Missa da Sagrada Família de Nazaré. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,3-7.14-17a; Colossenses 3,12-21; Lucas 2,22-40.
Há
uma ligação estreita entre Natal e família. Natal é família. A maior parte das
pessoas celebra o Natal em família. O próprio Deus preparou uma família para que
seu Filho viesse ao mundo. No entanto, nossa ideia ou concepção de família
precisa se alargar. Há muito tempo a família tradicional – pai, mãe e filhos –
deixou de ser o único modelo ou a configuração mais comum de família. A maior
parte das famílias hoje não se encaixa mais nesse modelo: a grande maioria é chefiada
pela mãe e o pai está ausente; no lugar do sacramento do matrimônio temos
uniões irregulares, vínculos conjugais frágeis e troca frequente de parceiros,
com filhos nascidos de diferentes pais e convivendo de maneira conflitiva dentro
da mesma casa. Além disso, a educação recebida dos pais foi terceirizada pelos
colégios particulares – a minoria –, e pela rua – a maioria –, sendo que a
internet passou a influenciar fortemente, para o bem e para o mal, a cabeça das
novas gerações. Enfim, a desorientação em que se encontra a humanidade atualmente
tem na família o seu termômetro mais fiel, e a ação pastoral da nossa Igreja
está distante da maioria das famílias.
Essa
realidade desafiadora encontra no Evangelho de hoje a sua orientação: “Maria e
José levaram Jesus (recém-nascido) a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor”
(Lc 2,22). Maria e José nos ensinam que todo filho é um dom de Deus não para os
próprios pais, mas para a humanidade, e assim como ele precisa ser cuidado e
alimentado fisicamente, precisa também, desde pequeno, ser cuidado e alimentado
espiritualmente; ele precisa crescer perto de Deus, inserido numa religião,
dentro da qual ele descobrirá o sentido da sua vida, a razão da sua existência.
Devido
ao contratestemunho de muitos cristãos, ao materialismo do mundo moderno e à
burocracia pastoral da nossa Igreja, muitas crianças já não são trazidas para o
batismo ou para a catequese. Elas crescem sem qualquer referência religiosa,
inclusive dentro de casa, onde ali não se cultiva espiritualidade. Além dessa
carência espiritual, existe hoje carência de educação – “cria-se” filhos, mas
não “se educa” filhos. Independente da condição social, as gerações que chegam
às escolas são marcadas por uma perceptível fragilidade emocional: são crianças
que não sabem lidar com o não, que não suportam serem frustradas. Enquanto
algumas são excessivamente mimadas, outras são desprovidas de qualquer
referência afetiva; enquanto algumas têm pais ausentes, sempre correndo atrás
de dinheiro para sustentar um padrão de vida supérfluo, muitas outras têm pais
viciados na bebida e em outras drogas, alheios às suas necessidades de
crescimento e de amadurecimento.
O
cuidado com a família começa com o cuidado com o(a) cuidador(a) da casa. Nossas
paróquias são desafiadas a se aproximarem daqueles que estão à frente de suas
famílias e oferecer-lhes amparo emocional e espiritual. Aquele que cuida dos
outros deve deixar-se cuidar por Deus e colocar-se debaixo de Sua autoridade,
para que possa exercer uma saudável e equilibrada autoridade sobre seus filhos.
Mãe e pai precisam conhecer seus próprios limites e não admitirem serem sugados
por seus filhos, mas educá-los para caminhem com suas próprias pernas e responsabilizem-se,
desde cedo, por pequenas tarefas, de modo a formarem seu caráter; caso
contrário, crescerão como parasitas e serão pessoas apáticas perante a vida.
Um
fato nos chama a atenção no Evangelho de hoje: no exato momento em que Maria e
José são abençoados por Simeão, recebem dele uma profecia que fala de
sofrimento: o filho será um sinal de contradição – por ser verdadeiro, agradará
a uns e desagradará a outros; a mãe – o que supõe que quando isso acontecer,
José já terá falecido – sofrerá muito, por ver seu filho ser rejeitado pelos
mesmos homens aos quais veio salvar. Isso significa que a bênção de Deus não é
garantia de blindagem contra dor e sofrimento. Por mais que uma família seja
religiosa, ela vive em um mundo contrário à vida e aos valores do Evangelho, um
mundo que, se permite que se fale de Deus, é apenas enquanto “filosofia barata
de felicidade pessoal” e não como autoridade espiritual que deve guiar a
consciência das pessoas em suas atitudes diárias.
Não
existe família que atravesse este mundo sem ser ferida por alguma espada de
dor. Além disso, toda família que desejar viver segundo o Evangelho sofrerá
intensos ataques por parte do mundo. A Sagrada Família de Nazaré jamais foi
blindada contra a dor e a infelicidade; muito pelo contrário. A imagem da “espada
de dor” desafia os pais de hoje a educarem seus filhos para a vida real. Desde
pequenos, eles precisam tomar consciência de que a vida comporta perda, morte,
luto, doença, limites, frustrações, derrotas, cruz. A melhor herança que os
pais podem deixar para os filhos é a capacidade de resistirem às “pancadas”
existenciais, de olhar a vida nos olhos e não fugir das responsabilidades, a capacidade
de lidarem com as crises normais do amadurecimento que todo ser humano é chamado
a lidar.
“O
menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava
com ele” (Lc 2,40). Crescer, tornar-se forte e adquirir sabedoria fazem parte
de um processo, e todo processo exige tempo, paciência, comportando avanços e
retrocessos. Deus conceda a sua graça e a sua bênção a todas as famílias,
curando as feridas dos relacionamentos, restabelecendo os vínculos, derramando
o remédio do perdão sobre toda mágoa ou ressentimento, protegendo e guardando
as crianças e adolescentes do abuso sexual e de outras formas de violência, iluminando
a consciência e o coração dos pais, de modo que possam orientar-se pela verdade
na condução de suas famílias. Neste ano de tantas perdas, de tanto luto, Deus
derrame a consolação sobre toda família que neste momento experimenta algum
tipo de desolação, recolhendo suas lágrimas e transformando suas feridas em
pérolas, seus sofrimentos em processo de amadurecimento humano e espiritual. Como
cristãos, façamo-nos próximos de toda família ferida e fragilizada em sua fé, em
sua esperança e em seu amor.
Pe.
Paulo Cezar Mazzi
Caro Pe. Paulo, como o senhor sabe, há cerca de 10 anos o seu Comentário à Palavra de Deus me ilumina. Às vezes, porém, o senhor se supera! Essa é uma dessas vezes! Obrigado!
ResponderExcluirMuito obrigado, Antônio! Se puder, me refresque a memória a seu respeito, pois não estou me lembrando ao certo de quem é você. Grande abraço!
ExcluirObrigada pelo profunda reflexão!
ResponderExcluirExcelente reflexão,uma abordagem que traz a realidade e motiva compromisso de fé e esperança.
ResponderExcluirObrigado meu irmão a nos ajudar, a preparar nossas reflexões dominicais.Shalom.
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