quinta-feira, 26 de setembro de 2019

O VIDRO DA JANELA E O VIDRO DO ESPELHO


Missa do 26º. dom. comum. Palavra de Deus: Amós 6,1a.4-7; 1Timóteo 6,11-16; Lucas 16,19-31.

“O que os olhos não veem, o coração não sente”. Tudo aquilo que vemos nos afeta, seja no sentido positivo, seja no sentido negativo. Então, para não sermos afetados, preferimos não ver. Em um mundo onde há muita injustiça e muito sofrimento, é melhor não ver, para não sofrer. Aliás, para nos ajudar a não ver o que se passa à nossa volta, não existe coisa melhor do que o nosso celular: enquanto ficamos com os olhos “grudados” na sua tela, quem sabe ajudados pelo fone de ouvido que nos impede de ouvir o que se passa à nossa volta, estamos “preservados” de sermos atingidos por qualquer situação que esteja acontecendo ao nosso redor.
Eis o grande pecado do nosso tempo e que está contribuindo para a nossa desumanização: a indiferença. Ela é capaz de criar um abismo entre duas pessoas, embora uma estando perto da outra. É o que vemos no Evangelho: do lado de dentro da casa, um homem rico, vestindo roupas finas e elegantes e fazendo festas esplêndidas todos os dias; à sua porta, do lado de fora, um pobre chamado Lázaro, cheio de feridas, sentado no chão, querendo matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. Entre esses dois homens existe um grande abismo; não somente um abismo social, mas um abismo intencional chamado “indiferença”.    
A indiferença faz com que o rico – e cada um de nós – se desumanize: ele está dentro de casa; poucos metros o separa de Lázaro, mas há um abismo entre eles; não há palavras, não acontece nenhuma forma de comunicação entre eles. Estão muito próximos, só os separa uma frágil porta, mas o rico não “vê” o pobre, não lhe interessa sua pobreza, não o olha, não o escuta... Aquele homem rico nunca viu Lázaro como pessoa; ele o considerava menos que um cachorro. O homem rico deixou de ser pessoa humana. Esse abismo de indiferença existe também em muitas casas, muitas famílias, muitos ambientes de trabalho etc.
Atualmente, estamos evitando de mil formas o contato direto com as pessoas que sofrem. Pouco a pouco, vamo-nos fazendo cada vez mais incapazes para perceber a sua aflição. A presença de uma criança mendiga no nosso caminho incomoda-nos. O encontro com um amigo, doente terminal, perturba-nos. Não sabemos o que fazer nem o que dizer. É melhor tomar distância. Voltar quanto antes às nossas ocupações. Não nos deixarmos afetar. Não nos damos conta de que os abismos que a indiferença constrói entre nós e os outros aqui na terra são transpostos para o céu, mas numa ordem invertida: enquanto Lázaro é consolado no seio de Abraão (imagem simbólica do céu), o rico sofre sede na região dos mortos (imagem simbólica do inferno – cf. Lc 16,23-24).  
Com esta parábola, Jesus quer nos alertar para o fato de que depois da morte não tem como mudar as coisas. O tempo de mudança é o tempo presente, esta vida. Se não decidirmos romper com a distância que a indiferença está criando entre nós e as pessoas que sofrem, essa indiferença nos separará de Deus e nos condenará a uma situação de ausência de alegria e de sentido de vida, chamada de “inferno”. Jesus nos convida a abrir a porta da nossa sensibilidade e nos deixarmos afetar pelo que acontece à nossa volta. É fato que cresce cada vez mais o número de portas que nos impedem ver, portas que nos distanciam da fome, do sofrimento, da pobreza, da nudez que há do outro lado. A grande tragédia está no fato de levantar muros, cercas de proteção, portões eletrônicos, que nos impedem ver os rostos dos outros, que nos isolam dos outros, que nos fecham sobre nós mesmos como se ninguém mais existisse.
Todos nós precisamos ser curados da doença da indiferença, a qual está nos tornando pessoas desumanas. Deus se fez pessoa humana em seu Filho Jesus. Através d’Ele, Deus se fez pés para encontrar o ser humano ferido, olhos para vê-lo, coração para amá-lo, mão para tocá-lo, palavra para comunicar-lhe vida. Nosso coração, tornado cada vez mais frio e insensível, precisa receber um choque positivo, ser impactado pela realidade que nos cerca. É preciso que a realidade nos doa no coração. É preciso que a realidade nos comova, isto é, que faça com que nos movamos na direção daquele que precisa de nós. Como discípulos de Jesus, a nossa vida não pode ser uma cuidadosa fuga do sofrimento alheio, um desviar-se da dor do outro. Pelo contrário, trata-se de sermos uma ponte de solidariedade estendida sobre o abismo da indiferença.
Ao encerrar esta homilia, lembro uma parábola oriental... Conta-se que um jovem muito rico foi conversar com um Mestre e lhe pediu um conselho para orientar sua vida. Este o conduziu até a janela e perguntou-lhe: - O que você vê através dos vidros? - Vejo homens que vão e vêm, e um cego pedindo esmolas na rua. Então o Mestre mostrou-lhe um grande espelho e novamente o interrogou: - Olha neste espelho e dize-me agora o que vês. - Vejo-me a mim mesmo. - E já não vê os outros! Repare que a janela e o espelho são ambos feitos da mesma matéria prima, o vidro. Mas no espelho, porque
há uma fina camada de prata colada ao vidro, você não vê nele mais do que a sua própria pessoa. Você deve se comparar a estas duas espécies de vidro. Quando pobre, você via os outros e tinha compaixão por eles. Depois que se cobriu de prata – isto é, tornou-se rico – você vê apenas a si mesmo. Quando você tiver a coragem de arrancar o revestimento de prata que tapa seus olhos, voltará a enxergar os outros e amá-los...  
            Portanto, Jesus nos convida a retirar a fina camada de prata que se colou ao vidro da nossa consciência, modificando assim a nossa atitude de fechamento e de indiferença diante da existência e do sofrimento dos Lázaros de hoje. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi




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