quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

QUE MINHA VIDA MANIFESTE DEUS ÀS OUTRAS PESSOAS

Missa da Epifania (manifestação) do Senhor. Palavra de Deus: Isaías 60,1-6; Efésios 2,2-3a.5-6; Mateus 2,1-12.

 

            Na noite de Natal, um anjo do Senhor anunciou aos pastores: “Nasceu para vós um Salvador que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11). Até então, o nascimento de Jesus tinha sido anunciado como salvação somente ao povo judeu. Mas hoje, na festa da Epifania, palavra que significa “manifestação”, Deus se manifesta por meio de uma estrela a alguns magos do Oriente, respondendo à pergunta que não somente eles, mas que todo ser humano carrega no coração: a pergunta pela salvação, pelo sentido da vida.

            Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4). Por isso, Ele se manifesta na vida de cada pessoa de uma forma particular, provocando sua consciência, inquietando seu coração, convidando cada um a fazer uma peregrinação, a iniciar um caminho em busca da verdade que liberta, em busca da luz que nos tira das trevas da ignorância, do erro e da falta de sentido de vida: “Levanta-te, acende as luzes, Jerusalém, porque chegou a tua luz, apareceu sobre ti a glória do Senhor” (Is 60,1). Deus Pai convida cada ser humano a se levantar da sua prostração, a sair da escuridão em que se encontra, e caminhar na direção de Seu Filho, luz que “ilumina todo ser humano que vem a este mundo” (Jo 1,9). De fato, Jesus é o “sol nascente que nos veio visitar, para iluminar a todos os que se encontram nas trevas e nas sombras da morte” (Lc 1,78-79).

            O que foi aquela estrela que guiou os magos até Jesus? Ela foi a forma particular que Deus usou para falar ao coração dos magos. Nosso mundo é marcado pela diversidade: diversidade de pessoas, de povos, de culturas e também de religiões. Deus respeita a diversidade e sabe dialogar com cada ser humano, com cada povo e com cada cultura. Porque deseja salvar todos os povos, Ele tem inúmeros caminhos para falar ao coração humano. Não nos cabe dizer a Deus qual caminho Ele deve usar para salvar; nos cabe, sim, estar atentos para os pequenos sinais da Sua manifestação em nossa vida pessoal e social; nos cabe deixar provocar pela ação do Espírito Santo e nos dispor a fazer um caminho com Deus, que nada mais é do que seguir os passos de Seu Filho, o Caminho que conduz à luz e à salvação.

            A luz da estrela que guiou os magos até Jesus, reconhecendo-o como Salvador de todos os povos, nos provoca a vivermos de tal modo que a nossa existência fale de Deus para as pessoas que estão à nossa volta. Sempre é importante lembrar: eu não posso conduzir alguém para Deus se eu mesmo não vivo em Deus. Nossa maior tragédia enquanto Igreja, enquanto cristãos, é quando nossas atitudes ocultam Deus, escondem sua luz, afastando as pessoas do Seu desejo de salvá-las. Não tanto “apesar” das nossas fraquezas, mas permitindo que a graça de Deus aja em nossas fraquezas, devemos “falar” de Deus para as pessoas com a nossa vida, de modo que fique claro para elas que nós sabemos em quem acreditamos, em quem depositamos a nossa fé e a nossa esperança.

            Nossa tarefa como luz, como manifestação de Deus para as pessoas do nosso tempo, sempre será vivida em contraste com as trevas. De fato, a luz só é percebida no contraste com a escuridão. Isso significa que o cristão deve diferenciar-se do mundo, no sentido de não viver como uma pessoa “mundana”. Isso também significa que a luz da nossa vivência cristã deve se manifestar justamente no meio da escuridão do mundo. Quando os cristãos se distanciam do mundo e se resguardam dentro das igrejas, estão fazendo o oposto do que a estrela fez, impedindo as pessoas de serem provocadas e buscar Deus em seu caminho de vida.

            Ainda sobre isso, é importante considerar que muitas pessoas do nosso tempo reagem à luz como se fossem morcegos. Habituadas à escuridão do individualismo, da indiferença para com as injustiças à sua volta e da agressividade própria da intolerância dos tempos atuais, elas não estão abertas à luz, ao menos num primeiro momento. O cristão não pode pretender ser um holofote que agride com sua luz os olhos das outras pessoas, impondo-lhes a “verdade” da sua ortodoxia, da sua “rigidez” religiosa. A luz deve dialogar com quem está habituado a viver na escuridão, convidando a pessoa a fazer um caminho, a abrir-se a um processo de aproximação gradual da luz, da verdade, até que ela compreenda que o benefício de viver na luz é grandemente superior aos ganhos secundários das trevas.  

            Hoje nossos joelhos se dobram diante do Pai, agradecendo-O pelo nascimento de Seu Filho, manifestação do Seu amor pelo ser humano e do Seu desejo de salvá-lo. Agradecemos cada estrela que o Pai faz brilhar no céu escuro da humanidade, provocando cada ser humano a sair da escuridão em que se encontra e a fazer um caminho de libertação, de amadurecimento, de cura, deixando-se iluminar, conduzir e curar por Aquele que é o Caminho, a resposta à pergunta mais profunda que o ser humano tem de felicidade, de paz e de sentido para a sua vida. Diante do ouro, do incenso e da mirra que os magos ofereceram a Jesus, pedimos que o Pai nos ensine a enxergar em cada ser humano o ouro da sua dignidade e da sua unicidade, o incenso do sagrado que carrega em si como Seu filho amado e a mirra da sua fragilidade, espaço por meio do qual a força do Pai se manifesta como amor que redime, como bálsamo que alivia a dor e como convite ao amadurecimento e à superação dos seus obstáculos.  

