, para transmitir-lhe uma segurança emocional, para encaminhá-lo na vida e prepará-lo para a missão de salvar a humanidade. Eis aí, portanto, o lugar de cada um de nós na história da salvação: não somos salvadores das pessoas, mas colaboradores na salvação delas; não somos o personagem central na história da vida, mas sem a nossa presença e atuação, essa história fica gravemente prejudicada, incompleta.
Portanto, nós não somos a Mãe que gera o Filho de Deus, mas somos o “pai” que tem como tarefa sagrada amparar os inúmeros filhos de Deus que ainda não sabem seu próprio nome; crianças, adolescentes e jovens sem identidade ou com uma identidade profundamente frágil, confusa, fragmentada, adoecida; uma geração sem rumo e sem sentido para a vida, que não sabe o que significa “limite”, que não admite ser frustrada; uma geração que não sabe diferenciar o bem do mal, a justiça da injustiça; que só conhece a liberdade, mas não a responsabilidade...
“Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado, e aceitou sua esposa” (Mt 1,24). Eis aqui outro traço importante da “justiça” de José. Enquanto se debatia entre os seus projetos humanos e o projeto de Deus, José havia perdido a sua paz e se enchido de angústia. A partir do momento em que ele decidiu “ajustar” a sua vida à vontade de Deus, voltou a sentir paz, confiança, serenidade e clareza. Desse modo, ele “aceitou” receber Maria, grávida do Filho de Deus. À semelhança de José, nós somos convidados a nos tornar homens e mulheres “justos”, isto é, capazes de – não sem dor, não sem uma intensa luta interior – ajustar a nossa vida à vontade de Deus, abrindo-nos àquilo que Ele quer gerar em nós: uma vida mais ampla, mais profunda, mais livre, mais plena de sentido, uma vida que se torne “palavra de salvação” para a humanidade da qual fazemos parte.

ORAÇÃO: Pai, quero tornar-me consciente do meu lugar na história da salvação. Eu tenho meus planos e meus sonhos, mas sei que a minha realização está em abrir-me aos Teus planos e os Teus sonhos a respeito de mim e da humanidade. Muitas vezes eu resisto ao Teu querer e me fecho à Tua vontade porque tenho medo, porque quero manter o controle da minha vida em minhas mãos. Mas hoje o Senhor me convida a abrir mão desse controle; o Senhor me convida a dormir, a me desarmar, a permitir que o meu horizonte estreito e fechado se abra para algo novo, para algo muito maior que o Senhor tem para mim e para aqueles que o Senhor quer salvar por meio da minha humilde e breve existência neste mundo. Eu aceito ser Teu José. Eu quero ocupar o lugar que me cabe na história humana, para o bem da humanidade e para que a Tua salvação chegue onde ela ainda precisa chegar. Faça-se em mim o Teu querer. Sou Teu José! Em nome de Jesus, amém!     


Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

NÃO BASTA A CHUVA DA GRAÇA DE DEUS; AS SEMENTES DOS NOSSOS ESFORÇOS SÃO ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIAS


Missa do 3º dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 35,1-6a.10; Tiago 5,7-10; Mateus 11,2-11.

