quinta-feira, 15 de agosto de 2019

TUDO O QUE DEUS RECOLHE NA TERRA, TRANSFORMA NO CÉU

Missa da Assunção de Nossa Senhora. Palavra de Deus: Apocalipse 11,19a; 12,1-6a.10ab; 1Coríntios 15,20-26.28; Lucas 1,39-56

A liturgia de hoje nos coloca diante do dogma da Assunção de Nossa Senhora. Dogma não é uma afirmação bíblica, mas uma afirmação da Igreja com base em princípios bíblicos. Ao afirmar o dogma da Assunção de Nossa Senhora, nossa Igreja crê que Maria foi elevada em corpo e alma ao céu após a sua morte, não tendo o seu corpo sido corrompido, como acontece com o nosso, após a morte. Essa declaração não se baseia nos méritos de Maria, mas no fato de o corpo dela ter sido o “sacrário” que gerou Jesus Cristo para o mundo, um corpo que possibilitou a Encarnação. Ora, aquilo que gera o Sagrado torna-se também sagrado, e o sagrado pertence a Deus e não à terra.
            Enquanto “ascensão” significa subir por conta própria, pelos seus esforços ou méritos, “assunção” significa ser elevado, ser levantado. Portanto, “assunção” aponta para a ação de Deus em nossa vida, para a Sua intervenção na história de todo aquele que n’Ele crê. A nossa fé nunca é um subir até Deus pelo nosso próprio esforço, mas é sempre um proclamar a intervenção desse mesmo Deus em nossa história, que desce até nós e nos eleva até Ele; que “derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes” (Lc 1,52). Maria, aquela que disse “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38), nos convida a nos deixarmos elevar e conduzir até Deus pela força da Sua graça.  
            A elevação de Maria em corpo e alma ao céu nos ajuda a repensar a relação com o nosso corpo. Enquanto 820 milhões de pessoas passam fome no mundo atual, segundo dados da Onu, inúmeras outras recorrem a cirurgias plásticas por estarem insatisfeitas com o próprio corpo. A estética tomou o lugar da ética: as pessoas se sacrificam para modificar alguns traços do corpo, mas não se dispõem a modificar alguns aspectos do seu caráter e do seu comportamento. Ora, lembrar que o nosso corpo um dia será decomposto na terra pode nos ajudar a sermos mais humildes, a rever os nossos valores e a nos convencer de que aquilo que nos eleva junto a Deus não é a nossa estética, mas a ética de um coração que se preocupa com quem sofre e que faz algo de concreto para amenizar esse sofrimento. “Quando descobrimos que absolutamente nada é definitivo, inclusive a vida, compreendemos a inutilidade do orgulho, a tolice das disputas, a estupidez da ganância e a incoerência das tolas mágoas” (Alexsandra Zulpo).
Olhemos para a cena de Apocalipse 12. O dragão que pára diante da mulher, que está para dar à luz, pronto para devorar o seu Filho logo que nasça (cf. Ap 12,4) é uma realidade concreta em nossos dias, pois a vida hoje é ameaçada de muitas formas. Mulheres que defendem o direito ao aborto, por exemplo, têm como lema “meu corpo, minhas regras”, um lema que ignora a verdade de que o filho que está sendo gerado não é um órgão que pertence ao corpo da mulher, mas uma vida, uma pessoa, que depende absolutamente da mãe para viver. Outro problema gravíssimo é o feminicídio. A cada duas horas, uma mulher é morta no Brasil (Em 2018, 1.173 mulheres foram assassinadas por seus “companheiros” em nosso País). Esse “dragão” do feminicídio nasce a partir da incapacidade de muitos homens em lidar com a perda, com o fim do relacionamento, com o “não”. Nesta semana, tivemos em nosso país uma nova manifestação desse dragão por meio da lei da liberdade econômica, a qual “abre espaço para que a folga semanal do trabalhador seja em outros dias da semana, desde que o empregado folgue um em cada quatro domingos” (Agência Brasil EBC), o que acaba levando à fragilização do convívio entre pais e filhos ao menos uma vez por semana.
Se nós, cristãos, não queremos deixar de lutar pela vida e pela esperança, precisamos nos lembrar do que disse Santa Madre Teresa de Calcutá: “Aquilo que você levou anos para construir pode ser destruído de uma hora para outra. Construa assim mesmo... O bem que você faz pode não ser o suficiente. Faça o bem assim mesmo”. Nós não podemos nos resignar diante dos dragões do nosso tempo. Por mais que tenhamos a sensação de que muitas das nossas lutas e dos nossos esforços para defender a vida e a esperança em nosso mundo pareçam não sobreviver ao dragão do mal, o Apocalipse revela que Deus combate a nosso favor: Ele recolhe o Filho junto de Si e leva a Mulher para um lugar seguro, onde esteja a salvo do dragão. Esta cena não se refere apenas a Maria, que gera Jesus, o qual é resgatado da morte pelo Pai por meio da ressurreição e levado para junto de Si no momento da Ascensão. Esta cena se refere a cada um de nós: aquilo que geramos com tanto custo, em meio a tantas lágrimas, e que está ameaçado pelo dragão da violência, da doença, do sofrimento, do absurdo e da morte, será recolhido por Deus. E tudo aquilo que Deus recolhe Ele também transforma.
Assim como o Pai recolheu o corpo de seu Filho morto na cruz e o transformou num corpo glorificado na ressurreição, assim como Ele recolheu Maria em corpo e alma ao céu, segundo o dogma da Assunção que celebramos hoje, assim Deus recolherá as nossas lutas, os nossos sonhos, as nossas lágrimas, e os transformará numa vida nova, como diz a Escritura: “Cristo ressuscitou dos mortos como primícias (primeiros frutos de uma colheita) dos que morreram... Em Cristo todos reviverão” (1Cor 15,20.22). É por isso que o salmista proclama: “Já contaste os meus passos errantes, recolhe minhas lágrimas em teu odre!” (Sl 56,9), o que significa que cada lágrima do justo terá sua recompensa no céu (cf. Is 25,8; Ap 7,17).  
            Não há dúvida de que a luta contra o Dragão do mal é sentida de forma mais intensa na vida de pessoas que procuram andar no caminho de Deus e manter a fé em Jesus Cristo. Contudo, devemos confiar na vitória final de Cristo: todos os inimigos da vida e da esperança serão postos debaixo dos pés de Jesus, sendo que “o último inimigo a ser destruído é a morte. Com efeito, Deus pôs tudo debaixo de seus pés” (1Cor 15,26-27). Que à semelhança de Nossa Senhora cada um de nós, no seio da sociedade humana, possa proclamar a força do braço do nosso Deus, que recolhe o suor da nossa luta, do nosso esforço, e as lágrimas da nossa dor para tornar o mundo melhor, e transforma tudo isso segundo o Seu desígnio de vida e de salvação para a humanidade.
            Neste terceiro domingo de agosto, mês vocacional, celebramos o dia do(a)s Religioso(a)s, das pessoas que não se casaram por causa do Reino dos céus (cf. Mt 19,12), homens e mulheres cuja afetividade não foi direcionada para alguém em particular, mas para amar a todos, especialmente os que não se sentem ou de fato não são amados em nosso mundo. Assim como Maria, elevada em corpo e alma aos céus, o(a)s religioso(a)s são um sinal a nos lembrar que o desejo último de cada um de nós é nos unir definitivamente a Deus na sua Glória, como Maria está. 

