quinta-feira, 31 de outubro de 2024

SANTIFICAÇÃO: NOS TORNARMOS A PESSOA QUE FOMOS CHAMADOS A SER

 Missa de todos os Santos. Palavra de Deus: Apocalipse 7,2-4.9-14; 1 João 3,1-3; Mateus 5,1-12a.

 

Existe a pessoa que somos agora: imperfeita, falha, pecadora, movida pelos interesses do próprio ego; mas existe também a pessoa que somos a chamados a nos tornar: a nossa configuração a Jesus Cristo, “o Santo de Deus” (Jo 6,69), o Filho obediente ao Pai, Aquele que escolheu se deixar conduzir pelo Espírito Santo. Todos somos chamados a ser santos, porque o nosso Deus é Santo.

Segundo o livro do Apocalipse, as pessoas santas trazem consigo “a marca do Deus vivo” (Ap 7,2). Diferente de uma tatuagem, essa marca não pode ser vista, porque ela se encontra na consciência da pessoa. É uma marca de pertença. Ela é dada à pessoa que tem a convicção de que nenhum bem pode ser encontrado fora de Deus (cf. Sl 16,2-3). Ainda segundo o livro do Apocalipse, os santos “vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram suas vestes no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14). A nossa santificação se dá na terra, em meio a muitas tribulações. É em meio a uma sociedade de valores invertidos que cada cristão é chamado a ter mãos puras, um coração marcado pela inocência e uma mente não dirigida para o mal (cf. Sl 24,4).

É verdade que algumas das tribulações que passamos na vida são resultado da nossa obstinação em caminhar fora da vontade de Deus. Contudo, quando procuramos caminhar na fidelidade a Deus, vamos experimentar muitas tribulações, nas quais a nossa vida será mergulhada no sangue do Cordeiro, isto é, no sofrimento de Cristo na cruz pela sua fidelidade ao Pai: “Embora sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência Deus por aquilo que sofreu” (Hb 5,8). Sempre que escolhemos obedecer a Deus, vamos experimentar algum tipo de sofrimento, principalmente de frustração para o nosso ego. Se é verdade que o mundo não reconhece os filhos de Deus (cf. 1Jo 3,1), devemos estar cientes de que precisamos aprender a suportar não apenas sermos ignorados ou tratados com indiferença pelo mundo, mas também sermos criticados, ridicularizados e perseguidos pelo mesmo.      

Jesus, no Evangelho, nos propõe um caminho de santificação: as bem-aventuranças. Elas são atitudes de vida. A proposta de Jesus é que vivamos diariamente a nossa santificação por meio dessas atitudes: ser pobre em espírito, isto é, viver na absoluta dependência de Deus e na confiança em seu amor; ser aflito, no sentido de deixar-se afetar pelo sofrimento alheio; ser manso, tendo paciência consigo mesmo e com os outros; ter fome e sede de justiça, no sentido de não desistir de ser uma pessoa justa e de trabalhar em favor daquilo que é justo; agir com misericórdia para consigo mesmo e para com os outros; ser puro de coração, tendo reta intenção e enxergando o bem que habita em cada pessoa; promover a paz, evitando discórdias desnecessárias e mantendo o foco naquilo que aproxima e reconcilia as pessoas; suportar ser perseguido ou criticado por ser uma pessoa justa, isto é, que procura viver segundo a vontade de Deus; enfim, suportar ser perseguido ou criticado por servir a Jesus e à causa do Evangelho. 

            Segundo o apóstolo João, a santificação é um processo que dura a vida toda e só vai ter a sua conclusão no momento da nossa ressurreição, do nosso encontro com o Senhor Jesus. Partimos daquilo que somos e caminhamos na direção daquilo que somos chamados a ser. O que nós somos como pessoa não é algo definitivo. Estamos em processo, em transformação: a santificação tem por objetivo nos configurar a Jesus, de forma que as pessoas O vejam e O experimentem em nossas atitudes. Eis alguns exemplos concretos de santidade: o neto que decidiu morar com os avós, que estão bastante idosos e com Alzheimer, para cuidar deles ao invés de colocá-los num asilo; a mulher que passou casada a vida toda com um marido infiel, e agora que ele se encontra doente, decidiu cuidar dele; a pessoa que carregou consigo, durante anos, uma doença ou uma ferida e nunca reclamou disso com ninguém...