Na vida precisamos ter expectativas: expectativas quanto à nossa saúde, aos nossos relacionamentos, à nossa vida profissional, ao nosso futuro, à nossa vida de fé etc. É justamente porque tem expectativa quanto à chegada da chuva que o agricultor, mesmo no tempo da estiagem, prepara a terra, lançando nela a semente. Ele tem esperança! Igualmente nós, cristãos, devemos esperar o Senhor Jesus cheios de expectativa, cheios de esperança, trabalhando o chão da nossa vida e lançando nele as sementes que fomos chamados a lançar, isto é, cultivando em nós e no mundo à nossa volta valores como o bem, a verdade, a justiça, o amor etc.
Mas há um problema quando se fala de expectativas: elas podem não se cumprir; elas podem até mesmo nos decepcionar, seja porque são expectativas irrealistas, exageradas, seja porque a vida nos responde de uma outra forma em relação àquilo que esperamos. Quando isso acontece, passamos por um momento de crise, de questionamento, de revisão das nossas expectativas, das nossas esperanças. Assim estava João Batista. Ele havia preparado a humanidade para a chegada do Messias, do Ungido do Senhor, prometido a Israel. No entanto, quando Jesus começou seu ministério, a forma de agir era tão diferente das expectativas de João que ele ficou confuso e chegou a duvidar de que Jesus era realmente o Messias esperado.
Eis, portanto, a pergunta de João a Jesus:  “És tu, aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?” (Mt 11,3). Nós já nos fizemos essa pergunta muitas vezes. Diante do fim de um relacionamento, de uma doença, de um acidente, de uma perda irreparável, de uma tragédia, de um problema enorme ou de um sofrimento intenso, nós começamos a questionar a nós mesmos, a vida e o próprio Deus. Onde foi que nós erramos? Será que não rezamos como deveríamos ter rezado? Será que Deus realmente existe? Se existe, será que realmente vê e se importa com o que acontece conosco? Será que estamos na Igreja certa, na religião certa? Ainda existe sentido em esperar por Deus, por seu socorro, por sua intervenção, por sua salvação?
Depois de responder à pergunta de João, Jesus lhe fez uma observação que é importantíssima também para nós: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim!” (Mt 11,6). Feliz aquele que não desistiu de buscar Deus só porque Ele frustrou suas expectativas. Feliz aquele que não jogou Deus fora quando sua imagem a respeito d’Ele se quebrou totalmente. Feliz aquele que não reduziu Deus ao tamanho das suas expectativas humanas, mas permitiu que Ele alargasse o seu horizonte de compreensão por meio de uma sofrida crise. Feliz aquele que desistiu de enquadrar Deus nos seus esquemas humanos e permanece aberto a algo novo que Ele está lhe dizendo, mostrando, ensinando. Feliz aquele que, mesmo não vendo uma nuvem no céu, continua a cultivar o chão da sua vida com a semente da esperança, crendo que, mais cedo ou mais tarde, Deus derramará a chuva da sua resposta à suplica que lhe foi feita.
Eis, portanto, o modelo de expectativa, o modelo de esperança, que o apóstolo Tiago coloca diante de nós: “Ficai firmes até à vinda do Senhor. Vede o agricultor: ele espera o precioso fruto da terra e fica firme até cair a chuva do outono ou da primavera. Também vós, ficai firmes e fortalecei vossos corações, porque a vinda do Senhor está próxima” (Tg 5,7-8). Quem é movido por uma expectativa ou por uma esperança autêntica não fica de braços cruzados, esperando que a vida mude por si mesma, mas se levanta todos os dias e cultiva o chão da sua existência com as sementes daquilo que ele espera colher como resultado dos seus esforços.
São Tiago está nos lembrando de algo importante e óbvio, mas que nós às vezes nos esquecemos: do céu só cai chuva, nunca semente! Se a chuva cai, mas não semeamos nada no solo da nossa existência, a única coisa que crescerá ali é mato. Contudo, se quando a chuva cai, encontra nosso solo trabalhado, semeado, “grávido” de sementes, então os frutos dos nossos esforços, o resultado da nossa esperança ativa (e não passiva!) começam a brotar como fruto de uma parceria entre a graça de Deus e o nosso esforço humano.
Geração estranha a nossa! Queremos colher o que não cultivamos! Queremos colher resultados, mudanças, transformações, mas sem o esforço do trabalho, do cultivo diário, de atitudes firmes e constantes que possibilitem que essas coisas aconteçam. Além disso, às vezes nos recusamos a cultivar atitudes diferentes em nossa vida simplesmente porque não existem garantias de que aquilo valerá a pena, de que realmente vai chover e o fruto do nosso esforço será recompensado. Por isso, o profeta Isaías insiste conosco: “Fortalecei as mãos enfraquecidas e firmai os joelhos debilitados... Criai ânimo, não tenhais medo! Vede, é vosso Deus, é a vingança que vem, é a recompensa de Deus; é ele que vem para vos salvar” (Is 35,3-4). Por isso, o próprio Jesus nos questiona a partir da pessoa de João Batista: “O que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? O que fostes ver? Um homem vestido com roupas finas? Mas os que vestem roupas finas estão nos palácios dos reis” (Mt 11,7-8).
Que tipo de pessoas somos: caniços agitados pelo vento, pessoas que se quebram diante de qualquer pancada que levam da vida? Somos pessoas inconstantes, que começam um caminho de autoconhecimento, de mudança, de enfrentamento de uma situação, mas que acabam por abandoná-lo porque as coisas não estão saindo do jeito que esperamos ou planejamos? Que tipo de pessoas somos: delicadas como roupas finas, pessoas que se rasgam diante dos puxões que o mundo nos dá? Somos pessoas sem consistência interna, que ao invés de acolherem a vida como ela é, vivem se refugiando dentro do palácio do seu melindre, do seu capricho, dos seus sonhos infantis de uma vida idealizada, perfeita?
Jesus nos convida a sermos maduros, firmes e realistas como João Batista o foi; um homem que, como nós, teve suas crises, lidou com a frustração de algumas de suas expectativas, mas permaneceu aberto para aquilo que a vida queria lhe ensinar. Não nos cabe controlar o céu e fazer chover na hora em que entendemos ser necessária; nos cabe, sim, cultivar-nos, cultivar o chão da nossa existência, cultivar o solo do mundo à nossa volta, lançando nele as melhores sementes de que somos capazes de lançar, colaborando para o surgimento de uma humanidade nova, de homens e mulheres enraizados em Deus, firmados na esperança que não decepciona, na expectativa que se alimenta da verdade da sua Palavra.  

Oração: Deus Pai, tua Palavra hoje me convida a cultivar-me, a cultivar valores que possibilitem o surgimento de mudanças em minha vida, o surgimento de transformações necessárias para o bem da humanidade. Preciso de sabedoria para rever minhas expectativas, para aprender a esperar confiantemente pela chuva da tua graça no chão árido da minha existência. O Senhor me convida ao trabalho diário de lançar as sementes das transformações que eu desejo, mantendo-me firme nas atitudes que possibilitarão tais transformações, sabendo que elas são fruto de uma parceria entre as sementes dos meus esforços e a chuva da tua graça. Concede-me a força do teu Espírito, para que eu não quebre diante dos ventos contrários e não retroceda diante das dificuldades, mas continue a dar os passos necessários em vista da meta que o Senhor me chama a alcançar em Cristo Jesus, meu Salvador. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi


quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

MANCHAS QUE DEVEM NOS INCOMODAR


Missa da Imaculada Conceição da Virgem Maria. Palavra de Deus: Gênesis 3,9-15.20; Efésios 1,3-6.11-12; Lucas 1,26-38.

