quinta-feira, 30 de maio de 2019

E O PADRE DECIDIU DEIXAR O MINISTÉRIO



            Houve um dia em que você se encantou por alguém, por algum sonho, por um projeto de vida, por uma vocação ou profissão, ou, quem sabe, por Deus, por Jesus, pela causa do Evangelho. Mas, com o passar do tempo, pode ser que inúmeros acontecimentos tenham esfriado seu amor, seu entusiasmo, de modo que o seu encanto, aos poucos, transformou-se em desencanto, e hoje você se pergunta: Vale a pena continuar? Por que continuar? Ainda existe sentido na escolha que eu fiz, na decisão que eu tomei, na resposta que eu dei ao chamado de Deus?  
Algo estranho acontece com a nossa geração: muitos não estão sustentando suas escolhas, suas decisões, seus compromissos. O evangelista João resumiu a vida de Jesus nesta frase: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). No entanto, a muitos de nós cabem essas palavras que Deus dirigiu a Israel por meio do profeta Oseias: “O amor de vocês é como a neblina da manhã, como orvalho que rapidamente evapora” (Os 6,4). Diferente de Jesus, muitos não amam até o fim, mas até que a novidade se transforme em rotina, até que a decepção apareça, até que a cruz comece a pesar.
Tudo o que não cuidamos, perdemos; tudo o que não alimentamos, morre. As coisas mais importantes da nossa vida precisam ser cuidadas e alimentadas diariamente. Quando duas pessoas decidem se casar, precisam assumir o compromisso de alimentar diariamente o relacionamento conjugal. Da mesma forma, quando um padre ou uma irmã religiosa decide abraçar a vida consagrada, precisa alimentar diariamente sua consagração a Deus, a Jesus, à causa do Evangelho, como está escrito: “Irmãos, cuidem cada vez mais de confirmar a vocação e a escolha que Deus fez de vocês. Procedendo assim, vocês jamais tropeçarão” (2Pd 1,10). Assim como muitos casamentos morrem por falta de cuidado, de alimento, assim também pode acontecer com a vocação de um padre ou de uma irmã religiosa.
Embora muitos de nós pensemos que a causa da desistência de padres do ministério seja a exigência do celibato, do não poder casar-se, diversas pesquisas realizadas dentro da Igreja revelam que a causa é outra: a perda de fé, uma perda relacionada diretamente com o descuido (para não dizer abandono) com a vida espiritual, a vida de oração. Como disse Jesus aos cristãos da Igreja de Éfeso: “Você abandonou o seu primeiro amor” (Ap 2,4). E Deus, por sua vez, fez uma denúncia semelhante em relação ao povo de Israel, sua esposa: “Eles me abandonaram, a mim, fonte de água viva, para cavar para si cisternas, cisternas furadas, que não podem contar água” (Jr 2,13).     
Há uma sede dentro de cada um de nós: sede de felicidade, de amor, de sentido. Sempre que descuidamos do nosso relacionamento com Deus, o único que pode nos dar “água viva”, acabamos por improvisar cisternas, ou seja, formas de captar água de uma maneira mais prática, mas essas cisternas não funcionam porque são furadas: a água que às vezes conseguimos pegar vaza pelos vãos dos nossos dedos, e assim continuamos com sede. É por isso que a bebida e a droga não nos preenchem; a pornografia e a masturbação não nos preenchem; as relações sexuais adúlteras e promíscuas não nos preenchem; as comidas, bebidas e festas não nos preenchem; as roupas de marca, os paramentos luxuosos e caros, os altares ricamente ornamentados e as missas celebradas para cultuarem nosso próprio ego não nos preenchem; nem mesmo as reformas nas casas paroquiais e os carros novos que adquirimos nos preenchem. Tudo isso são cisternas furadas. Enquanto isso, nossa vocação murcha, definha, morre aos poucos, seca definitivamente, porque não cultivamos a nossa intimidade com Aquele que é fonte de água viva.
Há muitas outras coisas que precisariam ser abordadas sobre esse assunto do abandono do ministério, mas o espaço aqui não permite. Sendo assim, quero apenas considerar mais uma questão: nossa incapacidade de renúncia, de dizer “não” aos nossos desejos, aos nossos instintos, à nossa “carne”. O mundo no qual vivemos nos ensina que a coisa mais importante é ser feliz, é este “ser feliz” se traduz em deixar-se arrastar cegamente por suas emoções e seus desejos. Esta é uma felicidade profundamente egoísta: se para me sentir feliz eu precisar destruir meu casamento, ou o casamento de uma outra pessoa, ou prejudicar a Igreja da qual eu faço parte ou a qual eu represento, eu o faço sem nenhum sentimento de culpa, sem nenhum arrependimento.
Portanto, queridos irmãos leigos, vocês precisam estar cientes de que alguns de nós padres estamos tão doentes e mundanos quanto alguns de vocês estão. Embora o apóstolo Paulo tenha dito que não devemos nos “conformar com este mundo” (Rm 12,2), alguns de nós, que deveríamos nos portar como “homens de Deus”, decidimos tomar a forma do mundo e nos tornamos “homens mundanos”; melhor dizendo: “padres mundanos”. Enquanto um ou outro dentre nós tem perdido o sentido em ser padre, há alguns que, apesar de ainda se manterem padres, desviaram-se do modelo – Jesus Cristo, o verdadeiro Pastor – e se tornaram “ladrões e assaltantes” (Jo 10,1), e por isso estão precisando ser denunciados, afastados, interditados. E graças a vocês, cristãos leigos que têm amado a Igreja e cuidado dela mais do que alguns de nós, essa purificação está acontecendo.
Quero terminar esta reflexão com essas palavras do Pe. José A. Pagola: “Jesus se oferece como o caminho que podemos percorrer para entrar no mistério de um Deus que é Pai. São muitos hoje os homens e as mulheres que ficaram sem caminhos para Deus. Não são ateus. Nunca recusaram Deus de maneira consciente. Parecem ter abandonado a Igreja porque não encontraram nela um caminho atrativo para buscar com alegria o mistério último da vida que nós crentes chamamos ‘Deus’. A essas pessoas eu quero dizer que Jesus é maior do que a Igreja. Não deveis confundir Cristo com os cristãos (nem muito menos com os padres mundanos). Nem confundir o Evangelho com nossos sermões. Ainda que abandoneis tudo, não deveis ficar sem Jesus. Nele encontrareis o caminho, a verdade e a vida que nós não soubemos mostrar-vos”.

Pe. Paulo Cezar Mazzi

13 comentários:

  1. Excelente reflexão, não devemos nunca nos afastar da "Fonte da Água Viva", pois é Nela que alimentamos e mantemos viva a nossa Fé e nos mantemos firmes nas escolhas que fazemos!!!!

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  2. Obrigada padre Paulo. Gosto
    Muito das suas reflexões, tem me ajudado muito nas minhas celebrações 🙏

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  3. Padres,religiosos(as)ou leigos(as)
    Buscai primeiro o Reino de Deus e a Sua Justiça e tudo mais vos será dado por acréscimo.

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  4. Muito linda sua reflexão Padre Paulo saudades

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  5. Amado colega no Sacerdócio.
    Concordo em gênero, caso e número com sua sabia reflexão. Tudo o que não se cultiva vai esmorrecendo por si mesmo. Com as Vocacoes ocorre o mesmo.
    Por muitos vivi meu ministério sacerdotal mais comum um serviço. Passado esse tempo, ingressei na Família do Encontro Matrimonial Mundial. Nela descobri que o Espirito Santo me concedeu um Ser Sacerdotal que necessita de cuidados para permanece, crescer e se manter exuberante.
    Nessa Família descobri a INTERSACRAMENTALIDADE que é a vivência dos Sacramentos do Sacerdócio e do Matrimônio em íntima comunhão e participação.
    Meu Ser Sacerdotal se enriquece dia a dia.
    Hoje, eu o vivo como um Sacramento, ou seja, fazendo dele uma manifestação do AMOR de Jesus pela Sua Igreja.
    Para tanto busco viver o Relacionamento e o Amor dentro de uma espiritualidade encarnada.

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    1. Caríssimo irmão, fico muito feliz por sua partilha e por saber da redescoberta do sentido da sua vocação. Deus o abençoe! Grande abraço!

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  6. Amado Pe Paulo! Oportuna e necessária reflexão, mas me permita acrescentar um detalhe: a nossa "incapacidade" de dizer não à carne é fato que já o Apóstolo Paulo dizia claramente e antes dele o próprio Jesus. Diria que cabe essa ressalva: somos incapazes, sim, de, sozinhos, resistir aos desejos da carne e isto deve nos motivar a crescer no relacionamento autêntico e verdadeiro com Jesus e com todos os demais. Com Ele tudo é possível, "até a castidade!". "Plagiando" Viktor Frankl, torna-se sempre mais fundamental ter presente o sentido de tudo que buscamos, escolhemos e fazemos. E para quem busca ajuda na Psicologia recomenda-se vivamente buscar a Logoterapia de Frankl.

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    1. Caro irmão, muito obrigado por suas observações. Gosto muito de psicologia e, graças a Deus, aqui no Seminário estamos tendo a presença semanal de psicólogos da Logoterapia. Deus o abençõe no seu trabalho!

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  7. Para conhecer a Logoterapia: "Em busca de sentido", Viktor Frankl, Ed Vozes. Com certeza indiquei para mais de 300 pessoas e invariavelmente, quem leu emprestou e também deu outros livros de presente.

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  8. Pe. Paulo,

    Seu texto é profundo e questionador. Obrigado pela postagem.
    De fato, quando se perde o sentido e o "primeiro amor" tudo vai se tornando vazio na vida sacerdotal. Entendo que em meio aos muitos afazeres da vida sacerdotal é necessário o cultivo da vida espiritual que nos sutenta.
    Abraços.
    Pe. Vânis

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  9. Caro Pe. Vânis, eis o nosso grande desafio: no meio de tantas "urgências" verdadeiras ou aparentes, manter o foco no essencial. Muito obrigado por sua partilha. Deus o abençoe!

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