Pe. Paulo Cezar Mazzi


quinta-feira, 8 de agosto de 2019

A IMPORTÂNCIA DA ESPERANÇA

Missa do 19º. dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 18,6-9; Hebreus 11,1-2.8-19; Lucas 12,32-48.

            Prestemos atenção a esses textos bíblicos: “A noite da libertação... foi esperada por teu povo, como salvação para os justos e como perdição para os inimigos” (Sb 18,6.7). “A fé é um modo de já possuir o que ainda se espera” (Hb 11,1). “Foi pela fé que Abraão... residiu como estrangeiro na terra prometida, morando em tendas... pois esperava a cidade alicerçada que tem Deus mesmo por arquiteto e construtor” (Hb 11,8.9.10). “Sejam como pessoas que estão esperando seu senhor voltar (...), para lhe abrirem, imediatamente, a porta, logo que ele chegar e bater... Porque o Filho do Homem vai chegar na hora em que vocês menos o esperarem” (Lc 12,36.40).
            Todos eles têm uma palavra em comum, ou melhor, uma atitude em comum: a atitude da espera, a atitude de quem vive a partir de uma força interior chamada “esperança”. O contrário da esperança é o desespero, é a atitude de uma pessoa que desistiu de esperar; ela não espera por nenhuma mudança, por nenhuma transformação; sua vida se fechou no problema ou no sofrimento que ela está enfrentando e ela não crê nem espera pela possibilidade de qualquer saída daquela situação. Quem desiste de esperar, desiste de viver, desiste de sonhar, de desejar, de se abrir para algo novo que possa surgir em sua vida.
            A Palavra de Deus quer hoje despertar a nossa esperança, quer abrir os nossos olhos para que possamos nos dar conta de que a vida não é só aquilo que estamos vivenciando neste momento. Assim como nos campos de concentração só não enlouqueciam e não se suicidavam as pessoas que tinham esperança de sobreviver a todo aquele sofrimento, porque esperavam reencontrar alguém que estava fora dali, assim a esperança é absolutamente necessária para não morrermos antes da hora, para não nos entregarmos ao pessimismo ou ao desespero, diante dos sofrimentos ou das dificuldades que estamos enfrentando. Somente quem tem esperança no amanhã suporta sofrer hoje; somente quem tem esperança de mudar suporta o sofrimento de enfrentar seus fantasmas numa terapia; somente quem tem esperança de cura suporta o sofrimento de um tratamento médico. Assim como Abraão, somente quem espera pela cidade futura, construída por Deus, suporta morar em tendas neste mundo, isto é, suporta a insegurança e a transitoriedade de tudo aquilo que é terreno.
            Mas a esperança nunca é uma espera passiva. Nada muda por si mesmo; as coisas começam a mudar quando nós, movidos pela esperança, nos desacomodamos, nos mexemos e nos dispomos a enfrentar o que precisa ser enfrentado, para que a nossa esperança nos leva aonde desejamos chegar. Neste sentido, o Evangelho é muito claro: o bom servo não espera pelo seu senhor comendo, bebendo e embriagando-se, mas trabalhando corretamente, isto é, fazendo aquilo que lhe compete fazer. Uma pessoa que diz ter esperança em mudar sua vida, mas não toma nenhuma atitude que possibilite tal mudança ou, pior ainda, tem atitudes contrárias à mudança que deseja, é uma sabotadora da sua própria esperança; é alguém que nem tem como ser levado a sério.
            Justamente neste dia em que comemoramos o dia dos pais, a carta aos Hebreus nos fala da fé e da esperança de Abraão, uma fé e uma esperança que provocaram nele uma miraculosa transformação: “de um só homem, já marcado pela morte, nasceu a multidão ‘comparável às estrelas do céu e inumerável como a areia das praias do mar’” (Hb 11,12). Abraão não apenas teve fé em Deus, mas também precisou aprender a esperar em Deus; ele esperou 25 anos pelo cumprimento da promessa de ter um filho! “Ele, esperando contra toda esperança (humana), teve fé e assim tornou-se pai de muitos povos” (Rm 4,18). Esperar contra toda esperança humana significa que nossa esperança não se apoia em nossa inteligência, ou em nossa força, ou em nossos recursos, mas em Alguém que é maior do que nós e que pode mudar nossa situação! Portanto, nós, cristãos, não temos esperança em algo, mas em Alguém; nós não esperamos por algum acontecimento, mas por uma Pessoa: esperamos por Jesus.
            Como está o coração do pai? É um coração carregado de esperança ou povoado pelo desespero? Assim como Abraão, o pai é “um homem marcado pela morte”, um homem que tem seus medos e suas fraquezas, seus erros e seus pecados. Sobretudo no mundo de hoje, o pai é um homem fragilizado, agredido pela violência, exposto a situações injustas, seduzido pela corrupção, sugado pelo consumismo etc. Se existem pais que encontraram em Deus seu suporte, seu fundamento, há inúmeros outros que acabaram se escorando na bebida, nas drogas e num estilo de vida destrutivo, de modo a se ausentarem da família e da vida dos filhos. Contudo, a figura do servo, no Evangelho, nos fala da importância do pai como cuidador dos bens do Senhor. Hoje não se pode mais pensar no pai como única força de sustento de uma casa, mas sua presença, sem dúvida, faz muita diferença no seio de uma família e na estrutura emocional dos filhos.    
Que você, pai, à semelhança de Abraão, de disponha a caminhar com Deus, mesmo quando não entende para onde Ele está conduzindo sua vida. Que você aprenda a crer e a esperar sempre em Deus, pois “Quem confiou no Senhor e ficou desiludido? Ou quem perseverou no seu temor e foi abandonado? Ou quem clamou por ele e ele o desprezou?” (Eclo 2,10), pergunta o autor do Eclesiástico. E ainda: “Os que esperam em ti não ficam envergonhados, ficam envergonhados os que negam por um nada a sua fé” (Sl 25,3), declara o salmista. Que Jesus, ao voltar, encontre você, pai, vivendo fielmente sua vocação de cuidador daqueles que a vida lhe confiou. Enfim, que você se deixe cuidar pelo Pai do Céu, que o colocou na terra para ser a própria presença d’Ele junto da sua família e que, apesar das suas limitações humanas, escolheu sua figura de pai para expressar o amor, a proteção e o cuidado d’Ele para com cada ser humano.  