                        A liturgia de hoje nos convida a celebrar o dogma (afirmação de fé) da Imaculada Conceição da Virgem Maria, segundo o qual Maria, preparada por Deus para ser a Mãe de Seu Filho, foi concebida sem a mancha do pecado original, isto é, do pecado que todos nós herdamos de Adão (cf. Rm 5,12), por sermos humanos como ele e, portanto, passíveis de erro. Diferente de Maria, nós não somos “imaculados”; pelo contrário, temos consciência de que levamos conosco a “mácula” (mancha) do nosso pecado pessoal, além de nos “macularmos” com certas concessões que nos “mancham” por meio da corrupção, da desonestidade, da mentira e da agressividade nos tempos atuais. Diferente de Maria, que foi chamada pelo anjo de “cheia de graça” (Lc 1,28), nós não estamos “cheios” da graça de Deus, mas estamos aqui como Igreja para receber do Senhor a Sua graça, a graça que nos santifica por meio da Palavra que Ele nos fala (cf. Jo 15,3). 
                        Para compreendermos a importância do dogma que afirma Maria como concebida sem a mancha do pecado original, precisamos nos voltar justamente para o momento em que esse pecado se dá, conforme relatado pelo texto de Gênesis. “Onde você está?”, perguntou o Senhor Deus a Adão (cf. Gn 3,9). Deus, que tudo vê e tudo conhece, fez esta pergunta a Adão, para que ele tomasse consciência da direção errada e destrutiva que o pecado estava dando à sua vida, quando decidiu desobedecê-Lo. Da mesma forma, através da pergunta “onde você está?” Deus nos ajuda a perceber qual tem sido a nossa parcela de responsabilidade naquilo que está acontecendo conosco. Portanto, não se trata de reclamar das nossas feridas, mas de agir com firmeza diante das situações que nos ferem.
                        Eis a resposta de Adão: “Ouvi tua voz, (...) fiquei com medo (...) e me escondi” (Gn 3,10). Diariamente Deus fala conosco em nossa consciência. Diante dessa voz, sentimos medo ou nos sentimos amados por Deus? Quantas pessoas se escondem de Deus no seu dia a dia por meio do ativismo, não se dando a chance de serem encontradas por Ele através da oração? Adão estava com vergonha da sua nudez, mas hoje a Palavra do Senhor nos convida a olhar para a nossa nudez, para as consequências maléficas e destruidoras que o pecado causa em nós, e reconhecer que somente o Senhor pode cobrir a nossa nudez; somente Ele pode curar as feridas que o pecado tem aberto em nós, em nossa família, em nossa Igreja, em nossa sociedade. Por maior que possa ser o nosso pecado, devemos nos lembrar da Palavra que diz: “Onde foi grande o pecado, muito maior foi a graça” de Deus em nos salvar (cf. Rm 5,20).
                        Ao tentador, que seduz as pessoas por meio do pecado, Deus fez uma promessa: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,15). Tal promessa se cumpriu na pessoa de Maria, cuja descendência (Jesus) veio nos libertar do círculo vicioso do pecado, conforme está escrito: “É pelo seu sangue que nós temos a redenção, a remissão dos pecados” (Ef 1,7). Maria sempre foi preservada da mancha do pecado, não por ser mais forte do que ele, mas por a Mãe do Salvador, o único que tem poder de destruir a força do pecado em nós.
                        Diante de uma geração como a nossa, que supervaloriza a estética, a beleza externa, a pele sem mancha e sem ruga, Maria Imaculada nos questiona quanto àquelas atitudes que trazem sujeira à nossa consciência e ao nosso coração. Em nome da melhora na vida financeira, quantas pessoas jogam sua ética no lixo? Em nome de compensar a sua carência afetiva, quantos mancham seu próprio leito conjugal ou o leito conjugal de outros com a sujeira do adultério? Quem de nós, cristãos, se incomoda com a sujeira do desmatamento na Amazônia, com a sujeira da morte de jovens negros e pobres em nosso país ou com a sujeira da desigualdade social que intensifica sempre mais a violência em nossas cidades? Quem de nós se sente incomodado com a mancha da vergonha no que diz respeito à Educação em nosso país, onde 4 em cada 10 alunos brasileiros, na faixa dos 15 anos, não entendem o que leem, não sabem fazer contas básicas e não compreendem conceitos elementares de ciência?
                        Maria sempre foi compreendida como imagem da própria Igreja. O que ela é a Igreja é chamada a ser. De maneira profética, o Papa Francisco declarou que prefere uma Igreja “suja”, que sai de si e vai até os outros, para curá-los, para salvá-los, a uma Igreja “pura”, fechada em si mesma, preservada do contato com o sofrimento humano: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49). Essas palavras do Papa Francisco precisam gritar forte à nossa consciência, numa época em que cresce entre nós o número de cristãos conservadores e moralistas, que se mantêm distantes dos problemas sociais.
                        Finalizando esta reflexão, lembremos que se a nossa vida não é uma vida totalmente isenta de mancha, de pecado, ela é chamada a se tornar o “lugar da graça” de Deus, o lugar onde o Pai possa gerar seu Filho Jesus em nós, e por meio de nós, no mundo. O próprio Pai nos amou e nos escolheu em seu Filho Jesus “para que sejamos santos e irrepreensíveis, e vivamos sob o seu olhar, no amor” (Ef 1,4). Adão e Eva escolheram livremente se afastar desse olhar amoroso do Pai. Maria, pelo contrário, escolheu viver sob esse olhar: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!” (Lc 1,38). Que neste tempo de Advento, possamos a cada dia converter o nosso “não” (fechamento à vontade de Deus) em “sim” (abertura e docilidade à Sua vontade), sabendo que é através dos nossos gestos de amor e de serviço que Deus torna-Se presente no mundo e o transforma.  

                        Pe. Paulo Cezar Mazzi



sexta-feira, 29 de novembro de 2019

APRENDER A LIDAR COM O "AINDA NÃO"


Missa do 1º dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 2,1-5; Romanos 13,11-14a; Mateus 24,37-44.

