quarta-feira, 16 de abril de 2025

BEBER DO CÁLICE DA DOR, LIVRE E CONSCIENTEMENTE

Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Palavra de Deus: Isaías 52,13 – 53,12; Hebreus 4,14-16; 5,7-9; João 18,1 – 19,42.

      Qual a causa do sofrimento em nossa vida? Ele pode ser consequência de atitudes erradas que tomamos, consequência não daquilo que nos acontece, mas da maneira como lidamos com isso, ou ainda, consequência da nossa fidelidade a Deus, quando procuramos levar uma vida coerente, pautada na retidão e na justiça. Por isso, quando estamos vivenciando uma experiência de dor, precisamos nos perguntar o quanto aquela dor é responsabilidade nossa, o quanto é consequência de injustiças que existem em nossa sociedade e o quanto ela é consequência da nossa fidelidade a Deus.

A atitude mais comum de qualquer ser humano é buscar uma situação de bem-estar e afastar-se de toda situação de dor. Mas hoje a Palavra do Senhor nos confronta com a realidade da dor, presente de alguma forma na vida de todo ser humano. O salmista afirma que, algumas vezes, a dor e o sofrimento nos despedaçam como um vaso – “tornei-me como um vaso espedaçado” (Sl 31,13) – quebrando não somente a nós, mas também a imagem que até então tínhamos de Deus. Por isso, hoje precisamos trazer para a cruz de Cristo esses pedaços: os nossos próprios pedaços e também os pedaços que sobraram da nossa fé, da imagem que tínhamos de Deus e que agora não conseguimos mais reconstruir.

A verdadeira imagem de Deus está na cruz de seu Filho: “não tinha beleza nem atrativo para o olharmos, não tinha aparência que nos agradasse” (Is 53,2). É aqui que a nossa imagem de Deus começa a se quebrar. Nós gostaríamos que Ele sempre se manifestasse em nossa vida como beleza, saúde, força, vitória, sucesso, prosperidade... Mas, às vezes, Deus vem a nós por meio de uma experiência que não nos agrada: a doença, a dificuldade financeira, a perda, o fracasso, o conflito, a crise, a dor. É a hora do confronto com uma verdade que precisamos encarar.

“A verdade é que ele tomava sobre si as nossas enfermidades e sofria, ele mesmo, nossas dores... Ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes” (Is 53,4.5). A verdade é que, apesar de sermos filhos de Deus, não nascemos blindados contra a dor, nem vamos passar por este mundo sendo constantemente poupados de sofrimento. A verdade é que nós cometemos pecados, e esses pecados produzem dor e sofrimento na sociedade. A verdade é que a religião existe não para nos manter o mais distante possível da dor, mas para nos capacitar a enfrentar a dor e também a estar junto de quem se encontra hoje crucificado, seja pelos seus próprios erros, seja pelos erros de outros.            

Jesus nos dá o exemplo de como podemos nos posicionar diante de uma dor que não é escolha nossa, mas que nos cabe enfrentar. Quando Pedro tentou evitar a sua prisão, Jesus o questionou: “Não vou beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18,11). Jesus nos ensina que a cruz nem sempre é uma opção; opção é a nossa liberdade de escolher como queremos lidar com a cruz que atravessou o caminho da nossa vida. Não é prudente ter tanta pressa em passar adiante o cálice que o Pai nos dá para beber. Apesar de amargo, esse cálice pode conter o único e verdadeiro remédio para nos curar da ferida do egoísmo, do vício, do pecado, de atitudes nossas que estão destruindo a nossa vida pessoal, familiar, profissional ou espiritual.

A carta aos Hebreus nos ensina que Jesus não “tirou de letra” a experiência terrível de ser crucificado! Ele “dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte. E foi atendido, por causa da sua entrega a Deus. Mesmo sento Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que sofreu” (Hb 5,7-8). Jesus jamais negou sua repulsa humana diante da dor, do sofrimento e da morte, mas ele transformou essa repulsa em oração, uma oração tão profunda e sincera que foi atendida pelo Pai; não atendida livrando-o de passar pela cruz, mas atendida enquanto ressuscitando-o após a morte de cruz. Deus tem outra forma de responder à nossa oração, e só a fé no Seu amor por nós pode nos livrar de enlouquecermos ou de perdermos o sentido da vida por causa da cruz que atravessou o nosso caminho. Aquilo que sofremos pode ser vivido como uma redescoberta da presença do Pai em nossa vida, se estivermos abertos a aprender o que Ele está querendo nos ensinar.

Se é verdade que o nosso mundo está infectado pelo mau cheiro da morte, somos chamados a fazer como Nicodemos: espalhar perfume onde existe mau cheiro; espalhar o perfume da esperança onde há o mau cheiro do desespero; espalhar o perfume da consolação onde há o mau cheiro da desolação; espalhar o perfume da solidariedade onde há o mau cheiro da indiferença; espalhar o perfume da palavra de conforto onde há o mau cheiro do abatimento; espalhar o perfume do diálogo e da reconciliação, onde há o mau cheiro da inimizade.

Hoje, ao nos colocarmos diante da cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, tenhamos consciência que somente um Desgraçado pode salvar os desgraçados; somente um Condenado pode salvar os condenados; somente um Deus ferido pode salvar uma humanidade ferida.

            “Eu sei que um dia alguém vai ter que me enterrar, mas eu não vou fazer isso comigo mesma” (Cora Coralina).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

terça-feira, 15 de abril de 2025

NÃO BASTA COMER O CORDEIRO; É PRECISO CONFIGURAR-SE A ELE!

 Missa da Ceia do Senhor. Palavra de Deus: Êxodo 12,1-8.11-14; 1Coríntios 11,23-26; João 13,1-15.

                         

            Ao ouvirmos nesta noite os preparativos para a páscoa do Antigo Testamento, a pergunta que cada um de nós precisa se fazer é: De qual situação de escravidão eu preciso que o Senhor me liberte? De algum vício? De algum pecado? De alguma pessoa? Mais do que tudo, do próprio espírito do mal?

            O personagem central da páscoa dos hebreus no Egito foi o cordeiro: cada família devia sacrificá-lo, passar seu sangue na porta da casa e comer a sua carne assada ao fogo, com pães sem fermento e ervas amargas. Aqui outra pergunta é necessária: que tipo de espírito exterminador ameaça a minha família hoje? Doença? Drogas? Violência? Separação? Traição? Brigas? Dívidas? Celular? Jogos de apostas?

            Os pães sem fermento representam a pressa em sair do Egito. Somos pessoas apressadas, mas no sentido de viver correndo de um lado para outro, muitas vezes movidos pelas pressões externas e não por convicções internas. Nós também somos rápidos em agir para defender a nossa família ou os nossos valores espirituais? O pão sem fermento nos remete para Jesus, homem sem maldade, sem orgulho, humilde (o fermento incha a massa). A hóstia é pão sem fermento. Nós, que comungamos o Corpo de Cristo, somos pessoas sem maldade e simples de coração? Enfim, as ervas amargas eram necessárias para os hebreus não se esquecerem da vida amarga que tiveram no Egito. Ninguém gosta de recordações amargas, mas elas são necessárias para não voltarmos a nos tornar escravos de situações que nos fazem mal. Só remédios amargos curam doenças graves. Estamos dispostos a tomá-los, em vista da nossa cura e da nossa libertação?