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

PARA ALÉM DA VAIDADE


Missa do 18º. dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiastes 1,2; 2,21-23; Colossenses 3,1-5.9-11; Lucas 12,13-21 
           
Um homem constrói um “império”, se torna rico e famoso, mas quando está no auge da carreira, descobre que tem um câncer e, seis meses depois, está morto. Todo o seu dinheiro, toda a sua riqueza não foi capaz de curar seu câncer e impedir que ele morresse... O mundo moderno está cheio de histórias de pessoas que pareciam inabaláveis, inatingíveis, pessoas que estavam no centro do palco da fama e do sucesso, e que, de uma hora para outra, desapareceram não só desse palco, mas também da face da terra. Elas não existem mais.
Como constata o autor bíblico: “Tudo é vaidade... Um homem que trabalhou com inteligência, competência e sucesso, vê-se obrigado a deixar tudo em herança a outro que em nada colaborou. Também isso é vaidade e grande desgraça” (Ecl 1,2; 2,21). Embora nós vivamos na era da aparência, onde a imagem é tudo, onde a vaidade é fundamental, a Sagrada Escritura nos faz descer das nuvens, colocar os pés no chão e nos dar conta de que construir a vida sobre o frágil alicerce da vaidade é tornar-se uma pessoa sem consistência interna. Nós estamos rodeados de pessoas assim: esteticamente muito belas, fisicamente “saradas”, exibindo músculos e corpos bem delineados, mas totalmente inconsistentes no que diz respeito ao próprio emocional. São pessoas que se quebram diante da menor pancada que levam da vida; são pedras de gelo que derretem rapidamente quando expostas ao calor. Constantemente preocupadas com a aparência, elas não se dão ao trabalho de cuidar da própria essência. Elas “aparentam” ser felizes, mas “toda a sua vida é sofrimento, sua ocupação, um tormento. Nem mesmo de noite repousa o seu coração” (Ecl 2,23).
O Evangelho de hoje nos traz uma cena muito atual: “Alguém, do meio da multidão, disse a Jesus: ‘Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo’” (Lc 12,13). Quantos pais ou avós idosos estão abandonados ou esquecidos dentro da própria casa ou num asilo, sem receberem visitas frequentes dos filhos e dos netos? No entanto, assim que a pessoa falece, esses mesmos filhos e netos começam a disputar a “herança” da pessoa que faleceu, como abutres disputam os restos mortais de um animal... Jesus se recusa a assumir o papel de mediador de conflitos a respeito de herança, mas aproveita para fazer um alerta a todos nós: “Atenção! Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens” (Lc 12,15).
Talvez muitos não se vejam, ou nem mesmo sejam, pessoas gananciosas. No entanto, sabemos perfeitamente o quanto o dinheiro exerce um fascínio sobre todo ser humano. Sobretudo no mundo atual, ter dinheiro significa ter a sobrevivência garantida. Jesus não está questionando nossa necessidade de sobrevivência; o que ele está questionando é o fato de entrarmos na dinâmica de que “o que é demais nunca é o bastante”. E aí, tudo é sacrificado em vista de ganharmos mais dinheiro: família, casamento, filhos, saúde, espiritualidade etc. Nós nos tornamos como o homem da parábola contada por Jesus: aumentamos cada vez mais nossos celeiros, para guardar tudo o que podemos comprar com nosso dinheiro, e não nos damos conta de que, quando menos esperarmos, seremos recolhidos deste mundo e nada levaremos conosco. Aliás, a única coisa que poderemos “levar” conosco é aquilo que fizemos para ajudar os outros, para tornar o mundo menos desigual, menos injusto, menos desumano.    
Dois homens não-cristãos entenderam perfeitamente o ensinamento de Jesus no Evangelho de hoje. Um foi Ghandi, quando sabiamente afirmou: “Na terra há o suficiente para satisfazer as necessidades de todos, mas não para satisfazer a ganância de alguns”. Apesar de inúmeros apelos da comunidade científica, alguns governos continuam sendo indiferentes à questão ambiental e permitindo a exploração gananciosa, e não racional, de recursos naturais. Neste sentido, o Brasil tem dados sérios e graves passos para trás, a ponto de que o desmatamento na Amazônia aumentou 88% desde que Bolsonaro assumiu a presidência (Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Dalai Lama, por sua vez, afirmou de maneira brilhante: “O que mais me surpreende é o homem, pois perde a saúde para juntar dinheiro, depois perde o dinheiro para recuperar a saúde. Vive pensando ansiosamente no futuro, de tal forma que acaba por não viver nem o presente, nem o futuro. Vive como se nunca fosse morrer, e morre como se nunca tivesse vivido”. Portanto, se quisermos evitar esse erro, precisamos fazer uma sincera oração ao Senhor, como fez o salmista: “Ensinai-nos a contar os nossos dias, e dai ao nosso coração sabedoria! (...) Saciai-nos de manhã com vosso amor, e exultaremos de alegria todo o dia! Que a bondade do Senhor e nosso Deus repouse sobre nós e nos conduza! Tornai fecundo, ó Senhor, nosso trabalho” (Sl 90,12.14.16-17).
Uma palavra final. Quando eu e os seminaristas de nossa Diocese visitamos a Unidade de Emergência do HC de Ribeirão Preto, em junho deste ano, conhecemos uma enfermeira que trabalha na ala de cuidados paliativos, exercendo o seu “sacerdócio” juntos os pacientes com câncer, em estágio terminal. Dando testemunho do seu trabalho como cristã e católica, ela nos disse que muitas pessoas se preocupam em preparar-se para o futuro, mas se esquecem de se preparar para morrer, sendo que a única coisa que temos como certa no futuro é que um dia iremos morrer. Quando temos a coragem de aceitar a realidade da morte, mudamos nossa maneira de entender a vida e de lidar com os bens materiais; deixamos de nos iludir com toda a vaidade deste mundo e passamos a valorizar aquilo que verdadeiramente importa, porque nos torna mais humanos e nos ajuda a humanizar o nosso mundo.   