            Na vida de cada um de nós existe um “ainda não”. Ainda não aconteceu a cura, mas eu espero por ela! Ainda não atingi meu objetivo, mas tenho esperança de atingi-lo! Ainda não foi respondida a pergunta mais profunda da minha alma, mas eu espero pela resposta que está vindo!
            Todo “ainda não” pulsa dentro de nós como um desejo não saciado. Apesar da nossa geração querer saciar seus desejos imediatamente, precisamos aceitar o fato de que existem desejos em nós que precisam ser suportados, porque não são desejos pequenos, mas grandes; não são superficiais, mas profundos; não desejamos algo passageiro, mas algo eterno. Esses desejos apontam para o sentido do tempo do Advento. Advento significa “esperar por Aquele que vem”. A Igreja deseja e espera pelo seu Esposo, e esse desejo/espera nos traz questionamentos importantes: O que eu desejo e espero em relação à minha vida? O que eu desejo e espero de Deus? Desejo e espero algo apenas para esta vida presente, ou desejo e espero algo em relação à minha “vida futura”, isto é, em relação à minha salvação?
            O desejo e a espera nos dizem que existe algo infinitamente maior e melhor, e nenhuma realidade presente pode preencher ou substituir aquilo que Deus tem para nos dar. Porém, suportar o desejo e a espera é algo que nos coloca em contato com o sofrimento, um sofrimento que só aceitamos abraçar quando nos convencemos de que verdadeiramente há uma recompensa para a dor da espera, há uma esperança para o presente de toda pessoa que se abre para o futuro de Deus.
            Muitos desistiram de esperar, por não suportarem lidar com o seu “ainda não”. Muitos cristãos cansaram de esperar pelo seu Esposo e tentarem saciar o seu desejo de sentido de vida com uma resposta que não responde. Muitos deixarem de regar o seu desejo com a água da esperança porque disseram: “cansei de esperar” – cansei de desejar e de esperar mudanças em mim, em determinada pessoa, numa determinada situação... Cansei de desejar e de esperar em Deus. São pessoas que se esqueceram desta verdade bíblica: “Os que esperam em ti não ficam envergonhados, ficam envergonhados os que por um nada negam sua fé” (Sl 25,3).
            Apesar do nosso cansaço e de todos os motivos que teríamos para abandonar a esperança, Jesus nos convida a esperar por sua vinda, uma vinda que se dará exatamente como se deu o dilúvio no tempo de Noé: nada de extraordinário aconteceu; todos estavam vivendo seu dia a dia mergulhados em suas ilusões e preocupações; “eles nada perceberam, até que veio o dilúvio e arrastou a todos...” (Mt 24,39). “Eles nada perceberam”. A vida fala conosco a todo momento, mas quem de nós está ouvindo? Os acontecimentos estão nos dizendo coisas importantes a respeito das nossas atitudes, mas quem de nós tem não somente a coragem, mas também a firme decisão de rever e de mudar suas atitudes? De que maneira nós temos anestesiado a nossa consciência a ponto de não aceitarmos reconhecer para onde a nossa vida está indo?    
            Eis, portanto, a advertência do apóstolo Paulo a todos nós, neste início de Advento: “Já é hora de despertar...” (Rm 13,11). Já é hora de deixarmos de viver distraídos, anestesiados, hipnotizados com a tecnologia que cada vez mais nos mergulha no mundo virtual e nos torna ausentes do mundo real. Já é hora de voltarmos a sintonizar com o nosso desejo mais profundo, e permitir que o nosso “ainda não” nos torne abertos para acolher aquilo que o nosso Esposo, o nosso Salvador e Redentor, quer verdadeiramente nos dar.  
            A vinda de Jesus diz respeito a todos, e não apenas àqueles que esperam por ela. É por isso que, quando Ele vier, “um será levado e o outro será deixado” (Mt 24,40). “Ser levado” significa atingir o objetivo do seu desejo de ser salvo; “ser deixado” significa ser entregue definitivamente a uma existência desprovida de desejo e de sentido, uma vida sem qualquer esperança. Portanto, a melhor forma de nos preparar para a vinda de Jesus é reeducando nosso desejo, orientando-o para aquilo que de fato buscamos como resposta de sentido à nossa vida.
            Jesus nos adverte: “Ficai preparados! Porque, na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá” (Mt 24,44). Estar preparado significa viver na consciência de que, na hora em que menos imaginarmos, seremos convidados a deixar o provisório e abraçar o definitivo. Enquanto isso, o nosso presente é chamado a se abrir ao futuro de Deus por meio da sua Palavra, pois ela tem o poder de transformar nossas espadas e lanças – nossas atitudes que ferem, que prejudicam os outros, que causam injustiça e sofrimento em nossa sociedade – em arados e foices – em atitudes que promovem a vida por meio da solidariedade, da compaixão, do perdão e da reconciliação (cf. Is 2,4).
            Enfim, o profeta Isaías nos faz este convite: “Vinde... deixemo-nos guiar pela luz do Senhor” (Is 2,5). Deixemos com que a luz do Senhor alargue o horizonte da nossa vida, e encha o nosso coração de alegria, assim como o coração do vigia se enche de alegria quando chega a aurora de um novo dia. Deixemos com que a luz do Senhor desperte nosso desejo adormecido, não mais cultivado devido ao cansaço ou ao desencanto da nossa esperança. Sejamos portadores dessa luz do Senhor a todas as pessoas que precisam ter sua guerra transformada em paz, seu ressentimento transformado em perdão, seu distanciamento transformado em comunhão, sua tristeza transformada em alegria, seu desespero transformado em esperança.

            Pe. Paulo Cezar Mazzi


quinta-feira, 21 de novembro de 2019

NOSSA FONTE, FUNDAMENTO, CONSISTÊNCIA E META FINAL


Missa de Cristo Rei do Universo. Palavra de Deus: 2Samuel 5,1-3; Colossenses 1,12-20; Lucas 23,35-43.