           

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

 

 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

QUEM DESEJA ESQUECER 2020 RECUSA-SE A APRENDER O QUE ELE VEIO ENSINAR

 Missa Maria, mãe de Deus. Dia mundial da paz. Palavra de Deus: Números 6,22-27; Gálatas 4,4-7; Lucas 2,16-21.

 

            A celebração de hoje marca a passagem de um ano para outro. O que fazer com o ano de 2020, que termina? “Devolvê-lo”, porque “veio com vírus”? Muitos dizem que 2020 é um ano para ser esquecido. No entanto, quando o povo de Israel chegou ao fim da caminhada pelo deserto e estava às portas da Terra Prometida, Deus ordenou a Moisés dizer ao povo: “Não se esqueça de todo o caminho que o Senhor seu Deus fez você percorrer no deserto” (Dt 8,2); “Não se esqueça do Senhor seu Deus (de como Ele sustentou você na travessia do deserto)” (Dt 8,11); “Se você se esquecer do Senhor seu Deus, morrerá na Terra em que está para entrar” (Dt 8,19).

            A nossa tendência, enquanto seres humanos, é apagar da nossa lembrança os sofrimentos que passamos. Como o ano de 2020 foi marcado por muito sofrimento, especialmente devido ao coronavírus e suas consequências – morte, luto, perda, enfraquecimento da economia, desemprego, isolamento, distanciamento etc. – a grande maioria das pessoas deseja que este ano seja esquecido. Mas Deus nos ensina que quem quer se esquecer rapidamente do sofrimento que enfrentou não aprendeu nada com ele, e quem se recusa a aprender com o sofrimento continuará a errar pela vida e precisará sofrer dores ainda maiores, até que aprenda aquilo que tem que aprender, para modificar suas atitudes.

            2020 não é um ano para ser esquecido, mas para ser lembrado como o ano em que a humanidade foi forçada a parar e a rever suas atitudes, especialmente sua relação com o meio ambiente. Este ano que termina nos jogou numa profunda crise, e crise significa oportunidade de mudança, de crescimento, de purificação, de amadurecimento. Enquanto muitos terminam esse ano melhores, mais sábios, mais humildes, mais conscientes, mais responsáveis, outros o terminam piores: mais ignorantes, mais estúpidos, mais irresponsáveis, mais cínicos, mais desumanos. A crise é assim mesmo: ela faz vir para fora aquilo que temos dentro de nós. Quem tem abertura para o crescimento, aprende, amadurece e se torna melhor depois de passar pelo sofrimento; quem não tem essa abertura, quem não aceita aprender com a vida, sai do sofrimento pior, responsabilizando os outros pelo seu fracasso como pessoa.

            Sem dúvida que a maioria das pessoas deseja que 2021 seja um ano melhor. Mas quem está disposto a se tornar uma pessoa melhor? Quem de nós, que hoje celebra a passagem do ano diante de Deus, está disposto a se tornar um cristão melhor? Todos querem que Deus os abençoe no novo ano que nasce (Salmo 66, que acabamos de rezar), mas quem está disposto a viver o novo ano na obediência à vontade de Deus? Aqui mais uma vez é preciso lembrar: todos querem que Deus esteja em seu caminho de vida, abençoando seus projetos, mas poucos se sujeitam a caminhar na vida segundo a vontade de Deus. Todos suplicam: “Que o Senhor faça brilhar sobre nós a sua face e se compadeça de nós. Que o Senhor volte para nós o seu rosto e nos dê a paz” (citação livre de Nm 6,25-26), mas quantos, na prática, viverão a maior parte dos seus dias neste novo ano de costas para Deus, sem tempo para cultivar sua vida de oração, seu relacionamento com Ele?

            Nesta noite, em que celebramos Maria, Mãe de Deus Filho, a Escritura nos recorda que “Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, (...) para que todos recebêssemos a filiação adotiva... Assim já não és mais escravo, mas filho” (Gl 4,4-5.7). Deus não quer que vivamos o ano novo escravos da ignorância, escravos da tecnologia, escravos do pecado, escravos da mentira – da ilusão de ganhar na mega sena. Deus nos convida a viver o novo ano como filhos; filhos que estão abertos a aprender com o Pai e com nosso irmão mais velho, Jesus; filhos que desejam se deixar conduzir pelo Espírito Santo, que clama em nós a palavra “Abá, Papai!” (Gl 4,6). O Espírito Santo é o Espírito da Verdade. Ele deseja nos tirar do espírito da ignorância em relação à ciência, aos apelos do meio ambiente, aos apelos da própria vida, para que modifiquemos as atitudes que estão nos destruindo enquanto humanidade.  

            Oito dias após o Natal, o Evangelho nos coloca diante de Maria, que sempre procurou guardar e meditar em seu coração os acontecimentos que afetavam sua existência neste mundo. Mais uma vez é preciso dizer que os acontecimentos que nos afetaram em 2020 precisam ser guardados e meditados em nosso coração, não esquecidos. Guardar e meditar no coração aquilo que nos acontece significa nos lembrar de que “o Senhor desfaz os planos das nações e os projetos que os povos se propõem, mas os desígnios do Senhor são para sempre, e os pensamentos que Ele traz no coração de geração em geração vão perdurar” (Sl 33,10-11). Por isso, nos fará bem começar este ano novo pedindo que Deus disponha da nossa vida e faça prevalecer em nossa história pessoal e social não os nossos projetos, normalmente infectados pelo vírus do nosso egoísmo, mas sim os Seus desígnios, desígnios que visam nos dar um futuro e uma esperança.   

“Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido” (Lc 2,21). Nosso ano novo começa diante do nome de Jesus, o único nome que nos foi dado debaixo do céu pelo qual possamos ser salvos (cf. At 4,12). O nome de Jesus não é mágico; o nome representa a sua pessoa. A nossa salvação depende do nosso relacionamento com a pessoa de Jesus Cristo, especialmente procurando viver como Ele viveu, nos comportar como Ele se comportou. É nisso que consiste a nossa salvação.

Enfim, neste Dia Mundial da Paz, o Papa Francisco nos lembra que a paz nasce do cuidado. Sem a cultura ou a atitude do cuidado, não há paz. O primeiro cuidado é com a pessoa humana, o que significa respeito pela sua dignidade e solidariedade perante suas necessidades. Depois, vem o cuidado com o bem comum, o que envolve nossas atitudes perante a sociedade: cuidar do espaço em que vivemos, humanizando nossas cidades. Por fim, o cuidado com a criação, com o meio ambiente, com a Amazônia, com o Planeta.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

FAMÍLIA: FORTALECER OS VÍNCULOS NA HORA DA DOR

 Missa da Sagrada Família de Nazaré. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Colossenses 3,12-21; Lucas 2,22-40.

 

Há uma ligação estreita entre Natal e família. Natal é família. A maior parte das pessoas celebra o Natal em família. O próprio Deus preparou uma família para que seu Filho viesse ao mundo. No entanto, nossa ideia ou concepção de família precisa se alargar. Há muito tempo a família tradicional – pai, mãe e filhos – deixou de ser o único modelo ou a configuração mais comum de família. A maior parte das famílias hoje não se encaixa mais nesse modelo: a grande maioria é chefiada pela mãe e o pai está ausente; no lugar do sacramento do matrimônio temos uniões irregulares, vínculos conjugais frágeis e troca frequente de parceiros, com filhos nascidos de diferentes pais e convivendo de maneira conflitiva dentro da mesma casa. Além disso, a educação recebida dos pais foi terceirizada pelos colégios particulares – a minoria –, e pela rua – a maioria –, sendo que a internet passou a influenciar fortemente, para o bem e para o mal, a cabeça das novas gerações. Enfim, a desorientação em que se encontra a humanidade atualmente tem na família o seu termômetro mais fiel, e a ação pastoral da nossa Igreja está distante da maioria das famílias.

Essa realidade desafiadora encontra no Evangelho de hoje a sua orientação: “Maria e José levaram Jesus (recém-nascido) a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22). Maria e José nos ensinam que todo filho é um dom de Deus não para os próprios pais, mas para a humanidade, e assim como ele precisa ser cuidado e alimentado fisicamente, precisa também, desde pequeno, ser cuidado e alimentado espiritualmente; ele precisa crescer perto de Deus, inserido numa religião, dentro da qual ele descobrirá o sentido da sua vida, a razão da sua existência.

Devido ao contratestemunho de muitos cristãos, ao materialismo do mundo moderno e à burocracia pastoral da nossa Igreja, muitas crianças já não são trazidas para o batismo ou para a catequese. Elas crescem sem qualquer referência religiosa, inclusive dentro de casa, onde ali não se cultiva espiritualidade. Além dessa carência espiritual, existe hoje carência de educação – “cria-se” filhos, mas não “se educa” filhos. Independente da condição social, as gerações que chegam às escolas são marcadas por uma perceptível fragilidade emocional: são crianças que não sabem lidar com o não, que não suportam serem frustradas. Enquanto algumas são excessivamente mimadas, outras são desprovidas de qualquer referência afetiva; enquanto algumas têm pais ausentes, sempre correndo atrás de dinheiro para sustentar um padrão de vida supérfluo, muitas outras têm pais viciados na bebida e em outras drogas, alheios às suas necessidades de crescimento e de amadurecimento.

O cuidado com a família começa com o cuidado com o(a) cuidador(a) da casa. Nossas paróquias são desafiadas a se aproximarem daqueles que estão à frente de suas famílias e oferecer-lhes amparo emocional e espiritual. Aquele que cuida dos outros deve deixar-se cuidar por Deus e colocar-se debaixo de Sua autoridade, para que possa exercer uma saudável e equilibrada autoridade sobre seus filhos. Mãe e pai precisam conhecer seus próprios limites e não admitirem serem sugados por seus filhos, mas educá-los para caminhem com suas próprias pernas e responsabilizem-se, desde cedo, por pequenas tarefas, de modo a formarem seu caráter; caso contrário, crescerão como parasitas e serão pessoas apáticas perante a vida.     

Um fato nos chama a atenção no Evangelho de hoje: no exato momento em que Maria e José são abençoados por Simeão, recebem dele uma profecia que fala de sofrimento: o filho será um sinal de contradição – por ser verdadeiro, agradará a uns e desagradará a outros; a mãe – o que supõe que quando isso acontecer, José já terá falecido – sofrerá muito, por ver seu filho ser rejeitado pelos mesmos homens aos quais veio salvar. Isso significa que a bênção de Deus não é garantia de blindagem contra dor e sofrimento. Por mais que uma família seja religiosa, ela vive em um mundo contrário à vida e aos valores do Evangelho, um mundo que, se permite que se fale de Deus, é apenas enquanto “filosofia barata de felicidade pessoal” e não como autoridade espiritual que deve guiar a consciência das pessoas em suas atitudes diárias.  