Pe. Paulo Cezar Mazzi

PRECISA-SE DE JOVENS QUE DESEJEM SE TORNAR PADRES... COM UM MÍNIMO DE DECÊNCIA E COERÊNCIA



Numa época de corrupção religiosa, onde os filhos do sacerdote Eli “eram homens vagabundos” (1Sm 2,12), que “se deitavam com as mulheres que permaneciam à entrada da tenda da reunião” (1Sm 2,23), Deus chamou Samuel para ser profeta em Israel (cf. 1Sm 3,1-21). Numa época em que muitos pastores de Israel, ao invés de apascentarem o povo que lhes foi confiado, tornaram-se “pastores de si mesmos”, não mais se dedicando em restaurar o vigor das ovelhas abatidas, curar as que estavam doentes e ir em busca das que se extraviaram, além de dominar sobre elas com dureza e violência (cf. Ez 34,2-4), Deus fez uma promessa a Israel: “Eu vos darei pastores segundo meu coração, que vos apascentarão com conhecimento e prudência” (Jr 3,15).
  Numa época em que alguns líderes da nossa Igreja levavam uma vida moral promíscua, distante dos pobres, indiferentes aos sofredores e corrompidos pelo dinheiro, Jesus, na sua imagem enquanto Crucificado, disse ao jovem Francisco, de Assis: “Reconstrua a minha Igreja, que está em ruínas”. Igualmente hoje, numa época em que chegamos ao absurdo de, em algumas paróquias, as ovelhas terem que se defender dos seus próprios pastores, que se comportam em relação a elas como lobos, maltratando-as, provocando divisões, usando sua pseudo autoridade espiritual para ameaçá-las, além de roubarem suas paróquias, Jesus procura por jovens que não tenham sua consciência corrompida, jovens que sejam capazes de compaixão e desejem cuidar de Suas ovelhas, tanto daquelas que não têm pastor, como daquelas que estão sendo machucadas emocional e espiritualmente por maus pastores (cf. Mt 9,36-38).
Numa época como a nossa, em que alguns padres e bispos têm como objetivo principal seu próprio bem estar, gastando tempo e dinheiro com a ornamentação das suas igrejas e com seus paramentos, enquanto se mantêm distantes dos pobres, dos desempregados e dos que sofrem, Jesus procura por jovens que aceitem o desafio de dedicar sua própria vida como médicos de corpos e de almas; jovens que estendam suas mãos para serem ungidas pelo Espírito Santo e, desse modo, se tornem capazes de tocar nas feridas das pessoas; jovens que, a exemplo do próprio Jesus, sejam homens misericordiosos, cujo coração é sempre guiado pela miséria dos que sofrem.
Numa época como a nossa, onde não poucos “ministros de Deus” não têm a coragem de enfrentar e resolver seus próprios conflitos sexuais e, com isso, acabam por envolver pessoas nas suas próprias feridas, causando traumas, provocando escândalos, levando à perda da fé e manchando a imagem da nossa Igreja, Jesus procura por jovens que aceitem o desafio de fazer um caminho sofrido, mas libertador, de autoconhecimento, ordenando seus afetos e fazendo da sua própria sexualidade uma oferenda ao Pai a serviço da salvação da humanidade, como o próprio Jesus fez, ao dizer: “Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, formaste-me um corpo... Por isso eu digo: Eis-me aqui... Eu vim, ó Deus, para fazer tua vontade” (Hb 10,5.7).
            Enfim, numa época em que bispos da nossa Igreja agem como muitos pais hoje em dia que, por medo de perderem o afeto de seus filhos, não os corrigem com firmeza, mesmo sabendo dos estragos que provocam em si mesmos e nos outros; numa época em que bispos não têm pulso firme para interditar aqueles que precisam ser interditados (cf. Mt 18,15-17), uma vez que estão destruindo a fé de muitos paroquianos; numa época em que bispos, por serem fracos, acabam por alimentar nos maus padres a sensação de impunidade – bispos que agem como médicos que, por terem pena de seus pacientes com câncer, lhes receitam “melhoral infantil” ao invés de quimioterapia –, Jesus procura por jovens que aceitem se tornar verdadeiros profetas, homens de pulso firme, a exemplo de Samuel, a exemplo de Paulo de Tarso, a exemplo de Francisco de Assis, a exemplo do Papa Francisco, para devolverem à Igreja credibilidade e decência.
           