            Uma última palavra. Na sua Exortação Apostólica sobre a Santidade, o Papa Francisco afirma que “todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra” (GE, n.14). É na rotina de cada dia, nas ocupações diárias, que cada um de nós é chamado a santificar-se e a santificar o mundo. Na prática, isso significa não nos conformar com o mundo (cf. Rm 12,1), isto é, não permitir que o mundo nos deforme, mas procurar distinguir qual é a vontade de Deus diante de cada escolha que fazemos, de cada decisão que tomamos e de cada situação que vivemos.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

É MELHOR VOLTAR A VER OU CONTINUAR CEGO?

 Missa do 30º dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 31,7-9; Hebreus 5,1-6; Marcos 10,46-52.

 

              Estamos diante do último milagre de Jesus no Evangelho de São Marcos: a cura do cego Bartimeu. Bartimeu não nasceu cego, mas perdeu a visão em algum momento da sua vida. Ele é o nosso retrato. Nós também perdemos a visão: deixamos de enxergar um horizonte para a nossa vida; deixamos de enxergar a beleza e o valor da pessoa pela qual um dia nos apaixonamos; deixamos de ver sentido na missão que abraçamos; deixamos de enxergar Deus junto a nós; a rotina e a correria da vida tiraram de nós a capacidade de enxergar as pessoas com as quais moramos, convivemos e/ou trabalhamos; para agravar a nossa cegueira, nossos olhos vivem grudados numa tela – grudados porque viciados –, um vício que nos torna cegos para o que está acontecendo à nossa volta.

               De uma certa forma, a cegueira de Bartimeu é o retrato da nossa fé: nós não podemos ver Deus. O apóstolo Paulo afirma que nós “caminhamos pela fé, não pela visão clara” (2Cor 5,7). Num momento de grande aflição na sua vida, quando não enxergava mais solução para o seu problema, Agar, escrava de Sara, esposa de Abraão, foi chorar perto de uma fonte no deserto. Ali Deus falou com ela, e Agar chamou Deus de “El-Roí”, que pode ser traduzido por: “Tu és o Deus que me vê (que vê a minha aflição) e me faz ver, quando eu não via mais saída para a minha vida” (cf. Gn 16,7-14). O Deus que não podemos ver nos vê – conhece o que se passa conosco – e nos faz ver, nos devolve a capacidade de enxergar a vida para além do problema que estamos enfrentando agora.

Bartimeu não podia ver, mas podia gritar: “Quando ouviu dizer que Jesus, o Nazareno, estava passando, começou a gritar: ‘Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!’” (Mc 10,47). A fé é exatamente isso: eu grito Àquele que não vejo, mas que sei que me ouve: “Naquele dia em que gritei, vós me escutastes e aumentastes o vigor da minha alma” (Sl 138,3). Mesmo sendo repreendido para que se calasse, Bartimeu gritava mais ainda, até ser ouvido por Jesus. Talvez muitos hoje desencoragem você a rezar, a gritar a Deus... A quais pessoas você dá ouvidos: àquelas que lhe dizem que não adianta gritar, porque Deus não escuta, ou àquelas que lhe dizem: “Coragem, levanta-te, Jesus te chama!” (Mc 10,49)?

Quando Bartimeu se colocou diante de Jesus, este lhe perguntou: “O que queres que eu te faça?” (Mc 10,51). Jesus sabia que Bartimeu era cego, mas sua pergunta era necessária para que tomasse consciência do que de fato ele queria para a sua vida. O que eu quero que Jesus me faça: que Ele me dê apenas um anestésico para a minha dor ou que coloque o dedo na minha ferida mais profunda e a faça sangrar, para poder ser tratada e curada? Quero que Jesus me carregue no colo ou que fortaleça as minhas pernas para que eu continue o meu caminho de seguimento d’Ele como verdadeiro discípulo? Quero que Jesus resolva todos os meus problemas num passe de mágica ou que me dê força e sabedoria para colocar em ordem a minha vida?