            Os textos da carta de São Paulo e do Evangelho nos remetem para a páscoa do Novo Testamento. Nela o cordeiro não é mais um animal que é sacrificado sem ter consciência da razão do próprio sacrifício. Jesus é o Cordeiro de Deus que, livre e conscientemente, abraça o sacrifício da cruz em favor da salvação da humanidade. Seu sangue será derramado para perdoar nossos pecados e nos libertar definitivamente das mãos do espírito do mal. Comer o Corpo e beber o Sangue do Senhor Jesus implica em viver como Ele viveu: corpo doado e sangue derramado, isto é, não viver unicamente em função de nós mesmos, mas fazer da nossa existência uma doação para a salvação da humanidade. O próprio Jesus nos convida a imitá-lo: “Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,14-15).

            A atitude de Jesus escandalizou os próprios discípulos, pois lavar os pés das visitas durante uma refeição era um serviço próprio de escravos. Na última Ceia, Jesus quer ser lembrado por seus discípulos como aquele que serve. O escândalo de Pedro é o nosso escândalo, justamente porque não pensamos como Deus, mas como os homens: não queremos estar com os últimos, mas com os primeiros; não queremos nos sacrificar, mas usufruir, aproveitar, desfrutar das coisas boas da vida. Só mais tarde Pedro compreenderá a atitude de Jesus, quando estiver disposto a doar a sua vida pelo bem das ovelhas e dos cordeiros do rebanho de Jesus, que é a Igreja (cf. Jo 21,15-17).

            Na última Ceia alguém está comendo o Corpo e bebendo o Sangue de Jesus, mas o faz com o diabo em seu coração: Judas. O diabo é o divisor, o separador. Judas decidiu se separar de Jesus porque o queria forte e agressivo como um leão, e não fraco e manso como um Cordeiro. Judas se encontra hoje em todo cristão que acredita na força do dinheiro e das armas para resolver os problemas do mundo. As igrejas estão cheias de Judas, de fiéis que não se identificam com o Cordeiro, mas com o Leão, que exerce o domínio sobre todos e mata suas presas sem piedade. Justamente por conhecer cada ser humano por dentro (cf. Jo 2,25), Jesus hoje declara: “Nem todos estais limpos” (Jo 13,11). ‘Nem todos vocês querem se configurar a mim’.

            Nesta noite se inicia a nossa Páscoa. Cada um de nós é convidado a sair do Egito, isto é, da sua situação de escravidão, e a seguir os passos do Cordeiro de Deus, enfrentando o ódio do mundo, expresso na Cruz, na certeza de que aquele que perseverar até o fim no amor que nos torna “corpo doado e sangue derramado” será salvo. Se na hora da cruz todos os discípulos abandonaram Jesus, permaneçamos com Ele como fez o discípulo amado, mantendo no coração esta certeza: “Se com ele morremos, com ele viveremos. Se com ele sofremos, com ele reinaremos” (2Tm 2,11).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi 

quinta-feira, 10 de abril de 2025

OS SEIS ENSINAMENTOS DA PAIXÃO DE JESUS, SEGUNDO LUCAS

           Domingo de Ramos da Paixão do Senhor. Palavra de Deus: Lucas 19,28-40; Isaías 50,4-7; Filipenses 2,6-11; Lucas 23,1-49.

Hoje fazemos memória da entrada de Jesus em Jerusalém. Ele entra na cidade montado num jumentinho (cf. Lc 19,35) e não num cavalo, porque ele é manso e humilde, e não agressivo e violento. Como gostamos de nos sentir: Fortes ou fracos? Perdedores ou vencedores? Como quem sobe ou como quem desce? Com quem nos identificamos: com o Cordeiro ou com o leão? Enquanto nossas escolhas vão numa direção, Jesus escolhe a direção oposta: “esvaziou-se a si mesmo”, “assumiu a condição de escravo”, “humilhou-se a si mesmo”, “fez-se obediente até a morte” (Fl 2,7-8). Por qual motivo? Por causa da fidelidade à sua missão: salvar. Ele veio responder à nossa súplica: “Hosana!”, que significa “Dai-nos salvação!”. Eis a grande verdade: somente um Desgraçado pode salvar os desgraçados; somente um Condenado pode salvar os condenados; somente um Deus ferido pode salvar uma humanidade ferida.

Outra grande verdade que o dia de hoje nos revela: não existe salvação sem sacrifício. Não existe salvação para um relacionamento, quando um dos dois ou ambos não estão dispostos a sacrificar-se pelo mesmo. Não existe salvação para os filhos quando os pais não estão dispostos a se sacrificarem por eles, e vice-versa. E assim é também com o ambiente de trabalho, com a comunidade de fé, com a cidade; enfim, com o mundo no qual nos encontramos. Não nos esqueçamos disso: onde não há sacrifício, não há salvação.   

Na oração inicial da missa de hoje nós pedimos que o Pai nos conceda aprender o ensinamento da paixão (sofrimento) de seu Filho, para podermos ressuscitar com ele em sua glória. O primeiro ensinamento da paixão de Jesus é a constatação da sua inocência: “Não encontro neste homem nenhum crime” (Lc 23,4); “Ele nada fez para merecer a morte” (Lc 23,15); “Não encontrei nele nenhum crime que mereça a morte” (Lc 23,22). O que ainda existe de inocência em nós? Como eu lido com o fato de sofrer algum tipo de acusação injusta, como Jesus sofreu? Eu confio na justiça de Deus?

O segundo ensinamento da paixão de Jesus é a constatação de que nós estamos cada vez mais nos identificando com o mal: “A gritaria deles aumentava sempre mais. Então Pilatos decidiu que fosse feito o que eles pediam. Soltou o homem que eles queriam — aquele que fora preso por revolta e homicídio — e entregou Jesus à vontade deles” (Lc 23,23-25). Nosso modelo não é o Cordeiro que dá a vida, mas o leão que destrói a vida. Exemplo concreto: Andrew Tate, incitador de violência contra mulheres, tem 10 milhões de seguidores nas suas redes sociais. A rede social mais acessada no mundo, sobretudo por crianças e adolescentes, se chama Tik Tok, a qual propaga milhões de vídeos de violência que banalizam a vida de seres humanos e de animais.   

O terceiro ensinamento da paixão de Jesus é uma lamentação dele para com a nossa geração: “Chorai por vós mesmas e por vossos filhos! (...) Porque, se fazem assim com a árvore verde, o que não farão com a árvore seca?” (Lc 23,28.31). Chorem por vocês mesmos, pais, que dão celulares para seus filhos pequenos para que eles os deixem em paz, enquanto eles começam desde cedo a se viciarem nas telas. Chorem por vocês mesmos, pais, que acreditam ingenuamente que o fato de seus filhos estarem no quarto navegando na Internet significa que eles estão seguros. Chorem por vocês mesmos, crianças e adolescentes, que têm preguiça de ler um livro, que estão viciadas em jogos e vídeos, que se fecham para seus pais, mas se abrem para estranhos nas redes sociais. Chore por você mesmo(a), árvore seca, pessoa que não cria raiz em Deus, mas vive como folha seca que o vento das redes sociais empurra para onde quer.

O quarto ensinamento da paixão de Jesus é a libertação de todo tipo de condenação. Um homem, condenado por seus crimes, suplica: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”. Jesus lhe respondeu: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,42-43). Lembra-te de nós, Senhor, humanidade adoecida, desorientada, exposta ao mal ao mesmo tempo em que propaga o mal com suas atitudes. Lembra-te de nós, Senhor, consumidores que exploram os recursos naturais como se eles fossem inesgotáveis, que não nos dispomos a fazer algo de concreto pela preservação do meio ambiente. Lembra-te de nós, que não nos dispomos a mudar os nossos hábitos, mesmo sabendo que eles continuam a favorecer a destruição e a morte, para nós mesmos e para as gerações futuras.

