quinta-feira, 26 de agosto de 2021

INFLUENCIADOS A PARTIR DE FORA, SIM, MAS NÃO DETERMINADOS!

 Homilia reeditada (22o. domingo comum - Marcos 7,1-8.14-15.21-23)


“Nas favelas, no Senado, sujeira pra todo lado. Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação. Que país é esse?” (Legião Urbana, Que país é esse?).

“Sujeira pra todo lado”. Mas, de onde vem a sujeira que nos torna “impuros”? Para os fariseus da época de Jesus e de hoje, ela vem dos outros: do contato com quem não é da minha igreja ou da minha religião; do contato com quem não tem a cor da minha pele, que não mora no meu condomínio ou no meu bairro, que não pertence à minha classe social etc. Para os países da Europa, a “sujeira” vem dos imigrantes que todos os dias chegam pelo mar, fugindo da fome, da guerra e da perseguição religiosa. Para o Estado Islâmico, o perigo da impureza vem dos cristãos, que precisam ser exterminados...

Se a tendência atual é cada um fechar-se em si mesmo e viver sua fé de maneira individualista, o apóstolo Tiago deixa claro que o que Deus espera de nós é exatamente o contrário: “contaminar-se”, envolver-se com a aflição do nosso semelhante – concretamente, “socorrer os órfãos e as viúvas em suas necessidades” (cf. Tg 1,27). Neste sentido, o Papa Francisco afirmou, há anos atrás: “Não se pode fazer o bem sem aproximar-se... Tantas vezes penso que seja, não digo impossível, mas muito difícil fazer o bem sem sujar as mãos. Estou disposto a ‘sujar’ as minhas mãos, se for preciso, para me tornar próximo de quem precisa de mim?”, pergunta Francisco.

“Escutai todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior” (Mc 7,20). Há uma verdade importantíssima nesta afirmação de Jersus: nós não somos o que o mundo faz de nós; nós somos aquilo que decidimos fazer com o que o mundo nos oferece. Por uma questão de comodismo, muitas pessoas assumiram diante da vida uma postura de vítimas: a responsabilidade por elas serem infelizes, fracas, doentes ou fracassadas vem de fora: dos pais que as criaram, do ambiente em que cresceram, da escola em que estudam, do lugar em que trabalham, do país em que vivem. A teoria delas é essa: se o mundo fosse melhor, elas também seriam melhores.

Jesus, ao rejeitar esse tipo de irresponsabilidade perante a própria existência, nos lembra que existe um espaço dentro de nós habitado pela liberdade e pela responsabilidade. Esse espaço se chama “coração” (ou “consciência”). Pelo fato de Deus nos ter dotado de liberdade e de responsabilidade, cabe a nós decidir não só o que “entra” em nós (influências externas), mas também o que “sai” de nós (atitudes, comportamentos). Sem dúvida, todos nós recebemos uma forte influência do mundo, principalmente da mídia e da tecnologia. Mas Jesus faz duas perguntas a cada um de nós: ‘O que há dentro de você: um filtro ou um esgoto? Sua consciência / seu coração funciona como um filtro ou como um esgoto?’ Enquanto o esgoto engole tudo (a ideia de que “tudo é válido”), o filtro separa o que presta do que não presta, o que convém daquilo que não convém, o que condiz com a sua condição de cristão e o que não condiz.

Muitas pessoas acham mais fácil “funcionar” como esgoto do que como filtro. Dá menos trabalho; no entanto, isso nos faz um mal imenso. Há muita coisa tóxica que tem se instalado dentro de nós porque pervertemos nosso filtro em esgoto. Neste sentido, a pior corrupção não é aquela que se encontra fora de nós, mas dentro: a corrupção dos nossos valores, a desorientação da nossa bússola interna, o seguir pela vida esperando que os outros, o destino ou a própria vida escolha e decida por nós, o deixar-se levar pela onda do momento. Jesus convida cada um de nós a assumir a responsabilidade por suas escolhas e por suas decisões. Ele nos convida a cuidar desse espaço sagrado em nós chamado coração / consciência, um espaço que precisa estar constantemente iluminado pela Palavra da verdade (cf. Tg 1,18), para poder discernir, separar o puro do impuro, o que presta do que não presta, o que convém daquilo que não convém a nós como seres humanos, como cristãos, como pessoas destinadas à vida eterna.                 

 

Oração: Senhor Jesus, andando pelo jardim da minha consciência e do meu coração, percebo a presença de ervas daninhas e de plantas tóxicas, que têm adoecido a minha alma e trazido confusão aos meus valores. Essas plantas nasceram em mim porque deixei de cultivar o meu jardim interior, deixei de fazer a limpeza do filtro da minha consciência, deixei de distinguir o certo do errado, o justo do injusto, o saudável do doentio.

Hoje quero agradecer a Palavra da verdade contida no teu Evangelho, Palavra que sou chamado(a) não só a ouvir, mas a colocar em prática (cf. Tg 1,22). Quero assumir o compromisso de me posicionar criticamente diante de tudo aquilo que o mundo me oferece. Quero, sobretudo, reassumir a direção da minha liberdade e da minha responsabilidade, fazendo as escolhas e tomando as decisões necessárias para a minha vida, sem esperar e, muito menos, permitir que o mundo escolha ou decida por mim.