A figura de um rei tem quase nada a dizer ao nosso mundo moderno, mas no mundo bíblico ela se reveste de uma grande importância. O rei é o defensor do seu povo; é aquele que vai à frente do exército para lutar e proteger o seu povo. Neste sentido, ele é o promotor da paz. Além disso, o rei é responsável por garantir a justiça e o direito, o que significa não permitir que no seu reino haja injustiças que levem pessoas inocentes a sofrerem e a morrerem. Enfim, como nos ensina o Salmo 72, o rei é o defensor dos mais fracos: só ele pode salvar a vida dos indigentes, esmagar os opressores, libertar os prisioneiros e ter compaixão dos fracos. Este sentido bíblico da figura do rei deve iluminar a nossa celebração de hoje, dia em que a Igreja proclama Jesus Cristo, Rei do universo.  
Pode parecer muita pretensão nossa afirmar que Jesus Cristo é Rei “do universo”, uma vez que nós, cristãos, somos apenas um terço da humanidade. Por isso, precisamos entender essa verdade a respeito de Jesus a partir da Sagrada Escritura, quando o apóstolo Paulo afirma: “Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas, e todas têm nele a sua consistência” (Cl 1,16-17). Em relação ao mundo, em relação a tudo o que foi criado, Jesus Cristo desempenha o papel de fonte, fundamento, consistência e meta final. Portanto, só em Jesus Cristo é que nós encontramos a razão de ser da nossa existência, pois nele o Pai nos escolheu antes da criação do mundo (cf. Ef 1,4). Quando Jesus Cristo não ocupa o centro da nossa existência, perdemos o nosso fundamento, como uma construção que, por perder seu próprio alicerce, desaba. Nele ainda está também a nossa consistência, o nosso humano curado, redimido, integrado. Por fim, Ele é a nossa meta final, que é a comunhão definitiva com o Pai.
Apesar dessa verdade profunda da nossa fé, não apenas a maior parte da humanidade desconhece Jesus Cristo como muitos de nós, que supostamente já O conhecemos, não vivemos sob o seu domínio salvífico, no sentido de que não nos submetemos à sua verdade, não pautamos a nossa conduta segundo o seu Evangelho e não aceitamos sua “interferência” em diversos âmbitos da nossa vida. Quando muito, Jesus se tornou para não poucos cristãos, apenas um pronto-socorro nas horas críticas da vida. Portanto, há uma distância muito grande entre a declaração de que Jesus Cristo é rei do universo e o fato de que muitos cristãos não aceitam viver sob o domínio desse rei, sofrendo, em contrapartida, a dominação imposta pelo maligno ou por um mundo especializado em guiar cegos para o mesmo buraco em que ele se encontra.
A boa notícia é que todos nós, seres humanos, podemos dizer em relação a Jesus Cristo o que todas as tribos de Israel disseram em relação ao rei Davi: “Aqui estamos. Somos teus ossos e tua carne” (2Sm 5,1). Sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Jesus Cristo assumiu em tudo a nossa condição humana, sofrendo ele mesmo nossas fraquezas e escolhendo livremente se submeter ao Pai, para nos livrar do círculo vicioso da desobediência que nos leva para a destruição e a morte. É por isso que Paulo afirma: “Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres, os que estão na terra e os que estão no céu, realizando a paz pelo sangue da sua cruz” (Cl 1,19-20).  
Da mesma forma como todas as coisas foram afetadas pelo pecado e pela morte, a partir das pessoas que se deixaram dominar pelo mal, Deus Pai confiou ao seu Filho o poder de restaurar todas as coisas, reconciliando-as com sua própria verdade, devolvendo a cada uma delas o seu próprio fundamento e a sua consistência, realizando a paz pelo sangue da cruz de seu Filho. Desse modo, toda pessoa que escolhe livremente colocar-se sob o domínio espiritual de Cristo é como um enfermo que se deixa curar, um perdido que se deixa encontrar, um coração conflito que se deixa pacificar ou um condenado que se deixa absolver e salvar.
Eis, portanto, a cena central do Evangelho de hoje: dois homens estão condenados, junto com Jesus, à morte de cruz. Enquanto um deles ridiculariza o senhorio de Jesus, dizendo: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!” (Lc 23,39), o outro reconhece tanto a necessidade de ambos serem salvos como também Aquele que é o único que tem o poder de realizar tal salvação: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reinado” (Lc 23,42), ao que Jesus lhe respondeu: “Em verdade eu te digo, ainda hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43).
Essas palavras de Jesus revelam o verdadeiro sentido do seu reinado, do seu domínio salvífico sobre todo ser humano que escolhe livremente se submeter a ele: este Rei nos abre o caminho de volta ao paraíso, devolvendo-nos o estado psíquico e espiritual de pessoas reconciliadas, pacificadas pelo sangue de sua cruz. Essa é a realeza escandalosa de Jesus: em um mundo cheio de pessoas injustiçadas, Ele aceitou morrer como um injusto, mas a sua morte derramou sobre toda a humanidade o sangue da justificação, isto é, a graça de sermos declarados justos não devido à nossa vitória sobre o pecado, mas devido às palavras daquele que nos absolve das nossas culpas e nos livra das nossas condenações.  
            Eis, portanto, o nosso Rei! Um homem pacífico, não violento, que morreu experimentando a violência deste mundo, mas que ressuscitou e se assentou à direita do trono de Deus Pai, para restaurar todas as coisas, para reconciliar e pacificar todas as criaturas no céu e na terra. A Ele suplicamos: Senhor Jesus Cristo, tu és a minha fonte, o meu fundamento, a minha consistência e a meta final da minha vida. Olha para o nosso mundo, ferido pelas injustiças praticadas por inúmeros ‘reis’ terrenos dominados pela ganância, corrompidos pelo poder e submissos à escravidão do dinheiro. Estende sobre todos nós o teu senhorio, o teu domínio salvífico, libertando-nos do domínio destrutivo do mal, absolvendo-nos de todo tipo de condenação, reconciliando-nos com a nossa própria verdade e pacificando-nos interiormente. Enfim, restabelece o direito, a justiça e a paz sobre a face da terra; defende os mais fracos, salva a vida dos indigentes, esmaga os opressores e restaura toda a criação de Deus, conduzindo-nos todos ao teu Reino eterno. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

A TAREFA DIÁRIA DE CONSTRUIR-SE COMO PESSOA

Missa do 33º dom. comum. Palavra de Deus: Malaquias 3,19-20a; 2Tessalonicenses 3,7-12; Lucas 21,5-19.