Pe. Paulo Cezar Mazzi       

quinta-feira, 25 de julho de 2019

POR QUE EU PRECISO ORAR?


Missa do 17º. dom. comum. Palavra de Deus: Gênesis 18,20-32; Colossenses 2,12-14; Lucas 11,1-13.

“Jesus estava rezando num certo lugar. Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: ‘Senhor, ensina-nos a rezar’” (Lc 11,1). Dos quatro evangelistas, São Lucas é o que mais destaca o quanto a oração era essencial na vida de Jesus: no seu batismo (3,21), na escolha dos doze apóstolos (6,12), no questionamento a respeito de si mesmo (9,18), depois da profecia a respeito da sua morte de cruz (9,28), no retorno dos discípulos da missão (10,21ss.), ao ensinar o Pai nosso (11,1ss.), na sua agonia no monte das Oliveiras (22,41ss.), ao ser crucificado (23,34) e, finalmente, ao morrer (23,46). Além disso, Jesus fez questão da frisar a importância de que a nossa oração seja persistente (18,1-8) e humilde (18,9-14).
Mas, por que Jesus se colocava em oração com tanta frequência? Primeiro, por amor ao Pai. O Filho ama o Pai e relaciona-se com o Pai por meio da oração. Santa Teresa de Jesus afirmava que “orar é estar a sós muitas vezes com quem sabemos que nos ama”. A oração sempre pede que você se coloque sozinho(a) na presença de Deus. Além disso, orar é estar a sós “muitas vezes”, e não apenas “de vez em quando”, ou somente quando “dá tempo”, ou, ainda, somente “quando algo dói” em você. Por fim, orar significa você se colocar na presença d’Aquele que te ama incondicionalmente. É uma presença que você não vê e muitas vezes não sente; basta somente que você creia que Ele está presente, pois “aquele que se aproxima de Deus (por meio da oração) deve crer que ele existe e que recompensa os que o procuram” (Hb 11,6).    
Diferente de Jesus, quando nós oramos o fazemos muito mais movidos por nossas necessidades do que por amor ao Pai. Em todo caso, aqui também se revela a importância da oração em nossa vida: o filho vive daquilo que recebe do Pai. Nós precisamos da oração tanto quanto precisamos de ar pra respirar e viver ou tanto quanto o barro necessita do Oleiro para tornar-se alguma coisa. Na verdade, existe um espaço dentro de nós que nada preenche: nem a comida, nem a bebida, nem o sexo, nem o dinheiro, nem qualquer coisa que possamos comprar ou consumir. Esse espaço é o lugar de Deus em nós. Orar é reconhecer que somente quando Deus ocupa o Seu espaço dentro de nós é que temos paz e sentimos uma alegria que nenhum acontecimento externo pode retirar de dentro de nós.
A oração de Jesus é a oração do Pai nosso. Nela não nos dirigimos a uma energia ou a um deus forte e poderoso, mas à pessoa do Pai. Assim como Jesus, nós vivemos do Pai, vivemos da Sua força, do Seu amor, da Sua graça e daquilo que Ele nos dá. Na oração, o filho busca a força do Pai para olhar a vida nos olhos: “Naquele dia em que gritei, vós me escutastes e aumentastes o vigor da minha alma” (Sl 138,3). Na oração, o filho busca a orientação do Pai para a sua vida: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração! Examina-me, e conhece minhas preocupações! Vê se não ando por um caminho de morte e conduze-me pelo caminho da Vida” (Sl 139,23-24).
Jesus nos ensina a pedir: “santificado seja o teu nome”. Nosso comportamento de verdadeiros filhos de Deus pode ajudar com que todas as pessoas que se sentem orfãs na face da terra reconheçam a Deus como Pai; possam chamá-lo de “Pai”, na certeza de que este Pai ama cada uma delas, olha por elas e quer orientá-las no caminho da vida. Além disso, pedimos: “Venha o teu Reino”. O “Reino” é o domínio do Pai sobre todos os Seus filhos, fazendo com que desapareça da face da terra toda injustiça, violência e maldade, e possam reinar a paz, a fraternidade e a alegria sobre toda a humanidade. O “Reino” não é um lugar, mas uma situação onde não haverá mais lágrimas, dor, morte ou luto.