Não existe família que atravesse este mundo sem ser ferida por alguma espada de dor. Além disso, toda família que desejar viver segundo o Evangelho sofrerá intensos ataques por parte do mundo. A Sagrada Família de Nazaré jamais foi blindada contra a dor e a infelicidade; muito pelo contrário. A imagem da “espada de dor” desafia os pais de hoje a educarem seus filhos para a vida real. Desde pequenos, eles precisam tomar consciência de que a vida comporta perda, morte, luto, doença, limites, frustrações, derrotas, cruz. A melhor herança que os pais podem deixar para os filhos é a capacidade de resistirem às “pancadas” existenciais, de olhar a vida nos olhos e não fugir das responsabilidades, a capacidade de lidarem com as crises normais do amadurecimento que todo ser humano é chamado a lidar.    

“O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2,40). Crescer, tornar-se forte e adquirir sabedoria fazem parte de um processo, e todo processo exige tempo, paciência, comportando avanços e retrocessos. Deus conceda a sua graça e a sua bênção a todas as famílias, curando as feridas dos relacionamentos, restabelecendo os vínculos, derramando o remédio do perdão sobre toda mágoa ou ressentimento, protegendo e guardando as crianças e adolescentes do abuso sexual e de outras formas de violência, iluminando a consciência e o coração dos pais, de modo que possam orientar-se pela verdade na condução de suas famílias. Neste ano de tantas perdas, de tanto luto, Deus derrame a consolação sobre toda família que neste momento experimenta algum tipo de desolação, recolhendo suas lágrimas e transformando suas feridas em pérolas, seus sofrimentos em processo de amadurecimento humano e espiritual. Como cristãos, façamo-nos próximos de toda família ferida e fragilizada em sua fé, em sua esperança e em seu amor.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

ACOLHER NO SILÊNCIO DA NOSSA ALMA O VERBO DE DEUS

Missa de Natal. Palavra de Deus: Isaías 9,1-6; Tito 2,11-14; Lucas 2,1-14.

 

            Nós chegamos a este Natal mais inseguros, mais angustiados, com nossa esperança cansada, ou até mesmo abalada. Nós chegamos a este Natal mais tristes e machucados – perdemos parentes ou amigos devido ao coronavírus. Nós chegamos a este Natal com o coração mais sombrio, com mais dificuldade financeira – muitos perderam o emprego ou tiveram seu salário reduzido como efeito colateral da pandemia. Essa pandemia poderia ter tornado o ser humano melhor, focado no essencial, mais humilde, mais solidário. No entanto, em muitos casos, ela fez vir para fora o que as pessoas têm de pior, revelando-se mais egoístas e mais ignorantes. Aliás, o vírus da ignorância revelou-se muito mais contagioso, nesse contexto de pandemia, sobretudo no Brasil, do que o próprio coronavírus.

            Mas, nesta noite de Natal, nós ouvimos o anúncio de que “o povo, que andava na escuridão, viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9,1). De fato, Jesus nasceu como luz que “ilumina todo ser humano que vem a este mundo” (Jo 1,9). Ainda que a maior parte da humanidade desconheça essa luz e viva na escuridão da falta de amor, de fé e de esperança, na escuridão da ignorância, da violência, das drogas e da desestruturação familiar; ainda que muitas pessoas à nossa volta nunca fizeram uma experiência de comunhão profunda com a pessoa de Jesus Cristo e outras rejeitam, como morcegos, tudo aquilo que possa ser luz – o Evangelho, a Igreja, os cristãos, Jesus continua a oferecer-se como sentido de vida para todo ser humano.

Seja para aqueles em cujos corações Cristo ainda não nasceu pela fé, seja para aqueles que o recusam como Salvador, o Natal é a proclamação de que “a graça de Deus se manifestou trazendo salvação para todos os homens” (Tt 2,11). A manifestação do Filho de Deus se deu no momento em que a história mundial estava dominada por um Império – dominação expressa na obrigatoriedade do recenseamento – de modo que Jesus nasceu em condições nada favoráveis, “pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7). Isso significa que, enquanto o medo e a falta de esperança nos fecham em nós mesmos, Deus bate à nossa porta e nos convida a nos abrir à sua salvação. Enquanto a fé na vida e no próprio ser humano diminui, Deus escolhe visitar-nos nascendo como ser humano na pessoa de seu Filho Jesus. Enquanto nós recolhemos nossas redes e guardamos nossas sementes, porque as condições não parecem ser favoráveis para pescar ou para semear, o Natal nos provoca a lançar as redes e a semear as sementes porque Jesus é Deus conosco: conosco em nossa dor e em nossa fragilidade; conosco em nossa luta em favor da vida. Isso significa que não estamos sozinhos em nossa doença, em nossas dificuldades, em nossas lágrimas, em nosso luto; não estamos sozinhos com nossos medos e com nossa solidão.  

“Nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11). Do que precisamos ser salvos? Recentemente o Papa Francisco nos recordou, na sua encíclica social Fratelli Tutti, que “a pandemia do Covid-19 despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos” (n.32). Nós precisamos ser salvos não somente do coronavírus, mas salvos do vírus da ignorância, que faz piada da morte alheia, que nega a realidade do aquecimento global e do desmatamento da Amazônia, que dissemina ódio e desinformação nas redes sociais. Nós precisamos ser salvos de um consumismo que promete saciar a fome dos nossos desejos, mas é incapaz de nos fazer sentir felizes e de dar sentido à nossa própria vida.

Nesta noite de Natal, somos convidados a silenciar a nossa alma para acolher “a Palavra (que) se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Deus tem uma palavra a dizer a cada ser humano: uma palavra de cura para o doente, de direção para o que se sente perdido, de libertação para o que se sente preso, de força para o enfraquecido, de consolo para o que está triste, e essa Palavra é seu próprio Filho feito homem (cf. Hb 1,1-2), pessoa humana, que conhece o chão da nossa história, nossas misérias, nossas lutas e nossas esperanças. E aqui se revela a nossa tarefa como cristãos: fazer ecoar em nossas atitudes o “Verbo de Deus”, colocando-nos junto das pessoas abatidas para levar-lhes uma palavra de conforto da parte de Deus (cf. Is 50,4), o Consolador de todo ser humano.