Bartimeu tinha plena consciência do que queria: “Mestre, que eu possa ver novamente!”. A tradução do texto litúrgico simplificou a palavra do texto grego (“anablepo”), língua original em que foi escrito o Evangelho. Bartimeu não pediu apenas para “ver”, “enxergar”, mas para “ver de novo”, o que comprova que ele não havia nascido cego. Eis a questão: você quer voltar a enxergar? Diante da sua decisão em não mais querer ver, para, quem sabe, não se responsabilizar, você quer voltar a ver e, consequente, se comprometer no processo da cura, da mudança, da libertação do problema que lhe aflige? Você quer voltar a se responsabilizar por sua história de vida e pela missão que você é?

Eis a resposta de Jesus ao pedido de Bartimeu: “Vai, a tua fé te curou” (Mc 10,52). A fé que me cura é a fé que não desiste de gritar ao Deus que eu não vejo, mas que me vê! A fé que me cura é a fé que não perde a coragem de gritar, mesmo quando muitos me dizem: “Não adianta!”. A fé que me cura é aquela que, mesmo quando me sinto numa situação de exílio, abandonado por Deus, continuo a clamar: “Mudai a nossa sorte, ó Senhor, como torrentes no deserto. Os que lançam as sementes entre lágrimas colherão com alegria” (Sl 126,4-5). A fé que me cura é aquela que me faz seguir Jesus continuamente, no cotidiano da minha vida, exatamente como Bartimeu: “ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho” (Mc 10,52); seguia continuamente, fielmente, permanentemente.

Não nos esqueçamos: “caminhamos pela fé, não pela visão clara” (2Cor 5,7). O que nos mantém no seguimento de Jesus Cristo não é o que vemos, mas o que cremos. Não é o fato de vermos tudo claramente que nos faz caminhar, mas o fato de que cremos, amamos e nos deixamos conduzir por Aquele que nos vê e nos faz ver além das cegueiras do nosso tempo.

 

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O CÁLICE

 Missa do 29º dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 53,10-11; Hebreus 4,14-16; Marcos 10,27-37.

 

            “Mestre, queremos que faças por nós o que vamos pedir” (Mc 10,35). Essas palavras de Tiago e João nos colocam novamente no contexto do Ano da Oração, proposto pelo Papa Francisco, e nos questionam sobre o que costumamos pedir a Deus, quando rezamos. Eis o pedido desses dois irmãos a Jesus: “Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!” (Mc 10,37). O problema é que esse pedido aconteceu imediatamente após Jesus ter declarado aos discípulos que estava indo para Jerusalém e lá seria condenado à morte, mas depois ressuscitaria (cf. Mc 10,32-34). Ora, por que Tiago e João não pediram para serem crucificados um à direita e outro à esquerda de Jesus? Porque eles eram como nós, cujo instinto de preservação fala sempre mais alto do que o desejo de doar a vida por uma causa.   

            A resposta de Jesus aos dois irmãos se divide em duas partes: primeiro, um alerta; depois uma pergunta. Este é o alerta: “Vós não sabeis o que pedis” (Mc 10,38). Aqui podemos nos recordar das palavras do apóstolo Paulo, a respeito da nossa vida de oração: “Não sabemos o que pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós... segundo Deus” (Rm 8,26-27). Quando pedimos algo a Deus na oração, sempre visamos aquilo que pensamos ser necessário para a nossa felicidade, mas o Espírito Santo sabe o que de fato convém à nossa salvação. Por isso, sua intercessão não vai no sentido de que Deus faça por nós o que queremos, mas aquilo que Ele, Deus, sabe ser realmente necessário para a nossa salvação. Portanto, a primeira pergunta a ser feita é: eu realmente sei o que estou pedindo a Deus quando rezo? Será que aquilo que eu estou pedindo corresponde, de fato, aos desígnios de Deus a meu respeito?

