quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

NUNCA SE ESQUEÇA DE QUE "A REALIDADE É MAIOR DO QUE A IDEIA"

Missa do 3º dom. Advento. Palavra de Deus: Isaías 35,1-6a.10; Tiago 5,7-10; Mateus 11,2-11.

 

O Evangelho nos fala de João Batista preso, por ter confrontado Herodes com o seu pecado de adultério. Na prisão, João faz uma pergunta sobre Jesus que revela a sua decepção: “És tu, aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?” (Mt 11,3). “És tu, aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?” (Mt 11,3). Eu estou na igreja/religião certa, ou devo procurar outra? Sempre que Deus não responde imediatamente à nossa oração, nós nos decepcionamos com Ele.  João esperava que Jesus fosse radical como ele, mas, em lugar de colocar o machado na raiz da árvore, Jesus colocou o adubo da misericórdia, na esperança de que cada pessoa se converta e seja salva.

            Jesus reponde à pergunta de João: “Os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (Mt 11,5), cumprindo a profecia de Isaías que ouvimos na primeira leitura (cf. Is 35,5-6a). E Jesus acrescenta algo na resposta para falar a todo aquele que, ao longos dos tempos, aderir a ele pela fé: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim!” (Mt 11,6). No sentido bíblico, “escândalo” significa aquilo que leva uma pessoa a perder a fé. E João Batista estava perdendo a fé em Jesus não por estar preso, mas por Jesus não corresponder às suas expectativas.

            “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim!” (Mt 11,6). Ao longo da vida, nós nos escandalizamos com Deus, por Ele não fazer por nós o que esperávamos que fizesse; pelo fato de que os Seus caminhos não são os nossos (cf. Is 55,8); pelo fato de, exatamente como Jesus, nós termos a nítida sensação de que Ele nos abandonou no momento em que mais precisávamos (cf. Mt 27,46). Um fé que não sobrevive às inúmeras decepções com Deus – não por Ele ser indiferente a nós, mas porque nossas expectativas não têm o poder de colocá-Lo a nosso serviço –, conhecerá o seu fim rapidamente.

            Justamente porque a nossa fé precisa suportar o mistério de Deus, Isaías nos faz esse convite: “Fortalecei as mãos enfraquecidas e firmai os joelhos debilitados” (Is 35,3). O apóstolo Tiago, por sua vez, nos aconselha: “Ficai firmes até à vinda do Senhor. Vede o agricultor: ele espera o precioso fruto da terra e fica firme até cair a chuva do outono ou da primavera” (Tg 5,7). A chuva que esperávamos tanto veio agora, e compensou o trabalho e a espera de cada agricultor. Como toda espera é sofrida, São Tiago nos ensina: “Tomai por modelo de sofrimento e firmeza os profetas” (Tg 5,10). Sofrimento e firmeza precisam caminhar juntos. Se o sofrimento aumenta, a firmeza deve aumentar também.

            Aqui entra o modelo de firmeza que Jesus nos propõe: João Batista. Mesmo tendo decepções em seu coração, ele não era “um caniço agitado pelo vento” – uma pessoa volúvel, que não tem raiz e que, por isso mesmo, vive como folha seca empurrada pelo vento da constante desorientação do nosso mundo. João também não era “um homem vestido com roupas finas, morando num palácio” – uma pessoa vaidosa e, por isso mesmo, vazia, fútil, escrava do consumismo, que sonha com palácios e rejeita a simplicidade de uma modesta casa. Em outras palavras, João Batista nos ensina a cultivar a nossa essência, numa sociedade escrava da aparência; a sermos livres, numa época em que a tecnologia nos torna escravos das suas constantes novidades.

Se nós quisermos sair da prisão da nossa decepção para com Deus, devemos recordar um importante ensinamento que orientou o ministério do Papa Francisco: “A realidade é maior que a ideia”. O mistério de Deus se revela muito mais na vida real do que nos livros de teologia. Cada decepção que temos com Deus é um convite a nos abrirmos à realidade à nossa volta e entendermos melhor o que Deus está nos mostrando e nos dizendo, devolvendo sentido à nossa fé, à nossa esperança e, principalmente, à nossa vida.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi


quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

NOSSO LOBO E NOSSO CORDEIRO PODERÃO VIVER JUNTOS, PACIFICAMENTE!

 Missa do 2º. dom. do avento. Palavra de Deus: Isaías 11,1-10; Romanos 15,4-9; Mateus 3,1-12.

 

         Estamos entrando na segunda semana do Advento. Nosso olhar se levanta para o que está por vir: a Parusia, ou seja, a segunda Vinda de Cristo. Segundo o profeta Isaías, a vinda de Cristo provocará uma mudança no interior das pessoas e até mesmo dos animais: “O lobo e o cordeiro viverão juntos..., o leão comerá palha como o boi; a criança de peito vai brincar em cima do buraco da cobra venenosa... Não haverá danos nem mortes...” (Is 11,6.7.8.9). Dentro de nós há um lobo, um leão, uma cobra venenosa; há uma pessoa que instintivamente age no sentido de se defender quando ameaçada. Mas também moram em nós um cordeiro manso, um boi que não se alimenta de sangue, uma criança capaz de brincar. A nossa saúde física, mental e espiritual depende de aprendermos a colocar em diálogo o lobo e o cordeiro, o leão e o boi, a criança e a cobra venenosa que nos habitam.

Se a profecia de Isaías nos parece uma utopia, um sonho maravilhoso, mas tremendamente irreal, o apóstolo Paulo afirma que tudo o que foi escrito no passado foi escrito para que, “pelo conforto espiritual das Escrituras, tenhamos firme esperança” (Rm 15,4). Ora, a esperança não se assenta sobre aquilo que somos agora, mas sobre aquilo que podemos vir a ser, na medida em que nos deixamos conduzir pelo Espírito de Deus. Ele pode nos conceder “a graça da harmonia e da concórdia uns com os outros” (Rm 15,5). O Natal só é possível de ser celebrado quando nos dispomos à reconciliação, à reaproximação, a acolher aqueles para os quais temos mantida fechada a porta do nosso coração.

                Nesta segunda semana do advento, bate à porta da nossa consciência a voz de João Batista, aquele que veio preparar a primeira vinda de Cristo: “Convertei-vos! (...) Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas!” (Mt 3,2-3). O contrário da conversão – voltar-se para Deus – é a perversão – andar numa direção que não é a de Deus, que não conduz para Deus. “Converter-se”, no seu mais genuíno sentido bíblico, é abandonar os caminhos que nos levam para longe de Deus (os caminhos do egoísmo, da autossuficiência, do orgulho, da preocupação com os bens materiais) e voltar para trás, ao encontro de Deus; é tomar a decisão de viver ao estilo de Jesus, no amor, na partilha, no serviço, no perdão, no dom de si próprio a Deus e aos irmãos.

Para aqueles que têm a convicção de estarem caminhando na direção de Deus, vale o alerta de João Batista a alguns grupos religiosos do seu tempo: “Raça de cobras venenosas... Produzi frutos que comprovem a vossa conversão” (Mt 3,7-8). Nós nos julgamos ‘filhos de Deus’, mas muitas vezes nos comportamos como ‘filhos do maligno’, simbolizado biblicamente pela serpente. Participamos das celebrações da nossa Igreja sem escutar a voz da nossa consciência e sem a disposição de mudar nossas atitudes.  

             O que identifica a árvore é o fruto que ela produz. “Toda árvore que não der bom fruto será cortada e jogada no fogo” (Mt 3,10). Talvez você já tenha montado sua árvore de Natal. Os enfeites dela apontam para os frutos. Que frutos as pessoas têm encontrado em você? As suas atitudes têm ajudado a despertar a fé e a esperança nos outros? Na sua segunda vinda, o Senhor Jesus virá como Juiz. Julgar, no sentido bíblico, significa separar. “Ele está com a pá na mão; ele vai limpar sua eira e recolher seu trigo no celeiro; mas a palha ele a queimará num fogo que não se apaga” (Mt 3,12). Trigo – imagem bíblica de uma pessoa que amadureceu como bom fruto; palha – imagem bíblica de uma pessoa vazia, desprovida de conteúdo. Você está cuidando do seu cultivo pessoal, para um dia se tornar trigo e não palha?