Nesta noite, nosso olhar se volta mais uma vez para o presépio, especialmente para a manjedoura; ela que antes estava vazia e agora recebe o Menino Jesus. “Nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho; ele traz aos ombros a marca da realeza; o nome que lhe foi dado é: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai dos tempos futuros, Príncipe da Paz” (Is 9,5). Um menino nasce como sinal de que a vida sempre encontrará um meio de renascer, assim como a luz sempre encontrará alguma brecha no meio das trevas para fazer brilhar o seu resplendor. O menino nasce “para nós”, para a nossa salvação, para nos orientar com seu Conselho, para nos socorrer com sua Força, para abrir o nosso presente ao Futuro e para trazer àqueles que nele creem a Paz. Que no coração de cada um de nós haja lugar para Cristo renascer em nós pela fé.

 

ORAÇÃO: Deus Pai, que nesta noite de Natal a luz do nascimento de teu Filho resplandeça sobre a noite escura do medo, do desamor e da falta de esperança. Que todo ser humano seja envolvido pela luz da Tua salvação e reconheça em Teu Filho o Salvador que ele necessita e procura, ainda que de maneira inconsciente. Afasta de nós a escuridão da ignorância. Não queremos ignorar teu Filho – Deus conosco – junto à história de cada um de nós, assim como não queremos ignorar a nossa responsabilidade perante as necessidades da humanidade, no seio da qual nos encontramos como testemunhas da luz e da verdade. Faz ecoar na consciência e no coração de cada ser humano a tua “Palavra feita carne”, de modo que o teu Filho possa nascer em cada coração pela fé. Por Cristo, nosso Senhor. Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  


sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

FAÇA-SE: QUE A TERRA ÁRIDA DA NOSSA VIDA SE ABRA PARA ACOLHER O ORVALHO QUE CAI DO CÉU!

Missa do 4. dom. do advento. Palavra de Deus: 2Samuel 7,1-5.8b-12.14a.16; Romanos 16,25-27; Lucas 1,26-38.

 

            Uma das orações que nós, enquanto Igreja, mais elevamos a Deus no tempo do advento é esta: “Céus, deixai cair orvalho das alturas, e que as nuvens façam chover justiça; abra-se a terra e germine a salvação; brote igualmente a justiça” (Is 45,8). O Evangelho de hoje nos traz a resposta a essa súplica, o momento em que o céu se abre e desce à terra, fecundando-a com a salvação que vem de Deus.

            De todos os lugares que poderia fazer brotar a salvação, Deus escolheu um insignificante, um vilarejo desconhecido até mesmo pela Sagrada Escritura, nunca mencionado no Antigo Testamento, uma cidadezinha mal vista pelos judeus, porque povoada de pessoas mestiças, isto é, por pessoas que não tinham o sangue puro do judaísmo, a pequena Nazaré, desprezada, como se vê nessa pergunta de Natanael: “De Nazaré pode vir algo de bom?” (Jo 1,46).

Nazaré somos nós. Nazaré é a nossa vida cotidiana, uma vida ignorada pelo mundo que só enxerga e valoriza o que é grande, forte, famoso e que se destaca, fugindo da simplicidade. Nazaré é a nossa vida de pessoas comuns, que não ocupam o centro das atenções, que passarão pela história humana sem ter sido notadas. Deus escolheu Nazaré porque “os homens veem a aparência, mas Deus olha o coração” (1Sm 16,7). Deus escolheu entrar no mundo não pela força, mas pela fraqueza; não pelo espetáculo, mas pela discrição; não pelo barulho, mas pelo silêncio; não por aquilo que o mundo considera importante, mas exatamente por aquilo que ele despreza. Isso significa que, se quisermos nos encontrar com Deus, temos que acolher e valorizar a Nazaré onde nos encontramos.

Para fazer brotar na terra a salvação, Deus entra em diálogo com Maria, a qual, muito provavelmente, se encontrava em oração em sua casa. Embora na oração nós muitas vezes buscamos pedir coisas a Deus – e consideramos que nossa oração é bem sucedida quando obtemos aquilo que havíamos pedido –, o diálogo entre Deus e Maria nos revela uma face mais profunda da oração: ela é justamente o espaço que damos a Deus para falar conosco, para intervir em nossa vida, e o nosso maior desafio é permitir que Ele modifique os nossos planos, que Deus dê uma direção nova à nossa história, uma direção que, a princípio, virará nossa vida do avesso, e isso nos causará muito medo, mas é assim que Deus abrirá o horizonte da nossa existência e nos fará compreender que cada um de nós tem uma palavra d’Ele a pronunciar ao mundo com a nossa existência, que é única.   

“Não tenhas medo, Maria... Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus” (Lc 1,30-31). Dentro de cada um de nós há um ventre vazio, uma força adormecida, um sonho a ser despertado, uma tarefa que pede para ser realizada. Normalmente, quando nos damos conta disso, sentimos medo. Mas Deus nos encoraja, nos dizendo que é hora de conceber, é hora de gerar vida e esperança, é hora de permitir que aquilo para o qual nascemos comece a ganhar corpo, comece a vir à luz. As circunstâncias não são favoráveis; o momento não parece propício; a realidade à nossa volta não nos aconselha a “engravidar” do sonho de Deus para a humanidade, mas é exatamente nesse contexto, onde nada parece favorável, que precisamos confiar, porque a obra é de Deus.