“Dá-nos a cada dia o pão de que precisamos” (Lc 11,3). Jesus nos ensina a pedir o “pão” de “cada dia” somente, e não o pão “da semana”, “do mês” ou “do ano”, porque aquele que ama quer se encontrar com o Amado a cada dia. Isto significa que a nossa oração ao Pai deve acontecer diariamente. Além disso, pedimos ao Pai o pão “de que precisamos”, e não o pão que vai satisfazer nossa ganância ou o nosso capricho. O verdadeiro pai não dá tudo o que o filho pede, mas unicamente o que ele “precisa” para crescer, amadurecer, ser bom e justo. Portanto, devemos ter maturidade espiritual suficiente para aceitar e confiar quando Deus diz “não” ou “ainda não” ao que Lhe pedimos.
Uma vez que somos pessoas que ofendem os outros e são igualmente ofendidas por alguém, Jesus nos fala da importância de pedir diariamente ao Pai o Seu perdão e de nos comprometer diante d’Ele a perdoar a quem nos ofendeu. Por fim, pedimos que o Pai “não nos deixe cair em tentação”. Ao longo da vida, sempre seremos tentados a abandonar a orientação do Pai e seguir a vida segundo a nossa cabeça, ou então, tentados a resolver as coisas do nosso modo, e não esperar pela justiça do Pai, ou ainda, tentados a desanimar e abandonar o ideal que o Pai nos chama a alcançar, que é a nossa configuração ao Seu Filho Jesus.
Ao encerrar a oração do Pai nosso Jesus tem a preocupação de frisar a importância de a nossa oração ser persistente. A leitura do Gênesis já nos falava da persistência de oração de Abraão (cf. Gn 18,27.29.30.31). Eis as palavras de Jesus, para a nossa vida de oração: “Pedi e recebereis; procurai e encontrareis; batei e vos será aberto. Pois quem pede, recebe; quem procura, encontra; e, para quem bate, se abrirá” (Lc 11,9-10). Quem não persevera na oração nada receberá de Deus. Quem não procura por Deus jamais O encontrará. Quem não bate com insistência à porta do coração de Deus não entrará numa experiência profunda de encontro com Ele e com a Sua graça. Persistir ou insistir com Deus na oração tem a ver com fé. Uma fé que não suporta esperar, uma fé que não se dá ao trabalho de procurar, uma fé que não se humilha em bater até que a porta seja aberta, não é fé; é manha, capricho, birra, chantagem emocional...  
Enfim, o que pedir na oração? Qual é a “coisa” mais necessária para a nossa vida de filhos de Deus neste mundo? Segundo São Lucas, nada é mais importante para a nossa vida do que a presença do Espírito Santo junto a nós, dentro de nós. Eis, portanto, o essencial, o mais necessário a ser pedido ao Pai todos os dias: o Espírito Santo. “O Pai do Céu dará o Espírito Santo aos que o pedirem!” (Lc 11,13). Quando o Espírito Santo está em nós, Ele se une ao nosso espírito humano para orar ao Pai e pedir por nós justamente aquilo que Deus quer nos dar (cf. Rm 8,26-27), em vista do Seu desígnio de nos salvar em Seu Filho Jesus Cristo; em vista de completar a obra que Ele começou em cada um de nós, como pede o salmista: “Completai em mim a obra começada; ó Senhor, vossa bondade é para sempre! Eu vos peço: não deixeis inacabada esta obra que fizeram vossas mãos!”. E se você quiser saber quando sua oração é “boa”, isto é, quando ela, de fato, atingiu o objetivo para a sua vida espiritual, lembre-se deste princípio inaciano: sua oração é boa quando você sai dela disposto(a) a fazer a vontade do Pai...