Purifica a partir de dentro, Senhor! Que o meu trabalho e as minhas atitudes sejam pautados pela honestidade. Que o meu comportamento seja justo. Que a minha vivência religiosa me leve para perto daqueles que sofrem e que precisam do meu sal e da minha luz. Enfim, que a minha presença neste mundo o ajude a se tornar menos impuro, menos injusto, menos corrompido, menos doente, mais fraterno, mais pacífico, mais saudável e mais digno para todos os seres humanos. Amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

     

O QUE CONSERVAR? O QUE MUDAR?

Missa do 22. dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 4,1-2.6-8; Tiago 1,17-18.21b-22.27; Marcos 7,1-8.14-15.21-23.

 

            Na década de 80-90, nossa Igreja viveu um conflito interno, como se estivesse dividida em dois blocos: um, conservador; o outro, progressista. O conservador tinha como preocupação o cuidado interno com as coisas da Igreja: a reta liturgia, a reta doutrina, a reta moral e o cuidado com a alma das pessoas. O progressista tinha como preocupação o cuidado com o externo, com a situação das pessoas, sobretudo aquelas que eram atingidas pelas injustiças sociais. Neste sentido, eles entendiam que a Igreja devia sair de si e envolver-se com o mundo, que necessita ser salvo.

            Passaram-se trinta anos e esse conflito reacendeu, despertado pela polarização política da eleição de 2018 no Brasil, entre direita e esquerda. Assim como na sociedade brasileira, nossa Igreja encontra-se ferida por uma divisão entre católicos conservadores, que desejam uma Igreja voltada unicamente para o espiritual, e católicos progressistas, que desejam uma Igreja voltada para o social, para o cuidado com a vida humana. Diante desse conflito, o bom senso nos aconselha a evitar os extremos. Além disso, o nosso olhar deve ser posto em Jesus. Ele é o nosso modelo tanto de espiritualidade quanto de ação pastoral. 

            Jesus foi conservador em alguns aspectos e progressista em outros. Quando se tratava de proteger a essência da lei de Deus, Jesus foi conservador, como se dissesse: “A verdade é inegociável! A Escritura não pode ser anulada! Meu Pai não está preocupado em agradar as pessoas, mas em libertá-las e salvá-las!” Porém, Jesus não foi nada conservador ao denunciar a hipocrisia dos fariseus, homens religiosos que se tornaram rígidos na aplicação da Lei de Deus, não considerando a realidade da vida das pessoas, uma realidade que exigia uma interpretação “atualizada” da Lei.

            A realidade em que vivemos muda constantemente e essa mudança causa insegurança nas pessoas. Todos os dias, o mundo nos apresenta situações novas que questionam a nossa fé e os nossos valores cristãos. Diante disso, algumas pessoas escolhem defender-se do mundo, fechando-se numa fé intimista e fundamentalista, uma fé que ataca o mundo ao invés de dialogar com ele, em vista de aproximá-lo do Evangelho. No entanto, quando olhamos para Jesus, ele não teve esse tipo de atitude. Pelo contrário, Jesus sempre se deixou afetar pela realidade à sua volta. Além disso, ele foi muito mais duro com a religião do que com o mundo! Suas críticas eram muito mais severas para com os homens da religião do que para com os homens do mundo. Por qual motivo? Porque a religião havia se distanciado do drama da vida das pessoas e se fechado em si mesma, privilegiando um pequeno grupo que se considerava puro, fiel, conservador, não contaminado pelo mundo – o grupo dos fariseus.

              O Papa Francisco nos ajuda entender o que Jesus quer de nós, sua Igreja, neste mundo cheio de situações contrárias ao Evangelho: “Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada... Jesus espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente” (Amoris Laetitia, 308).

            Seria muito mais fácil para nós, cristãos, não termos que lidar com casais em segunda ou mais uniões; com pessoas homossexuais, bissexuais ou transexuais; com casais homoafetivos; com crianças abusadas sexualmente; com jovens adoecidos mentalmente; com tanta gente passando fome; com crianças e adolescentes desorientados e adoecidos pelo vício na Internet; com pessoas exploradas no seu trabalho ou envolvidas nas drogas; com um meio ambiente agredido e que, por sua vez, nos agride etc. No entanto, é exatamente a partir dessas situações todas que o Espírito Santo está gritando à Igreja!

            O Concílio Vaticano II foi um momento ímpar em nossa Igreja, quando os Papas São João XXIII e São Paulo VI perceberam a grande necessidade de abrir as portas e janelas da nossa Igreja para que o sopro do Espírito, que faz novas todas as coisas, pudesse entrar nela e renová-la, quer na sua identidade (dimensão interna), quer na sua missão (dimensão externa). Mas hoje, alguns católicos, por pura desinformação, demonizam o Concílio Vaticano II, não se dando conta de que estão rejeitando a renovação que o Espírito Santo quis para a Sua Igreja. Desse modo, nós temos católicos fechados em Movimentos, sufocados em tradições e doutrinas estranhas às atitudes de Jesus, sem permitirem ser questionados pelo Espírito da Verdade, que age também no mundo e não apenas no espaço determinado pelos fariseus do nosso tempo.