“O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (Lc 1,35). Sobre a terra árida e sem vida do nosso coração, Deus derrama a água viva do seu Espírito. Essa água penetra no chão da nossa existência e nos torna homens e mulheres fecundos de alegria, de fé, de esperança e de amor, fecundos de força interior, de vida interior. O Espírito “vem em socorro da nossa fraqueza” (Rm 8,26), não para cancelá-la da nossa vida, mas para, através dela, manifestar a força de Deus. Sendo “poder do Altíssimo”, ele nos “cobrirá com sua sombra”, isto é, nos revestirá da sua graça em nossa missão de gerar vida e esperança no mundo. Deixar-se cobrir pelo Espírito Santo significa deixar-se conduzir por ele; significa realizar a tarefa que Deus nos confia tendo no coração suas próprias palavras: “Não pelo poder, não pela força, mas sim por meu Espírito” (Zc 4,6).

Para comprovar que vale a pena nos abrir à tarefa que Deus quer nos confiar, o anjo Gabriel, interlocutor entre Deus e Maria, afirma: “Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice. Este já é o sexto mês daquela que era considerada estéril, porque para Deus nada é impossível” (Lc 1,36-37). Quantos de nós se sentem “velhos”? Quantos, por já terem uma certa idade, não contam mais para o mercado e para a cultura moderna, que despreza e descarta tudo o que é velho? A gravidez de Isabel, idosa e estéril, deve lembrar Maria e cada um de nós que Deus não descarta pessoas; Deus faz, sim, novas todas as coisas, mas o faz revitalizando o que é velho, gerando vida exatamente naquilo que consideramos definitivamente morto em nós.

E assim se conclui a oração de Maria, o seu diálogo com Deus: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!” (Lc 1,38). Estamos diante de uma oração “bem sucedida”, uma oração que alcançou o seu objetivo, não porque Deus fez aquilo que lhe havíamos pedido, mas porque saímos dela dispostos a fazer o que Ele nos pediu: “Faça-se”. Quantas orações estão travadas, por falta desse “faça-se”? Muitos ventres continuam vazios e muitos horizontes continuam fechados, sem alegria e sem esperança, porque as pessoas não têm coragem de dizer a Deus: “Faça-se”, “Eu permito que a tua Palavra, que a tua vontade se faça em minha vida”; “Eu me disponho a abraçar a vontade de Deus, ainda que isso me custe renunciar aos meus planos, aos meus desejos egoístas”.  

            O Natal se aproxima. O céu visita a terra, desejoso de derramar sobre ela o orvalho da justiça, a bênção da chuva da salvação. Mas ele espera que a terra se abra, que o coração do ser humano dê o seu “faça-se”, que cada um de nós se deixe conduzir pelo Espírito Santo e possa pronunciar, com a sua existência, a Palavra que se fez pessoa humana no ventre de Maria. Sempre que entramos em diálogo com Deus e ouvimos com fé sua Palavra, ela precisa permanecer em nós até que se cumpra, até que se faça. Saibamos respeitar o tempo de gestação da Palavra em nós, até que aquilo que era impossível em nossa vida deixe de sê-lo, porque permitimos que Deus agisse e nos tornasse grávidos da mudança que Ele deseja provocar em nós e no coração da humanidade.

                Enquanto muitos desejam por uma intervenção “bombástica” de Deus, acolhamos essa intervenção calma, serena e silenciosa como orvalho que cai do céu e fecunda a terra, lembrando que a Encarnação de Jesus Cristo “não se realizou de modo estridente, mas com infinita discrição, na ‘sombra’ do Espírito Santo. À intervenção divina deve corresponder a nossa discreta disponibilidade: ‘Abra-se a terra’. E a terra abriu-se, quando a Virgem de Nazaré deu o seu ‘sim’: ‘Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra’ (Lc 1,38) – Liturgia Dehonianos.

 

            ORAÇÃO: Senhor Jesus, derrama sobre a terra árida da minha vida o orvalho da tua graça. Fecunda-me! Que a sombra do Espírito Santo me cubra e desperte em mim a força espiritual necessária para que eu realize a tarefa que a vida me pede neste momento, em vista da salvação da humanidade. Afasta de mim o medo, a covardia e todo tipo de desânimo ou pessimismo. Quero viver segundo o teu Evangelho principalmente em meio às circunstâncias que não são favoráveis, confiando que para Deus nada é impossível. Quem em cada dia da minha vida eu possa alimentar-me da tua Palavra e obedecer ao que ela me diz, respondendo conscientemente o meu “faça-se”. Amém!   

 

            Pe. Paulo Cezar Mazzi

 


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

INSPIRAR OUTRAS PESSOAS NA FÉ

 Missa do 3. dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 61,1-2a.10-11; 1Tessalonicenses 5,16-24; João 1,6-8.19-28.

 

Alguém inspira você a viver? Se você é casado(a), algum casal serve de inspiração para você para viver seu casamento? Se você é pai ou mãe, seus filhos se espelham em você para se construírem como pessoas equilibradas, decentes e responsáveis? Se você é criança, adolescente ou jovem, algum adulto serve de inspiração para a sua vida? Enfim, para nós que vivemos numa cultura que valoriza só o que é novo e despreza o que é velho, alguma pessoa idosa nos serve como inspiração de vida?  