O quinto ensinamento de Jesus é a sua entrega às mãos do Pai: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). Nós vivemos todos os dias nas mãos da ansiedade, do medo, da insegurança com relação a algo de ruim que possa nos acontecer. Jesus nos convida a substituir a ansiedade e o medo pela confiança, através de uma entrega incondicional ao Pai: “Meu Pai, que me deu essas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatar coisa alguma das mãos do Pai” (Jo 10,29). “Humilhem-se debaixo da poderosa mão de Deus, para que no momento oportuno Ele exalte vocês; lancem n’Ele todas as suas preocupações, porque é Ele quem cuida de vocês” (1P 5,6-7).

O sexto ensinamento da paixão de Jesus é a nossa atitude de olhar o sofrimento dos outros como quem assiste a um espetáculo: “As multidões, que tinham acorrido para assistir, viram o que havia acontecido e voltaram para casa, batendo no peito” (Lc 23,48). A tradução mais fiel ao texto bíblico é: “E toda a multidão que havia acorrido para ver o espetáculo...” (Lc 23,48), tradução da Bíblia de Jerusalém. As redes sociais nos presenteiam com fotos e vídeos de tragédias, de violência e, inclusive de suicídio de adolescentes e jovens, e nós assistimos a tudo isso como quem assiste a um espetáculo. Precisamos “bater no peito”, atitude bíblica de arrependimento, de quem se pergunta: Por que o nosso nível de humanidade está tão baixo? Por que a dor do outro não provoca indignação em mim? Como é que eu me tornei um doente no meio de uma sociedade doente, um cínico no meio de uma sociedade cínica, um indiferente no meio de uma sociedade indiferente à dor do outro?

Hosana! Dai-nos salvação, Senhor Jesus!

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 3 de abril de 2025

SEU PRESENTE ESTÁ ABERTO AO FUTURO DE DEUS OU ENROSCADO NO PASSADO DA SUA CONDENAÇÃO?

 Missa do 5º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Isaías 43,16-21; Filipenses 3,8-14; João 8,1-11.

 

            O cardeal Van Thuan afirmou: “Não há santos sem passado, nem pecadores sem futuro”. Toda pessoa que hoje está fazendo um caminho de santificação teve um passado em que, algumas vezes, fez escolhas erradas e também tomou decisões erradas, ou seja, atitudes que a levaram a pecar. Isso significa que aquele que está num caminho de santidade hoje não deve se encher de orgulho e olhar os “pecadores” com desprezo, julgando-os e condenando-os como pessoas que não têm salvação.

            Se é verdade que “não há santos sem passado”, cada um de nós é chamado a se reconciliar com o seu passado. Qualquer coisa que tenha acontecido nele não pode ser mudada, por maior que seja o nosso arrependimento. Além disso, sempre é importante recordar que nós não somos o resultado do nosso passado, daquilo que nós mesmos, os outros ou a vida fez conosco; nós somos o resultado daquilo que escolhemos fazer com o que nos aconteceu. Portanto, tomemos cuidado com a síndrome de Gabriela: “Eu nasci assim; eu cresci assim; eu sou mesmo assim; vou ser sempre assim: Gabriela, sempre Gabriela”.

            Consideremos a outra parte da verdade: “não há pecadores sem futuro”. Qual futuro existe para uma pessoa que até ontem foi pecadora? Para os mestres da Lei e os fariseus, somente um: a condenação – ser apedrejada até morrer. Para Jesus, um futuro de salvação: “Podes ir, e de agora em diante não peques mais” (Jo 8,11). Na verdade, nós não temos nenhum controle sobre o nosso futuro, mas ele está sendo preparado no único tempo que temos em nossas mãos: o presente. É na página chamada “hoje” que estamos escrevendo a nossa história, a qual pode ser simplesmente uma continuação do passado ou uma história aberta a um futuro novo.

            O Deus da esperança nos faz hoje um convite: “Não relembreis coisas passadas, não olheis para fatos antigos. Eis que eu farei coisas novas, e que já estão surgindo: acaso não as reconheceis? Pois abrirei uma estrada no deserto e farei correr rios na terra seca” (Is 43,18-19). A cada dia, Deus nos abre uma estrada e nos convida a dar passos na direção do futuro que Ele deseja para cada um de nós. A pergunta é: quem de nós está disposto a caminhar na estrada que Deus nos abre? Quantas pessoas estão vivendo a sua vida olhando não para frente, mas para trás, como alguém que dirige o seu carro olhando o tempo todo para o retrovisor e não para a estrada à sua frente?!

            Muitas pessoas estão insatisfeitas com a vida que têm levado, e certamente dirigem a Deus o mesmo clamor dos israelitas no exílio da Babilônia: “Mudai a nossa sorte, ó Senhor, como torrentes no deserto” (Sl 126,4). Clamar ao Deus que faz novas todas as coisas (cf. Ap 21,5) para que mude a nossa vida é muito importante! No entanto, não podemos esquecer de que, junto com o pedido “mudai a nossa sorte...”, está um compromisso: “Os que lançam as sementes entre lágrimas, ceifarão com alegria” (Sl 126,5). Só lança sementes quem tem esperança. Toda e qualquer mudança que queiramos em nossa vida depende das sementes que hoje estamos lançando. Quem se recusa a mudar suas atitudes não tem como colher nenhuma mudança.

            Jesus não condenou a mulher apanhada em flagrante adultério, mas a convidou a mudar suas atitudes: “Não peques mais”. “Pecar” (hamartia, em grego) significa “errar o alvo”. Assim como aquela mulher, nosso alvo é ser feliz. O problema está na forma como buscamos alcançar essa felicidade, sobretudo prejudicando pessoas ou desobedecendo aos mandamentos da Lei de Deus. Além disso, o alvo de um cristão não pode ser reduzido unicamente em “ser feliz”, mas em “ser salvo”, em “alcançar a vida eterna”! Todo tipo de felicidade que compromete a nossa salvação é um erro, um pecado, uma ilusão passageira.

            São Paulo nos dá o exemplo do que significa ser uma pessoa habitada pela esperança, uma pessoa que aprendeu a se libertar do seu passado e a se abrir ao futuro que Deus quer para ela: “Corro para alcançar Cristo Jesus, visto que já fui alcançado por ele... Esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente. Corro direto para a meta, rumo ao prêmio, que, do alto, Deus me chama a receber em Cristo Jesus” (Fl 3,12-14). Assim como a mulher do Evangelho, cada um de nós já foi alcançado por Jesus no seu sacrifício de cruz. Ele morreu por todos e reconciliou a todos com Deus. A partir de agora, não tem mais sentido viver carregando culpa ou condenação pelos erros cometidos no passado, mas nos lançar para o que está na frente: a salvação definitiva em Cristo Jesus.

            Algumas perguntas: Eu já consegui me reconciliar com o meu passado? Eu já perdoei a mim mesmo(a), aos outros ou a Deus pelas coisas ruins que me aconteceram? Hoje eu vivo a minha vida com liberdade e responsabilidade, dando um rumo diferente para a minha existência, ou me faço de vítima, como a música “Gabriela”? Eu tomo a cada dia a decisão de caminhar na estrada nova que o Deus da esperança abre à minha frente? Eu permito que Ele me faça passar do deserto árido e seco para uma terra fértil e abençoada pela chuva? Além de pedir que o Senhor mude a minha sorte, eu faço a minha parte, lançando as sementes da mudança que eu desejo, ainda que em meio às lágrimas? Eu creio no perdão de Jesus para todos os meus pecados e aceito mudar minhas atitudes, rompendo com o círculo vicioso dos meus erros? Apesar dos meus tropeços e quedas, eu me levanto e me lanço para a frente todos os dias, para a meta que o Pai me chama a alcançar em seu Filho Jesus?  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 27 de março de 2025

SER O ABRAÇO DO PAI PARA TODO AQUELE QUE PRECISA VOLTAR A VIVER

 Missa do 4º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Josué 5,9a.10-12; 2Coríntios 5,17-21; Lucas 15,1-3.11-32.