            O Evangelho de hoje nos ajuda a responder duas perguntas: O que conservar? O que mudar? Conservar aquilo que nos ensina a Palavra de Deus: “Nada acrescenteis, nada tireis, à palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus que vos prescrevo” (Dt 4,2). Mudar aquilo que é tradição humana, criada numa determinada época para ajudar na evangelização, mas que hoje não responde mais às necessidades pastorais, além de impedir a Igreja de chegar aonde o Espírito Santo está exigindo que ela chegue: às periferias existenciais. Neste sentido, todo o trabalho do Papa Francisco tem sido uma tentativa de colocar na prática aquilo que há 14 anos afirmou o Documento de Aparecida: “é urgente passar de uma pastoral de manutenção (conservação) para uma pastoral decididamente missionária; é igualmente urgente abandonar as estruturas ultrapassadas que não ajudam mais na transmissão da fé” (DAp 365 a 370).  

            A proposta de Jesus a nós é uma revisão do nosso interior. Não basta lutar contra o pecado pessoal; é preciso cuidar daqueles que estão sendo feridos pelo pecado social (cf. Sl 14,2.3.5). Não basta cuidar do espiritual, evitando ser corrompido pelo mundo; também é preciso proteger a vida daqueles que são explorados e marginalizados em nosso mundo (cf. Tg 1,27). Aos conservadores Jesus aconselha a ouvir os apelos do Espírito Santo, que fala com a Igreja a partir das realidades desumanas; aos progressistas Jesus aconselha não perder-se no social, descuidando do seu próprio interior e da sua espiritualidade. Trata-se, portanto, de buscar o equilíbrio e sair dos extremos.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

O FOGO, O MARTELO E A ESPADA, OU UM "evangelho paralelo"?

 Missa do 21. dom. comum. Palavra de Deus: Josué 24,1-2a.15-17.18b; Efésios 5,21-32; João 6,60-69.

 

Está comprovado pela ciência que ter fé, ter uma religião, ajuda a pessoa a viver melhor. Está comprovado que as pessoas que têm fé e praticam uma religião vivem mais, são mais felizes e lidam melhor com os problemas da vida. Apesar dessa constatação, o Evangelho de hoje vem nos dizer que a fé e a religião não estão aí para colaborarem com o nosso bem estar; elas não visam anestesiar a nossa consciência, mas provocá-la, despertá-la; elas não têm por objetivo nos colocar numa zona de conforto mas nos tirar da nossa zona de conforto; numa palavra, a fé e a religião não têm por objetivo nos dar respostas que facilitem a nossa vida neste mundo, mas nos fazer perguntas que nos obriguem a tomar decisões, decisões que passamos a vida inteira protelando, deixando para depois, porque nos são dolorosas.

O Evangelho de hoje nos revela um momento de crise na relação de Jesus com seus discípulos: “A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele” (Jo 6,66). Por qual motivo? Porque eles diziam: “Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?” (Jo 6,60). Nós sabemos que a Palavra de Jesus tem força para fazer uma pessoa passar da morte para a vida (cf. Jo 5,24-25). É uma Palavra que cura quem está doente, reorienta quem se sente perdido, transmite amor a quem não se sente amado, ressuscita quem se sente morto, comunica perdão a quem se sente condenado etc. No entanto, é uma Palavra “dura”!

Duas expressões bíblicas nos ajudam a entender qual a razão de a Palavra de Jesus ser criticada como “dura”. A primeira se encontra no profeta Jeremias: “Não é minha palavra como fogo e como martelo que arrebenta a rocha?” (Jr 23,29). Quanto mais eu estou obstinado no erro, endurecido nele como ferro, mais eu preciso que o fogo que é a Palavra de Deus derreta o ferro e torne o meu coração flexível, capaz de modificar minhas atitudes. Quanto mais eu sou “cabeça dura” mais é necessário que a Palavra de Deus bata firme em mim como um martelo, até arrebentar a minha dureza, até me fazer ver aquilo que eu teimo em não ver e admitir aquilo que eu me recuso a admitir: a minha necessidade de conversão ou de tomada de atitude.  

A segunda expressão bíblica sobre a “dureza” da Palavra de Jesus se encontra na carta aos Hebreus: “A palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada...; penetra até dividir alma e espírito... Ela julga as disposições e as intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença” (Hb 4,12-13). Quando Jesus dirige sua Palavra a mim, ele não visa esconder minha ferida debaixo de um tecido fino, belo e caro; ele visa fazer sangrar a minha ferida, em vista de tratá-la e curá-la. Interessa a Jesus que sua Palavra penetre em nós, e não fique na superficialidade do nosso ler, escutar e entender o que ele nos diz. Interessa a Jesus que sua Palavra penetre fundo em nossa alma, até onde se encontram as raízes das nossas intenções ocultas que nos levam a ter comportamentos contrários à vontade de Deus.