            Nenhum ser humano nasce pronto. Por isso, a vida confia uma tarefa a cada um de nós: construir-se como pessoa. Essa construção é diária e só estará terminada no momento da nossa ressurreição, quando Deus completar a obra que começou em cada um de nós.
            Diante da tarefa existencial de construir-se como pessoa, alguns se dispõem a arregaçar as mangas e a trabalhar. São pessoas que não se conformam com aquilo que o mundo lhes oferece, mas procuram separar aquilo que convém ao seu crescimento daquilo que não convém. Essas pessoas se dão ao trabalho de cavar fundo, dentro de si mesmas, até encontrar a rocha, o fundamento firme e seguro, sobre o qual devem realizar a construção de si. Mas há muitas outras pessoas que acham mais fácil levar a vida na base do “copiar e colar”: elas preferem viver como parasitas, encostando nos outros e se alimentando daquilo que é alheio, ao invés de lançarem suas próprias raízes e produzirem o alimento de que são capazes. São pessoas que, por medo ou por pura acomodação, não querem cavar fundo, mas improvisar a vida na base da artificialidade e da superficialidade.
            Seja para aqueles que se dão ao trabalho de se construir, seja para aqueles que não querem assumir tal tarefa, Jesus hoje faz um alerta: “Vós admirais estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído” (Lc 21,6). Alguns poderiam perguntar: ‘Se tudo será destruído, então para quê construir alguma coisa?’. Essas palavras de Jesus se referiam ao Templo de Jerusalém, construção imponente e admirável, símbolo da “eternidade” de Deus no meio do seu povo. Mas Jesus profetiza a destruição daquele Templo de pedras, ocorrida no ano 70 d.C., justamente porque Jerusalém rejeitou Jesus, aquele que poderia salvá-la da destruição.
            Essa profecia de Jesus precisa falar também conosco. Existem situações em nossa vida que consideramos “garantidas”, como que “eternas”, em relação às quais depositamos toda a nossa confiança e segurança. Isso pode se referir a um relacionamento, a uma conquista profissional, à aquisição de um bem material, à modelagem ou à saúde do próprio corpo ou até mesmo a algum crescimento na vida espiritual. Tudo isso pode ser destruído, mas não por Deus, e sim por nós mesmos! A destruição daquilo que hoje consideramos importante pode já estar acontecendo ou sendo preparada, seja devido a atitudes erradas da nossa parte, seja também devido à falta de atitude!  
            Deus permitiu a destruição do Templo de Jerusalém para nos dizer que tudo aquilo que construímos tendo por base a mentira, a injustiça ou o prejuízo a outras pessoas será destruído. “Não ficará pedra sobre pedra”. Mas a destruição do Templo também indicava outra coisa na época de Jesus: o início do fim dos tempos. Nosso tempo neste mundo é finito, e temos de tomar consciência disso. Tanto a nossa história pessoal como a história da humanidade caminha para um desfecho, que a Sagrada Escritura chama de “Dia do Senhor”, o dia do Julgamento, dia em que Deus separará os bons dos maus, os justos dos injustos, e retribuirá a cada um segundo as suas obras, dia em que o fogo de Deus passará pela construção de cada um de nós, comprovando a sua verdade ou desmascarando a sua mentira (cf. 1Cor 3,11-15). Esse fogo do Julgamento de Deus é chamado pelo profeta Malaquias de “sol da justiça”: ele queimará a palha – imagem bíblica das pessoas injustas, que secaram por não estarem enraizadas em Deus, na Sua verdade e na Sua justiça –, mas para os que vivem segundo essa verdade e essa justiça, esse Dia trará a salvação definitiva.  
            Jesus nos orienta como nos preparar para esse Dia: 1) tomando cuidado para não sermos enganados por pessoas que, com suas palavras, tentarão nos desviar do verdadeiro Evangelho (v.8); 2) não nos desesperando diante de guerras e revoluções – “É preciso que estas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim” (Lc 21,9); 3) aprendendo a suportar perseguições que visam enfraquecer a nossa fé e a nossa esperança em Cristo (v.12) – segundo Jesus, “esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé” (Lc 21,13); 4) por fim, desenvolvendo em nós a capacidade de resistir ao ódio do mundo, pois ele rejeita o que não é seu. Essa resistência será possível se confiarmos nas palavras de Jesus: “Mas vós não perdereis um só fio de cabelo da vossa cabeça. É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!” (Lc 21,18-19). O mesmo Deus quer permitirá que as construções fundadas na mentira e na injustiça desabem, cuidará até das coisas mínimas daqueles que fizeram d’Ele o fundamento de suas vidas.  
            Eis, portanto, a atitude que nos é pedida em nossa construção diária como pessoas e como discípulos de Jesus, como homens e mulheres destinados ao Reino de Deus: permanecer firmes; perseverar! Perseverar significa ser paciente, ter fortaleza interior; apesar de tudo, seguir com firmeza, seguir em frente; tornar-se capaz de manter-se firme diante das dificuldades. Perseverar significa suportar a tensão própria da vida, não afrouxando, nem arrebentando diante das provações. O arco deve manter a sua tensão natural para que a flecha seja lançada e atinja o alvo, e o nosso alvo é a salvação em Cristo. Por isso, enquanto nos construímos como pessoas em meio às inseguranças e incertezas desse mundo, dizemos como Paulo: “Sei em quem depositei a minha fé, e estou certo de que ele tem poder para guardar o meu depósito, até aquele Dia” (2Tm 1,12).
            Enfim, não sejamos como alguns cristãos da Igreja em Tessalônica, que abandonaram a construção de si mesmos para viverem na ociosidade, na preguiça existencial, no comodismo e na resignação, pois, segundo o apóstolo Paulo, a vida tem uma regra: “Quem não quer trabalhar, também não deve comer” (2Ts 3,10): quem não aprofunda sua fé em Cristo não deve reclamar, quando for derrubado pela força dos ventos contrários; quem permite que a árvore da sua vida seja sugada diariamente por parasitas não deve chorar e se lamentar, quando essa mesma árvore secar definitivamente; enfim, quem não defende e não valoriza a construção de si mesmo não deve se revoltar, quando dela não sobrar mais pedra sobre pedra.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

CRER NA VIDA ETERNA FAZ TODA A DIFERENÇA NA VIDA TERRENA


Missa do 32º dom comum. Palavra de Deus: 2Macabeus 7,1-2.9-14; 2Tessalonicenses 2,16 – 3,5; Lucas 20,27-38.