Algumas tarefas que podemos assumir durante esta segunda semana do Advento: 1) Colocar em diálogo nosso lobo e nosso cordeiro; 2) Quem devemos acolher? A quem devemos voltar a abrir a porta ou à porta de quem precisamos bater, em busca de reconciliação? 3) Nós estamos amadurecendo como trigo ou como palha?

Pe. Paulo Cezar Mazzi

   

             

 

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

PREPARAR-SE PARA O SENHOR É RESPONSABILIDADE DE CADA PESSOA

 

Missa do 1º dom. do advento. Palavra de Deus: Isaías 2,1-5; Romanos 13,11-14a; Mateus 24,37-44.

 

O Tempo do Advento, que hoje iniciamos, é composto por quatro semanas. Nas duas primeiras, fortalecemos a nossa esperança diante da segunda vinda de Jesus, com poder e glória; nas duas últimas, fazemos a memória da sua primeira vinda, na fragilidade da carne humana, como afirma o Prefácio do Advento I: “Revestido da nossa fragilidade, ele veio a primeira vez para realizar seu eterno plano de amor e abrir-nos o caminho da salvação. Revestido de sua glória, ele virá uma segunda vez para conceder-nos em plenitude os bens prometidos que hoje, vigilantes, esperamos”.

Um profeta nos ajuda a viver o Tempo do Advento: Isaías. Ele é, por excelência, “o profeta da espera”. Toda a sua profecia está direcionada para a vinda de Cristo, o qual restaurará todas as coisas. E aqui está a primeira profecia de Isaías: “Acontecerá, nos últimos tempos” (Is 2,2). Isaías levanta o véu que cobre os nossos olhos e nos impede de enxergar para além do momento presente. Ele nos revela o que acontecerá: Cristo virá para nos ensinar, e o seu ensinamento provocará uma transformação em nós: “transformarão suas espadas em arados e suas lanças em foices: não pegarão em armas uns contra os outros e não mais travarão combate” (Is 2,4).

Diante dessa transformação de pessoas agressivas em pessoas que promovem a paz, podemos nos perguntar como anda a nossa agressividade, a nossa impaciência e a nossa baixa tolerância. Sempre é bom lembrar que nós não escolhemos sentir agressividade, raiva, ódio, nervosismo – há situações específicas que despertam essas coisas em nós. Mas é nossa responsabilidade escolher a forma de lidar com isso. Se, na noite de Natal, o profeta Isaías proclamará que o menino que nasceu para nós é “o príncipe da paz” (Is 9,5), precisamos, desde agora, reconhecer todo tipo de agressividade que nos habita e permitir que Jesus opere uma transformação interior dos nossos instintos, para que este Natal não seja uma mentira em nossa vida. Portanto, acolhamos o convite do profeta: “Deixemo-nos guiar pela luz do Senhor” (Is 2,5).

O Tempo do Advento nos convida a olhar para frente: “agora a salvação está mais perto de nós do que quando abraçamos a fé” (Rm 13,11). O Cristo que nos alcançou no passado, por meio do Evangelho, está à nossa frente: “Cristo foi oferecido uma vez por todas para tirar os pecados da multidão; Ele aparecerá uma segunda vez (...), àqueles que o esperam para lhes dar a salvação” (Hb 9,28). Essa segunda vinda de Cristo é chamada no Novo Testamento de “Dia”, “Dia do Senhor Jesus”: “O dia vem chegando: despojemo-nos das ações das trevas e vistamos as armas da luz” (Rm 13,12).

Na missa do dia de Natal, o Evangelho nos recordará que “nele (em Jesus Cristo) estava a vida, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,4). Se nessa época do ano muitas casas são enfeitadas com “luzes de Natal”, tais luzes nos lembram do nosso compromisso de vivermos como filhos da luz e não das trevas. Concretamente, isso significa não nos comportarmos como pagãos: nada de comer exageradamente, beber exageradamente, levar vida sexual desregrada, viver em brigas (de novo, a agressividade) e com rivalidades (cf. Rm 13,13). Essa palavra do apóstolo Paulo nos revela o quanto o final do ano é uma época onde o paganismo escancara a sua face.

Acolhamos agora a palavra de Jesus, no Evangelho: “A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé (...): todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E eles nada perceberam até que veio o dilúvio e arrastou a todos” (Mt 24,37-39). A questão principal está aqui: eles nada perceberam até que veio a destruição. Esse é retrato do nosso mundo. A indústria da distração foi criada para não percebermos o que está acontecendo à nossa volta. Nós buscamos nos desligar da realidade mergulhando em vídeos, filmes, séries etc., enquanto os grandes bilionários seguem firmes no seu propósito insano de enriquecimento sem limites à custa da destruição do Planeta.

A vinda de Jesus não será precedida por nada de espetacular porque, na verdade, ele vem todos os dias e nos visita nas mais diversas situações. Quem espera por algo grandiosamente impactante, para só então mudar suas atitudes, vai morrer por situações desastrosas criadas por si mesmo. Mas, atenção! Essa destruição não se refere a todos, como Jesus acabou de afirmar: “Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada” (Mt 24,40-41). Ser levado significa ser salvo; ser deixado significa ser condenado à destruição que a própria pessoa ajudou a provocar. Portanto, a salvação passa por uma escolha livre e consciente de cada um.  

            Eis o apelo final de Jesus: “ficai atentos!” (Mt 24,42); “ficai preparados! Porque na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá” (Mt 24,44). Toda pessoa que decide separar um tempo diário para meditar e rezar percebe os sinais da vinda de Jesus na sua vida particular. Ela não será surpreendida, por causa da sua preparação diária para o encontro com o seu Esposo e Salvador.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

Oração do Advento

 

Para Te acolher, Senhor Jesus, para preparar nossa terra, para crer em Ti, nosso grande Senhor e Salvador, não há nada de extraordinário a fazer: basta ter um coração sincero e sem máscaras. Basta ter um olhar de acolhida e ternura para com toda pessoa que encontramos no dia a dia. Basta colocar nos lábios o sorriso e a alegria. Basta abrir as mãos para dar e repartir. Basta ser atencioso e fiel à Tua Palavra. Basta amar, sem colocar condições. Basta ouvir o Teu apelo e decidir mudar de vida, Senhor! Amém.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

NÃO EXISTE CONDENAÇÃO PARA QUEM ESCOLHE VIVER SOB O DOMÍNIO ESPIRITUAL DE CRISTO

Missa de Cristo, Rei do Universo. Palavra de Deus: 2Samuel 5,1-3; Colossenses 1,12-20; Lucas 23,35-43.

 

            Hoje se dá o enceramento do ano litúrgico. Cada celebração dele nos ensina que a nossa vida neste mundo, marcada pelo tempo cronológico, está inserida num tempo maior, que nos ultrapassa, o tempo chamado “kairós”, palavra grega que significa “o momento certo” ou “o tempo oportuno”, tempo onde Deus realiza a sua salvação na vida de cada um de nós. Esse tempo de Deus tem como horizonte final restaurar todas as coisas em seu Filho Jesus Cristo. Uma vez que “tudo foi criado por meio dele (Cristo) e para ele” (Ef 1,16), Deus Pai “quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres, os que estão na terra e no céu, realizando a paz pelo sangue da sua cruz” (Ef 1,19-20).

            Existe uma afirmação bíblica que nos deixa desconcertados, quando proclamamos que Jesus Cristo é o rei do universo: “O mundo inteiro está sob o poder do Maligno” (1Jo 5,19). João, ao afirmar isso, está dizendo que todos aqueles que não aceitam livremente se colocar debaixo do domínio de Cristo (obediência ao seu Evangelho), acabam sofrendo uma dominação imposta pelo Maligno. Ora, o Maligno é o divisor: aonde ele exerce o domínio, cria conflito. Esse conflito se encontra no coração de muitas pessoas e igualmente em muitas famílias e locais de trabalho. Somente quando deixamos os sentimentos de Jesus (cf. Fl 2,5) reinarem sobre nós é que podemos nos beneficiar da reconciliação que o Pai nos oferece, reconduzindo-nos à Sua paz.