  “A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele” (Jo 6,66). Há um fenômeno preocupante em nossa Igreja: grupos conservadores e tradicionalistas rejeitam as exigências do Evangelho, ao mesmo tempo em que exigem que a Igreja lhes anuncie um “evangelho domesticado”, um evangelho que não critique as riquezas, que não se ocupe dos que sofrem injustiças sociais, que tenha como objetivo a salvação da almas e não das pessoas por inteiro, que não denuncie o farisaísmo dos católicos que “filtram um mosquito, enquanto engolem um camelo” (Mt 23,24), ajudando financeiramente a Igreja ao mesmo tempo em que pagam salários miseráveis e injustos aos seus empregados (cf. Tg 5,1-5). Enquanto rejeitam a “palavra dura” do Evangelho, esses católicos sustentam financeiramente um projeto político e cultural chamado “Brasil Paralelo”, justamente porque querem uma “política paralela,” uma “igreja paralela”, um “magistério paralelo”, um “jesus paralelo”, um “evangelho paralelo”.

O que Jesus fez, ao ver que muitos dos seus discípulos o deixaram por reclamarem da dureza da sua Palavra? Ele não mudou seu discurso, não atenuou sua Palavra, não lhes propôs um “evangelho paralelo”; ele simplesmente voltou-se para os doze apóstolos e lhes perguntou: “Vocês também querem ir embora?” (Jo 6,67). Essa pergunta está sendo dirigida hoje a cada um de nós e está sendo feita para nos lembrar de que Jesus nos quer livres e conscientes. Sua Palavra queima como fogo, bate duro como um martelo, fere como uma espada, mas é uma Palavra que contém o Espírito e a Vida que Deus deseja comunicar aos Seus filhos.

Nós não somos obrigados a estar na Igreja; não somos obrigados a viver segundo as exigências do Evangelho; não somos obrigados a nada. E só há uma coisa que pode nos impedir de optarmos por ser “católicos paralelos”, seguidores de um “jesus paralelo”, desejosos de ouvir um “evangelho paralelo”: a certeza de que Jesus, com a “dureza” da sua Palavra, com as exigências do seu Evangelho, só tem um objetivo: nos dar a Vida eterna (cf. Jo 6,68). E só se abre à Vida eterna quem se permite pôr em crise, quem se permite ser confrontado com a verdade do Evangelho.

Não nos assustemos com a época em que estamos vivendo, marcada por crises no campo da economia, da cultura, da política, das religiões, dos valores e da fé. É somente na crise que se revelam os verdadeiros discípulos de Jesus. É justamente quando a fé é atacada, combatida que você precisa se decidir ou por abandonar Jesus ou por aprofundar a sua fé nele e no seu Evangelho, cujas palavras “são espírito e vida” (Jo 6,63).

 

Oração: Jesus, meu Senhor e meu Deus, dura é a tua Palavra, exigente é o teu Evangelho! No entanto, preciso que ele me atinja como fogo, derretendo as minhas resistências, duras como o ferro. Preciso que a dureza da tua Verdade bata firme na rocha da minha teimosia em viver contrário(a) à vontade do Pai. Necessito que a espada da tua Palavra penetre nas profundezas da minha alma e do meu espírito, para sanar as minhas raízes doentias que me levam a pecar, a praticar o que é errado aos olhos de Deus.

Sustenta-me nos meus momentos de crise. Ensina-me a não fugir das perguntas com as quais preciso me confrontar, para me tornar a pessoa que fui chamada a ser, segundo o plano de Deus para a minha vida. Confronta-me com a verdade do teu Evangelho, para que eu seja liberto(a) das minhas mentiras. Não permita que eu te abandone para ir atrás de um “jesus paralelo” ou de um “evangelho paralelo”. Quero suportar ser corrigido(a), formado(a), educado(a) e orientado(a) por tuas Palavras, pois só tu tens Palavras de Vida eterna! Amém.       

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

OS APELOS DO CORPO, OS DESEJOS DA ALMA E OS ANSEIOS DO ESPÍRITO

          Missa da Assunção de Nossa Senhora. Palavra de Deus: Apocalipse de São João 11,19a; 12,1-6a.10ab; 1Coríntios 15,20-26.28; Lucas 1,39-56.

 

A festa da Assunção (elevação) de Nossa Senhora nos recorda um dogma de fé da nossa Igreja: Maria, após a sua morte, foi elevada em corpo e alma ao céu, pelo fato de seu corpo ter sido o “sacrário vivo” que gerou o corpo do Filho de Deus. Maria, glorificada em corpo e alma no céu, é imagem da Igreja e de cada um de nós, pois nos foi prometida a mesma glorificação: (do céu) “esperamos ansiosamente como Salvador o Senhor Jesus Cristo, que transfigurará nosso corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso” (Fl 3,20-21). Essa festa, portanto, é ocasião para refletirmos sobre o significado do nosso corpo para Deus e a destinação dele para a ressurreição.

Enquanto a mentalidade grega entende o ser humano como corpo e alma, sendo que o corpo não tem valor, mas apenas a alma, a mentalidade hebraica (bíblica) entende o ser humano como corpo, alma e espírito, sendo que ele, na sua totalidade, está destinado à ressurreição: “Que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 5,23). Isso significa que devemos tomar cuidado com afirmações errôneas, do tipo: “a missão da Igreja é salvar almas”. A missão da Igreja é a mesma de Jesus Cristo: salvar o ser humano enquanto pessoa feita de corpo, alma e espírito.

