quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O QUE CONSERVAR? O QUE MUDAR?

Missa do 22. dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 4,1-2.6-8; Tiago 1,17-18.21b-22.27; Marcos 7,1-8.14-15.21-23.

 

            Na década de 80-90, nossa Igreja viveu um conflito interno, como se estivesse dividida em dois blocos: um, conservador; o outro, progressista. O conservador tinha como preocupação o cuidado interno com as coisas da Igreja: a reta liturgia, a reta doutrina, a reta moral e o cuidado com a alma das pessoas. O progressista tinha como preocupação o cuidado com o externo, com a situação das pessoas, sobretudo aquelas que eram atingidas pelas injustiças sociais. Neste sentido, eles entendiam que a Igreja devia sair de si e envolver-se com o mundo, que necessita ser salvo.

            Passaram-se trinta anos e esse conflito reacendeu, despertado pela polarização política da eleição de 2018 no Brasil, entre direita e esquerda. Assim como na sociedade brasileira, nossa Igreja encontra-se ferida por uma divisão entre católicos conservadores, que desejam uma Igreja voltada unicamente para o espiritual, e católicos progressistas, que desejam uma Igreja voltada para o social, para o cuidado com a vida humana. Diante desse conflito, o bom senso nos aconselha a evitar os extremos. Além disso, o nosso olhar deve ser posto em Jesus. Ele é o nosso modelo tanto de espiritualidade quanto de ação pastoral. 

            Jesus foi conservador em alguns aspectos e progressista em outros. Quando se tratava de proteger a essência da lei de Deus, Jesus foi conservador, como se dissesse: “A verdade é inegociável! A Escritura não pode ser anulada! Meu Pai não está preocupado em agradar as pessoas, mas em libertá-las e salvá-las!” Porém, Jesus não foi nada conservador ao denunciar a hipocrisia dos fariseus, homens religiosos que se tornaram rígidos na aplicação da Lei de Deus, não considerando a realidade da vida das pessoas, uma realidade que exigia uma interpretação “atualizada” da Lei.

            A realidade em que vivemos muda constantemente e essa mudança causa insegurança nas pessoas. Todos os dias, o mundo nos apresenta situações novas que questionam a nossa fé e os nossos valores cristãos. Diante disso, algumas pessoas escolhem defender-se do mundo, fechando-se numa fé intimista e fundamentalista, uma fé que ataca o mundo ao invés de dialogar com ele, em vista de aproximá-lo do Evangelho. No entanto, quando olhamos para Jesus, ele não teve esse tipo de atitude. Pelo contrário, Jesus sempre se deixou afetar pela realidade à sua volta. Além disso, ele foi muito mais duro com a religião do que com o mundo! Suas críticas eram muito mais severas para com os homens da religião do que para com os homens do mundo. Por qual motivo? Porque a religião havia se distanciado do drama da vida das pessoas e se fechado em si mesma, privilegiando um pequeno grupo que se considerava puro, fiel, conservador, não contaminado pelo mundo – o grupo dos fariseus.

              O Papa Francisco nos ajuda entender o que Jesus quer de nós, sua Igreja, neste mundo cheio de situações contrárias ao Evangelho: “Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada... Jesus espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente” (Amoris Laetitia, 308).

            Seria muito mais fácil para nós, cristãos, não termos que lidar com casais em segunda ou mais uniões; com pessoas homossexuais, bissexuais ou transexuais; com casais homoafetivos; com crianças abusadas sexualmente; com jovens adoecidos mentalmente; com tanta gente passando fome; com crianças e adolescentes desorientados e adoecidos pelo vício na Internet; com pessoas exploradas no seu trabalho ou envolvidas nas drogas; com um meio ambiente agredido e que, por sua vez, nos agride etc. No entanto, é exatamente a partir dessas situações todas que o Espírito Santo está gritando à Igreja!

            O Concílio Vaticano II foi um momento ímpar em nossa Igreja, quando os Papas São João XXIII e São Paulo VI perceberam a grande necessidade de abrir as portas e janelas da nossa Igreja para que o sopro do Espírito, que faz novas todas as coisas, pudesse entrar nela e renová-la, quer na sua identidade (dimensão interna), quer na sua missão (dimensão externa). Mas hoje, alguns católicos, por pura desinformação, demonizam o Concílio Vaticano II, não se dando conta de que estão rejeitando a renovação que o Espírito Santo quis para a Sua Igreja. Desse modo, nós temos católicos fechados em Movimentos, sufocados em tradições e doutrinas estranhas às atitudes de Jesus, sem permitirem ser questionados pelo Espírito da Verdade, que age também no mundo e não apenas no espaço determinado pelos fariseus do nosso tempo.

            O Evangelho de hoje nos ajuda a responder duas perguntas: O que conservar? O que mudar? Conservar aquilo que nos ensina a Palavra de Deus: “Nada acrescenteis, nada tireis, à palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus que vos prescrevo” (Dt 4,2). Mudar aquilo que é tradição humana, criada numa determinada época para ajudar na evangelização, mas que hoje não responde mais às necessidades pastorais, além de impedir a Igreja de chegar aonde o Espírito Santo está exigindo que ela chegue: às periferias existenciais. Neste sentido, todo o trabalho do Papa Francisco tem sido uma tentativa de colocar na prática aquilo que há 14 anos afirmou o Documento de Aparecida: “é urgente passar de uma pastoral de manutenção (conservação) para uma pastoral decididamente missionária; é igualmente urgente abandonar as estruturas ultrapassadas que não ajudam mais na transmissão da fé” (DAp 365 a 370).  

            A proposta de Jesus a nós é uma revisão do nosso interior. Não basta lutar contra o pecado pessoal; é preciso cuidar daqueles que estão sendo feridos pelo pecado social (cf. Sl 14,2.3.5). Não basta cuidar do espiritual, evitando ser corrompido pelo mundo; também é preciso proteger a vida daqueles que são explorados e marginalizados em nosso mundo (cf. Tg 1,27). Aos conservadores Jesus aconselha a ouvir os apelos do Espírito Santo, que fala com a Igreja a partir das realidades desumanas; aos progressistas Jesus aconselha não perder-se no social, descuidando do seu próprio interior e da sua espiritualidade. Trata-se, portanto, de buscar o equilíbrio e sair dos extremos.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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