            A leitura de Samuel 5,1-3 nos fala do momento em que todo o país de Israel decide se colocar sob o senhorio de Davi, reconhecendo-o como rei. Até então, Israel era dividido entre reino do norte e reino do sul, uma divisão que sempre prejudicou a vida das pessoas e enfraqueceu o país na sua política, na sua economia e também na sua religião. Quando o rei Davi unificou o país, os israelitas voltaram a ter paz. Davi foi “um homem segundo o coração de Deus” (cf. 1Sm 13,14). Mas, no auge do seu reinado, não dominou os seus desejos e cometeu adultério, tentando depois escondê-lo de todos, a ponto de mandar matar a esposo da adúltera (cf. 2Sm 11 – 12). A partir desse momento, Davi recebeu o anúncio da futura divisão do reino que ele tanto lutou para unificar.

            O sucesso e o fracasso do rei Davi nos ensinam que nenhum homem pode pretender ser rei, isto é, exercer domínio sobre pessoas ou situações, quando ele não sabe dominar a si mesmo. O contrário do domínio sobre si é aquilo que assistimos na vida política do mundo: escândalos sexuais e financeiros. Os roubos bilionários, que às vezes são descobertos, têm uma ligação direta com a vida promíscua de políticos e empresários corruptos.

            Se o rei Davi traiu a sua identidade de “homem segundo o coração de Deus”, Jesus é verdadeiramente o Filho segundo o coração do Pai. Sendo verdadeiramente homem, ele escolheu viver longe dos centros de poder, tanto político quanto religioso. Embora tenha vindo para libertar o ser humano de todo tipo de domínio injusto, doentio e destrutivo, Jesus encontrou muitas pessoas fechadas à sua proposta de salvação: “Não queremos que esse homem reine sobre nós” (Lc 19,14).

O trono de Jesus, por excelência, foi a cruz. Exatamente ali a sua realeza foi questionada três vezes: “Salve-se a si mesmo” (Lc 23,35); “Salva-te a ti mesmo!” (Lc 23,37); “Salva-te a ti mesmo e a nós!” (Lc 23,39). Nós também pensamos a vida dessa forma: salvar a nós mesmos. Quanto aos outros... Um exemplo claro. Os mesmos super-ricos que  esgotam os recursos naturais e fazem campanha contra a preservação do meio ambiente, unicamente para aumentarem o próprio capital, estão se preparando para o que eles mesmos chamam de “grande apocalipse”, construindo bunkers (construções de ferro e concreto subterrâneas) e estocando comida e água para sobreviverem às catástrofes provenientes das mudanças climáticas, as quais são negadas por eles (Assista ao vídeo de Átila Iamarino: “O que os BILIONÁRIOS não te contam” – Youtube).

Jesus não é o rei “salve-se a si mesmo” porque ele não veio “se” salvar, mas salvar a humanidade de si mesma (pecado pessoal) e da tirania dos reis do mundo (pecado social). Além disso, o domínio salvífico de Jesus só pode ser experimentado por quem se submete à verdade do Evangelho, como ele mesmo afirmou: “Todo aquele que comete pecado é escravo do pecado. Se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres” (cf. Jo 8,34.36). Essa libertação foi experimentada por um homem que, assim como Jesus, estava condenado à morte: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”. Jesus lhe respondeu: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,42-43).

Na sua carta aos Romanos, ao apóstolo Paulo afirma: “Não existe mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus” (Rm 8,1). Muitas vezes já nos sentimos e, certamente, ainda vamos nos sentir condenados: uma doença incurável; uma culpa que não nos abandona; uma situação de penúria na vida financeira; a solidão pelo término de um relacionamento; um vício que não superamos; a voz do acusador (Maligno), que tenta nos fazer desacreditar do perdão de Deus e cancelar a nossa esperança de salvação, etc. Em todas essas situações nas quais nos sentimos “condenados”, precisamos clamar como o ladrão na cruz: “Lembra-te de mim”.

“Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43). O Reino do Pai e do Filho não é para quem não tem nenhuma condenação, mas para quem não aceita morrer condenado a nada, e por isso recorre ao perdão do Rei; e também por isso decide viver cada dia de sua vida não mais carregando o peso de uma condenação, mas liberto por Aquele que o Pai enviou não para condenar, mas para salvar.  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

HÁ UM SENTIDO MAIOR POR DETRÁS DE DESTRUIÇÃO DE TODAS AS COISAS

 Missa do 33º dom. comum. Palavra de Deus: Malaquias 3,19-20a; 2Tessalonicensses 3,7-12; Lucas 21,5-19. 

 

Estamos caminhando para o final do ano litúrgico, o qual será encerrado no próximo domingo, com a festa de Cristo, Rei do Universo. Por isso, as leituras de hoje, sobretudo o Evangelho, são leituras “escatológicas”. Escaton é uma palavra grega que significa “o fim”. Trata-se do evento final do plano divino para a criação e toda a humanidade.  

No Antigo Testamento, os profetas anunciavam o “Dia do Senhor”, um dia de ira, onde Deus viria para fazer justiça aos justos e destruir os injustos. Uma vez que Jesus afirmou que “o Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho todo julgamento” (Jo 5,22), o Novo Testamento passou a anunciar o “Dia do Senhor” como “Dia do Senhor Jesus”, dia da Parusia, da segunda vinda de Cristo, o qual virá como Juiz (julgar significa separar). Ele separará a humanidade, recolhendo os justos como trigo no celeiro de Deus e esmagando os injustos como uvas, “no grande lagar do furor da ira de Deus” (cf. Ap 14,14-20). A cor da uva – vermelho – significa que todos aqueles que derramam sangue sobre a terra (violência, destruição, morte), terão o seu sangue derramado, isto é, serão condenados.

O profeta Malaquias nos fala do “Dia do Senhor” como um fogo que destruirá as pessoas injustas e más como palha. Ao mesmo tempo, esse fogo do julgamento de Deus se tornará “sol da justiça” para os que perseveraram no bem. Já o salmista nos convidou a confiar que “O Senhor virá julgar a terra inteira; com justiça julgará”. A impunidade e a injustiça que pairam sobre a Terra não têm a última palavra.

No Evangelho, Jesus dialoga com pessoas que estavam maravilhadas com a beleza e suntuosidade do Templo de Jerusalém. Hoje também as pessoas se maravilham com muitas coisas: Inteligência Artificial, celulares e computadores de última geração, carros elétricos, robôs inteligentes etc. Mas, para quem quer que esteja encantado com a evolução da ciência e da tecnologia, Jesus questiona e alerta: “Vocês admiram estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído” (Lc 21,6).

Quantas vezes a vida já nos colocou diante da realidade da destruição? Morte de crianças e de jovens por doença ou acidente; acidentes fatais; catástrofes ambientais; o “pequeno apocalipse” de Rio Bonito (Paraná), provocado por um tornado que destruiu 90% da cidade, e, contudo, matou “apenas” sete pessoas; o câncer, que continua a espalhar a sua destruição sobre cada vez mais pessoas, independente da idade e da condição social, etc.

Ao nos tornar conscientes da futura destruição de tudo aquilo que hoje temos como segurança e amparo na vida presente, Jesus nos convida a não nos iludir: a Terra não é o Céu. Tudo o que vivemos aqui é transitório, e nada ficará para sempre; nada, nem mesmo nós. Retornando à imagem do Apocalipse, todos seremos ceifados desta Terra, e a questão é saber se a ceifa nos encontrará como trigo (pessoas que não desistiram de caminhar na justiça e na santidade) ou como uva (pessoas que se cansaram de perseverar no bem e decidiram aproveitar deste mundo enquanto ele, que já está em processo de destruição, serve aos nossos interesses egoístas).

Muitas coisas ruins já estão acontecendo, e muitas outras coisas ainda virão. Quanto mais se aproxima a volta de Jesus, mais o maligno grita de desespero, sabendo da sua destruição definitiva. Em meio a tudo isso, Jesus nos faz um apelo: “Esta será a ocasião em que testemunharão a sua fé” (Lc 21,13). Uma casa só testemunha o seu alicerce diante de uma forte tempestade. Da mesma forma, a nossa fé é chamada a se erguer como absoluta confiança no Pai que nos chamou à salvação em seu Filho Jesus Cristo, o qual nos advertiu: “O céu e a terra passarão; minhas palavras, porém, não passarão” (Lc 21,33).