            Após este alerta, Jesus lança uma pergunta aos dois irmãos, que queriam estar um à sua direita e outro à sua esquerda, na glória: “Por acaso podeis beber o cálice que eu vou beber?” (Mc 10,38). Antes de ressuscitar e de voltar para a glória do Pai, Jesus precisava beber o cálice do sofrimento da cruz, e como todo ser humano, ele sentiu em si uma forte rejeição a esse cálice: “Pai, tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice; porém, não o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,36). Aqui está a diferença entre a nossa oração e a oração de Jesus: a nossa para na primeira parte – afasta de mim este cálice! –; a de Jesus vai até o fim: “contudo, não se faça como eu quero, mas como Tu queres!”. Aqui também entra um princípio inaciano sobre a nossa vida de oração: a oração bem sucedida não é aquela em que você conseguiu dobrar Deus à sua vontade, mas aquela da qual você saiu disposto(a) a abraçar a vontade de Deus para a sua vida.

            Mas, que Pai é esse que deseja que um filho seu beba o cálice do sofrimento? Na verdade, o cálice do sofrimento não foi preparado pelo Pai, mas pelos homens que rejeitaram Jesus e o mataram. O Pai não pediu ao seu Filho para morrer numa cruz; pediu apenas que Ele amasse até o fim. Assim também é conosco: Deus não produz sofrimento em nossa vida; o que Ele pede é que nós não nos desviemos do sofrimento que faz parte da nossa fidelidade à missão que Ele nos confiou. Dentro do cálice da nossa existência a vida não derrama somente o vinho doce da alegria, mas também as lágrimas amargas de uma dor que não escolhemos vivenciar e que cabe a nós beber, não a outra pessoa. Neste sentido, pais que impedem seus filhos de beberem o cálice da frustração os tornam incapazes de enfrentarem a vida de cara limpa.  

            Olhemos agora para os outros dez discípulos. A indignação deles em relação a Tiago e João escondia a inveja de quem não teve a coragem de fazer o mesmo pedido a Jesus. Por conhecer o coração humano, Jesus desafiou os Doze a se desfazerem da pretensão de serem grandes, segundo os padrões do mundo, e escolherem se fazer pequenos, servos; mais do que servos, escravos, imitando o próprio Jesus, que veio para servir e dar sua vida em resgate por muitos. Ora, todo resgate tem um preço, e esse preço está dentro do cálice a ser bebido. A questão, para cada um de nós, é esta: o que eu estou disposto(a) a sacrificar para resgatar aquilo que é precioso para mim? Estou vivendo minha existência a partir do desfrutar – o que a vida tem a me oferecer? –, ou a partir do doar-me – o que eu tenho a oferecer à vida?  

               Para todos aqueles que decidiram seguir Jesus amando até o fim e bebendo do cálice que lhes cabe beber neste momento, a carta aos Hebreus encoraja: “Permaneçamos firmes na fé que professamos. Com efeito, temos um sumo sacerdote capaz de se compadecer de nossas fraquezas... Aproximemo-nos, então, com toda a confiança, do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento oportuno” (Hb 4,14-16). Recordemos também as palavras do salmista: “O Senhor pousa o olhar sobre os que o temem, e que confiam esperando em seu amor, para da morte libertar as suas vidas e alimentá-los quando é tempo de penúria” (Sl 33,18-19). Façamos nossa a sua oração: “Sobre nós venha, Senhor, a vossa graça, da mesma forma que em vós nós esperamos!” (Sl 33,22).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

NÃO BASTA VIVER BIOLOGICAMENTE; É PRECISO SENTIR-SE VIVO A PARTIR DE DENTRO

Missa do 28º dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 7,7-11; Hebreus 4,12-13; Marcos 10,17-27 (forma breve).

 

            Estamos no ano da oração, proposto pelo Papa Francisco em preparação para o Jubileu dos 2025 anos do nascimento de nosso Salvador Jesus Cristo. A oração nos lembra que somos seres necessitados; somos filhos, e o filho vive daquilo que recebe do Pai. Para receber, é preciso pedir. Mas, o que pedir?