 

O que motivou Jesus a contar a parábola que acabamos de ouvir foi a crítica dos fariseus e dos mestres da Lei: “Este homem acolhe pecadores e faz refeição com eles” (Lc 15,2). Por trás dessa crítica, há uma imagem distorcida de Deus e da Igreja: quando uma pessoa decide conscientemente se afastar de Deus pecando, Deus a abandona no seu pecado, e o papel da Igreja é declarar que tal pessoa está perdida, que não tem salvação. Em outras palavras, para os fariseus e os mestres da Lei de ontem e de hoje, a Igreja é o lugar dos salvos e o “mundo” é o lugar dos perdidos, dos que não têm salvação.       

Jesus deixa claro que Deus não aceita perder ninguém, e para recuperar um filho Seu, Ele é capaz de tudo. Além disso, a Igreja não é o lugar dos salvos, mas dos reencontrados, porque não há ninguém que algum dia não tenha se perdido na vida. Ninguém de nós está garantido de não se perder, assim como não há ninguém perdido que não possa ser reencontrado. Jesus quer reavivar em nós a esperança de que nada está perdido para sempre: o filho mais novo estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado! (cf. Lc 15,24.32).

Se o desencanto nos faz abandonar a esperança da volta, da mudança, da conversão, Jesus nos ensina que a nossa fé deve ser pascal: para quem crê, sempre existe uma possibilidade de páscoa, de tomar o caminho de volta e fazer a passagem da morte para a vida, da perda para o reencontro. Aqui cabe uma pergunta: “Minha fé se transformou em desilusão ou ainda pulsa viva, na certeza de que aquele que morreu pode voltar a viver e aquele que se perdeu pode ser reencontrado?”.

O filho mais novo, que decide não mais viver na casa com o pai, retrata a humanidade atual, na sua decisão de não depender de Deus, de afastar-se da religião (autoridade do Pai), decidindo por si mesma o que é o bem e o que é o mal; em alguns casos, de crer em Deus, mas de não aceitar que Ele interfira nas suas escolhas e decisões, por meio das orientações da Igreja; em outros casos, de viver como se Deus não existisse. O resultado do afastamento de Deus é uma vida autodestrutiva, pois toda pessoa que decide sair das mãos de Deus passa a destruir-se com suas próprias mãos.

Eis o retrato da autodestruição: o filho que tinha tudo na casa do pai agora se encontra passando fome, sem poder comer até mesmo a comida que ele próprio dava aos porcos. Esse filho desceu ao mais profundo do poço, ao mais profundo do buraco que ele mesmo cavou. Quando nós rejeitamos depender de Deus, passamos a sofrer uma dependência imposta pelo mundo. Quantas pessoas estão vivendo no meio de porcos?

Felizmente, existe algo no ser humano capaz de fazê-lo voltar: sua consciência. Foi “caindo em si” que o filho mais novo percebeu o erro que havia cometido e que ainda havia um lugar para o qual voltar: sua casa; ainda havia alguém para quem ele voltar: seu pai! Se existe um caminho de distanciamento, existe também um caminho de reaproximação. Nada está perdido para sempre; nada está morto definitivamente! É possível voltar! Nós temos não apenas “para onde” voltar, mas para quem voltar: o Pai! Qualquer que seja o nosso pecado, qualquer que tenha sido o nosso desejo de matá-lo dentro de nós, o Pai continua vivo e de braços abertos para nos receber de volta! Portanto, se muitas pessoas desistiram de si mesmas, Deus não desiste de nenhum ser humano.

O coração do Evangelho está aqui: “Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos... ‘Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado’” (Lc 15,20.23-24). O retrato mais verdadeiro de Deus está aqui! Somos provocados por esta cena a nos deixar abraçar pelo Pai. É possível que também nós estejamos longe d’Ele, longe da Sua compaixão para com quem erra. Precisamos do Seu abraço, para que o nosso coração deixe de se referir ao que erra como “esse teu filho” e passe a reconhecê-lo como “este meu irmão”. 

Vivendo no seio de uma humanidade órfã, nós precisamos ser o “abraço do Pai” para as pessoas descartadas, esquecidas e ignoradas. Todos aqueles que estão perdidos precisam saber que podem ser reencontrados! Todos aqueles que estão mortos por dentro precisam saber que podem voltar a viver! Jesus quer a sua Igreja misericordiosa, um lugar onde haja lugar para aqueles que não têm lugar neste mundo. A ação pastoral da nossa Igreja precisa se traduzir em buscar e salvar os que se distanciaram, se extraviaram, se perderam. O abraço do Pai precisa chegar, por meio de cada um de nós, a muitos que ainda estão longe.

Deus hoje nos faz um apelo para que reconheçamos que aquele que se perdeu é nosso irmão, e a nossa alegria só será completa quando aquele que está morto voltar a viver, quando aquele que está perdido for encontrado. Por isso, ao comungar hoje, é importante que nos perguntemos: A quem eu devo procurar? Quem precisa ser encontrado por mim? Para quem eu devo ser nesta semana sacramento da misericórdia do Pai?

 

            Pe. Paulo Cezar Mazzi    

quinta-feira, 20 de março de 2025

DEIXAR DE SER UMA PRESENÇA INÚTIL E TORNAR-SE UMA PRESENÇA NECESSÁRIA

 Missa do 3º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Êxodo 3,1-8a.13-15; 1Coríntios 10,1-6.10-12; Lucas 13,1-9.

 

As tragédias sempre marcaram a história humana. Concretamente, podemos nos lembrar de duas: 1) Em 25/01/2019, a barragem da Mina de Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho (MG), rompeu, matando 270 pessoas. 2) Em 09/08/2024, um avião com 62 pessoas a bordo caiu em um condomínio no bairro Capela, em Vinhedo (SP). Nenhum sobrevivente. Como interpretamos uma tragédia? Ela seria castigo de Deus pelos pecados das pessoas que nela morreram?   

Existem tragédias que são consequência das atitudes erradas das pessoas, assim como existem tragédias que são simplesmente uma fatalidade, ou seja, as pessoas atingidas por elas não foram responsáveis pelo que aconteceu. Jesus não nos explica a razão de ser das tragédias ou das fatalidades, mas aproveita esses fatos para nos fazer uma advertência: “Se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo” (Lc 9,4.5). Em outras palavras, quando interpretamos que as pessoas morrem numa tragédia porque pecaram, estamos profundamente enganados. Além disso, a questão principal é: o que essa tragédia está dizendo a cada um de nós?

Quando recebemos a notícia de vidas que foram destruídas numa tragédia ou numa fatalidade, devemos revisar as nossas atitudes, principalmente aquelas que favorecem a destruição de valores, como a bondade, a justiça, a verdade, como também aquelas que favorecem a destruição de pessoas em nossos relacionamentos. Neste sentido, precisamos tomar consciência de que a verdadeira tragédia não é a nossa morte física, mas a nossa morte espiritual. Tragédia é abandonar nossa vida de oração, é desistir de ser uma pessoa fiel, honesta e justa; tragédia é deixar os nossos desejos desordenados tomarem o lugar da nossa consciência e nos jogarem de um lado para o outro, como uma folha seca que o vento leva para onde quer. Tragédia é seguir o fluxo, ir atrás da maioria, tornar-se uma pessoa mundana justificando que todo mundo faz assim.