 Eis o convite de Jesus para nós: “É permanecendo firmes que vocês irão ganhar a vida!” (Lc 21,19). Toda e qualquer destruição que já tenha nos visitado em nossa vida pessoal, ou que esteja visitando a história da humanidade, não deve nos encher de pessimismo e falta de sentido, mas despertar a firmeza da nossa fé e da nossa esperança, uma firmeza que se traduz em não desistirmos de viver cada um dos nossos dias na santidade e na justiça, esperando o momento da nossa colheita, não desistindo de fazer o bem de que somos capazes e esperando firmemente no “sol da justiça”, que nos garantiu: “Eis que venho muito em breve e retribuirei a cada um segundo as suas obras (atitudes)” (Ap 22,12).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

COISAS E ATITUDES QUE DESTROEM O TEMPLO QUE É O CORPO HUMANO

 Homilia da Dedicação da Basílica de São João do Latrão. Palavra de Deus: Ezequiel 47,1-2.8-9.12; 1Coríntios 3,9c-11.16-17; João 2,13-22. 

 

“A Basílica de São João de Latrão é a catedral do Papa, enquanto Bispo de Roma. Ela é chamada “a igreja-mãe de todas as igrejas”, símbolo das Igrejas de todo o mundo, unidas ao Sucessor de Pedro. A Festa da sua Dedicação nos recorda que a Igreja nascida de Jesus Cristo é hoje, no meio do mundo, o testemunho vivo da presença de Deus na caminhada histórica dos homens” (Dehonianos).

            Segundo o apóstolo Paulo, a Igreja é o Corpo de Cristo, do qual somos os membros (cf. 1Cor 12,12-30). O próprio Jesus acabou de falar do seu corpo como o verdadeiro Templo de Deus: “Destruam este Templo, e em três dias o levantarei” – “Jesus estava falando do Templo do seu corpo”, esclarece o evangelista João (cf. Jo 2,19.21). A prefiguração do corpo de Jesus como Templo de Deus foi descrita, pelo profeta Ezequiel, na belíssima imagem da água que escorre de dentro do Templo e, por onde passa, gera vida: “Onde o rio chegar, todos os animais que ali se movem poderão viver. Nas margens junto ao rio, de ambos os lados, crescerá toda espécie de árvores frutíferas; suas folhas não murcharão e seus frutos jamais se acabarão. Seus frutos servirão de alimento e suas folhas serão remédio” (Ez 47,9.12).

            Essa profecia de Ezequiel se cumpriu na cruz, quando um soldado perfurou o peito de Jesus com uma lança, e dali escorreu sangue e água (cf. Jo 19,34). Cada um de nós, membros do Corpo de Cristo, que é a Igreja, deve lançar suas raízes na direção da água viva que sai do peito de Cristo, imagem bíblica do Espírito Santo (cf. Jo 7,37-39), para nos tornar fecundos e sermos curados das nossas doenças, acolhendo o convite de Jesus: “Quem tem sede, venha a mim e beba” (Jo 7,37).

Daí se segue uma primeira aplicação prática. O corpo humano tem 70% de água! Essa água é perdida no suor, na urina e nas fezes. Portanto, precisa ser reposta. A medicina nos orienta a beber de 2 a 3 litros de água por dia! Aqui estão um dos muitos benefícios da água em nosso corpo:  1. Regula a temperatura corporal. 2. Evita a pedra nos rins. 3. Desintoxica o organismo. 4. Ajuda na perda de peso. 5. Regula o sistema imunológico... Apesar dos muitos benefícios da água, ela foi substituída pelo refrigerante, principalmente na vida de crianças e adolescentes.

São Paulo nos lembra, na liturgia de hoje, que não somente o corpo de Jesus, mas também o nosso corpo é um templo, um santuário: “Acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá, pois o santuário de Deus é santo, e vós sois esse santuário” (1Cor 3,16-17). Quais coisas ou atitudes destroem o nosso corpo como santuário de Deus? Vida sexual desregrada, drogas, todo tipo de excesso (bebida alcoólica, comida, preguiça), cigarro (sobretudo eletrônico), etc. Uma vez que a saúde do nosso corpo depende da saúde da nossa mente, a falta de descanso adequado, o vício das telas, não ler nenhum livro, cultivar pensamentos negativos etc., também colaboram para adoecer o nosso corpo.

Daí surge uma segunda aplicação prática. As roupas que vestimos respeitam o sagrado do nosso corpo? Temos consciência de que a tendência atual de “adultizar”* crianças, vestindo-as com roupas sensuais ou antecipando uma idade que elas ainda não têm, chama a atenção de pedófilos e deixam nossas crianças expostas a redes de pedofilia? O abuso sexual nas famílias** tem como causa apenas a perversão sexual do abusador, ou a pessoa responsável por vestir a criança também é cúmplice do abuso? A maquiagem que muitas meninas costumam usar está de acordo com a idade das mesmas?    

Olhemos agora para o Evangelho. Jesus descarrega a sua ira contra o coração da religião judaica: o Templo. O chicote que ele faz e com o qual derruba as mesas dos cambista – sem atingir qualquer pessoa ou animal comercializado ali – expressa o julgamento de Deus contra uma religião que usa do sagrado para lucrar financeiramente, uma religião que se mantém distante da dor humana, ao mesmo tempo em que ama o poder mundano e faz do dinheiro o seu verdadeiro deus.  

Daí se segue uma terceira aplicação prática. Podemos assistir os episódios 2 e 3 da quinta temporada da série The Chosen (digitar no buscador: assistir The Chosen gratuitamente) e entrar em comunhão com essa cena magnífica da expulsão dos vendilhões do Templo, nos perguntando, ao mesmo tempo, o que Jesus exige que seja retirado do templo que somos, segundo a sua ordem: “Tirai isso daqui!” (Jo 2,16).    

Uma última palavra. O filme “O som da liberdade” (2023) denuncia que os EUA são o país que mais consome sexo infantil, fazendo vista grossa ao tráfico internacional de crianças e adolescentes. Segundo dados da Unicef, 300 milhões de crianças sofreram exploração sexual e abuso infantil online. Assista ao documentário da CNN: “EUA: Crianças à Venda”, em https://www.youtube.com/watch?v=zQsDjtOpNF8.

 

*A adultização infantil ocorre quando crianças começam a adotar comportamentos, escolhas e responsabilidades típicas de adultos, muitas vezes influenciadas pela mídia, pela internet e pelo ambiente em que vivem. Essa influência faz com que as crianças tenham contato com conteúdos e padrões que não são adequados para a idade, como músicas, roupas ou atitudes ligadas à aparência e à sexualidade. Também é comum que tenham rotinas cheias de compromissos e responsabilidades. A adultização infantil pode mudar o caminho natural do crescimento, antecipando preocupações que deveriam surgir só mais tarde e comprometendo a saúde emocional, psicológica e o desenvolvimento da criança (Fonte: https://www.tuasaude.com/adultizacao-infantil/).

*Abuso sexual na família: 70% dos estupros acontecem em casa! (Fonte: https://vlvadvogados.com/abuso-sexual-na-familia/).

Pe. Paulo Cezar Mazzi

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

SÍNDROME DE PAVÃO

Menos panos e rendas, menos palácios de veludo e frases de efeito ensaiadas. O que falta não é brilho nos paramentos, mas brilho no olhar de quem realmente caminha com o povo. A fé não precisa de vitrines douradas, precisa de pés na estrada, mãos sujas de serviço e ouvidos abertos para as dores que ecoam pelas ruas e nos corações cansados.

Menos barretes e enfeites, menos preocupação com holofotes e mais consciência de que o Reino não se ergue sobre aparências, mas sobre compromisso. Não é a estética que sustenta a verdade do Evangelho, mas a entrega sincera e o amor encarnado na vida comum de cada dia.