            A oração do rei Salomão nos ajuda a perceber o que é o mais importante a ser pedido: “Orei, e foi-me dada a prudência; supliquei, e veio a mim o espírito da sabedoria” (Sb 7,7). Normalmente, o nosso pedido está diretamente relacionado com aquilo que julgamos ser o mais importante para a nossa vida. Salomão não pediu nem ouro, nem prata – riqueza material –, mas Sabedoria, entendendo-a como mais importante que a própria saúde e a beleza. O que nós pediríamos a Deus em nossa oração hoje? Quantas coisas que pedimos a Deus não são verdadeiramente necessárias para a nossa vida, e ainda que sejam para esta vida terrena, não o são para a nossa salvação?

            Aqui entra a pergunta do jovem rico a Jesus: “Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?” (Mc 10,17). Por que uma pessoa muito rica se preocuparia com a vida eterna? Porque ela tomou consciência de que a verdadeira vida não é esta; que há uma necessidade profunda no ser humano que dinheiro ou coisa material alguma consegue responder; que não adianta ter todos os meios materiais para se viver bem quando não se tem uma razão, um sentido, para viver. Pois bem: quem de nós está preocupado com a vida eterna? Quem de nós consegue elevar os olhos acima das necessidades terrenas e se perguntar por sua salvação, pela vida eterna?   

            O jovem rico praticava sua religião de maneira exemplar; não só conhecia como também buscava viver segundo os mandamentos de Deus. Por isso, “Jesus olhou para ele com amor” (Mc 10,21) e, por conhecer cada ser humano por dentro, teve a liberdade de dizer àquele jovem rico: “Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!” (Mc 10,21). “Só uma coisa te falta”. O que me falta para ser plenamente de Deus? O que me falta para poder entrar na vida eterna? Qual coisa, pessoa ou situação tomou o lugar de Deus em meu coração e está comprometendo a minha salvação? Meu tempo é dedicado a muitas coisas que julgo serem importantes para a minha sobrevivência neste mundo, mas que tempo eu dedico para cuidar da minha salvação?

            Quando aquele jovem ouviu a proposta de Jesus, “ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico” (Mc 10,22). Aqui entra a importância da Palavra de Deus em nossa vida: “Ela julga os pensamentos e as intenções do coração” (Hb 4,12). Ela nos torna conscientes das nossas ilusões e das nossas falsas seguranças. Ela nos revela o quanto nossas atitudes religiosas estão cheias de intenções mundanas, e o quanto Deus é buscado por nós não por Ele mesmo, mas por algo que desejamos que Ele nos dê para a vida aqui e agora. Por ser sinônimo de Verdade, a Palavra de Deus nos confronta com o fato de que, diferente do jovem do Evangelho, o melhor do nosso tempo e dos nossos esforços não são gastos na busca pela vida eterna, mas na busca por uma felicidade mundana. Para a maioria das pessoas, a pergunta que não cala no coração não é “O que devo fazer para ganhar a vida eterna?”, mas “O que devo fazer para ser feliz?”. Em nome da felicidade aqui e agora, pessoas perdem a própria salvação, destruindo a vida de outras pessoas e do Planeta.

Jesus não amenizou as exigências do Evangelho para evitar que o jovem rico fosse embora. Ele apenas aproveitou o acontecimento para fazer um alerta aos seus discípulos de ontem e de hoje: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” (Mc 10,23). Por que? Porque “a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6,10). É a ganância pelo dinheiro que está por trás do tráfico de drogas e de órgãos, do desmatamento e dos incêndios que visam destruir a vegetação nativa e criar pasto para engordar bois e exportar carne; é o desejo por mais dinheiro que corrompe advogados, juízes, políticos e empresários; que leva indústrias a poluírem a água e o ar; que faz a indústria farmacêutica e a indústria das armas promoverem a disseminação da morte em nosso mundo; que leva países a preferirem a guerra à paz; que torna os pais ausentes da vida dos filhos, provocando nestes uma série de enfermidades psíquicas...

A ganância por mais dinheiro cria o inferno não só na vida do ganancioso, mas também na sociedade humana, porque aprofunda a desigualdade social, a qual, por sua vez, dissemina a violência que provoca a morte. Portanto, quem, com sua ganância, cria o inferno na Terra não tem como experimentar o Reino de Deus, que é “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14,17). Quem escolheu dar prioridade em sua vida ao Dinheiro, o deus deste mundo, o deus terreno, ao morrer terá como destino “ser enterrado” (cf. Lc 16,22), e não entrar no Reino dos Céus, pois cada um colhe aquilo que planta.