Pe. Paulo Cezar Mazzi  


sexta-feira, 19 de julho de 2019

ESCOLHER NÃO DESCUIDAR DO ESSENCIAL

Missa do 16º. dom. comum. Palavra de Deus: Gênesis 18,1-10; Colossenses 1,24-18; Lucas 10,38-42.

Numa época em que não existia Internet, o sobrinho de um padre foi estudar no exterior. Seja por se encontrar num país onde não conhecia ninguém, seja porque seus estudos lhe provocavam muitos questionamentos a respeito da sua fé, aquele jovem escreveu uma carta ao seu tio padre, pedindo que fosse o seu diretor espiritual, com quem ele pudesse mensalmente partilhar suas dúvidas e orientar-se quanto à sua vida espiritual. Acontece que o seu tio padre era um homem extremamente ocupado, envolvido em muitos trabalhos pastorais. Mas, diante da carta do seu sobrinho, o padre pensou: “Se eu dedicasse meu tempo somente para cuidar das coisas urgentes, não teria tempo para cuidar daquilo que é essencial, e orientar meu sobrinho quanto à vida espiritual é essencial!”
A vida moderna é cheia de “urgências”. Nós somos cobrados 24 horas por dia, seja na vida profissional, seja nos estudos, seja no próprio dia a dia. Embora seja verdade que entre nós existam aquelas pessoas que estão sempre “muito ocupadas em não fazer nada” (2Ts 3,11) – quanto tempo você perde diariamente distraindo-se na Internet? – a maioria das pessoas vive ocupada, atarefada, agitada, com pressa, como Marta. Aliás, como se não bastasse o tanto de coisas que temos para fazer, a própria Internet nos trouxe novas “urgências”: ler notícias, ver fotos, assistir vídeos, responder mensagens etc. Desse modo, ao invés de terminarmos o nosso dia silenciando o coração, revisando em nossa mente como vivemos aquele dia, de que forma Deus falou conosco, se vivemos ou não segundo a vontade d’Ele, ou colocando em Suas mãos aquilo que ficou para ser resolvido no dia seguinte, nós deixamos tudo isso de lado para dar uma última olhada no celular...
            O Evangelho nos coloca duas questões: 1) Quantas coisas que o mundo nos apresenta como “urgências” na verdade não têm nada de urgente, porque não são necessidades verdadeiras, porque verdadeiramente aquilo não nos diz respeito, porque nós não precisamos daquilo para termos paz e sermos felizes? 2) Quantos de nós já não conseguem mais diferenciar aquilo que é urgente daquilo que é essencial? Diante da reclamação de Marta, de que Maria não a estava ajudando nas tarefas de casa, mas sentada aos pés de Jesus para escutar sua Palavra, Jesus respondeu: “Maria escolheu a melhor parte” (Lc 10,42). Eis o segredo para quem não quer se perder nas urgências da vida moderna: escolher cuidar do essencial. E aqui se encontra uma dica para a nossa vida de oração: sentar-se diariamente aos pés do Senhor para ouvi-Lo, para nos colocar em Suas mãos como barro nas mãos do Oleiro, não é uma questão natural, espontânea; é uma questão de escolha.
            Ao chamar a atenção de Marta, Jesus lhe disse: “Pouca coisa é necessária, até mesmo uma só” (Lc 10,42). Nos faria bem escrever essas palavras – “Pouca coisa é necessária” – e colocá-las na porta do nosso guarda-roupa ou onde guardamos nossos calçados; na parte de cima da tela do nosso computador ou da nossa TV, enquanto assistimos a inúmeras propagandas ou navegamos por horas em inúmeros Sites... Se os pais estivessem convencidos de que “pouca coisa é necessária”, o que seria modificado na forma de criar e educar seus filhos? A mesma coisa se diga a respeito dos casais, quanto ao relacionamento conjugal; dos padres e dos leigos, quanto ao trabalho pastoral, e assim por diante... Nosso mundo está cada vez mais adoecido e desumanizado justamente porque a maioria de nós se perdeu em coisas urgentes e não sabe mais identificar o único necessário, o essencial.
            Se o Evangelho nos fala de Maria sentada aos pés de Jesus para escutá-lo, o texto do Gênesis nos fala de Abraão, “sentado à entrada da sua tenda no maior calor do dia” (Gn 18,1). Se Abraão fosse como nós, cujos olhos se fixam na tela do celular sempre que “sobra um tempinho”, ele não teria visto três homens passarem em frente à sua tenda. Mas ele os viu, e fez questão de que parassem, descansassem e, inclusive, almoçassem com ele. Abraão esqueceu-se de si e dos seus problemas, e foi extremamente generoso para com aqueles homens, preparando um verdadeiro banquete para eles. Tudo isso por quê? Por pura generosidade, por gratuidade, por não viver voltado para o próprio umbigo, por esquecer-se de si e dos seus problemas e deixar-se afetar pela necessidade dos outros, por abrir espaço na sua vida para acolher a visita de Deus, ainda que Abraão não soubesse de maneira alguma que Deus estava ali, naqueles três homens!           
            Para sua surpresa, durante o almoço O visitante pergunta por Sara e faz a Abraão uma promessa: “Voltarei a ti no próximo ano; então tua mulher Sara terá um filho” (Gn 18,10). Fazia 24 anos que Abraão estava caminhando com Deus, esperando pelo cumprimento dessa promessa, e eis que Deus o visita num dia inesperado, numa hora inesperada, de um modo inesperado, e lhe traz o presente tão sonhado! Da mesma forma que Jesus encontrou gratuidade no coração de Maria, Deus a encontrou em Abraão. Nem Maria, nem Abraão agiram de maneira planejada, calcudada, interessada. Os dois foram surpreendidos por uma visita e os dois deixaram de lado a si mesmos para darem atenção à visita, e foram abençoados por Deus. Não estaria faltando para a maioria de nós hoje essa atitude de gratuidade, este esquecer-se de si mesmo para olhar para o outro, para enxergar o outro que cruza o meu caminho, para perder tempo com alguém que nem conhecemos, mas que precisa de um pouco do nosso tempo?
            As “urgências” do mundo moderno nos tornaram pessoas sem tempo para o essencial, pessoas incapazes de gratuidade, porque tudo o que fazemos é em vista de um retorno, de um resultado, de algum benefício para nós. O mesmo Jesus que encontrou acolhida na casa de Marta e de Maria dirá, ao chegar à cidade de Jerusalém: “Ah! Se neste dia também você conhecesse Aquele que pode te trazer a paz! (...) Deitarão você e a seus filhos por terra, porque você não reconheceu o tempo em que foi visitada!” (Lc 19,42.44). Quantas vezes Deus visita a nossa casa (interior), mas nós não estamos em casa!? Jesus disse: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo” (Ap 3,20). A questão não é se Jesus nos visita; a questão é se estamos abrindo a porta para ele e acolhendo-o como Maria o acolheu, como o essencial da sua vida.

            Pe. Paulo Cezar Mazzi   

quinta-feira, 4 de julho de 2019

NÃO APENAS NASCIDOS, MAS ENVIADOS


Missa do 14º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 66,10-14c; Gálatas 6,14-18; Lucas 10,1-12.17-20.