Menos “cercos”, menos teatralidade de piedade, menos pregações que colocam Deus em um trono inalcançável, distante, inatingível. Ele desceu, caminhou conosco, chorou nossas lágrimas, sentiu o peso da fome e da solidão, e nisso nos ensinou que a santidade começa no chão.

É triste ver uma geração de padres mais preocupada em ser vista do que em ver; mais interessada em ser celebrada do que em celebrar a vida de Cristo entre os pequenos. A missão não é virar celebridade da fé, mas testemunha do Cristo servo, aquele que se curva para lavar os pés, que abraça o sofrimento humano para transformá-lo em esperança.

Que voltemos ao essencial: menos espetáculo, mais Evangelho. Menos pose, mais presença. Menos glória humana, mais cruz compartilhada. Porque o Reino nasce quando alguém escolhe amar sem precisar ser aplaudido.

Samuel Elânio

 





quinta-feira, 30 de outubro de 2025

DEIXE SUA CASA EM ORDEM, POIS A MORTE O(A) ENCONTRARÁ NA HORA EM QUE VOCÊ MENOS IMAGINAR.

 Missa pelos fiéis falecidos. Palavra de Deus: Jó,19,1.23-27a; 1Coríntios 15,20-24a.25-28; Lucas 12,35-40. 

 

Dia de Finados, palavra que nos remete para o fim. A nossa existência terrena um dia terá um fim. Mas a nossa fé nos faz olhar para além do fim, isto é, para a finalidade para a qual tende a nossa vida, que é a nossa ressurreição em Jesus Cristo, ele que nos prepara um lugar na casa do Pai, porque quer que estejamos onde ele mesmo está (cf. Jo 14,3). Se hoje sentimos saudades e tristeza por aqueles que partiram, sabendo que a tristeza é proporcional ao amor que temos pela pessoa, a nossa tristeza deve unir-se à esperança de reencontrarmos aqueles que partiram e que estão em Cristo (1Ts 4,13.16-17), o qual afirmou que o nosso Deus “não é Deus de mortos, mas sim de vivos; todos, com efeito, vivem para ele” (Lc 20,38).

A morte, fim da nossa existência terrena, nos ensina a rever a forma como vivemos a nossa vida. “Lembra-te do fim e deixa o ódio” (Eclo 28,6). Não devemos permitir que o ódio adoeça a nossa breve existência neste mundo. A consciência da nossa morte deve nos levar a perdoar. Mas o Eclesiástico também nos orienta quanto ao luto: “Filho, derrama tuas lágrimas por um falecido. Chora amargamente; depois, consola-te de tua tristeza. Porque a tristeza leva à morte. Não abandones teu coração à tristeza, afasta-a” (Eclo 38, 16.17.20).

A morte nos dá a consciência de que a nossa existência neste mundo é única, e nunca mais se repetirá: “Os homens morrem uma só vez, depois do que vem um julgamento” (Hb 9,27). A respeito desse julgamento, o apóstolo Paulo afirma: “Todos nós compareceremos perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito em sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal” (2Cor 5,10). Aquilo que plantamos hoje, em nossa vida terrena, será colhido por nós mesmos, após a nossa morte.  

Segundo Jesus, a consciência da nossa morte deve nos libertar de todo tipo de ganância material. Quando um homem muito rico, após ter derrubado todos os seus celeiros para construir outros maiores, a fim de guardar toda a sua riqueza, diz a si mesmo: “Descansa, come, bebe, aproveita!”, Deus lhe diz: “Insensato, nesta mesma noite será pedida de volta a tua vida. E as coisas que acumulaste, de quem serão?” (Lc 12,16-20). Aqui entra também a sabedoria de Dalai Lama: “Os homens do nosso tempo vivem como se nunca fossem morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido”.

Quando o rei Ezequias ficou gravemente enfermo, o profeta Isaías recebeu a ordem de Deus para dizer-lhe: “Põem em ordem a tua casa, porque vais morrer, e não sobreviverás” (2Rs 20,1). A consciência de que um dia iremos morrer deve nos fazer perguntar: O que eu preciso colocar em ordem, na minha vida, antes de morrer? Para Jesus, o principal a ser colocado em ordem é a nossa reconciliação com o próximo (cf. Mt 5,25-26).

Como encaramos a certeza de que um dia iremos morrer? O apóstolo Paulo nos anuncia uma grande consolação: “Ninguém de nós vive para si mesmo ou morre para si mesmo. Se vivemos é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor. Com efeito, Cristo morreu e ressuscitou para ser o Senhor dos vivos e dos mortos” (Rm 14,7-9). Ainda segundo o apóstolo, morrer significa mudar da tenda (morada provisória) para a casa, “morada eterna, não feita por mãos humanas” (2Cor 5,1). Em outras palavras, morrer significa “deixar a mansão deste nosso corpo para ir morar junto Senhor” (2Cor 5,8).       

Em cada experiência de morte que fazemos, diante da perda de pessoas que nos são caras, devemos manter os olhos fixos em Jesus, que disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim nunca morrerá” (Jo 11,25-26). A morte biológica do corpo não é a morte da pessoa. Jesus experimentou a morte “em favor de todos os seres humanos” (Hb 2,9). Como ele mesmo afirma: “Eu sou o Vivente: estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho comigo as chaves da morte e da região dos mortos” (Ap 1,17-18). Ter as chaves significa ter o poder de arrancar da morte e da região dos mortos todos os que morreram.

Diante desta catequese bíblica sobre a morte, podemos rezar, neste dia de Finados: “Ó Deus, nosso Pai, vossos dias não conhecem fim, e a vossa misericórdia não tem limites. Fazei-nos lembrar sempre a brevidade da vida e a incerteza da hora da nossa morte. Que o vosso Espírito Santo nos conduza neste mundo, todos os dias da nossa vida, na santidade e na justiça. E depois de vos servirmos na terra na comunhão da vossa Igreja, na confiança de uma fé segura, na consolação da esperança e na perfeita caridade para com todos, possamos chegar ao vosso Reino. Por Cristo, nosso Senhor. Amém” (Sacramentário, Rito das Exéquias, p.229).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

 

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

SANTIFICAR-SE SIGNIFICA TORNAR-SE SEMELHANTE A JESUS, "O SANTO DE DEUS" (Jo 6,69).

 Missa de todos os Santos. Apocalipse 7,2-4.9-14; 1João 3,1-3; Mateus 5,1-12a

 

A palavra “santo” significa “separado”. Jesus afirmou aos seus discípulos: “Minha escolha separou vocês do mundo” (Jo 15,19). O cristão é alguém “separado” do mundo, no sentido de estar no mundo, mas não aceitar ser corrompido por ele: “Não se conformem com o mundo, mas transformem-se, renovando a mente de vocês a fim de poderem discernir qual é a vontade de Deus” (Rm 12,2). Jesus foi chamado por Pedro de “o Santo de Deus” (Jo 6,69) exatamente porque buscou diariamente fazer a vontade do Pai: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou” (Jo 4,34).

Jesus é o nosso modelo de santidade. Como ele, somos chamados a ser pessoas pobres em espírito (que se apoiam unicamente em Deus); pessoas que se afligem com o sofrimento alheio; pessoas que mantém a mansidão diante dos conflitos; que desejam a justiça e lutam por ela; que são misericordiosas (compadecem-se com a miséria do outro); puras de coração; pessoas que não só desejam a paz, mas buscam promovê-la no ambiente em que se encontram; pessoas que suportam perseguições e sofrimentos por causa da justiça e por causa do próprio Jesus (cf. Mt 5,3-11).

Tudo isso nos faz entender que o nosso processo de santificação se dá na terra, não no céu. É na terra que os santos são “marcados na fronte” (Ap 7,3), procurando fortalecer orientar a cada dia a sua consciência de pertencimento a Deus. Segundo o livro do Apocalipse, os santos que estão nos céus são pessoas que “vieram da grande tribulação” (Ap 7,14), e se no céu trajam “vestes brancas” (Ap 7,9), símbolo da ressurreição e da santidade, é porque na terra “lavaram e alvejaram suas roupas no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14), envolvendo-se na mesma luta que Jesus se envolveu, contra o pecado, a injustiça e a dor que tanto ferem a humanidade.

