quinta-feira, 3 de outubro de 2024

QUE AS MINHAS ATITUDES NÃO SEPAREM O QUE AS MÃOS DE DEUS UNIU

 Missa do 27º dom. comum. Palavra de Deus: Gênesis 2,18-24; Hebreus 2,9-11; Marcos 10,2-12 (forma breve).

 

            O ser humano não foi criado para a solidão, mas para a comunhão: “Não é bom que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2,18). Ao mesmo tempo, só pode conviver com o outro quem aprendeu a conviver primeiro consigo mesmo. Nós não somos pedaços de pessoas que precisam encontrar outros pedaços de pessoas para nos tornarmos uma pessoa inteira. A primeira pessoa que precisa ser sua companhia é você mesmo(a). Só pode amar alguém quem aprendeu a amar a si mesmo(a).

Apesar do desejo de Deus de que o ser humano não esteja só, a solidão é hoje a realidade da maioria das pessoas, seja por fatores externos, seja por uma escolha interna. Além disso, se Adão não encontrou entre os animais um ser humano como ele, hoje é cada vez maior o número de pessoas que escolhem animais para conviver, pois estes retribuem ao amor que recebem, além de demonstrarem ser mais “humanos” do que as pessoas. Estranho mundo esse em que vivemos!!! A incapacidade de conviver com outro ser humano tem levado pessoas, em alguns países da Europa, a pedirem autorização da Justiça para se casarem com animais! Progresso ou regressão? Evolução ou involução? São os animais que estão cada vez mais humanizados, ou somos nós que estamos cada vez mais desumanizados? Uma coisa é fato: o encanto por animais é consequência direta do desencanto com as pessoas.

Numa época em que as separações superam as uniões e a opção por não se casar, mas apenas morar junto, é infinitamente maior do que a decisão em se casar, a pergunta que os fariseus fizeram a Jesus a respeito do divórcio é profundamente necessária: tem sentido ainda hoje se casar? Jesus entende que a lei do divórcio, dada no séc. XII aC por causa da dureza de coração dos israelitas, não pode, de maneira alguma, ser mais importante do que o projeto original de Deus para o ser humano: “Desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher” (Mc 2,6). Homem e mulher são dois seres humanos, iguais em dignidade, para profundamente diferentes. O divórcio é justamente a incapacidade de conviver com alguém diferente de mim. Como eu não consegui transformar a pessoa na minha imagem e semelhança, eu decido me separar dela.

Obviamente que essa não é a única causa do divórcio. Além disso, há inúmeros “casais de segunda união” que vivem de maneira muito mais cristã e respeitosa do que casais vinculados pelo sacramento do matrimônio. Se Jesus entende que a ação pastoral da Igreja deve ser guardar as noventa e nove ovelhas num lugar seguro e ir atrás daquela que se extraviou (cf. Mt 18,12-14), a nossa ação pastoral junto às famílias funciona exatamente no sentido contrário: enquanto cuidamos de uma família “tradicional”, nos mantemos quase que totalmente ausentes da realidade das noventa e nove famílias em situação “irregular”, agindo exatamente na direção contrária de Jesus e do Evangelho.

A pergunta não pode ser reduzida ao estado de divórcio ou de casamento, mas à razão pela qual o divórcio aconteceu e como a atual família está vivendo. “Há também o caso daqueles que fizeram grandes esforços para salvar o primeiro matrimônio e sofreram um abandono injusto, ou o caso daqueles que contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjetivamente certos em consciência de que o precedente matrimônio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido” (Papa Francisco, AL n.298). “Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada... Jesus espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura” (Papa Francisco, AL n.308).    

            Jesus deixa claro que todo divórcio expõe o homem e a mulher ao adultério, ao se contrair uma nova união. No entanto, o próprio Jesus já havia alertado que o adultério nasce no coração, quando os nossos desejos estão desordenados (cf. Mt 5,28). A nossa geração escolheu abrir mão da consciência e entregar à emoção, ao sentimento, à paixão, a (ir)responsabilidade pelas nossas escolhas e decisões. Deixamos de nos comportar como adultos perante a vida, sobretudo afetiva, e damos livre curso aos nossos desejos e afetos desordenados, como é comum acontecer com qualquer adolescente. Desse modo, machucamos e somos machucados, desencantamos pessoas e nos desencantamos com pessoas. Somos, na verdade, uma geração adúltera porque não estamos dispostos a frustrar nenhum dos nossos desejos: entre pagar o alto preço da fidelidade e desfrutar das inúmeras ofertas baratas e ilusórias de prazer momentâneo, não é difícil saber qual será a nossa escolha. Enfim, não nos esqueçamos de que adúlteros são também os pregadores moralistas que condenam ao inferno casais em segunda união, enquanto eles mesmos não vivem a vida de castidade que aparentemente ostentam.

            O mal do divórcio ganhou um fortíssimo aliado, no mundo atual. O adultério hoje está na palma da nossa mão: o celular. A facilidade de acesso a fotos e vídeos é um grande problema, especialmente para as pessoas casadas. Mas a causa do divórcio nem sempre é a infidelidade conjugal. Há também o problema da má administração financeira, os baixos salários, as dívidas, a compulsão em comprar etc. Há ainda a influência de um dos pais (a dependência infantil de um dos cônjuges em relação à mãe), que sempre interfere na relação conjugal. Há ainda os maus conselhos dos colegas de trabalho, cujo casamento fracassou e eles se tornaram ótimos especialistas em “como destruir seu casamento”.

            Sejam quais forem as portas de entrada que abrimos para o adultério e para o divórcio, só existe um interessado em destruir o casamento e ferir a família: o Maligno. Ele é o divisor; sua especialidade é dividir, separar, quebrar, desintegrar, fazer voar em pedaços aquilo que Deus uniu. Não que ele possa disputar com Deus, mas ele ataca o ponto fraco do sacramento do matrimônio: o casal, que ao longo do tempo deixa de trabalhar em sintonia com Deus e começa a ter atitudes que sabotam o que Deus uniu. Por isso, que os casais olhem para a própria aliança que carregam na mão esquerda e se perguntem se suas atitudes, representadas pelas próprias mãos, estão trabalhando para, de fato, manter unido o que Deus uniu.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi    

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