Para nos ajudar a fazer um exame de consciência das nossas atitudes, Jesus nos conta a parábola da figueira estéril: “Já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro. Corta-a! Por que está ela inutilizando a terra?” (Lc 9,7). Cada um de nós é uma árvore frutífera que Deus plantou em um lugar específico da face da Terra. Independentemente do tipo de terreno em que nos encontramos, temos a capacidade de ser fecundos, de produzir frutos, de fazer o bem. A questão, porém, é: nós temos vontade de fazer o bem? Nós usamos nossa inteligência, nossa vontade e nossa liberdade para produzir destruição em nossa própria vida, na vida de outras pessoas e em nosso Planeta, ou fazemos aquilo que está ao nosso alcance para gerarmos vida à nossa volta?

Nosso mundo está cheio de árvores inúteis, isto é, de pessoas preguiçosas e com má vontade, pessoas não somente individualistas, que não se importam com os outros, mas verdadeiras parasitas, que além de não ajudarem ninguém, vivem à custa do trabalho de outros. O recado do Evangelho é muito claro: “Corta-a! Por que está ela inutilizando a terra?” (Lc 9,7). Essa ordem de cortar está relacionada com o julgamento de cada um de nós, e se ela nos parece muito radical, lembremos a advertência da Palavra de Deus: “Aquele que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4,17). Em outras palavras, nós pecamos não somente quando provocamos destruição em nossa vida, na vida das pessoas ou do Planeta; nós também pecados quando cruzamos os braços e nos tornamos indiferentes às necessidades à nossa volta.

Antes que chegue o dia do nosso julgamento, quando o Senhor pedirá contas dos frutos que somos capazes de produzir, o próprio Senhor nos oferece o tempo da sua misericórdia, pois Ele “é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e compassivo” (Sl 103,8). Se, na parábola da figueira estéril, o Pai é o dono da plantação, seu Filho Jesus é o servo que intercede pela manutenção da figueira por mais um ano: “Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás” (Lc 9,8-9). Cada vez que ouvimos o Evangelho e permitimos que ele questione as nossas atitudes, estamos nos abrindo para receber o adubo do Espírito Santo, que transforma nossa esterilidade em fertilidade.

Finalizando nossa reflexão, é importante não abusar da misericórdia de Deus. Toda pessoa que morre de forma trágica nos lembra que, quando menos imaginarmos, nós seremos “cortados” da face da terra e colocados diante do Senhor, o justo Juiz, para prestar contas dos frutos que Ele mesmo nos tornou capazes de produzir. Se durante a Quaresma a nossa Igreja realiza uma Campanha da Fraternidade é justamente para nos lembrar que nossas atitudes cristãs devem ter uma incidência social, pois, da mesma forma como uma árvore não produz fruto para si mesma, a Igreja não existe em função de si mesma, mas da salvação do mundo.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

 

 

quinta-feira, 13 de março de 2025

SÓ A ORAÇÃO TEM FORÇA PARA NOS TRANSFIGURAR

 Missa do 2º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Gênesis 15,5-12.17-18; Filipenses 3,17 – 4,1; Lucas 9,28-36.

 

            “Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar” (Lc 9,28). Quando foi a última vez que você subiu à montanha para rezar? São Paulo afirmou que nós somos cidadãos do céu. Só a oração nos coloca em contato com o céu, com Aquele que é fonte da nossa origem. Um cidadão do céu que não reza tem o seu espírito desnutrido, definha na sua fé e na sua esperança. Um cristão que não reza é vencido pelas diversas situações que não só o desfiguram por fora, mas sobretudo por dentro. Quando diariamente não separamos um tempo para a oração, para estarmos na presença de Deus, as preocupações da vida e as cobranças do mundo vão nos desfigurando e nos enchendo de angústia. Só a oração pode nos transfigurar, como também transfigurar a realidade à nossa volta: “Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc 9,29).

            A desfiguração pode ser vista por toda a parte: casamentos / relacionamentos desfigurados pelo distanciamento, pelo desencanto e pelo ressentimento; crianças, adolescentes e jovens desfigurados pelo vício das telas; pessoas desfiguradas por algum tipo de vício, pela cobrança no trabalho, pelas pressões do mundo, pela sobrevivência da família; cidades desfiguradas pela violência, pelo tráfico e pelo fechamento das pessoas em seus próprios interesses; um mundo desfigurado pela guerra, pela fome; igrejas desfiguradas por escândalos; um fé desfigurada pela incapacidade de esperar em Deus...             Jesus se deparou inúmeras vezes com pessoas desfiguradas, e ele mesmo sofreu a desfiguração da cruz. No entanto, sua experiência de transfiguração nos revela que por trás da sombra da cruz há a luz da ressurreição; por trás da dor do sacrifício há a alegria da salvação. É por isso que o evangelista Lucas, ao narrar a transfiguração de Jesus, menciona a Sua glória. “Glória” é um termo bíblico usado para falar da presença de Deus. Na carne humana e frágil de Jesus, que como a nossa se desfigura dia a dia, habita a presença de Deus, que tudo transfigura. Se o passar do tempo nos traz a consciência da nossa finitude, na oração tomamos consciência de que “somos cidadãos do céu. De lá aguardamos o nosso Salvador, o Senhor, Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso, com o poder que tem de sujeitar a si todas as coisas” (Fl 3,20-21).

            Estamos no ano do Jubileu da Esperança. “A esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). A Esperança é a força divina capaz de transfigurar a nossa vida. Ela nos recorda que o nosso corpo humilhado, que carrega em si a fragilidade da natureza humana, um corpo que morre um pouco a cada dia, está destinado a se tornar “corpo glorioso”, pleno de vida, transfigurado definitivamente pela nossa ressurreição futura. Portanto, qualquer que seja a nossa experiência de desfiguração, ela é temporária, e não definitiva.

            Há um detalhe importante na experiência da transfiguração de Jesus: embora Ele se encontrasse na glória de Deus, onde estavam Moisés e Elias, os três conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém (cf. v.31). Isso nos revela que a verdadeira oração nunca é fuga da vida, mas coragem para enfrentar aquilo que faz parte do nosso caminho de vida. A oração não é o momento em que Deus nos tira do mundo e nos blinda contra a dor e o sofrimento, mas o momento em que Ele nos dá o Seu Espírito, para que possamos nos manter fiéis à nossa missão, enfrentando nossa experiência de cruz na certeza de que ela terá como desdobramento a nossa participação na glória de Deus. Por isso, a nossa oração nunca pode se tornar fuga da realidade, mas lugar onde a nossa realidade desfigurada recebe a garantia da transfiguração que Deus opera na história de quem a Ele se confia na oração.

            Presenciando a oração de Jesus, Pedro Tiago e João foram envolvidos por uma nuvem, símbolo bíblico da presença de Deus, e ouviram a Sua voz: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!” (Lc 9,35). Nós reclamamos que não ouvimos a voz de Deus em nossa oração, mas essa voz está na pessoa de Seu Filho Jesus. “Escutar” Jesus significa aprender com Ele como lidar com nossas experiências de desfiguração, como tomar consciência da realidade que nos cabe enfrentar e, sobretudo, como rezar, entendendo a oração como o momento em que Deus nos conduz para fora do nosso medo, da nossa angústia, da nossa falta de fé, e alarga o horizonte da nossa compreensão, como fez com Abrão: “o Senhor conduziu Abrão para fora e disse-lhe: ‘Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz!’ E acrescentou: ‘Assim será a tua descendência’ (Gn 15,5).  