Na sua exortação apostólica sobre a santidade, o Papa Francisco afirmou que “todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra” (GE, n.14). É na rotina de cada dia, nas ocupações diárias, que cada um de nós é chamado a santificar-se. Quando você defende uma pessoa que está sendo injustiçada e sofre perseguição por causa disso, está sendo uma pessoa santa. Quando não aceita suborno, quando prefere levar uma vida mais simples, ganhando dinheiro de maneira honesta, ao invés de se enriquecer corrompendo-se, você está sendo uma pessoa santa. Quando, a exemplo de Jesus, você decide amar até o fim e não somente até que a beleza acabe, até que a doença chegue, até que a situação financeira se complique, você está sendo uma pessoa santa.

Um desafio para a nossa vida de santidade é integrar o nosso corpo, a nossa sexualidade, na vivência da nossa fé. Toda espiritualidade que despreza o corpo e demoniza a sexualidade é doentia e está na contramão do mistério da Encarnação. Jesus teve um corpo como o nosso e sentiu tudo o que nós sentimos: “ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb 4,15). É a partir do nosso corpo e na vivência da nossa sexualidade que nós nos santificamos. Uma santidade “desencarnada” é estranha à Sagrada Escritura e, sobretudo, estranha ao próprio Jesus, modelo para a nossa santidade.

Enfim, o apóstolo João nos ensina que ser uma pessoa santa significa ter paciência conosco mesmos, com os nossos limites e as nossas imperfeições, pois a nossa santificação é um processo: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3,2). O que nós somos como pessoa não é algo definitivo; estamos em abertura, em processo, em transformação: a santificação tem por objetivo nos tornar semelhantes a Jesus, até que sejamos puros como ele é puro, até que sejamos como ele é: um verdadeiro sacramento do Deus Santo, Santo, Santo (cf. Is 6,3).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

A HUMILDADE É A PORTA QUE ABRIMOS PARA QUE DEUS POSSA ENTRAR E NOS TRANSFORMAR, ENQUANTO REZAMOS.

 Missa do 30º dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 35,15b-17.20-22a; 2Timóteo 4,6-8.16-18; Lucas 18,9-14.


            Por que nós rezamos? Porque temos consciência da nossa insuficiência enquanto seres humanos. Em outras palavras, só pode rezar quem sente a necessidade de ser salvo. Pessoas que se sentem totalmente seguras, garantidas pelos seus recursos materiais, normalmente não buscam a Deus na oração, a menos que alguma coisa saia do controle delas e as ameace.

            Depois de nos ter ensinado a oração do Pai nosso (cf. Lc 11,1-13) e nos mostrado a importância de insistirmos com Deus na oração (cf. Lc 18,1-8), Jesus hoje nos apresenta duas formas de oração: a primeira, cheia de orgulho e arrogância; a segunda, cheia de humildade; a primeira, feita por um homem que se colocou diante de Deus não para louvá-Lo, mas para louvar a si mesmo por se considerar bom, justo e não necessitado de salvação; a segunda, feita por um homem consciente dos seus pecados e, portanto, profundamente necessitado de salvação.

            Antes de tudo, precisamos prestar atenção para quem Jesus contou a parábola que acabamos de ouvir no Evangelho: “Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros” (Lc 18,9). Confiar na própria justiça significa julgar-se bom o suficiente a ponto de não necessitar ser salvo. Mas o problema maior não é apenas a postura orgulhosa e arrogante diante de Deus, e sim o desprezo pelos outros, por aqueles que julgamos piores do que nós. Quando isso acontece, acabamos por erguer um muro de separação entre nós e essas pessoas, pensando que Deus as vê como nós as vemos.   

Eis a oração do fariseu: ele se coloca diante de Deus convencido de que não precisa da salvação que Deus lhe oferece, porque já a conquistou pelo esforço do seu bom comportamento. Apresenta-se diante de Deus como uma pessoa justa que veio “cobrar” a recompensa pelo seu esforço em ser uma pessoa de bem. O pior em tudo isso é que ele sente que a sua vivência “cristã” o coloca acima dos outros homens, “miseráveis pecadores”, como o cobrador de impostos que, aos olhos do fariseu, não passa de um ladrão e explorador do seu povo.

Diferente do fariseu, o cobrador de impostos, reza a partir da sua verdade. Consciente dos seus erros e da sua necessidade de ser salvo, ele clama a Deus por misericórdia. É um homem que tem consciência da sua indignidade. Na sua oração, ele não se compara com outros homens; apenas reconhece o seu pecado e invoca a misericórdia de Deus. Não podendo agarrar-se ao seu bom comportamento para se salvar – pois seu comportamento não é correto – ele só pode confiar na compaixão de Deus: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!” (Lc 18,13).

A oração do publicano nos lembra a verdade de todo ser humano: somos pecadores, falhos, imperfeitos, e não podemos nos salvar por nós mesmos, mas unicamente nos abrindo à ação do Espírito Santo de Deus. Da mesma forma como nenhuma pessoa doente pode ser curada, se não reconhecer a sua própria doença e não aceitar ajuda, assim nós não podemos sair da oração transformados se não admitimos diante de Deus a nossa impotência em nos modificar pelo nosso próprio esforço. De fato, para Jesus o fruto mais precioso da oração é quando saímos dela “justificados”, isto é, perdoados, reconciliados, salvos. Justamente porque “diante de Deus nenhum ser humano pode se declarar justo” (Sl 143,2), o Pai das misericórdias nos concede a graça da justificação, pela nossa fé em seu Filho Jesus Cristo (cf. Rm 4,25; 5,1.18-19).     

Jesus conclui o seu terceiro ensinamento sobre a nossa vida de oração afirmando que “quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado” (Lc 18,14). A humildade não é vista como um valor, na cultura atual. Pelo contrário, somos constantemente motivados a nos expor, a pisarmos sobre as pessoas para nos destacarmos como fortes e vencedores. O distanciamento da nossa humildade é o distanciamento da nossa verdade. É como uma árvore que, na sua obsessão em crescer e ser vista e admirada pelos outros, perde o contato com as próprias raízes, tornando-se superficial, sem profundidade.

Humilhar-se não significa rebaixar-se, mas se recusar a ser definido a partir de fora, por uma sociedade vazia e que cultua o próprio vazio. Humilhar-se é ter consciência do próprio tamanho, das suas capacidades e dos seus limites; é viver a partir da sua verdade interior; é sustentar-se a partir das próprias raízes que, escondidas no húmus, na terra, dão sustentação interior à pessoa, para que ela dê frutos, independente se as circunstâncias externas são favoráveis ou não.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

REZAR É TAMBÉM LUTAR CONOSCO MESMOS E COM DEUS

 Missa do 29º dom. comum. Palavra de Deus: Êxodo 17,8-13; 2Timóteo 3,14 – 4,2; Lucas 18,1-8.

 

“Rezar sempre, e nunca desistir” (Lc 18,1). Muitos desistiram de rezar. Muitas mãos não se levantam mais e muitos joelhos não se dobram mais para a oração, apesar do apelo da carta aos Hebreus: “Reerguei as mãos cansadas e fortalecei os joelhos vacilantes” (Hb 12,12). A desistência em rezar tem como causa principal a aparente indiferença de Deus para com as nossas orações. Ele nos ouve? Se nos ouve, por que não nos atende? Se Jesus afirmou, em Lucas 11,11-12, que o Pai nunca nos daria algo inútil (uma pedra em lugar de um pão) ou mau (uma serpente em lugar de um ovo), por que Ele deixou morrer aquele(a) pelo(a) qual suplicamos cura? A única resposta possível para essas perguntas é nos recordar dessa verdade: “Meus pensamentos não são os pensamentos de vocês, nem os meus caminhos são os caminhos de vocês, diz o Senhor” (Is 55,8).