            “Então, quem pode ser salvo?”, perguntaram os discípulos a Jesus, já que todos nós precisamos de dinheiro para viver e todos nós vemos o dinheiro como garantia de uma vida tranquila. “Jesus olhou para eles e disse: ‘Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível’” (Mc 10,27). A salvação não é mérito, nem conquista do ser humano, seja ele rico, seja ele pobre, mas puro dom de Deus. Ele pode tocar na consciência da pessoa apegada ao dinheiro e convencê-la de que ela precisa de salvação e esta pode ser obtida usando o excesso do seu dinheiro para diminuir as injustiças sociais, como aconteceu com o rico Zaqueu (cf. Lc 19,8-10).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A FORÇA DA MULHER TANTO PODE GERAR VIDA QUANTO MORTE; TUDO DEPENDE DOS SEUS VALORES.

 Missa de Nossa Senhora Aparecida. Palavra de Deus: Ester 5,1b-2.7,2b-3; Apocalipse 12,1.5.13a.15-16a; João 2,1-11.

 

            “Mulher peregrina, força feminina, a mais importante que existiu. Com justiça queres que nossas mulheres sejam construtoras do Brasil”. Se antigamente a mulher era vista como “sexo frágil”, hoje essa visão está mais do que ultrapassada. A maior força da Igreja são as mulheres, assim como acontece na maioria das famílias brasileiras. São elas que mais rezam, que mais trabalham e que mais lutam para manter nossas igrejas e nossas famílias em pé.

Esse protagonismo da mulher está retratado na figura da rainha Ester. Se todos temem o rei e o seu cetro, símbolo do seu poder, a beleza e a delicadeza de Ester conseguem mudar os planos do rei (destruição em massa dos judeus) e salvar o seu povo: “Concede-me a vida — eis o meu pedido! — e a vida do meu povo — eis o meu desejo!” (Est 7,3). Ester é a imagem da mulher que não é fútil, nem vulgar, nem egoísta. Ela não pensa em si, nem nos seus caprichos pessoais, mas na sobrevivência do seu povo. Diferente de Ester, nós temos muitas mulheres fúteis e vazias, cuja única preocupação é com sua estética. Aliás, quando a mulher quer, ela também pode usar o seu poder para matar e destruir. Exemplo claro disso é a rainha Jezabel (cf. 1Rs 21).

Se Ester intercede e salva seu povo da destruição, Nossa Senhora intercede e salva um casamento. “Como o vinho veio a faltar, a mãe de Jesus lhe disse: ‘Eles não têm mais vinho’” (Jo 2,3). A mulher tem uma sensibilidade mais aguçada do que o homem. Ela percebe o que falta. O vinho simboliza a alegria. Mas a falta de alegria em muitas famílias precisa nos fazer perguntar: do que depende a alegria de uma família? A alegria da bebida alcoólica, das músicas altas e do consumismo é rapidamente substituída pela ressaca da depressão, pelo sentimento de vazio e pelas dívidas. Mas a atitude de Nossa Senhora nos fala não só da sensibilidade de quem percebe o que falta; muito mais que isso, ela revela uma mulher que tem atitude. Diante daquilo que está faltando numa casa, numa família, em nossa Igreja, num ambiente de trabalho, no mundo, temos que aprender com Nossa Senhora a nos mexer e a tomarmos atitudes para enfrentarmos o problema da falta de vinho.

Só Jesus pode nos dar o vinho novo, símbolo do Espírito Santo, da alegria de Deus derramada em nossos corações, mas é preciso que estejamos dispostos a viver segundo os ensinamentos do Evangelho: “Sua mãe disse aos que estavam servindo: ‘Fazei o que ele vos disser!’” (Jo 2,5). Ela mesma já havia dito ao anjo Gabriel: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo tua palavra!” (Lc 1,38). A maneira como lidamos com nossa vida no dia a dia – relacionamentos, estudo, trabalho, lazer, afetividade e sexualidade, escolhas e decisões – tem como orientação a Palavra do Evangelho ou as pressões e tendências do momento? A principal atitude é “servir” e não “mandar”. A pior atitude é assumir a posição de sempre esperar “ser servido”.     