No mundo em que vivemos, marcado por um forte materialismo, a maioria das pessoas busca apenas sobreviver. São poucos aqueles que pensam na vida para além do aqui e do agora. Aliás, as inseguranças e as incertezas são tão grandes hoje em dia que muitos já não fazem planos para o amanhã: vive-se apenas o hoje. No entanto, Jesus nos convida a lançar o olhar para além do aqui e do agora, e a verificar se a nossa esperança nele está reduzida somente à nossa sobrevivência neste mundo, ou se cremos e esperamos pela Vida eterna. “Se temos esperança em Cristo somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens” (1Cor 15,19). Se a nossa esperança não se apoia na verdade da ressurreição, nós nada entendemos a respeito da Vida que Jesus veio nos trazer.
Enquanto os saduceus ridicularizavam a fé na ressurreição, Jesus explicou que a ressurreição não é o reavivamento de um cadáver nem o prolongamento da existência presente. A vida eterna jamais será um perpetuar as desigualdades e injustiças desse mundo. Portanto, a vida dos ressuscitados não é um prolongamento da vida terrena, mas uma total transformação dela. Se nesta vida terrena nascemos corpo mortal, fraco e desprezível, ressuscitaremos corpo imortal, cheio da força e da glória de Deus (cf. 1Cor 15,43). Se nesta vida terrena cada um nasceu num lugar, numa cidade terrena, nós, cristãos, sabemos que “a nossa cidade está nos céus, de onde também esperamos ansiosamente como Salvador o Senhor Jesus Cristo, que transfigurará nosso corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso” (Fl 3,20-21).
            Segundo o profeta Daniel, a fé na ressurreição é a fé na justiça de Deus. Se em nosso mundo terreno, muitas pessoas morreram injustamente enquanto outras, que fazem o mal e escapam constantemente das mãos da justiça, continuam impunes, desfrutando de uma vida boa, a ressurreição é o momento onde Deus separará os bons dos maus, os justos dos injustos, e retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta: “Muitos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna e outros para o horror eterno” (Dn 12,2). O próprio Jesus nos garantiu essa verdade, ao dizer: “Vem a hora em que todos os que repousam no sepulcro ouvirão a minha voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para uma ressurreição de vida; os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de julgamento” (Jo 5,28-29).
            Todos nós já perdemos pessoas – parentes ou amigos – na morte. Além disso, conhecemos pessoas que, após a morte de um ente querido, deixaram de sorrir, de sonhar, de crer e de esperar, tornando-se amargas; algumas até romperam com Deus e com a Igreja. Mas Jesus, ao nos falar sobre a verdade da ressurreição, lembra algo essencial: “Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem para ele” (Lc 20,38). Para nós, essa ou aquela pessoa morreu, mas para Deus ninguém está morto: todos vivem porque Ele é o Senhor da vida e destinou cada ser humano à ressurreição e à Vida eterna. O apóstolo Paulo afirma também que “a esperança da vida eterna” nos foi “prometida pelo Deus que não mente” (Tt 1,2).
            A fé na ressurreição e na Vida eterna é algo que muda a nossa maneira de viver o tempo presente. Como os Macabeus, nós nos tornamos capazes de enfrentar e suportar injustiças porque cremos na justiça de Deus, que ressuscitará todos os Seus justos para a Vida. Além de relativizarmos situações de dor e de sofrimento, nós não nos enganamos com engadoras promessas de felicidade veiculadas pela propaganda de consumo e incentivadas pela concorrência desumana, sobretudo nos ambientes de trabalho, pois aspiramos “a uma pátria melhor, isto é, a uma pátria celeste” (Hb 11,16). Pelo fato de crermos na ressurreição e na Vida eterna, nós nos tornamos como Abraão que, ao entregar seu filho Isaac, dizia: “Deus é capaz também de ressuscitar os mortos”. Por isso, recuperou seu filho, como um símbolo (Hb 11,19).
            Isaac, o filho a quem Abraão tanto amava, foi poupado do sacrifício para dizer que nós não fomos apenas criados por Deus para esta vida terrena, mas que Ele, no momento da nossa morte, intervirá e nos destinará à ressurreição e à verdadeira Vida. O Deus que nos criou é também o Deus que nos salva da morte definitiva, ressuscitando-nos. Portanto, a nossa vida presente, apesar de estar marcada por situações de injustiça e sofrimento, deve ser vivida como uma caminhada confiante e alegre em direção à Vida eterna. O horizonte da ressurreição deve influenciar as nossas escolhas e decisões, os nossos valores e as nossas atitudes, dando-nos a coragem de enfrentar as forças da morte que dominam o mundo, pois “o que nós esperamos, conforme sua promessa, são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13).

            ORAÇÃO: Creio em Deus Pai, que não apenas nos chamou à existência, mas também nos prometeu a Vida eterna em seu Filho Jesus Cristo, e Deus não mente. Creio na justiça de Deus, justiça que significa separar os bons dos maus, os justos dos injustos, e retribuir a cada pessoa segundo a sua conduta, ressuscitando os que fizeram o bem para a Vida eterna e os que fizeram o mal para o julgamento.
            Creio em Jesus Cristo, morto pelos nossos pecados e ressuscitado para realizar a nossa justificação diante de Deus, ele cuja Palavra já nos faz passar da morte para a Vida e nos ensina a não temer o julgamento, pois não existe mais condenação para aqueles que creem no sacrifício redentor da Sua cruz. Cremos que Jesus virá, no momento da nossa morte, e nos levará para o seu Reino, transformando o nosso corpo fraco e mortal num corpo cheio da força e da glória de Deus.
             Creio no Espírito Santo, que ressuscitou Jesus dentre os mortos e também dará vida ao nosso corpo mortal. Creio na força do Espírito de Deus, de penetrar em nossos ossos secos e reavivar a nossa fé e a nossa esperança na ressurreição e na Vida eterna. Creio que o Espírito Santo renova a face da terra e é a garantia segura não somente de novos céus e de uma nova terra, onde habitará a justiça, mas garantia também da nossa própria ressurreição. Amém!

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

SER FIEL À PRÓPRIA ESSÊNCIA


Missa de todos os Santos. Palavra de Deus: Apocalipse 7,2-4.9-14; 1João 3,1-3; Mateus 5,1-12a.