Quando rezamos, nossos olhos se fixam no que está acontecendo agora, mas Deus enxerga o que ainda virá. Além disso, a grande maioria dos nossos pedidos se concentra na vida aqui e agora, nesta vida terrena, mas o propósito de Deus para nós é a verdadeira vida, a Vida Eterna. Toda vez que Ele diz “não” ao nosso pedido, ou “ainda não”, devemos confiar que Ele sabe perfeitamente o que está fazendo. “Rezar sempre, e nunca desistir” (Lc 18,1) vai na direção contrária do imediatismo do nosso tempo. Nós não sabemos mais esperar. No entanto, “os olhos do Senhor estão voltados sobre aqueles que esperam em seu amor” (Sl 33,18); “O Senhor ama aqueles que o respeitam, aqueles que esperam em seu amor” (Sl 147,11).

O que fazer enquanto esperamos pela intervenção de Deus? Rezar, e rezar com insistência, como a viúva do Evangelho fez, ao suplicar ao juiz que lhe fizesse justiça: “Esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!” (Lc 18,5). Rezar com insistência é “aborrecer” Deus, é “cansá-Lo”, até que Ele atenda ao nosso pedido. Jesus nos manda ouvir aquele juiz da parábola: “Escutem o que diz este juiz injusto. E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele? Será que vai fazê-los esperar?” (Lc 18,7).

Diz o salmista: “Os que esperam em ti não ficam decepcionados; ficam decepcionados os que por um nada negam a sua fé” (Sl 25,3). São palavras que nos encorajam a nunca deixar de esperar no Senhor e por sua intervenção em nossa vida. No entanto, temos que admitir que a razão da nossa desistência em rezar vem da nossa decepção com Deus. Nós esperávamos cura, mas Ele permitiu a morte; nós esperávamos sucesso, mas Ele nos fez provar o fracasso; nós esperávamos subir ao mais alto dos céus, mas Ele nos fez descer ao mais profundo do abismo. Aqui é preciso recordar mais uma vez: a verdadeira oração não consiste em submeter Deus à nossa vontade, mas em nos abrir confiantemente ao Seu plano de amor e salvação para conosco.

Rezar é lutar com Deus. Se o texto do êxodo nos mostra que nossas lutas neste mundo só podem ser vencidas pela força da oração (Moisés de braços erguidos), cada um de nós precisa ter consciência que a oração é uma luta, antes de mais nada, conosco mesmos: precisamos lutar conosco mesmos para rezar; lutar contra a nossa decepção, a nossa falta de fé e de esperança; lutar contra a nossa preguiça; lutar contra o nosso ego, que não aceita se submeter à vontade de Deus. Quando rezamos profundamente, percebemos que o inimigo a ser derrotado não está fora (Amalec), mas dentro de nós.

Que a oração seja também uma luta com Deus fica claro em Gênesis 32,23-33. Durante uma noite inteira, Jacó ficou sozinho e lutou com alguém que personificava Deus. Jacó prevaleceu na luta, de modo que disse ao seu oponente: “Eu não deixarei você enquanto não me abençoar” (Gn 32,27). Essa é a postura que Jesus quer que tenhamos perante o Pai, em nossa oração: não deixar de rezar, até que Ele nos abençoe; agarrar o Pai e não soltar d’Ele, até que nos dê o que sabe ser o mais necessário para a luta que estamos enfrentando.

 Peçamos o auxílio do Espírito Santo. Só Ele pode vir em auxílio da fraqueza da nossa oração e interceder ao Pai (cf. Rm 8,26), segundo aquilo que o Pai deseja nos dar, em vista do nosso bem e da nossa salvação.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi




quinta-feira, 9 de outubro de 2025

A FORÇA INTERCESSORA DE NOSSA SENHORA

 Missa de Nossa Senhora Aparecida. Palavra de Deus: Ester 5,1b-2;7,2b-3; Apocalipse 12,1.5.13a.15-16a; João 2,1-11.

 

            O Evangelho escolhido pela Igreja no Brasil, para celebrar Nossa Senhora Aparecida, é justamente o texto bíblico que revela a força da sua intercessão. Da mesma forma como a rainha Ester intercedeu ao seu esposo pela salvação do seu povo – “Se ganhei as tuas boas graças, ó rei, e se for de teu agrado, concede-me a vida - eis o meu pedido! - e a vida do meu povo - eis o meu desejo!” (Est 7,3) – Nossa Senhora intercede junto ao seu Filho pelo vinho novo, símbolo bíblico da alegria no coração humano, símbolo, sobretudo, do Espírito Santo no coração humano, fonte de alegria.

“Peça à mãe que o Filho atende”. Ouvimos ou falamos muito esta frase. Nossa Senhora conhece nossa falta de vinho. Quando rezamos a ela, pedimos que interceda junto ao seu Filho, para que ele nos socorra e nos conceda o que mais precisamos para aquele momento em nossa vida. Porém, não basta apresentar a Nossa Senhora as nossas necessidades. Precisamos também obedecer à sua orientação: “Façam tudo o que ele lhes disser” (Jo 2,5). Se nos consideramos realmente filhos da Virgem Maria, precisamos seguir o exemplo dela: “Faça-se em mim segundo a tua palavra (ou, segundo a tua vontade” (Lc 1,38).

A intercessão de Nossa Senhora aconteceu durante uma festa casamento, na qual acabou o vinho. Aquele casamento era símbolo do casamento por excelência, que é a união de amor entre Deus e a humanidade (Antigo Testamento), entre Cristo e a Igreja (Novo Testamento). A falta do vinho, isto é, a ausência da alegria no coração humano (cf. Sl 104,15), se deve ao fato de este ter se afastado de Deus e ter se tornado como aquelas talhas de pedra vazias (cf. Jo 2,6). Mas Deus havia feito uma promessa ao seu povo: “Tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei no vosso íntimo o meu espírito...” (Ez 36,26-27).

Aqui, algumas perguntas são necessárias: Quando foi que a alegria começou a acabar no meu relacionamento? Eu esgotei a jarra de vinho, sem me preocupar em reabastecê-la? “Há mais alegria em dar do que em receber” (At 20,35). Quanto eu dou de mim para que não falte alegria no meu relacionamento? Meu coração ainda é de carne, humano, sensível, ou endureceu como pedra, tornando-se indiferente, egoísta e individualista?

“Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (Jo 2,10). A rotina, o desencanto e o desgaste fazem parte de qualquer relacionamento, inclusive em nossa vida espiritual. É aqui que entra a crise. Recordemos, então, as palavras do Papa Francisco sobre “A alegria do amor”: “Não se vive juntos para ser cada vez menos feliz, mas para aprender a ser feliz de maneira nova, a partir das possibilidades que abre uma nova etapa. Cada crise implica uma aprendizagem” (n.232).

O “vinho novo” surgiu depois da crise da falta de vinho. Crise também significa “oportunidade”. A falta de vinho foi a oportunidade para Jesus realizar o seu primeiro sinal, como Filho de Deus, e deixar claro que ele pode transformar toda e qualquer situação que confiamos às suas mãos, por meio de sua e nossa Mãe. Nesta Solenidade de Nossa Senhora Aparecida, em que também celebramos o Dia das Crianças, recordemos as palavras de Jesus: “Não impeçais as crianças de vir a mim, pois delas é o Reino dos Céus” (Mt 19,14). Sabemos o quanto nossas crianças estão adoecidas mentalmente devido ao vício do celular, o qual faz crescer sempre mais a ansiedade, a irritabilidade, a falta de concentração, baixa tolerância à frustração, insônia/sono fragmentado, e também a depressão. Não nos esqueçamos de que a plataforma digital mais usada por crianças e adolescentes é o Tik Tok, criado pela China, mas proibido na própria China. Pais que desejam orientar-se quanto ao cuidado e à educação dos filhos podem encontrar uma escelente ajuda no pediatra Daniel Becker, com inúmeros vídeos no You Tube.

Não nos esqueçamos de que a falta de vinho (alegria) na vida das crianças tem como causa principal a ausência dos pais, os quais substituem a presença por coisas materiais dadas aos filhos. Enfim, a cor vermelha do vinho deve nos fazer recordar que o Governo de Israel, nestes dois anos de guerra na faixa de Gaza, matou até agora 20 mil crianças! Segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o número de crianças mortas e feridas até agora, em Gaza, é de 64 mil!   

