sexta-feira, 13 de agosto de 2021

OS APELOS DO CORPO, OS DESEJOS DA ALMA E OS ANSEIOS DO ESPÍRITO

          Missa da Assunção de Nossa Senhora. Palavra de Deus: Apocalipse de São João 11,19a; 12,1-6a.10ab; 1Coríntios 15,20-26.28; Lucas 1,39-56.

 

A festa da Assunção (elevação) de Nossa Senhora nos recorda um dogma de fé da nossa Igreja: Maria, após a sua morte, foi elevada em corpo e alma ao céu, pelo fato de seu corpo ter sido o “sacrário vivo” que gerou o corpo do Filho de Deus. Maria, glorificada em corpo e alma no céu, é imagem da Igreja e de cada um de nós, pois nos foi prometida a mesma glorificação: (do céu) “esperamos ansiosamente como Salvador o Senhor Jesus Cristo, que transfigurará nosso corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso” (Fl 3,20-21). Essa festa, portanto, é ocasião para refletirmos sobre o significado do nosso corpo para Deus e a destinação dele para a ressurreição.

Enquanto a mentalidade grega entende o ser humano como corpo e alma, sendo que o corpo não tem valor, mas apenas a alma, a mentalidade hebraica (bíblica) entende o ser humano como corpo, alma e espírito, sendo que ele, na sua totalidade, está destinado à ressurreição: “Que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 5,23). Isso significa que devemos tomar cuidado com afirmações errôneas, do tipo: “a missão da Igreja é salvar almas”. A missão da Igreja é a mesma de Jesus Cristo: salvar o ser humano enquanto pessoa feita de corpo, alma e espírito.

Jesus se fez “carne”, isto é, pessoa humana no seio de Maria, para redimir o ser humano na sua totalidade de corpo, alma e espírito. Por se preocupar com o corpo do ser humano, Jesus curou numerosos doentes, ressuscitou mortos e alimentou multidões famintas; por se preocupar com a alma do ser humano, ele expulsou os demônios de muitas pessoas atormentadas pelo mal, libertando-as dos seus sofrimentos psíquicos; enfim, por se preocupar com o espírito do ser humano, Jesus perdoou pecados, chamou a todos à conversão e nos convidou a buscar o alimento que permanece para a vida eterna, contido na sua Palavra e na sua Eucaristia.

O corpo glorificado de Maria no céu questiona a profanação do corpo que, na Terra, passa fome, é agredido pela violência, sofre abuso sexual, entrega-se à prostituição, definha pelo consumo de drogas (especialmente o crack), agride a si mesmo com bebida alcoólica e com inúmeras tatuagens – a grande moda do momento, além de expor-se sem bom senso, obedecendo à ditadura da moda. A alma glorificada de Maria no céu questiona o adoecimento mental do nosso tempo, os inúmeros transtornos psíquicos que atingem pessoas de todas as idades, de todas as crenças e de todas as classes sociais. Enfim, o espírito glorificado de Maria no céu questiona o “mundanismo espiritual” (Papa Francisco) presente nas igrejas, a religião reduzida à busca de bem-estar pessoal, a vida espiritual descuidada, o materialismo, o espírito ignorado por muitas pessoas, a descrença, a falta de esperança e de sentido de vida de muitos do nosso tempo.

A visão redutiva que o mundo atual tem do ser humano nos faz enxergar que tudo em nós se reduz ao nosso corpo. Daí o narcisismo – minha imagem, minha beleza, minha jovialidade é tudo! Daí a maioria preocupar-se sempre com a estética e nunca com a ética (o comportamento justo). Daí a exaltação da jovialidade e a negação do envelhecimento, assim como a rejeição a tudo o que fica velho. Daí a redução da sexualidade ao erotismo, ao genital, à busca do prazer pelo prazer, sem se importar com afeto, vínculo, laço e compromisso, ao mesmo tempo em que se ataca o valor da fidelidade. O resultado é um corpo vivo, mas que abriga em si uma alma doente e um espírito morto. O resultado é uma pessoa de aparência atraente, mas vazia de conteúdo e de valores. O resultado é o desconhecimento de si mesmo, o tornar-se surdo às perguntas da sua própria alma e aos anseios do próprio espírito.

Qual é o anseio do nosso espírito? Segundo o apóstolo Paulo, o Espírito de Deus se une ao nosso espírito humano provocando dentro de nós um gemido, um suspiro, um anseio: nós “gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo” (Rm 8,23). “Gememos interiormente”, mas quem hoje escuta seu próprio interior? O nosso gemido é um suspiro, um anseio, um desejo: tudo isso diz que há algo em nós incompleto, há uma lacuna que ainda não pode ser preenchida, há um processo em andamento que anseia pela sua conclusão. Justamente por ser habitado por uma alma e por um espírito, o corpo de todo ser humano suspira, anseia por sua redenção, por sua elevação até o céu, até o seio do Pai, até que Ele se torne “tudo em todos” (1Cor 15,28).

Numa época de exaltação da estética e da busca pelo corpo perfeito, precisamos nos reconciliar com o nosso corpo, aceitando-o como ele é e acolhendo-o como algo que nos constitui e que é sagrado aos olhos de Deus. Nosso corpo não tem apenas necessidades, mas tem também suas manhas. Daí o alerta do apóstolo de Paulo: “Os atletas de abstém de tudo; eles, para ganharem um prêmio que se estraga; nós, porém, para ganharmos o prêmio da vida eterna... Trato duramente o meu corpo... a fim de que não aconteça que... eu venha a ser reprovado” (1Cor 9,25.27). Nenhum atleta que faz corpo mole ganha alguma competição. Da mesma forma, nosso corpo precisa ser educado, exercitado, integrado em nossa espiritualidade, ao invés de se tornar nosso adversário na busca de vivermos segundo a vontade de Deus. Portanto, da mesma forma como não devemos ignorar nosso corpo e nossa alma, não devemos ignorar o anseio do espírito, que convida nosso corpo e nossa alma a abrirem-se à transcendência e a aguardarem o momento da nossa redenção definitiva, da nossa glorificação no céu.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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