            O resultado da intercessão de Nossa Senhora é o surgimento do “vinho novo”, de um vinho melhor do que aquele que havia no começo da festa. Todos nós tememos pela rotina que desgasta o sentido daquilo que construímos. Nos esquecemos de que Jesus tem o poder de fazer novas todas as coisas; de nos dar o dom do Espírito Santo, que renova a face da terra. Ao mesmo tempo, Ele nos pergunta se, de fato, desejamos o novo e se estamos dispostos a mudar nossas atitudes, para que o novo possa nascer: “Ninguém, após ter bebido vinho velho, quer do novo. Pois diz: ‘O velho é que é bom!” (Lc 5,39). Jesus encontrou resistência em muitas pessoas do seu tempo, que não acolheram a novidade do Evangelho. Esse desejo pelo velho é a tendência atual das novas gerações em nossa Igreja.

            Olhemos, enfim, para a imagem de Nossa Senhora no Apocalipse: uma mulher que dá à luz um filho diante de um Dragão. Esse Dragão é o Maligno, pai da mentira e assassino (cf. Jo 8,44; Ap 12,9). Suas seduções sempre provocam uma violência que leva à morte, ainda que tal violência e tais mortes sejam falsamente justificadas para se combater o mal, o inimigo. Nossa Senhora nos convida e trabalharmos pela vida e pela esperança, mesmo vivendo em um mundo contrário à vida e desesperançado, lembrando o conselho de São Paulo: “Se nós trabalhamos e lutamos, é porque pomos a nossa esperança no Deus vivo, Salvador de todos os homens, sobretudo dos que têm fé” (1Tm 4,10). Não nos esqueçamos de que Nossa Senhora foi aclamada por Isabel com essas palavras: “Feliz aquele que teve fé na palavra do Senhor!” (Lc 1,45).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

QUE AS MINHAS ATITUDES NÃO SEPAREM O QUE AS MÃOS DE DEUS UNIU

 Missa do 27º dom. comum. Palavra de Deus: Gênesis 2,18-24; Hebreus 2,9-11; Marcos 10,2-12 (forma breve).

 

            O ser humano não foi criado para a solidão, mas para a comunhão: “Não é bom que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2,18). Ao mesmo tempo, só pode conviver com o outro quem aprendeu a conviver primeiro consigo mesmo. Nós não somos pedaços de pessoas que precisam encontrar outros pedaços de pessoas para nos tornarmos uma pessoa inteira. A primeira pessoa que precisa ser sua companhia é você mesmo(a). Só pode amar alguém quem aprendeu a amar a si mesmo(a).

Apesar do desejo de Deus de que o ser humano não esteja só, a solidão é hoje a realidade da maioria das pessoas, seja por fatores externos, seja por uma escolha interna. Além disso, se Adão não encontrou entre os animais um ser humano como ele, hoje é cada vez maior o número de pessoas que escolhem animais para conviver, pois estes retribuem ao amor que recebem, além de demonstrarem ser mais “humanos” do que as pessoas. Estranho mundo esse em que vivemos!!! A incapacidade de conviver com outro ser humano tem levado pessoas, em alguns países da Europa, a pedirem autorização da Justiça para se casarem com animais! Progresso ou regressão? Evolução ou involução? São os animais que estão cada vez mais humanizados, ou somos nós que estamos cada vez mais desumanizados? Uma coisa é fato: o encanto por animais é consequência direta do desencanto com as pessoas.

Numa época em que as separações superam as uniões e a opção por não se casar, mas apenas morar junto, é infinitamente maior do que a decisão em se casar, a pergunta que os fariseus fizeram a Jesus a respeito do divórcio é profundamente necessária: tem sentido ainda hoje se casar? Jesus entende que a lei do divórcio, dada no séc. XII aC por causa da dureza de coração dos israelitas, não pode, de maneira alguma, ser mais importante do que o projeto original de Deus para o ser humano: “Desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher” (Mc 2,6). Homem e mulher são dois seres humanos, iguais em dignidade, para profundamente diferentes. O divórcio é justamente a incapacidade de conviver com alguém diferente de mim. Como eu não consegui transformar a pessoa na minha imagem e semelhança, eu decido me separar dela.