Existem duas maneiras de entendermos a nossa existência e o nosso estar no mundo. A primeira é acidental, fruto do acaso, desprovida de sentido. A segunda é fruto de um chamado, de uma escolha e de uma missão; portanto, portadora de um sentido. Segundo o Evangelho que acabamos de ouvir, nós não apenas nascemos, não apenas passamos a existir, mas fomos enviados ao mundo. Enviados para que? “O Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou dois a dois, na sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir” (Lc 10,1). O lugar onde cada um de nós se encontra é o lugar onde o próprio Jesus devia se encontrar. Nós moramos onde o próprio Jesus devia morar; estudamos e trabalhamos onde ele próprio devia estudar e trabalhar; convivemos com as pessoas com as quais ele próprio devia conviver.
Além de tomarmos consciência de que somos enviados para a missão de trabalhar com Jesus pela salvação da humanidade, devemos estar cientes de que somos enviados “como cordeiros para o meio de lobos” (Lc 10,3). O grande perigo aqui é o de assumirmos uma atitude de constante defesa em relação ao mundo. Nossa missão não é nos defender do mundo, mas salvá-lo, curá-lo, resgatá-lo. Se Jesus nos alerta para a nossa condição de cordeiros em meio aos lobos é no sentido de que devemos ser prudentes, não ingênuos; devemos ter senso de realidade e estar preparados para enfrentar perigos e dificuldades em nossa missão; principalmente, devemos tomar o grande cuidado de não nos transformarmos em lobos apenas por uma questão de sobrevivência neste mundo.  
“Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: ‘A paz esteja nesta casa!’ Se ali morar um amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, ela voltará para vós” (Lc 10,6). Nossa missão é sermos uma presença de paz num mundo agitado, angustiado e sem paz. Nossa missão é levarmos uma palavra de conforto a toda pessoa abatida, uma palavra de orientação a toda pessoa perdida e desorientada, uma palavra de esperança a toda pessoa que se entregou ao desespero... Mas aqui é importante lembrar que nós só podemos comunicar a paz aos outros na medida em que o nosso coração vive segundo a vontade de Deus, pois é essa conformidade da nossa vida à vontade de Deus que nos enche de paz. Ao mesmo tempo, Jesus nos mostra que é possível que algumas pessoas não desejem a nossa paz. Neste caso, não devemos nos preocupar; ela voltará para dentro do nosso coração. O fato de alguém rejeitar o bem que eu poderia lhe oferecer não me torna desprovido deste bem; ele permanece comigo, para que eu possa oferecê-lo a outra pessoa.    
“Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo pelas ruas, dizei: ‘Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vós. No entanto, sabei que o Reino de Deus está próximo!’” (Lc 10,11-12). Jesus quer nos tornar conscientes de que nem todos os doentes desejam ser curados; nem todos os mortos desejam ressuscitar; nem todos os que se extraviaram desejam ser reconduzidos. Nós precisamos estar preparados para o fato de que nem todos querem ser salvos daquilo que os está destruindo. Há pessoas que, por motivos que não entendemos, passaram a se identificar com sua doença, com sua morte, com sua desorientação. Devemos respeitá-las em sua liberdade de consciência, mas também devemos “sacudir a poeira dos nossos pés”, no sentido de não nos contaminarmos com essa atitude de enterrar-se vivo, de recusar-se a alimentar a própria esperança e de dar sentido à própria existência.   
“Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo: ‘Senhor, até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome’. Jesus respondeu: (...) não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes, ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu’” (Lc 10,18.20). Embora nós não tenhamos escolhido nascer e vir ao mundo, mas fomos escolhidos e enviados para ele com uma missão específica, o nosso ego tem a mania de querer se apropriar de algo que não é dele; ele quer ser reconhecido e aplaudido pelo sucesso da missão que desempenhou. Ora, nós não somos a fonte, mas apenas o canal por onde a água da fonte chega às outras pessoas; nós não somos homens e mulheres com super-poderes, mas apenas homens e mulheres que carregam o poder do Evangelho em vasos de barro. Portanto, este grande perigo sempre nos acompanhará; o perigo da vaidade, da autopromoção, do anunciar a si mesmo, do conduzir as pessoas para si e não para Deus.
O apóstolo Paulo nos ensina a evitar este erro tão grave, ao testemunhar: “Quanto a mim, que eu me glorie somente da cruz do Senhor nosso, Jesus Cristo. Por ele, o mundo está crucificado para mim, como eu estou crucificado para o mundo... eu trago em meu corpo as marcas de Jesus” (Gl 6,14.17). Se é verdade que cada um de nós é um enviado de Deus ao mundo, também é verdade que a nossa missão será bem sucedida somente se aceitarmos exercê-la como homens e mulheres crucificados. Todo cristão, todo verdadeiro discípulo de Jesus Cristo, é um crucificado. Como o apóstolo Paulo, ele carrega em seu corpo não medalhas de honra ao mérito, não anéis ou coroas de reconhecimento, mas as marcas de Jesus crucificado. Portanto, como nos ensina o profeta Isaías, não caiamos no erro de esperar por consolações terrenas. A nossa verdadeira consolação virá da Jerusalém do alto, onde definitivamente “a mão do Senhor se manifestará em favor de seus servos” (Is 66,13.14).
Encerremos, meditando essas palavras de Santa Madre Teresa de Calcutá: “Se você é gentil, as pessoas podem acusá-lo de interesseiro. Seja gentil assim mesmo. Se você é honesto e franco, as pessoas podem enganá-lo. Seja honesto e franco assim mesmo. O que você levou anos para construir, alguém pode destruir de uma hora para outra. Construa assim mesmo. O bem que você faz hoje, pode ser esquecido amanhã. Faça o bem assim mesmo. Dê ao mundo o melhor de você, mas isso pode não ser o bastante. Dê o melhor de você assim mesmo. Veja você que, no final das contas, é tudo entre você e Deus. Nunca foi entre você e os outros” (Assim mesmo – poema resumido)

Pe. Paulo Cezar Mazzi