            A Sagrada Escritura afirma que nós, seres humanos, fomos criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26). Isso significa que dentro de cada um de nós existe algo sagrado, divino: é a nossa verdadeira essência. Sempre que vivemos a partir da nossa essência, do nosso sagrado, temos saúde e nos sentimos felizes, realizados. Porém, sempre que vivemos no sentido contrário à nossa essência, ao nosso sagrado, adoecemos, perdemos a paz e nos sentimos infelizes.
            O dia de todos os Santos nos convida a tomar consciência da nossa essência, do divino, do sagrado que habita o mais profundo de cada um de nós. Esse divino, esse sagrado fala conosco e pede para ser respeitado, reconhecido, desenvolvido. É verdade que nós levamos esse sagrado, esse divino, como que “em vasos de barro” (2Cor 4,7), ou seja, ele não é reconhecido e valorizado pelo mundo, que só enxerga aquilo que é exterior e superficial. Além disso, por sermos frágeis como “vasos de barro”, nós podemos fazer escolhas erradas e acabar por jogar fora o sagrado que nos habita. Sendo assim, a primeira pessoa que precisa tomar consciência do valor que carrega consigo somos nós mesmos.
            Uma das perguntas necessárias no dia de hoje é: como cuidar do divino, do sagrado, da santidade de Deus que nos habita, vivendo num mundo profano, que despreza e ridiculariza o sagrado? Esse cuidado passa pela nossa liberdade. Toda pessoa que quer ser fiel à sua essência divina precisa se lembrar do seguinte lema paulino: “Posso fazer tudo o que quero, mas nem tudo me convém” (1Cor 6,12). Sobretudo no mundo atual, cada um tem a liberdade de ser o que quer, de fazer o que quer; no entanto, a pessoa que deseja ser fiel à sua verdade interior, à sua essência, precisa discernir, separar o que convém à sua essência e o que não convém, o que respeita o divino nela e o que o ignora ou até mesmo atenta contra ele. Justamente porque o cuidado com a nossa santidade passa pela maneira como lidamos com a nossa liberdade é que Paulo volta a afirmar: “Posso fazer tudo o que quero, mas não me deixarei escravizar por coisa alguma” (1Cor 6,12).
            O Apocalipse nos fala da nossa essência divina como uma marca que recebemos em nossa consciência (cf. Ap 7,3). Numa época em que a maioria das pessoas acha mais fácil deixar-se levar por suas emoções cegas e por seus afetos desordenados, São João nos lembra que a nossa consciência precisa assumir o papel que lhe é próprio: administrar nossas emoções, ordenar nossos afetos, orientar a nossa liberdade segundo a verdade de Deus que nos habita, segundo a Sua voz, presente na essência divina que se esconde no mais profundo de nós e que pede para ser levada em conta nas nossas escolhas e decisões, se quisermos ser pessoas verdadeiramente saudáveis, felizes e realizadas. Além disso, João nos alerta para o fato de que, embora todo ser humano passe por muitas tribulações na sua vida terrena, toda pessoa que deseja ser fiel à sua vocação à santidade enfrentará tribulações muito mais intensas e dolorosas, tanto dentro quanto fora de si mesma (cf. Ap 7,14).  
            O mesmo apóstolo João nos ensina, na sua primeira carta, que a santidade é um processo nunca concluído, mas sempre em andamento: “Desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos” (1Jo 3,2). Se a nossa meta é nos tornarmos semelhantes à imagem do Filho de Deus, sabemos que nossa caminhada rumo à meta é feita de avanços, retrocessos, quedas, paradas e retomadas. Por isso, temos que caminhar mantendo os nossos olhos fixos em Jesus (cf. Hb 12,1). Ele foi humano como nós em tudo. Procurando nos comportar como Ele se comportou conseguiremos olhar o mundo com outros olhos: não como um lugar do qual devemos nos manter distantes ou nos defender, mas como o lugar que precisa receber a luz do divino que nos habita, o lugar onde existem pessoas que precisam ser salvas, que precisam tomar consciência de quem pertencem a Deus e são infinitamente amadas por Ele!
            Sendo verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus, Jesus escolheu viver segundo a sua essência divina e nos indicou o caminho da santidade: aprender com os pobres, consolar os aflitos, tornar-se capaz de mansidão, comungar da fome e da sede de quem anseia por justiça, exercer a misericórdia (afetar-se pela dor do outro), cuidar da nossa essência (ser puro de coração), não se cansar de lutar pela paz e suportar ser perseguido por querer um mundo e uma Igreja mais justos, mais de acordo com os valores do Evangelho. Ser santo não significa tornar-se o que não se é, mas ser fiel ao que se é; não significa vestir-se com roupas “religiosas”, mas despir-se das vestes farisaicas que servem apenas para disfarçar o barro de que somos feitos.    

Pe. Paulo Cezar Mazzi

Algumas reflexões dos Santos para a nossa vida:

“Pregue o Evangelho em todo tempo. Se necessário, use palavras”
(São Francisco de Assis).

“Quanto mais escuridão se faz ao nosso redor, mais devemos abrir o coração à luz que vem do alto” (Santa Edith Stein).

“Tem sempre presente que a pele se enruga, que o cabelo se torna branco, que os dias se convertem em anos, mas o mais importante mão muda: tua força interior”
(Madre Teresa de Calcutá).

“A esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las”
(Santo Agostinho).

“Trabalha em algo, para que o diabo te encontre sempre ocupado”
(São Jerônimo).

“Quem diz verdades perde amizades”
(Santo Tomás de Aquino).

“Não se opor ao erro é aprová-lo; não defender a verdade é negá-la”
(Santo Tomás de Aquino).

“No entardecer da vida, seremos julgados sobre o amor”
(São João da Cruz).

“Pertence àquele que tem fome o pão que tu guardas; àquele que está nu a capa que tu conservas nos teus armários; àquele que está descalço, os sapatos que apodrecem em tua casa; ao pobre o dinheiro que tu tens guardado. Assim tu cometes tantas injustiças quantas as pessoas às quais poderias dar” 
(São Basílio Magno).

“Quando rezamos, falamos com Deus. Quando lemos a Sagrada Escritura, Deus fala conosco”
(São Jerônimo).

“Enquanto formos cordeiros, venceremos e, mesmo que sejamos circundados por numerosos lobos, conseguiremos superá-los. Mas se nos tornarmos lobos, seremos derrotados, porque ficaremos desprovidos da ajuda do pastor”
(São João Crisóstomo).

“Não há santos sem passado, nem pecadores sem futuro”
(Cardeal Van Thuan).

“Não tenhas medo da santidade. Não te tirará forças, nem vida nem alegria. Muito pelo contrário, porque chegarás a ser o que o Pai pensou quando te criou e serás fiel ao teu próprio ser”
(Papa Francisco).

“A santidade não te torna menos humano, porque é o encontro da tua fragilidade com a força da graça” (Papa Francisco).