Inspirar-se em alguém é importante na medida em que essa pessoa nos convida a crescer, a não viver uma vida medíocre, a lutar para nos tornarmos melhores, para nos tornarmos a pessoa que fomos chamados a ser a partir da nossa vocação. Mas inspirar-se em alguém também comporta o risco da decepção, principalmente quando idealizamos demais a pessoa e nos esquecemos de que ela não é um ídolo, não é um mito, mas um ser humano passível de erro, alguém que, ao invés de dar testemunho, pode um dia vir a dar contratestemunho.

Nosso mundo não só carece de modelos, não só carece de pessoas que nos inspirem, mas – o que é mais grave – é um mundo que cultua anti-heróis, antimodelos. Quantos adolescentes e jovens de classe média e alta se inspiram em youtubers vazios, desprovidos de ética, de fé e de valores cristãos? Quantas crianças pobres se inspiram em traficantes ou em milicianos? Quantos homens e mulheres se inspiram em pessoas que são autênticas “fake news”, imagens falsas de sucesso e de felicidade?

Assim começa o Evangelho de hoje: “Surgiu um homem enviado por Deus; seu nome era João. Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos chegassem à fé por meio dele” (Jo 1,6-7). João era uma pessoa diferente das demais. Ele cresceu no deserto, lugar de anonimato, o que significa dizer que João nunca foi uma pessoa afetada pela vaidade, uma pessoa fútil que se alimentava do reconhecimento dos outros. Vivendo no deserto, João aprendeu a cultivar o essencial e não perder tempo com coisas supérfluas, o contrário do que a cultura moderna faz, influenciando-nos. João era tão autêntico, que despertava nas pessoas do seu tempo uma saudável inquietação: no que esse homem crê? O que o sustenta na vida? O que ele espera? De onde vem sua força para lidar com as adversidades?

Em nossa preparação para a vinda do Senhor Jesus, a liturgia da Igreja nos coloca diante de João, aquele que, com sua vida, e não somente com suas palavras, deu testemunho de Jesus, isto é, preparou o mundo para a primeira vinda de Jesus, uma preparação tão intensa e tão profunda que o evangelista afirma: “para que todos chegassem à fé por meio dele” (Jo 1,7). Quem de nós está convencido de que ainda hoje vale a pena ser bom, justo, correto, honesto? Quem de nós está convencido de que, quando nos esforçamos por viver segundo a vontade de Deus, podemos conduzir pessoas para Deus? Quem de nós está convencido de que, quando expressamos a nossa fé e a nossa esperança na maneira como lidamos com as contrariedades da vida, podemos, sem perceber, estar conduzindo outras pessoas à fé?

   “Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz” (Jo 1,8). Eis o sentido da vida de João Batista; eis também a inspiração para a nossa vida de cristãos em pleno século XXI: não devemos nos preocupar em ser a luz, mas em apontar para a luz. João não era a luz, mas a lâmpada que portava em si a luz, da mesma forma como João não era a Palavra, mas a voz que fazia ecoar a Palavra. Assim como foi João, a nossa existência é chamada a ser um testemunho, uma existência que desperte nas pessoas o desejo de serem melhores, de serem autênticas, de se afastarem do supérfluo e de aproximarem do essencial. Apesar de todas as nossas falhas e inconsistências, que a nossa vida aponte para Aquele que é maior do que nós, Aquele que é capaz de “curar as feridas da alma, anunciar a redenção para os cativos e a liberdade para os que estão presos” (Is 61,1). E para que isso aconteça, não nos esqueçamos dessa verdade: eu não posso levar alguém para Deus se eu mesmo não estou n’Ele; eu não posso conduzir ninguém para a fé se eu mesmo não cultivo em mim a força da fé.

“No meio de vós está aquele que vós não conheceis” (Jo 1,27). João nos convida a nos abrir para Jesus, Aquele que está no meio de nós e que talvez, ainda hoje, não o conheçamos, porque não se trata de conhecimento intelectual, mas interior; se trata de passar da cabeça para o coração, do ouvir dizer sobre Jesus para o experimentá-lo vivo, dentro de nós. Como é possível que ainda hoje Jesus seja desconhecido da maioria das pessoas e de muitos cristãos? Porque o procuramos fora, quando ele está dentro; porque o procuramos no supérfluo, quando ele se encontra no essencial; porque o procuramos no barulho do mundo, quando ele se encontra no silêncio da nossa alma; porque o procuramos nas pessoas que brilham sob a luz dos holofotes da vaidade e da superficialidade, quando ele se encontra nos pobres anônimos que cruzam nossas ruas todos os dias.

Uma última palavra sobre o nosso testemunho de vida: ele deve ser dado na alegria. “Estai sempre alegres!” (1Ts 5,16). O cristão é chamado à alegria não porque tudo esteja bem em sua vida e na vida da humanidade, mas porque ele espera pelo seu Senhor perseverando na oração, mantendo-se aberto à ação do Espírito Santo, filtrando tudo aquilo que o mundo lhe oferece e ficando apenas com aquilo que é bom; acima de tudo, confiando-se às mãos de Deus, que o sustentará na fé, na esperança e no amor até a vinda de Cristo, como nos garante o apóstolo Paulo.

 

ORAÇÃO: Deus Pai, concede-me a graça do conhecimento interno de teu Filho Jesus. Que a minha existência se torne uma palavra viva do Evangelho para as outras pessoas. Peço que a graça do Espírito Santo reavive a minha fé, de modo que, com a minha maneira de viver, eu também possa conduzir muitas outras pessoas à fé.  

Enquanto me preparo para a celebração do Natal, que o Teu Filho possa renascer em mim a cada dia, curando as feridas da minha alma e libertando-me das prisões dos meus próprios pecados. Concede-me a graça de estar sempre alegre, fortalecido(a) na esperança e confiante de que o Senhor guardará meu corpo, minha alma e meu espírito santificados para o encontro definitivo com teu Filho Jesus. Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

COMO ESTÁ O SEU CAMINHO DE VIDA?

