quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

É POSSÍVEL DEFENDER-SE DE HERODES


Missa da Sagrada Família. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Colossenses 3,12-21; Mateus 2,13-15.19-23.

            Mesmo depois do nascimento de Jesus, mesmo depois que a luz brilhou nas trevas, o mundo continua sendo um lugar habitado pela escuridão e pela ação do mal. Jesus é uma proposta de paz da parte de Deus para a humanidade, uma oferta de salvação, não uma imposição. Por isso, enquanto alguns o acolhem, outros o rejeitam; enquanto alguns se deixam iluminar por sua verdade, outros mergulham ainda mais na própria escuridão.
            O Evangelho de hoje nos coloca diante de um momento difícil para a família de Nazaré: José precisa tomar sua esposa e seu filho e fugir para outro país (Egito), pois Herodes quer matar o menino. Essa cena infelizmente é muito atual! Algumas vezes nós já vimos nos noticiários milhares de famílias fugindo da guerra, da fome, da violência, da escravidão ou da perseguição religiosa. O Papa Francisco constantemente tem chamado a atenção do mundo para o fato de que o Mar Mediterrâneo se tornou um imenso cemitério, onde pais, mães e filhos morreram ou continuam a morrer afogados, ao tentarem encontrar possibilidade de vida digna em outros países.
            Diante de tragédias como essas, alguns perguntam onde está Deus. Por que Ele não põe fim às guerras, à fome, à violência, à morte de pais, mães e crianças inocentes? Mas aqui cabe outra pergunta: por que nós responsabilizamos Deus pelas atitudes homicidas dos Herodes do nosso tempo? O mesmo Deus que falou à consciência de José também fala à consciência dos Herodes de hoje. A diferença é que, enquanto alguns pais e mães estão atentos à voz de Deus e tomam atitudes para salvar suas famílias, os Herodes de hoje só escutam a voz da sua própria ganância, do seu desejo de poder, da sua loucura, da sua maldade e ambição, da sua paranoia.
            “Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito!” (Mt 2,13). Quanto mais amamos algo, quanto mais algo é precioso, mais aquilo precisa ser defendido! Nós não podemos ser ingênuos e aceitar tudo o que o mundo nos apresenta como bom e útil para a nossa felicidade. Há muitas coisas más, tóxicas e destrutivas nos sendo oferecidas sob a aparência de bem, de atraente e de vantajoso. Por isso, nossa consciência precisa estar desperta, esclarecida pela voz de Deus nela, para podermos perceber o que de fato convém e o que não convém a nós e àqueles que nós amamos. Embora Deus seja o primeiro a querer o nosso bem e o bem da nossa família, cabe a cada um de nós “se levantar” e reagir, tomar atitudes concretas para salvar nossos valores, nosso bem mais precioso, seja o casamento, seja o filho, seja a saúde física e emocional, seja a fé, a alma.  
            Hoje as pessoas se deslocam com muito mais frequência e rapidez do que há tempos atrás.  A mobilidade humana é uma constante nos dias atuais. Contudo, enquanto alguns se deslocam fugindo da guerra, da fome ou da perseguição religiosa, muitos se deslocam movidos unicamente por interesse financeiro, pelo desejo de se alcançar uma vida próspera e estável, materialmente falando. Quem se desloca em vista de se afastar do mal e se aproximar do bem? Quem se desloca em busca de Deus e da salvação que Ele oferece? Quem se esforça em sair da sua preguiça espiritual, em vista de aprofundar sua fé e sua comunhão com Deus?
            Além disso, não pensemos apenas nos deslocamentos geográficos. O deslocamento psíquico, emocional e espiritual às vezes é muito mais exigente! Quantas pessoas mudam de casa, de trabalho, de curso, de relacionamento, de corte de cabelo, mudam o “look” (visual), mudam inclusive de igreja, de religião e de partido político, mas não enfrentam o Herodes que mora dentro delas? São pessoas que destroem seus próprios sonhos, que sabotam a si mesmas, que giram, giram, mas não saem do lugar, porque não se dão ao trabalho de fazer mudanças em si, porque não admitem que elas são Herodes (inimigas) de si mesmas, e acham mais fácil viver culpando Deus, o mundo, os outros, pela sua própria infelicidade.
            Outro alerta precisa ser feito, quando refletimos sobre nossa vida de família. Em muitos casos, Herodes mora dentro de nossas casas, e não fora. Herodes “interage” com os pais ou os filhos dependendo do que eles assistem na Netflix e na Internet; Herodes mora em algumas famílias, abusando sexualmente de crianças e adolescentes, agredindo-os verbal e fisicamente; Herodes também mora nas igrejas, seja nos ministros religiosos que abusam de menores (pedofilia), seja nos que se insinuam sexualmente para homens que estão nas pastorais das paróquias. Portanto, a melhor coisa que os pais têm a fazer é ensinar seus filhos desde pequenos a reconhecerem, se defenderem e se afastarem dos Herodes do nosso tempo!  
            Por fim, não menos importante do que fugir de Herodes, Deus nos orienta a reconhecer e a tratar nossas feridas familiares. Não há relacionamentos isentos de feridas, mas toda ferida pode ser tratada e curada. O primeiro passo é reconhecer a ferida; o segundo é comunicar a dor – a outra pessoa precisa tomar consciência da dor que estou sentindo, assim como, se for o caso, eu também preciso estar aberto para ouvir e me tornar consciente do quanto a feri; o terceiro passo é colocar remédio sobre a ferida, por meio do diálogo, do perdão, da reaproximação ou da mudança de atitude. Seja no livro do Eclesiástico, seja na carta de São Paulo aos Colossenses, o Senhor nos oferece pistas importantes a respeito da restauração dos nossos relacionamentos, do fortalecimento dos nossos vínculos e da superação das distâncias ou das atitudes que precisam ser modificadas em vista da nossa cura emocional.  
            Mudar é preciso. Deslocar-se é necessário. Tratar as feridas é a única possibilidade de cura para os nossos relacionamentos. Acolhamos os alertas que Deus nos faz quanto a tudo aquilo que ameaça machucar ou destruir o que mais amamos, ou roubar nosso bem mais precioso. Que em nossa casa cada um reconheça não apenas sua parcela de responsabilidade quanto ao que nela se vivencia diariamente, mas, sobretudo, sua potencialidade em mudar, em tornar-se melhor e em dedicar o melhor de si para revigorar a saúde emocional e espiritual de nossa família.

Pe. Paulo Cezar Mazzi    



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