Obviamente que essa não é a única causa do divórcio. Além disso, há inúmeros “casais de segunda união” que vivem de maneira muito mais cristã e respeitosa do que casais vinculados pelo sacramento do matrimônio. Se Jesus entende que a ação pastoral da Igreja deve ser guardar as noventa e nove ovelhas num lugar seguro e ir atrás daquela que se extraviou (cf. Mt 18,12-14), a nossa ação pastoral junto às famílias funciona exatamente no sentido contrário: enquanto cuidamos de uma família “tradicional”, nos mantemos quase que totalmente ausentes da realidade das noventa e nove famílias em situação “irregular”, agindo exatamente na direção contrária de Jesus e do Evangelho.

A pergunta não pode ser reduzida ao estado de divórcio ou de casamento, mas à razão pela qual o divórcio aconteceu e como a atual família está vivendo. “Há também o caso daqueles que fizeram grandes esforços para salvar o primeiro matrimônio e sofreram um abandono injusto, ou o caso daqueles que contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjetivamente certos em consciência de que o precedente matrimônio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido” (Papa Francisco, AL n.298). “Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada... Jesus espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura” (Papa Francisco, AL n.308).    

            Jesus deixa claro que todo divórcio expõe o homem e a mulher ao adultério, ao se contrair uma nova união. No entanto, o próprio Jesus já havia alertado que o adultério nasce no coração, quando os nossos desejos estão desordenados (cf. Mt 5,28). A nossa geração escolheu abrir mão da consciência e entregar à emoção, ao sentimento, à paixão, a (ir)responsabilidade pelas nossas escolhas e decisões. Deixamos de nos comportar como adultos perante a vida, sobretudo afetiva, e damos livre curso aos nossos desejos e afetos desordenados, como é comum acontecer com qualquer adolescente. Desse modo, machucamos e somos machucados, desencantamos pessoas e nos desencantamos com pessoas. Somos, na verdade, uma geração adúltera porque não estamos dispostos a frustrar nenhum dos nossos desejos: entre pagar o alto preço da fidelidade e desfrutar das inúmeras ofertas baratas e ilusórias de prazer momentâneo, não é difícil saber qual será a nossa escolha. Enfim, não nos esqueçamos de que adúlteros são também os pregadores moralistas que condenam ao inferno casais em segunda união, enquanto eles mesmos não vivem a vida de castidade que aparentemente ostentam.

            O mal do divórcio ganhou um fortíssimo aliado, no mundo atual. O adultério hoje está na palma da nossa mão: o celular. A facilidade de acesso a fotos e vídeos é um grande problema, especialmente para as pessoas casadas. Mas a causa do divórcio nem sempre é a infidelidade conjugal. Há também o problema da má administração financeira, os baixos salários, as dívidas, a compulsão em comprar etc. Há ainda a influência de um dos pais (a dependência infantil de um dos cônjuges em relação à mãe), que sempre interfere na relação conjugal. Há ainda os maus conselhos dos colegas de trabalho, cujo casamento fracassou e eles se tornaram ótimos especialistas em “como destruir seu casamento”.

            Sejam quais forem as portas de entrada que abrimos para o adultério e para o divórcio, só existe um interessado em destruir o casamento e ferir a família: o Maligno. Ele é o divisor; sua especialidade é dividir, separar, quebrar, desintegrar, fazer voar em pedaços aquilo que Deus uniu. Não que ele possa disputar com Deus, mas ele ataca o ponto fraco do sacramento do matrimônio: o casal, que ao longo do tempo deixa de trabalhar em sintonia com Deus e começa a ter atitudes que sabotam o que Deus uniu. Por isso, que os casais olhem para a própria aliança que carregam na mão esquerda e se perguntem se suas atitudes, representadas pelas próprias mãos, estão trabalhando para, de fato, manter unido o que Deus uniu.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi