sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

FAMÍLIA: FORTALECER OS VÍNCULOS NA HORA DA DOR

 Missa da Sagrada Família de Nazaré. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Colossenses 3,12-21; Lucas 2,22-40.

 

Há uma ligação estreita entre Natal e família. Natal é família. A maior parte das pessoas celebra o Natal em família. O próprio Deus preparou uma família para que seu Filho viesse ao mundo. No entanto, nossa ideia ou concepção de família precisa se alargar. Há muito tempo a família tradicional – pai, mãe e filhos – deixou de ser o único modelo ou a configuração mais comum de família. A maior parte das famílias hoje não se encaixa mais nesse modelo: a grande maioria é chefiada pela mãe e o pai está ausente; no lugar do sacramento do matrimônio temos uniões irregulares, vínculos conjugais frágeis e troca frequente de parceiros, com filhos nascidos de diferentes pais e convivendo de maneira conflitiva dentro da mesma casa. Além disso, a educação recebida dos pais foi terceirizada pelos colégios particulares – a minoria –, e pela rua – a maioria –, sendo que a internet passou a influenciar fortemente, para o bem e para o mal, a cabeça das novas gerações. Enfim, a desorientação em que se encontra a humanidade atualmente tem na família o seu termômetro mais fiel, e a ação pastoral da nossa Igreja está distante da maioria das famílias.

Essa realidade desafiadora encontra no Evangelho de hoje a sua orientação: “Maria e José levaram Jesus (recém-nascido) a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22). Maria e José nos ensinam que todo filho é um dom de Deus não para os próprios pais, mas para a humanidade, e assim como ele precisa ser cuidado e alimentado fisicamente, precisa também, desde pequeno, ser cuidado e alimentado espiritualmente; ele precisa crescer perto de Deus, inserido numa religião, dentro da qual ele descobrirá o sentido da sua vida, a razão da sua existência.

Devido ao contratestemunho de muitos cristãos, ao materialismo do mundo moderno e à burocracia pastoral da nossa Igreja, muitas crianças já não são trazidas para o batismo ou para a catequese. Elas crescem sem qualquer referência religiosa, inclusive dentro de casa, onde ali não se cultiva espiritualidade. Além dessa carência espiritual, existe hoje carência de educação – “cria-se” filhos, mas não “se educa” filhos. Independente da condição social, as gerações que chegam às escolas são marcadas por uma perceptível fragilidade emocional: são crianças que não sabem lidar com o não, que não suportam serem frustradas. Enquanto algumas são excessivamente mimadas, outras são desprovidas de qualquer referência afetiva; enquanto algumas têm pais ausentes, sempre correndo atrás de dinheiro para sustentar um padrão de vida supérfluo, muitas outras têm pais viciados na bebida e em outras drogas, alheios às suas necessidades de crescimento e de amadurecimento.

O cuidado com a família começa com o cuidado com o(a) cuidador(a) da casa. Nossas paróquias são desafiadas a se aproximarem daqueles que estão à frente de suas famílias e oferecer-lhes amparo emocional e espiritual. Aquele que cuida dos outros deve deixar-se cuidar por Deus e colocar-se debaixo de Sua autoridade, para que possa exercer uma saudável e equilibrada autoridade sobre seus filhos. Mãe e pai precisam conhecer seus próprios limites e não admitirem serem sugados por seus filhos, mas educá-los para caminhem com suas próprias pernas e responsabilizem-se, desde cedo, por pequenas tarefas, de modo a formarem seu caráter; caso contrário, crescerão como parasitas e serão pessoas apáticas perante a vida.     

Um fato nos chama a atenção no Evangelho de hoje: no exato momento em que Maria e José são abençoados por Simeão, recebem dele uma profecia que fala de sofrimento: o filho será um sinal de contradição – por ser verdadeiro, agradará a uns e desagradará a outros; a mãe – o que supõe que quando isso acontecer, José já terá falecido – sofrerá muito, por ver seu filho ser rejeitado pelos mesmos homens aos quais veio salvar. Isso significa que a bênção de Deus não é garantia de blindagem contra dor e sofrimento. Por mais que uma família seja religiosa, ela vive em um mundo contrário à vida e aos valores do Evangelho, um mundo que, se permite que se fale de Deus, é apenas enquanto “filosofia barata de felicidade pessoal” e não como autoridade espiritual que deve guiar a consciência das pessoas em suas atitudes diárias.  

Não existe família que atravesse este mundo sem ser ferida por alguma espada de dor. Além disso, toda família que desejar viver segundo o Evangelho sofrerá intensos ataques por parte do mundo. A Sagrada Família de Nazaré jamais foi blindada contra a dor e a infelicidade; muito pelo contrário. A imagem da “espada de dor” desafia os pais de hoje a educarem seus filhos para a vida real. Desde pequenos, eles precisam tomar consciência de que a vida comporta perda, morte, luto, doença, limites, frustrações, derrotas, cruz. A melhor herança que os pais podem deixar para os filhos é a capacidade de resistirem às “pancadas” existenciais, de olhar a vida nos olhos e não fugir das responsabilidades, a capacidade de lidarem com as crises normais do amadurecimento que todo ser humano é chamado a lidar.    

“O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2,40). Crescer, tornar-se forte e adquirir sabedoria fazem parte de um processo, e todo processo exige tempo, paciência, comportando avanços e retrocessos. Deus conceda a sua graça e a sua bênção a todas as famílias, curando as feridas dos relacionamentos, restabelecendo os vínculos, derramando o remédio do perdão sobre toda mágoa ou ressentimento, protegendo e guardando as crianças e adolescentes do abuso sexual e de outras formas de violência, iluminando a consciência e o coração dos pais, de modo que possam orientar-se pela verdade na condução de suas famílias. Neste ano de tantas perdas, de tanto luto, Deus derrame a consolação sobre toda família que neste momento experimenta algum tipo de desolação, recolhendo suas lágrimas e transformando suas feridas em pérolas, seus sofrimentos em processo de amadurecimento humano e espiritual. Como cristãos, façamo-nos próximos de toda família ferida e fragilizada em sua fé, em sua esperança e em seu amor.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

5 comentários:

  1. Caro Pe. Paulo, como o senhor sabe, há cerca de 10 anos o seu Comentário à Palavra de Deus me ilumina. Às vezes, porém, o senhor se supera! Essa é uma dessas vezes! Obrigado!

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    1. Muito obrigado, Antônio! Se puder, me refresque a memória a seu respeito, pois não estou me lembrando ao certo de quem é você. Grande abraço!

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  2. Excelente reflexão,uma abordagem que traz a realidade e motiva compromisso de fé e esperança.

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  3. Obrigado meu irmão a nos ajudar, a preparar nossas reflexões dominicais.Shalom.

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