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi    

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

SEM A FÉ, TODOS SEREMOS DERROTADOS PELAS DIFICULDADES DA VIDA

 Missa do 27º. dom comum. Palavra de Deus: Habacuc 1,2-3; 2,2-4; 2Timóteo 1,6-8.13-14; Lucas 17,5-10.

 

            “Os apóstolos disseram ao Senhor: ‘Aumenta a nossa fé!’” (Lc 17,5). A resposta de Jesus é surpreendente: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria” (Lc 17,6). Enquanto os discípulos pedem uma fé maior, Jesus compara fé à menor semente que existe na terra: o grão de mostarda. Portanto, o problema da nossa fé não é o tamanho, mas a confiança na sua eficácia: embora sendo a menor semente da terra, a mostarda se torna a maior hortaliça que existe. Quanto à amoreira, é a árvore cujas raízes são expansivas, agressivas e podem causar danos às calçadas, canos e fundações se não forem controladas. Portanto, arrancar uma amoreira do lugar não é tarefa fácil, mas Jesus usa propositalmente a imagem da amoreira para falar da força da fé: ela remove aquilo que nossas forças humanas não podem fazê-lo.

            A fé é absolutamente necessária para nos mantermos em pé diante dos ventos contrários e das dificuldades da vida: “Se vocês não tiverem fé, não poderão se manter firmes” (Is 7,9). Quem não tem fé é como uma folha seca levada pelo vento da desorientação, do medo e da perturbação: “Na conversão e na calma estava a vossa salvação, na tranquilidade e na confiança estava a vossa força, mas vós não o quisestes” (Is 30,15). Assim como Israel, nós preferimos confiar em nossos recursos humanos, do que nos apoiar unicamente em Deus. Quando fazemos isso, a vida desaba sobre nós.

            A fé não significa crer em uma suposta força positiva do universo, mas crer em Alguém que tem o poder de nos salvar e de transformar toda e qualquer situação. Por isso, as palavras “Se vocês não tiverem fé, não poderão se manter firmes” (Is 7,9) devem ser entendidas como: “Se vocês não se atreverem a se apoiar em mim, jamais saberão que são amparados”. Só quem se joga nos braços de Deus, através da fé, sente a verdade do Seu amparo, da Sua sustentação.

            Hoje, a fé foi reduzida à emoção, de modo que as pessoas mudam de igreja ou de religião quando deixam de “sentir” Deus. Além disso, a fé deixou de ser compromisso com Deus Pai e com o Evangelho de seu Filho, para se tornar isso: “Eventos cheios, pastorais vazias”. Multidões se deslocam para participar de shows católicos ou evangélicos, mas não participam das missas e muitos menos das pastorais em suas próprias comunidades ou paróquias. Não são pessoas de fé, mas uma massa anônima correndo atrás de emoção (“efeito manada” – vão onde todo mundo está indo). Não são construtores do Reino, mas consumidores de emoções espirituais. Jesus nunca se deixou enganar por multidões. Dois exemplos claros: Jo 6 e Lc 14,25-33.   

            O profeta Habacuc nos mostra que a fé muitas vezes é uma luta com Deus: “Senhor, até quando clamarei, sem me atenderes? Até quando devo gritar a ti: ‘Violência!’, sem me socorreres? Por que me fazes ver iniquidades, quando tu mesmo vês a maldade? Destruições e prepotência estão à minha frente; reina a discussão, surge a discórdia” (Hab 1,2-3). O grito de Habacuc é o grito dos cristãos que sofrem e dos ateus que se perguntam: Se Deus existe, por que permite o mal? A oração de Habacuc é a nossa revolta contra o silêncio de Deus diante da dor dos inocentes. Esse silêncio nos machuca e põe em crise a nossa fé, nos tornando conscientes de que nunca iremos compreender os desígnios de Deus. Aqui é importante recordar que “a fé nunca sabe para onde está sendo conduzida, mas ela confia e ama Aquele que a conduz” (Oswald Chambers).          

            Diante da oração de Habacuc, Deus rompeu o Seu silêncio e disse: “Escreve esta visão... Ela refere-se a um prazo definido, mas tende para um desfecho, e não falhará; se demorar, espera, pois ela virá com certeza, e não tardará. Quem não é correto, vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (Hab 2,2-4). Deus garante a quem n’Ele crê e n’Ele se apoia que intervirá na história humana, mas essa intervenção não será imediata, como estamos acostumados, devido à rapidez da tecnologia: “se demorar, espera, pois ela virá com certeza, e não tardará” (Hab 2,3). É aqui que a nossa fé é provada, verificada como verdadeira ou não: suportar as demoras de Deus, crendo que, no fim, o Seu desígnio prevalecerá em nossa vida pessoal e na história humana.

“Quem não é correto, vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (Hab 2,4). Quem perder a sua fé, se tornará como um arco frouxo, do qual nenhuma flecha pode ser lançada. Sem a fé, nós nos tornamos vivos mortos; o corpo vive, mas a alma definha e o espírito está morto. Sem a fé, somos vencidos por toda e qualquer dificuldade. Sem a fé, não sobreviveremos às provações que já estão aí, características dos tempos finais (cf. Ap 3,10). Somente as pessoas que têm fé sobreviverão a tudo o que já está acontecendo e que virá a acontecer na história humana. Portanto, a fé não nos blinda contra o sofrimento, mas nos dá força para enfrentá-lo.

O apóstolo Paulo chama a fé de “precioso depósito”. Esse depósito deve ser guardado (mantido vivo, protegido, defendido) dentro de nós com o auxílio do Espírito Santo, sabendo que a nossa fé em Cristo Jesus também significa “sofrer por causa do Evangelho”.

Enfim, após esclarecer aos discípulos que a fé é uma questão de qualidade (transportar uma amoreira de lugar) e não de quantidade (do tamanho de um grão de mostarda), Jesus fala da fé como algo concreto: ter fé é ser um servo de Deus, um simples servo, uma pessoa que não contamina a sua fé com ambições de recompensa e nem com a expectativa de retorno imediato, mas faz o que faz por causa do Reino de Deus, por causa do Evangelho, não se deixando abalar em sua confiança em Deus por causa das circunstâncias externas, mas mantendo seus olhos fixos no próprio Jesus, “iniciador e consumador da nossa fé” (Hb 12,2).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

Oração pela fé (Papa São Paulo VI)

 

Senhor, creio em Ti. Eu quero crer em Ti.

Senhor, faze que minha fé seja plena, sem reservas e que penetre em minha inteligência e em meu modo de julgar as realidades divinas e humanas.

Senhor, faze que minha fé seja livre, isto é, que tenha a minha adesão pessoal, aceite as renúncias e os deveres que ela impõe e seja a última instância decisiva de minha pessoa. Creio em Ti, Senhor.

Senhor, faze que minha fé seja certa. Certa pela coerência exterior dos motivos e certa pelo testemunho interior do Espírito Santo. Certa por uma luz que lhe dê segurança, por uma conclusão que a tranquilize, por uma assimilação que a faça repousar.

Senhor, faze que a minha fé seja forte. Que ela não tema a contradição que surge com os problemas, quando é plena a experiência de nossa vida à vida de luz. Que não tema a oposição de quem a discute, a ataca, a rejeita, a nega; mas que ela se robusteça com a experiência íntima de Tua verdade, resista ao cansaço da crítica, fortaleça-se com a afirmação contínua que vence as dificuldades dentro das quais se desenrola nossa existência terrena.

Senhor, faze que minha fé seja cheia de tranquilidade e que dê ao meu espírito paz e alegria, gosto pela oração com Deus e a convivência com os homens, de maneira que, no diálogo com Deus e com o mundo, se irradie a alegria interior de sua posse afortunada.

Senhor, faze que minha fé seja operante e dê à caridade os motivos de sua atuação, de sorte que a caridade seja verdadeira amizade contigo, busca contínua de Ti, contínuo testemunho, contínuo alimento de esperança nas obras, nos sofrimentos, na expectativa da revelação final.

Senhor, faze que minha fé seja humilde e não pretenda apoiar-se na experiência de meu pensamento, mas que se entregue ao testemunho do Espírito Santo e não busque maior garantia a não ser a docilidade à Tradição e à Autoridade do Magistério da Igreja. Amém.