Jesus se fez “carne”, isto é, pessoa humana no seio de Maria, para redimir o ser humano na sua totalidade de corpo, alma e espírito. Por se preocupar com o corpo do ser humano, Jesus curou numerosos doentes, ressuscitou mortos e alimentou multidões famintas; por se preocupar com a alma do ser humano, ele expulsou os demônios de muitas pessoas atormentadas pelo mal, libertando-as dos seus sofrimentos psíquicos; enfim, por se preocupar com o espírito do ser humano, Jesus perdoou pecados, chamou a todos à conversão e nos convidou a buscar o alimento que permanece para a vida eterna, contido na sua Palavra e na sua Eucaristia.

O corpo glorificado de Maria no céu questiona a profanação do corpo que, na Terra, passa fome, é agredido pela violência, sofre abuso sexual, entrega-se à prostituição, definha pelo consumo de drogas (especialmente o crack), agride a si mesmo com bebida alcoólica e com inúmeras tatuagens – a grande moda do momento, além de expor-se sem bom senso, obedecendo à ditadura da moda. A alma glorificada de Maria no céu questiona o adoecimento mental do nosso tempo, os inúmeros transtornos psíquicos que atingem pessoas de todas as idades, de todas as crenças e de todas as classes sociais. Enfim, o espírito glorificado de Maria no céu questiona o “mundanismo espiritual” (Papa Francisco) presente nas igrejas, a religião reduzida à busca de bem-estar pessoal, a vida espiritual descuidada, o materialismo, o espírito ignorado por muitas pessoas, a descrença, a falta de esperança e de sentido de vida de muitos do nosso tempo.

A visão redutiva que o mundo atual tem do ser humano nos faz enxergar que tudo em nós se reduz ao nosso corpo. Daí o narcisismo – minha imagem, minha beleza, minha jovialidade é tudo! Daí a maioria preocupar-se sempre com a estética e nunca com a ética (o comportamento justo). Daí a exaltação da jovialidade e a negação do envelhecimento, assim como a rejeição a tudo o que fica velho. Daí a redução da sexualidade ao erotismo, ao genital, à busca do prazer pelo prazer, sem se importar com afeto, vínculo, laço e compromisso, ao mesmo tempo em que se ataca o valor da fidelidade. O resultado é um corpo vivo, mas que abriga em si uma alma doente e um espírito morto. O resultado é uma pessoa de aparência atraente, mas vazia de conteúdo e de valores. O resultado é o desconhecimento de si mesmo, o tornar-se surdo às perguntas da sua própria alma e aos anseios do próprio espírito.

Qual é o anseio do nosso espírito? Segundo o apóstolo Paulo, o Espírito de Deus se une ao nosso espírito humano provocando dentro de nós um gemido, um suspiro, um anseio: nós “gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo” (Rm 8,23). “Gememos interiormente”, mas quem hoje escuta seu próprio interior? O nosso gemido é um suspiro, um anseio, um desejo: tudo isso diz que há algo em nós incompleto, há uma lacuna que ainda não pode ser preenchida, há um processo em andamento que anseia pela sua conclusão. Justamente por ser habitado por uma alma e por um espírito, o corpo de todo ser humano suspira, anseia por sua redenção, por sua elevação até o céu, até o seio do Pai, até que Ele se torne “tudo em todos” (1Cor 15,28).

Numa época de exaltação da estética e da busca pelo corpo perfeito, precisamos nos reconciliar com o nosso corpo, aceitando-o como ele é e acolhendo-o como algo que nos constitui e que é sagrado aos olhos de Deus. Nosso corpo não tem apenas necessidades, mas tem também suas manhas. Daí o alerta do apóstolo de Paulo: “Os atletas de abstém de tudo; eles, para ganharem um prêmio que se estraga; nós, porém, para ganharmos o prêmio da vida eterna... Trato duramente o meu corpo... a fim de que não aconteça que... eu venha a ser reprovado” (1Cor 9,25.27). Nenhum atleta que faz corpo mole ganha alguma competição. Da mesma forma, nosso corpo precisa ser educado, exercitado, integrado em nossa espiritualidade, ao invés de se tornar nosso adversário na busca de vivermos segundo a vontade de Deus. Portanto, da mesma forma como não devemos ignorar nosso corpo e nossa alma, não devemos ignorar o anseio do espírito, que convida nosso corpo e nossa alma a abrirem-se à transcendência e a aguardarem o momento da nossa redenção definitiva, da nossa glorificação no céu.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

VIVER DE FÉ, SOMENTE PELA FÉ

 Missa do 19. dom. comum. Palavra de Deus: 1Reis 19,4-8; Efésios 4,30 – 5,2; João 6,41-51.

 

            Chegará um tempo em que só será possível viver pela fé: “O justo (o homem de Deus) viverá por sua fé” (Hab 2,4; Rm 1,17), unicamente pela força da sua fé. “Uma pessoa que perdeu sua fé é como um arco frouxo do qual nenhuma flecha consegue mais ser lançada” (Pe. Henri Nouwen).