 Missa do 2. dom. advento. Palavra de Deus: Isaías 40,1-5.9-11; 2Pedro 3,8-14; Marcos 1,1-8.

 

            Todos nós percorremos um caminho na vida. Para muitos, esse caminho é como que imposto a partir de fora, pelo mundo, pelo mercado, pela propaganda de consumo. Para outros, esse caminho é escolhido a partir de dentro, a partir da escuta da própria alma.

Quando começamos a caminhar, não sabemos o que iremos encontrar ao longo do caminho. A vida é um mistério, e não há como termos todas as perguntas respondidas para, somente então, nos dispomos a caminhar. O caminho vai se abrindo na medida em que caminhamos; é enquanto caminhamos que as respostas vão surgindo e a estrada vai se clareando. O importante é que tenhamos uma orientação, que saibamos o que estamos buscando, o que estamos procurando, o que desejamos alcançar.

Na vida espiritual, muitos desejam que Deus caminhe com eles, mas são poucos os que se dispõem a caminhar com Deus, a viver segundo a vontade de Deus. Por isso, o profeta tem a missão de gritar à consciência de toda pessoa que deseja encontrar Deus em seu caminho de vida: “Prepare no deserto o caminho do Senhor, aplaine na solidão a estrada do nosso Deus” (Is 40,3). Deus deseja consolar o ser humano, isto é, ampará-lo, reerguê-lo, orientá-lo, fortalecê-lo em seu caminho de vida. Mas para fazer isso, Ele precisa que o ser humano desobstrua o caminho: “Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas; endireite-se o que é torto e alisem-se as asperezas” (Is 40,4).

As mesmas pessoas que reclamam que Deus está longe delas são as que mantém Deus afastado do seu caminho de vida. A estrada delas está cheia de buracos – falhas graves na vida moral, erros na forma de lidar com o dinheiro –; nessa estrada, montes e colinas precisam ser rebaixados – atitudes de soberba, de arrogância, de pisar nos outros –; nesse caminho há também trechos tortuosos e pedregosos – uma consciência a ser endireitada, atitudes agressivas e intolerantes a serem modificadas etc. O mais importante é que o reparo do caminho da vida de cada um de nós deve ser feito “no deserto”, “na solidão”, o que supõe um olhar para a própria consciência, para a própria alma, reconhecendo com sinceridade em quais aspectos da nossa vida estamos caminhando no sentido contrário à vontade de Deus.  

            Deus se importa com o caminho de vida de todo ser humano. Ele deseja “que todos os homens vejam” a sua salvação (cf. Is 40,5). Por isso, todo cristão é chamado a ser um profeta, uma voz que grita no deserto da consciência das pessoas do seu tempo, para que as desigualdades sociais sejam enfrentadas com firmeza e possamos construir um mundo sem pessoas jogadas dentro de buracos, sem pessoas que pensem que seu poder econômico as coloca sobre montes e colinas, preservadas da violência social e da destruição do planeta, destruição que elas mesmas ajudam a intensificar com seu consumismo exagerado. Precisamos enfrentar com coragem a tortuosidade da corrupção e a aspereza da violência social, se queremos um mundo onde todos vejam a salvação que vem de Deus.  

            Por cansarem de esperar por Deus e por suas promessas, muitas pessoas concluíram que não vale a pena manter seu caminho de vida preparado para a chegada de Deus. Elas se esqueceram de que “o Senhor não tarda a cumprir sua promessa, como pensam alguns, achando que demora. Ele está usando de paciência para convosco. Pois não deseja que alguém se perca. Ao contrário, quer que todos venham a converter-se” (2Pd 3,8-9). Se Deus não intervém de maneira “agressiva” na história humana, não é porque não exista ou porque não se importe com o que acontece com a humanidade, mas porque aposta na capacidade de cada ser humano repensar suas atitudes e, diante dos sinais de destruição do mundo, converter-se, mudar suas atitudes.

            Uma vez que o advento nos remete não somente para recordar a primeira vinda de Cristo, mas, sobretudo, para nos preparar para a sua segunda vinda, São Pedro nos torna conscientes de que há uma desintegração em curso. Percebemos essa desintegração nas famílias, nas relações de trabalho, nos valores cristãos, na economia global e, sobretudo, no meio ambiente – o desmatamento da Amazônia é exemplo vivo disso! O que se pede de nós, cristãos é que, cientes dessa desintegração, levemos uma “vida santa e piedosa”, enquanto esperamos “a vinda do Dia de Deus” (2Pd 3,11-12), confiantes na sua promessa: “O que nós esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). Mesmo sendo afetados pela desintegração de várias coisas, nossa fé, nossa esperança e nosso esforço em vivermos segundo a justiça não podem desintegrar-se, mas devem fortalecer-se, enquanto aguardamos a volta de Jesus Cristo, nosso Salvador.

           

ORAÇÃO: Senhor Jesus Cristo, entregamos a ti o caminho de vida de todo ser humano a quem desejas salvar. Diante da Palavra que ouvimos, nos comprometemos em colocar em ordem a estrada da nossa vida pessoal e social, tapando seus buracos, aplainando seus montes, corrigindo o que nela está torto e alisando o que nela está áspero, a fim de que o Senhor possa ter acesso a cada um de nós e nos dar a salvação. Diante da desintegração do mundo presente, firma em nosso coração a esperança nos novos céus e na nova terra onde habitará a justiça. Torna justo o nosso proceder, fortalecendo a nossa fé e a nossa esperança enquanto aguardamos confiantes e tua vinda gloriosa. Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi