Missa da Vigília Pascal.
Palavra de Deus: Gênesis 1,1.26-31; Êxodo 14,15–15,1; Isaías 55,1-11; Romanos
6,3-11; Marcos 16,1-7.
Numa época em que Nabucodonosor, rei da Babilônia, havia
destruído praticamente tudo em Jerusalém, levando prisioneiros para a Babilônia
os hebreus que sobreviveram à guerra; numa época em que esses sobreviventes
diziam: “Os nossos ossos estão secos, a nossa esperança está desfeita. Para nós
tudo está acabado” (Ez 37,11), Deus revelou a um homem, por meio do seu
Espírito, qual era o seu projeto original para a humanidade. Assim nasceu o
livro das origens, o Gênesis, livro que se abre com a criação do ser humano,
descrevendo-o como imagem e semelhança de Deus, diferenciado na sua sexualidade
como homem e mulher, dotado da capacidade de submeter a terra e dominá-la – no
sentido de cuidar dela –, um ser humano cujas mãos carregam em si a benção da
fecundidade. Mas, algo deu errado. Como disse muito bem o Legião Urbana na
música “Índios”, “nos deram espelhos, e vimos um mundo doente”. O ser humano
fabricou “espelhos”, através dos quais passou a ver a si mesmo, a Deus, ao
próximo e à natureza de maneira distorcida. Ele se deixou submeter e dominar
por seus instintos, por suas paixões, por sua ganância, pela tecnologia e pelo
consumismo. Consequentemente, tornou-se uma pessoa estéril, vazia, superficial,
colorida por fora e cinza por dentro. E ainda que esse cinza possa ter
cinquenta tons, é sempre cinza.
Pareceria que a leitura do Gênesis só serviria para nos
deixar com saudade de uma realidade que nunca vivemos e nunca iremos viver... Mas
“o desígnio do Senhor permanece para sempre” (Sl 33,11). O próprio Jesus
afirmou que todas as coisas que existem serão renovadas, no sentido de
recuperarem a sua verdade original (cf. Mt 19,28). Além disso, o próprio Deus
declara, no livro do Apocalipse: “Eis que eu faço novas todas as coisas” (Ap
21,5). Seja no sentido particular, seja no sentido social ou mesmo global, nós
podemos estar na mesma situação de desolação em que o autor do Gênesis se
encontrava, na Babilônia. O fato é que Deus quer abrir nossos olhos, nossos
ouvidos e nosso coração, para recobrarmos a consciência do seu desígnio para a
humanidade: “Sim, eu conheço os desígnios que formei a vosso respeito...,
desígnios de paz e não de desgraça, para vos dar um futuro e uma esperança” (Jr
29,11).
Mas como enxergar um futuro e uma esperança, quando nos
encontramos como os hebreus na noite da páscoa, tendo atrás de nós um exército
inimigo que avança cada vez mais e à nossa frente um mar impossível de ser
atravessado? De fato, segundo o Apocalipse, o mar representa o mal que ameaça
engolir a todos no mundo em que vivemos. Quando Moisés se viu sem saída, Deus
lhe ordenou: “Estende o braço sobre o mar e divide-o”... ‘Moisés estendeu a mão
sobre o mar, e durante toda a noite o Senhor fez soprar um vento leste muito
forte; e as águas se dividiram’ (Ex 14,21). O que deve ficar claro para nós
nesta noite é o que sempre foi claro para os hebreus: quem faz é Deus. A obra
da salvação é d’Ele e não nossa. É Ele quem faz sair, faz entrar, faz caminhar,
faz passar. Só existe Páscoa (passagem) porque o Senhor abre uma passagem onde
ela não existe, e nos faz passar ali. Mas também é preciso que se diga que só
existe passagem porque nós decidimos confiar no Senhor e passar. De que
adiantaria Deus abrir o mar em dois, se nós insistíssemos em ficar na margem de
cá, sem fazer a travessia tão necessária para a vida nova que o Senhor quer
para nós?
De fato, ao
narrar a passagem pelo Mar Vermelho, o autor do Êxodo insiste na palavra “mão”.
Durante toda aquela noite, a mão de Moisés e a mão do Senhor trabalharam juntas
(cf. Ex 14,21.26.27.28). E este foi o resultado, ao amanhecer: “Naquele dia, o
Senhor livrou Israel da mão dos egípcios, e Israel viu os egípcios mortos nas
praias do mar e a mão poderosa do Senhor agir contra eles” (Ex 14,30-31). Somente
quando nossas mãos se unem às mãos do Senhor e trabalham juntas na mesma
direção dos seus desígnios é que conseguimos nos livrar das mãos do mal que
hoje nos persegue e nos ameaça de inúmeras formas.
Contudo, ao ouvir a narrativa do Êxodo,
podemos questionar Deus como o salmista questionou: “O Senhor não nos dará mais
o seu favor?... Deus esqueceu-se de ter piedade?... Eu confesso que é esta a
minha dor: a mão de Deus não é a mesma; está mudada!” (Sl 77,8.10.11). Por que
não vemos hoje a mão de Deus agindo com tanta “eficácia” em nossa história e na
história da humanidade? O profeta Isaías nos oferece uma resposta para essa
pergunta: “Não, a mão do Senhor não é muito curta para salvar... Antes, foram
os vossos pecados que criaram um abismo entre vós e Deus... As vossas mãos
estão manchadas de sangue... vossos lábios falam mentiras e vossa língua
profere maldade” (Is 59,1-3). É Deus que pouco se importa com a humanidade hoje
em dia, ou é a humanidade que teima em se manter distante do alcance da mão de
Deus?
Ainda que
muitos insistam em tentar viver não orientados nem protegidos pela mão do
Senhor, Ele faz esse convite indistintamente a todo ser humano: “Todos vós que
estais com sede, vinde às águas; vós que não tendes dinheiro, apressai-vos,
vinde e comei, vinde comprar sem dinheiro” (Is 55,1). A graça é de graça: para
recebê-la, basta ter sede, basta ter fome; não é preciso dinheiro, não é
preciso mérito, não é preciso ter uma vida irrepreensível. No entanto, é
preciso se dispor a buscar o Senhor todos os dias: “Buscai o Senhor, enquanto
pode ser achado; invocai-o, enquanto ele está perto” (Is 55,6). Além disso, é
preciso compreender que a forma de a mão de Deus agir sobre nós muitas vezes nada
tem a ver com as nossas expectativas: “Meus pensamentos não são como os vossos
pensamentos, e vossos caminhos não são como os meus caminhos” (Is 55,8). Mesmo
não compreendendo a maneira de Deus agir em nosso favor ou em favor da
humanidade, é importante confiar na sua palavra, pois Ele garante: “... a
palavra que sair de minha boca: não voltará para mim vazia; antes, realizará
tudo que for de minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi, ao enviá-la”
(Is 55,11).
Que efeito a
palavra de Deus quer produzir em nós, sobretudo nesta noite? Justamente o
efeito da passagem da morte para a vida, pois esta é a verdadeira Páscoa, a
Páscoa do Novo Testamento, a Páscoa de nosso Senhor Jesus, da qual participamos
por meio do nosso batismo, o sacramento que nos identificou com Jesus Cristo na
sua morte para que possamos ser identificados com ele na sua ressurreição (cf.
Rm 6,5). Viver segundo o batismo que recebemos, cujas promessas renovaremos
também nesta noite, significa “crucificar o nosso velho homem”, no sentido de
nos esforçar a cada dia para morrer para o nosso pecado e procurar viver para
Deus (cf. Rm 6,6.11), nos deixando conduzir pelo seu Espírito (cf. Rm 8,14), o
qual é a garantia da nossa própria ressurreição (cf. Rm 8,11; Ef 1,13-14; 4,30).
Diante da
paixão, morte e sepultamento de nosso Senhor, que celebramos ontem, nossas
mãos, impotentes para mudar tantas situações, só se sentem capazes de trazer
para Jesus perfumes para ungir o seu corpo, como Maria Madalena, Maria, a mãe
de Tiago, e Salomé fizeram no primeiro dia da semana, antes de nascer o sol
(cf. Mc 16,1-2). Assim como elas, nos sentimos incapazes de rolar a pedra da
entrada do túmulo (cf. Mc 16,3-4), pedra que simboliza a incapacidade das
nossas mãos em abrir, no meio da morte, uma passagem para a vida. Mas essa
pedra já foi retirada pela mão de Deus. A mesma mão, que ajudou Moisés a
dividir o mar em dois, é a mão que move Jesus para fora do túmulo, para fora da
morte. É essa mão que hoje nos acompanha e nos conduz para a Galileia, para o
encontro com o Cristo ressuscitado, que vai à nossa frente, nos ajudando a
abrir novas passagens, até que tenhamos acesso à plena vida que Deus quer para
todo ser humano.
É verdade
que ‘ainda é noite’; a luz da ressurreição ainda não chegou a todos os
corações. Justamente por isso, o Evangelho nos confia a missão de sermos ‘sentinelas
da Manhã’, proclamando que Jesus ressuscitou, irradiando por meio de nossas
atitudes a alegria do Evangelho. Se o mal cheiro da morte ainda se faz sentir
em tantos ambientes, precisamos levar em nossas mãos o perfume da ressurreição,
o bom odor de Cristo, a certeza de que tudo está destinado à ressurreição; tudo
está destinado a ser restaurado em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado (cf.
Ef 1,10; Cl 1,19-20). Enfim, seguindo o conselho da primeira carta de São
Pedro, que possamos nos humilhar debaixo
da poderosa mão de Deus, para que no momento oportuno Ele nos exalte, nos
levante, nos ressuscite. Coloquemos n’Ele toda a nossa preocupação, sabendo que
é Ele que cuida de nós! (cf. 1Pd 5,6-7).
Para a sua
oração pessoal:
A MÃO DE DEUS (Pe. Fábio de Melo)
Pe. Paulo Cezar Mazzi
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