            Nós, cristãos, não temos fé numa doutrina, num livro (ainda que seja a Bíblia), mas numa Pessoa: Jesus Cristo. “Eu não me envergonho de sofrer pelo Evangelho porque sei em quem coloquei a minha fé” (citação livre de 2Tm 1,12). A fé não nos impede de sofrer, mas dá sentido ao nosso sofrimento. Todo ser humano sofre, mas quem tem fé não é soterrado pelo sofrimento; sua fé o faz transcender sua situação de dor.

            Jesus, aquele em quem depositamos a nossa fé, se apresenta dessa forma, no Evangelho de hoje: “Eu sou o pão que desceu do céu... Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente.” (Jo 6,41.51). Pão é alimento. Todo ser vivo precisa alimentar-se. Nossa fé em Jesus precisa alimentar-se do pão que Ele mesmo é, do pão que Ele nos oferece, primeiramente na Palavra; depois, na Eucaristia. E aqui é preciso concentrar-nos na Palavra de Jesus enquanto alimento de vida eterna: “Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68). Também o apóstolo Paulo afirma que “a fé nasce em nós e se mantém em nós pelo ouvir a Palavra de Cristo, a Palavra que é Cristo” (citação livre de Rm 10,17).

             Vejamos o que aconteceu com o profeta Elias. Depois de viver um momento de enorme sucesso no seu profetismo (cf. 1Rs 18,20-40), ele entra em depressão, a ponto de pedir a Deus a morte: “Elias entrou deserto adentro e caminhou o dia todo... e pediu para si a morte, dizendo: ‘Agora basta, Senhor! Tira a minha vida’. E, deitando-se no chão, adormeceu” (1Rs 19,4-5). Elias é a imagem das pessoas que entram em depressão devido ao esgotamento. De repente, a vida perde o sentido e elas são jogadas dentro de um deserto. Elas não apenas tropeçam e caem, mas deitam-se no chão desse deserto, se entregam à depressão, porque se sentem fracassadas, porque não têm forças para mais nada. Deitadas no chão, elas adormecem, porque dormir significa não ter que pensar nos problemas a serem enfrentados; significa não ouvir as constantes solicitações do mundo; significa entregar os pontos e dizer: ‘Eu não consigo mais’.

                Mas Elias tem uma parcela de responsabilidade na sua depressão. Ele se julgou imbatível, com uma fé inabalável, como uma pessoa de ânimo inesgotável, e agora precisa lidar com o seu humano, com os seus limites, com a verdade de que, por mais fé que uma pessoa tenha, em sua alma também haverá lugar para o cansaço, o desânimo, o medo e o sentimento de abandono por parte de Deus, exatamente como descreveu Santa Teresa de Calcutá, no seu período de aridez espiritual: “O lugar de Deus na minha alma está vazio. Não há Deus em mim” (do livro “Vem; seja a minha luz”). 

            Contudo, “tenho plena certeza de que aquele que começou em vocês uma boa obra há de levá-la à perfeição até o dia de Cristo Jesus” (Fl 1,6). Deus jamais abandona no meio do caminho aqueles que chamou à fé em seu Filho Jesus. Elias é visitado por um homem no deserto, que fala com ele e lhe oferece pão e água: “‘Levanta-te e come! Ainda tens um caminho longo a percorrer’. Elias levantou-se, comeu e bebeu, e, com a força desse alimento, andou quarenta dias e quarenta noites até chegar ao Horeb, o monte de Deus” (1Rs 19,7-8). Precisamos nos alimentar de fé; precisamos nos alimentar da Palavra que é Cristo porque as lutas e os desafios que temos que enfrentar estão acima das nossas forças humanas, e só poderão ser vencidos pela força da nossa fé.

            Acontece que a fé não é um simples querer da nossa parte, um mero exercício da nossa vontade: “Eu quero ter fé”. Ela é um dom do Pai: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia. Está escrito nos profetas: ‘Todos serão discípulos de Deus’. Ora, todo aquele que escutou o Pai e por ele foi instruído vem a mim” (Jo 6,44-45). Da mesma forma como pedimos ao Pai “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”, precisamos pedir-Lhe: “a fé nossa de cada dia nos dai hoje!” Precisamos pedir que o Pai nos atraia para seu Filho, que nos encante por Ele e pelo seu Evangelho. Precisamos orar pelas pessoas que perderam ou estão enfraquecidas na sua fé, pois somente o Pai pode despertar nelas a necessidade e o desejo de buscarem Jesus. Precisamos pedir que o Pai nos dê ouvidos e coração de discípulos, para O escutarmos e para permitir que Ele nos conduza ao seu Filho, “Salvador de todos os homens, mas sobretudo dos que têm fé” (1Tm 4,10).

            É preciso lembrar mais uma vez: “Todo aquele que escutou o Pai e por ele foi instruído vem a mim” (Jo 6,45), isto é, “tem fé em mim”, disse Jesus. Nós escutamos o Pai quando escutamos a nossa consciência; quando temos a coragem de silenciar não somente o barulho externo, mas o interno – o mais difícil de ser silenciado –, para ouvirmos a Sua voz que fala a partir do mais profundo de nós mesmos, do meio do nosso deserto espiritual. E o Pai está nos falando: “Levante-se da sua prostração, do seu desânimo; alimente-se de fé; alimente sua fé; alimente-se da Palavra e do Pão vivo descido do céu, que é meu Filho, para que você possa chegar até Mim!”.

            Hoje oramos especialmente pelos pais. Também como Elias, muitos pais estão deprimidos, desanimados, esgotados; muitos pais têm caminhado a vida toda distantes da fé, sem alimentar-se da Palavra e da Eucaristia; por não terem fé, ou por não saberem como alimentar sua fé, muitos pais se tornaram arcos frouxos, dos quais nenhuma flecha pode mais ser lançada. Não são poucas as famílias cujos filhos não têm junto a si esse arco firme que incentiva-os a se lançarem na vida e a buscarem Jesus como fonte de salvação. Oremos pelos pais cristãos, que atravessam desertos espirituais; que o Pai do céu fale aos seus corações, retire-os da prostração, afaste-os do desânimo, alimente-os com sua Palavra e fortaleça-os com a graça do Espírito Santo, para que possam chegar com suas famílias ao monte Horeb, ao lugar onde o Pai habita!

 

Oração: Pai, hoje venho entregar a ti o meu cansaço, o meu desânimo, a minha experiência de me sentir num profundo deserto. Minha fé desfalece, Senhor. Preciso do teu socorro. Abre meus ouvidos e dá-me coração de discípulo para que, ouvindo-te, eu me deixe atrair para o teu Filho.

Concede-me fé! Mesmo no meu vazio espiritual, não quero desistir de te buscar, pois sei tu não desejas que eu morra no deserto. Tu me alimentas e me convidas a retomar o caminho da fé, até chegar aonde tu habitas.

Estende tua mão sobre cada homem, especialmente sobre cada pai, na face da terra. Infunde-lhes a força do Espírito Santo. Levanta-os das suas quedas. Suscita-lhes a fé em teu Filho Jesus. Que cada pai volte a ser um arco firme, capaz de lançar-se para a frente com sua família, rumo à meta que tu nos chamas a alcançar: a tua casa, o teu Reino, o teu coração.

Em nome de Jesus, amém!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi    

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

SER PADRE


Porque há pessoas escravas que precisam ser libertas (Ex 3,7.8.10);

Porque há um povo a ser introduzido na Terra Prometida (Js 1,1-6);

Porque a voz de Deus precisa falar mais alto ao coração humano do que os contratestemunhos de alguns “homens de Deus” (1Sm 1,12.23; 3,1-21);

Porque Deus faz uma pergunta diante de um mundo que precisa ser salvo de si mesmo: “Quem enviarei?”, e eu respondo como Isaías: “Eis-me aqui, envia-me!” (Is 6,8).

Porque há vidas rachadas e quase apagadas que não precisam ser jogadas fora, mas podem ser restauradas e reacendidas (Is 42,3);

Porque há pessoas cansadas, humilhadas e desoladas esperando por uma palavra minha de conforto (Is 50,4);  

Porque existem situações injustas a serem arrancadas e destruídas, exterminadas e demolidas, para que a vida em abundância que Deus quer para todo ser humano seja construída e plantada (Jr 1,10);

Porque existem inúmeras pessoas cuja vida precisa voltar a ter esperança e sentido (Ez 37,1-14);

Porque a Esposa adúltera se feriu gravemente e necessita ser curada e restaurada pelo amor fiel do seu Esposo (Os 2,16-22);

Porque a religião se prostituiu e separou-se do drama da vida dos que sofrem, e, por isso, necessita reencontrar o caminho de volta, onde o culto não se mantenha distante ou indiferente à realidade dos que sofrem (Am 5,21-24);

Porque, diante do fato de que não há praticamente fidelidade sobre a terra e as famílias sofrem com a própria desestruturação, o Senhor me chama a anunciar a força restauradora do Seu perdão e do Seu amor (Mq 7,2.18-19);

Porque há muitas pessoas afogando-se nas águas turbulentas do mal e da destruição, e Jesus me chama a “pescá-las”, as resgatá-las vivas dessas situações (Mt 4,19);

Porque há pessoas mortas que precisam voltar a viver, assim como também há pessoas perdidas que precisam ser encontradas (Lc 15,24.32);

Porque a humanidade é uma multidão faminta e eu aceito deixar-me afetar por esta fome, tornando-me “pão”, alimento de vida eterna para quem tem fome de Deus (Jo 6,5.27);

Porque, diante do mau cheiro da morte que se propaga por todo lado (Jo 11,39), eu quero me configurar a Jesus, fazendo da minha existência um perfume que se derrama – “se desperdiça” –, para espalhar no seio da humanidade o bom odor da alegria, da esperança e da vida que é mais forte do que a morte (Jo 12,3);

Porque a pessoa de Jesus Cristo deve se tornar conhecida e amada por inúmeras pessoas às quais o Evangelho ainda não chegou (At 9,15);

Porque inúmeras famílias precisam saber que existe para elas um Salvador: Jesus Cristo (At 16,31);

Porque aceito o desafio que Jesus me propõe de não só crer no Evangelho, mas também de sofrer por ele, fazendo-me tudo para todos a fim de salvar alguns a todo custo (1Cor 9,22; 2Tm 1,8).  

  Pe. Paulo Cezar Mazzi

domingo, 1 de agosto de 2021

COMO LIDAR COM A FALTA DOS 15%?


Uma mulher, enquanto solteira, teve relações sexuais com diversos homens. Seu último relacionamento, antes de se casar com o atual marido, foi marcado por intensas experiências sexuais, assim também como por muitos sofrimentos, pois seu parceiro era um homem “problemático”.

Os anos passaram e essa mulher encontrou “o homem da sua vida”: íntegro, afetuoso, trabalhador, inteligente, um marido presente e um excelente pai; numa palavra: seu marido é o homem que toda mulher desejaria encontrar para se casar. De repente, quando a vida parecia perfeita, essa mulher se dá conta de que não é totalmente feliz. Em termos de porcentagem, ela toma consciência de que se sente realizada na vida 85%; portanto, faltam 15% para que ela se sinta plenamente realizada! O que são esses 15%? Justamente, as intensas experiências sexuais que ela teve com o homem que tanto a fez sofrer.

Atormentada por fantasias sexuais, essa mulher se dá conta de que precisa fazer uma escolha: ou se contentar com os 85% que tem de realização, ou abrir mão deles (paz, conforto, marido e filhos) para tentar recuperar os 15% dos quais sente falta. Entre essas duas possibilidades de escolha, uma terceira lhe é proposta: conjugar as duas coisas, ou seja, viver uma vida dupla; manter-se casada com seu marido, permitindo-se, ao mesmo tempo, dar vazão aos seus desejos sexuais, encontrando-se ocasionalmente com seu antigo namorado.   

Esse drama encontra-se na minissérie “Sex Life” (Netflix) e serve para nos fazer refletir sobre uma importante questão: existe vida 100% realizada e feliz? Existe alguma pessoa na face da terra que se sinta 100% feliz e realizada com o caminho que escolheu seguir na vida?

Todas as propagandas de consumo que o mundo inventa para nos “fisgar” prometem exatamente isso: uma vida 100% realizada, feliz. Mas não só isso: a chamada “ditadura da felicidade” ou “ditadura do bem-estar” quer nos convencer de que, se não estamos 100% realizados e felizes não somente na vida, mas 24 horas por dia, algo está errado com a nossa vida, e precisamos urgentemente ir atrás dos 15% que nos faltam, para sermos plenamente felizes e realizados.      

            Quais são os seus 15%? Em qual área da sua vida você não se sente plenamente feliz ou realizado(a)? Por desejarem 100% de realização e felicidade, pessoas casadas adulteram, padres que abraçaram o celibato levam vida dupla, políticos e juízes se corrompem, pessoas se tornam dependentes químicas (uso de drogas) ou se suicidam... Na verdade, a busca pelos 100% de realização esconde uma armadilha: “O que é demais nunca é o bastante” (Legião Urbana, Teatro dos vampiros). Além de sermos seres insatisfeitos, sempre surgirá alguém ou algo novo e diferente para nos dizer: “você ainda não me tem na sua vida!”.  

            A resposta que você dará à falta dos seus 15% depende dos seus valores, do seu caráter, da sua consciência, da sua maturidade, da sua fé, da sua capacidade de renúncia e, principalmente, do sentido que você dá à dor da ausência dos 15% . Se no mundo virtual ou literário existe vida 100% realizada e feliz, na vida real o que existe é a verdade de que “ninguém pode ter tudo”. Essa foi uma descoberta dolorosa que o pavão fez. Ao ir reclamar com o Criador por que ele havia sido criado com uma beleza invejável, mas com pés e uma voz feios, que destoavam da beleza das suas penas coloridas, recebeu como resposta: “Porque ninguém pode ter tudo”.

            Para toda pessoa inconformada com a realidade da vida e, sobretudo, para pessoas religiosas iludidas por pregações que afirmam que Deus nos quer plenamente felizes aqui e agora, vale a pena lembrarmos as palavras de Jesus nas bem-aventuranças: “Felizes os pobres em espírito... Felizes os que choram... Felizes os que têm fome e sede de justiça... Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, de mim e do Evangelho...” (Mateus 5,3-12). Todas essas pessoas mencionadas por Jesus têm em sua vida a ausência dos 15%, para não dizer que algumas delas vivem apenas com 15%, isto é, sem os 85% de realização!

            O que Jesus quer nos dizer que é precisamos tomar cuidado com aquilo que entendemos por felicidade. Precisamos ser realistas e aceitar o fato de que “ninguém tem tudo” e “ninguém pode ter tudo”. Precisamos estar conscientes de que, enquanto estivermos neste mundo terreno, sempre nos faltarão os 15%, pelo fato de que “agora vemos como que através de um espelho, mas depois veremos face a face; agora conhecemos apenas em parte, mas depois conheceremos como somos conhecidos” (1Coríntios 13,12). O que Jesus está nos perguntando é se vale mesmo à pena correr atrás dos 15% e pôr a perder os 85% que temos.

            Uma última palavra: para quem acredita que dá conta de conciliar os 85% com os 15% levando uma vida dupla, adúltera, fazendo um “bem bolado”, fica a advertência bíblica de que “ferro e barro não se fundem”: cedo ou tarde, uma pequena pedra baterá nos pés feitos de ferro misturado com barro, e tudo desabará, tudo será destruído (cf. Daniel 2,33.43).

  

            Pe. Paulo Cezar Mazzi