            Eis a importância da Esperança em nossa vida! Ela nos conduz para fora da estreiteza do nosso olhar e nos faz enxergar a amplitude do horizonte da nossa vida. A vida não é somente aquilo que estamos conseguindo enxergar neste momento. Deus vê de cima, vê do alto, e por isso nos convida a olhar para o céu e tentar contar as estrelas: elas são tão numerosas quanto a areia das praias! Em outras palavras, ainda que nos sintamos envelhecidos e enfraquecidos como Abrão, ainda que carreguemos em nosso corpo as marcas da morte de Jesus, estamos destinados a carregar em nosso corpo as marcas da sua vida (cf. 2Cor 4,10).

A Campanha da Fraternidade – “Ecologia integral” – quer nos conduzir para fora da indiferença quanto ao sofrimento da Terra e também para fora dos desejos desordenados do consumismo e do materialismo que atentam contra os recursos da natureza. Ela nos convida a “cuidar da casa”: da casa interior de cada um de nós (espiritualidade), da casa em que habitamos (família), da casa em que passamos grande parte do nosso tempo (escola, trabalho), da casa em que nos relacionamos (redes sociais) e da Casa Comum (Terra), pois nela tudo está interligado (Texto Base da Campanha da Fraternidade 2025, n.16).

Rezemos juntos: “Ó Deus, nosso Pai, ao contemplar o trabalho de tuas mãos, viste que tudo era muito bom! O nosso pecado, porém, feriu a beleza de tua obra, e hoje experimentamos suas consequências. Por Jesus, teu Filho e nosso irmão, humildemente te pedimos: dá-nos, nesta Quaresma, a graça do sincero arrependimento e da conversão de nossas atitudes. Que o teu Espírito Santo reacenda em nós a consciência da missão que de ti recebemos: cultivar e guardar a Criação, no cuidado e no respeito à vida. Faz de nós, ó Deus, promotores da solidariedade e da justiça. Enquanto peregrinos, habitamos e construímos nossa Casa Comum, na esperança de um dia sermos acolhidos na Casa que preparaste para nós no Céu. Amém!” (Oração da CF 2025).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

 

 

quinta-feira, 6 de março de 2025

QUAIS SÃO AS SUAS TENTAÇÕES MAIS FREQUENTES?

 Missa do 1º dom. Quaresma. Palavra de Deus: Deuteronômio 26,4-10; Romanos 10,8-13; Lucas 4,1-13.

 

            Em todo primeiro domingo da Quaresma ouvimos o Evangelho das tentações de Jesus. Dois são os motivos. Primeiro, para nos tornar conscientes de que a nossa vida é um combate espiritual. Segundo, para nos lembrar de que a Quaresma, cuja meta é a nossa transformação, a nossa libertação em Cristo, é um tempo mais intenso do ataque do inimigo, para nos fazer desistir da conversão que sabemos ser necessária para a nossa vida. Tomar consciência disso não nos deve desanimar, pois não estamos sozinhos nesse combate espiritual: o Espírito Santo está conosco, como força do Alto, dada por Deus, para nos auxiliar.

            “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão (batismo), e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito. Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias” (Lc 4,1-2). Por qual razão o Espírito Santo nos coloca numa situação de deserto e nos permite ser tentados pelo diabo? Porque Ele é o “Espírito da Verdade” (Jo 16,13) e essa Verdade precisa nos tornar conscientes das mentiras que nos habitam, mentiras que costumamos usar para justificar a nossa permanência no pecado.

            São Lucas nos informa que Jesus “foi tentado pelo diabo durante quarenta dias” (Lc 4,2). O número “quarenta” simboliza, na Bíblia, a duração da vida de uma pessoa. Portanto, assim como Jesus, nós somos tentados pelo espírito do mal a vida toda, sendo que essa tentação se intensifica quando experimentamos uma situação de fome, de carência, de ausência de algo que nos é importante e necessário. De fato, foi quando Jesus sentiu fome que o diabo se aproximou dele para tentá-lo. Portanto, quando sofremos uma carência, uma ausência, precisamos estar atentos porque ali é o momento oportuno para o tentador se aproximar de nós e nos propor falsas compensações para a nossa fome, para a frustração de um desejo que não está sendo satisfeito em nós.

Enquanto na primeira tentação o diabo propôs a Jesus dar livre curso aos seus desejos e não sofrer a frustração de nada, na segunda ele lhe prometeu um caminho de sucesso, de glória e de plena autorrealização. Exatamente porque vivemos num mundo capitalista que produz desigualdade social, o sonho de consumo da maioria das pessoas é ficar rica. Em nome desse sonho, sacrifica-se a saúde, o casamento, a relação com os filhos, a fé, a espiritualidade, o caráter, a honestidade etc. Enquanto ambicionam “ganhar o mundo inteiro”, essas pessoas destroem-se a si mesmas (cf. Lc 9,25) e aquilo que mais têm de sagrado na vida, esquecendo-se do que o próprio tentador disse: “Tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser” (Lc 4,6). Em outras palavras, o desejo pelo enriquecimento é puramente diabólico.   

Diferente de Mateus e de Marcos, Lucas é o único evangelista que, ao narrar as tentações de Jesus, encerra o relato com uma observação preocupante: “Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (Lc 4,13). Quando, auxiliados pelo Espírito Santo, conseguimos resistir e não cair em tentação, não podemos aposentar nossas armas espirituais e pensar que conseguimos atingir um nível de maturidade emocional e espiritual que nos garantirá nunca mais cair no pecado. Para o diabo, nunca faltará o “momento oportuno” de voltar a nos visitar e nos tentar. Quando é esse momento? Principalmente, o momento da dor, da perda, do fracasso, da frustração, do cansaço, da decepção com Deus, com as pessoas, conosco mesmos e com a vida, o momento do envelhecimento, da perda de importância para a Igreja e para a sociedade da produção e do resultado; numa palavra, o momento da solidão da morte. É ali que o diabo se aproximará de nós e nos perguntará se valeu a pena termos sacrificado tantas coisas em nome da nossa fé, para agora morrermos como pessoas insignificantes e esquecidas por Deus e pelo mundo. Precisamos estar conscientes e preparados para esse ataque final do maligno.

Quais são suas tentações mais frequentes? Como você lida com sua fome, com sua carência? Você consegue ter maturidade para frustrar seus desejos, sempre que eles se tornam uma armadilha para manter você escravo(a) do pecado? Vivendo em um mundo materialista e competitivo, onde quem pode mais chora menos, você se percebe contaminado pelo desejo diabólico de ser um vencedor, uma pessoa de sucesso, garantindo-se ilusoriamente pelo acúmulo de riqueza material? Seus joelhos se dobram diariamente diante de Deus para pedir que Ele te faça prosperar sempre mais, ou para que Ele te conceda o pão de cada dia? Você tem consciência de que toda vitória sua contra o tentador é apenas temporária e que ele sempre encontrará um momento oportuno para voltar a te tentar? No momento de maior dor, de maior solidão e de maior insignificância, você manterá a sua fé no amor de Deus por você?

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

terça-feira, 4 de março de 2025

ESTE HOMEM DEVE MORRER!

 

“Os fariseus saíram da sinagoga e, junto com alguns do partido de Herodes, faziam um plano para matar Jesus” (Mc 3,6).

 “É réu de morte!” Então, cuspiram no rosto de Jesus, e o esbofetearam (Mt 26,66-67).

 “Então eles pegaram pedras  para atirar em Jesus” (Jo 8,59).

 “E a partir desse dia, as autoridades dos judeus decidiram matar Jesus” (Jo 11,53).

 “Nós temos uma lei, e segundo a lei este homem deve morrer” (Jo 19,7).

Estes versículos são apenas alguns exemplos que nos recordam que os verdadeiros inimigos de Jesus nunca foram do campo político e, sim, do campo religioso. Quem matou Jesus foi a Religião, usando para tal crime o braço da Política (O Império Romano). Exatamente como aconteceu com Jesus, quem hoje deseja a morte do Papa Francisco não são pessoas movidas por interesses políticos, mas gente de dentro da Igreja, pessoas que, com a mesma arrogância dos fariseus e doutores da Lei, se consideram “católicos de verdade”, defensores da “sã doutrina”.

Os constantes ataques e perseguições que o Papa Francisco vem sofrendo, desde quando assumiu o seu pontificado, é a prova mais viva do quanto ele é fiel ao Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo: “Lembrem-se do que eu disse: nenhum empregado é maior do que seu patrão. Se perseguiram a mim, vão perseguir a vocês também... Farão isso a vocês por causa do meu nome, pois não reconhecem aquele que me enviou” (Jo 15,20.21). Unicamente por querer reconduzir a nossa Igreja ao Evangelho e questionar as tradições ultrapassadas que, ao invés de levar as pessoas para mais perto de Deus, as mantém afastadas do Reino, Francisco precisa pagar o mesmo preço que Jesus pagou: o preço da rejeição.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

TEMPO DE TRATAR A FERIDA

 

Missa da Quarta-feira de Cinzas. Palavra de Deus: Joel 2,12-18; 2Coríntios 5,20 – 6,2; Mateus 6,1-6.16-18.

 

“Toda a cabeça está contaminada pela doença, todo o coração está enfermo; desde a planta dos pés, até a cabeça, não há lugar são. Tudo são contusões, machucaduras e chagas vivas que não foram espremidas, não foram atadas nem cuidadas com óleo” (Is 1,5-6).

            Essas palavras do profeta Isaías revelam a situação do povo de Israel, ferido pelo seu próprio pecado. É a imagem do filho que livremente decidiu deixar a casa do pai, desperdiçou todos os seus bens, passou fome e o único emprego que encontrou foi cuidar dos porcos (cf. Lc 15,14-16). Mas foi ali, naquela situação, que ele “caiu em si” e tomou a decisão de voltar para junto do pai: “Vou-me embora, procurar meu pai e dizer-lhe: ‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti’” (Lc 15,18).

            Eis o grande convite que o Senhor nos faz, neste início de Quaresma: “Voltai-vos para mim e sereis salvos, porque eu sou Deus e não há nenhum outro” (Is 45,22). “Volta, Israel, ao Senhor teu Deus, pois tropeçaste em tua falta” (Os 14,2). “Voltai-vos para mim com todo o vosso coração” (Jl 2,12). Nós somos livres e, muitas vezes, damos uma direção errada à nossa vida. Como saber se a direção da nossa vida está correta? Se ela está nos levando para Deus. Tudo o que nos afasta de Deus pode até nos dar algum tipo de ganho, mas nos leva para a destruição. Tudo o que nos aproxima de Deus é válido e precisa ser mantido ou retomado.

            Conversão é fazer a volta. Não voltamos para um determinado ponto da estrada; voltamos para uma Pessoa, para o nosso Deus: “É ele quem perdoa todas as tuas faltas e cura todos os teus males. É ele que redime da cova a tua vida e te cerca de carinho e compaixão” (Sl 103,3-4). “O Senhor cura os corações quebrantados e cuida dos seus ferimentos” (Sl 147,3). “Com o Senhor está o amor e redenção em abundância: ele resgatará Israel de toda a sua culpa” (Sl 130,7-8). 

            Jesus é o sacramento da misericórdia de Deus. Ele não veio quebrar a cana que já está rachada, nem veio apagar o pavio que já está quase se extinguindo (cf. Is 42,3). Pelo contrário, Ele “veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10); não veio chamar os justos, mas os pecadores, porque o Médico não existe para quem tem saúde, mas para quem está doente (cf. Mt 9,12.13). Eis, portanto, o convite do apóstolo Paulo: “Deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20).

Se é verdade que o pecado nos adoece da cabeça aos pés (cf. Is 1,3-4), temos que nos perguntar se realmente desejamos a nossa cura: “Antes de curar alguém, pergunta-lhe se está disposto a desistir das coisas que o fizeram adoecer” (Hipócrates). Quem não está disposto a abandonar as cebolas do Egito nunca porá os pés na Terra Prometida, rica de fertilidade.

A Campanha da Fraternidade nos recorda que a Terra não é um reservatório de recursos sem fim, mas uma Casa a ser cuidada. Além do cuidado com essa Casa (natureza, florestas, rios etc.), devemos cuidar das nossas relações humanas e sociais. 

“Precisamos superar a indiferença frente ao sofrimento da Terra e abandonar a idolatria dos desejos desordenados do consumismo e do materialismo” (TB, n.14). “O desafio para a nossa conversão nesta Quaresma é cuidar da casa: da casa interior de cada um de nós (espiritualidade), da casa em que habitamos (família), da casa em que passamos grande parte do nosso tempo (escola, trabalho), da casa em que nos relacionamos (rede) e da Casa Comum (Terra), pois nela tudo está interligado” (TB, n.16).  

Uma santa e fecunda Quaresma a todos nós! 


Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

RÁPIDOS EM CRITICAR OS OUTROS, MAS NUNCA DISPOSTOS A FAZER AUTOCRÍTICA



Missa do 8º. Dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 27,5-8; 1Coríntios 15,54-58; Lucas 6,39-45.

            O livro do Eclesiástico faz quatro afirmações sobre o falar: “Os defeitos de um homem aparecem no seu falar” (Eclo 27,5); “O homem é provado em sua conversa” (Eclo 27,6); “A palavra mostra o coração do homem” (Eclo 27,7); “É no falar que o homem se revela” (Eclo 27,8).

            Nossas palavras sempre produzem algo. Elas podem levantar muros, causando distanciamento, separação entre as pessoas; ou podem construir pontes, favorecendo o diálogo, o perdão e a reconciliação. O nosso grande problema hoje não reside tanto nas palavras que saem da nossa boca, mas nas palavras que comunicamos nas redes sociais. Aquilo que postamos pode destruir a imagem de uma pessoa, como pode também salvar uma pessoa da autodestruição. Por isso, antes de publicarmos alguma coisa em nossas redes sociais, devemos nos perguntar: Isso que eu vou postar é verdade ou mentira? Minhas postagens favorecem a fraternidade ou o ódio entre as pessoas? Eu costumo contribuir com a disseminação de fake news e desinformação?

              Se o Eclesiástico afirma que “a palavra mostra o coração do homem” (Eclo 27,7), Jesus explica que a “boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6,45). Quem tem o coração ingrato vai sempre reclamar e murmurar. Quem não resolveu seu sentimento de inferioridade vai sempre procurar diminuir os outros e afirmar a si mesmo, de forma autoritária. Quem não enfrenta seus conflitos internos vai sempre despejar sobre os outros palavras grosseiras e ofensivas. Quem não quer enfrentar a verdade vai sempre falar demais, para tentar convencer os outros a respeito da sua própria mentira. Quem busca sempre ganhar o afeto dos outros nunca vai dizer “não”, e vai acabar se sobrecarregando e adoecendo.    

            Antes de uma palavra sair da nossa boca, ela deveria passar pela nossa consciência: O que eu vou falar ou postar vai favorecer o bem ou o mal? Vai edificar ou destruir? Além disso, aquilo que eu falo é uma convicção do meu coração ou um simples repassar para os outros aquilo que eu recebi de algum guia cego? Jesus pergunta: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?” (Lc 6,39). A Internet está cheia de guias cegos, de motivadores ou orientadores que oferecem receita para tudo: campo financeiro, afetivo, sexual, profissional e espiritual. Só caem no mesmo buraco em que esses guias cegos se encontram quem tem preguiça de pensar, de pesquisar, de ler e de estudar.

            Jesus também nos alerta a respeito dos caçadores de ciscos, que fazem vista grossa às traves de seus próprios olhos: “Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão” (Lc 6,41.42). É sempre mais fácil para nós enxergar os erros das pessoas do que os nossos próprios erros. Somos rápidos em criticar os outros, mas quase nunca dispostos a fazer uma séria autocrítica. Ao lembrar que existe uma trave em nosso próprio olho, Jesus nos ensina que todo julgamento nosso sobre determinada pessoa é um julgamento míope: não enxergamos nela o que Deus vê. Além disso, precisamos estar conscientes de que os defeitos que mais detestamos nos outros são, normalmente, aqueles que não suportamos em nós mesmos.

            Para quem gosta de justificar os seus erros culpando o ambiente, o mundo, os tempos atuais, Jesus nos lembra que a questão é interna e não externa. Ainda que sejamos de alguma forma influenciados pela cultura do nosso tempo, somos nós quem decidimos qual atitude adotar diante das pessoas e dos acontecimentos. Há um espaço dentro de nós que está unicamente sob a nossa responsabilidade: o nosso coração. Se ele é bom, de nós sempre sairá o bem; se ele é mau, de nós sempre sairá o mal. Se ele está azedo ou envenenado, de nossa boca só sairá azedume e veneno; se ele está reconciliado e pacificado, de nossa boca só sairá o que favorece a reconciliação e a pacificação.    

        Uma advertência final: “A língua, ninguém consegue domá-la; é mal irrequieto e está cheia de veneno mortífero. Com ela bendizemos ao Senhor, nosso Pai, e com ela maldizemos os homens feitos à semelhança de Deus. Da mesma boca provém bênção e maldição. Ora, tal não deve acontecer, meus irmãos. Porventura uma fonte jorra água doce e água salgada?” (Tg 3,8-11).     

 

            Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

REAGIR INSTINTIVAMENTE OU DECIDIR AGIR ESPIRITUALMENTE?

 Missa do 7º dom. comum. Palavra de Deus: 1Samuel 26,2.7-9.12-13.22-23; 1Coríntios 15,45-49; Lucas 6,27-38

                

            Ninguém duvida de que o nosso mundo está mais violento. A questão é saber quem admite olhar para dentro de si mesmo e reconhecer a agressividade que o habita. As cenas de violência, que chegam a nós por meio das telas (TV, computador, celular), se tornaram o recheio do pão nosso de cada dia, e já é consenso que a violência concentrada nos filmes, seriados e novelas não só insensibiliza as pessoas para os dramas reais do cotidiano, como também estimula jovens e crianças a reagirem com agressividade. Para as crianças de hoje, a violência é o principal tipo de entretenimento (jogos de vídeo game!!!). Além disso, boa parte dos filmes que assistimos contém uma ação violenta para cada 5 minutos de filme. 

            Atualmente, a violência que antes só era encontrada nas ruas das cidades grandes, agora mora onde nunca deveria morar: dentro das famílias, das escolas, dos locais de trabalho e das igrejas. Deixamos de ver o outro como nosso irmão e passamos a vê-lo como um monstro a ser destruído. Influenciados pelas redes sociais, nós respiramos ódio como se fosse o ar do nosso dia a dia. Usamos nossas redes sociais para destruir a imagem de pessoas em troca de algumas curtidas. Resumindo, reclamamos de uma violência que nós mesmos ajudamos a criar e a manter viva.  

            O texto bíblico da primeira leitura nos coloca diante de Davi, um homem segundo o coração de Deus. Perseguido de morte pelo rei Saul, Davi e seus homens se encontram acidentalmente com Saul e seu exército dormindo! Esse encontro acidental é interpretado erroneamente por Abisai como providência de Deus, que diz a Davi: “Deus entregou hoje em tuas mãos o teu inimigo. Vou cravá-lo em terra com uma lançada, e não será́ preciso repetir o golpe” (1Sm 26,8). Mas Davi não quis matar Saul; apenas pegou sua espada e sua bilha de água, as quais estavam próximas da sua cabeça, e se afastou, para deixar claro a Saul que, se quisesse, poderia tê-lo matado, mas não o fez.

            Davi age como um homem celeste, e não como um homem terrestre, usando a linguagem do apóstolo Paulo, na segunda leitura. Enquanto o homem terrestre se deixa arrastar pelos seus instintos, o homem celeste submete seus instintos à sua consciência, procurando agir a partir dos seus valores espirituais. O mais interessante é a insistência do texto no fato de que “ninguém viu” o que Davi fez: “Ninguém os viu, ninguém se deu conta de nada, ninguém despertou” (1Sm 26,12). Quando ninguém te vê, suas atitudes são as mesmas de quando você está sendo observado? Se a vida te desse a chance de destruir quem te faz mal ou te prejudica, o que você faria? Davi não matou Saul porque tinha uma convicção: “O Senhor retribuirá a cada um conforme a sua justiça e a sua fidelidade” (1Sm 26,23). Você tem essa convicção?

            Embora Davi seja para nós um exemplo edificante, cada um de nós é chamado a se configurar não a Davi, mas a Jesus Cristo, o verdadeiro homem celeste. E Jesus nos lança um sério desafio: “Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam” (Lc 6,27-28). “Amem”, “façam o bem”, abençoem”, “rezem”! Em outras palavras, que as atitudes de vocês não sejam guiadas pelos seus instintos, mas pelo meu Espírito que habita em vocês. Comportem-se como cristãos, como pessoas ungidas pelo Espírito do meu Pai, e não como pagãos!

No fundo, as palavras de Jesus no Evangelho de hoje, são um questionamento para cada um de nós: você se comporta como um filho de Caim ou como um filho de Deus? Ao refletir sobre o fato de Caim ter matado seu próprio irmão, o apóstolo João afirma: “Todo aquele que odeia seu irmão é homicida; e sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna permanecendo nele” (1Jo 3,15). Cultivar ódio nos faz filhos de Caim e não filhos de Deus. Jesus nos revela o que significa ser filho de Deus: “Amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus. Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,35-36).

Não nos esqueçamos: odiar é uma reação meramente instintiva, própria do homem terrestre; amar é uma decisão espiritual, própria do homem celeste. Além disso, estejamos atentos ao estresse e à sobrecarga do dia a dia: eles favorecem o aumento da irritabilidade e nos fazem ter reações desproporcionais.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi  

Sugestão de vídeo: A estupidez humana.

https://www.youtube.com/watch?v=C-LsAk1yzyo




sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

EM QUEM OU NO QUE EU COLOCO A MINHA ESPERANÇA?

 Missa do 6º dom. comum. Palavra de Deus: Jeremias 17,5-8; 1Coríntios 15,12.16-20; Lucas 6,17.20-26.

 

            Quantos tipos de pessoa existem no mundo? Segundo a mentalidade bíblica, apenas dois: a pessoa que faz do ser humano o seu apoio e a pessoa que escolhe Deus como apoio. Embora sejam totalmente contrários um ao outro, os dois tipos nos revelam uma verdade: nenhum ser humano é autossuficiente. Toda pessoa precisa apoiar-se em algo ou em alguém maior e mais forte do que ela, para sobreviver. A questão, portanto, não é se nós precisamos ou não de um apoio na vida, mas quem ou o que escolhemos como apoio. Segundo o profeta Jeremias e o salmista, o apoio que escolhemos influencia o nosso presente; segundo Jesus, ele influencia também o nosso futuro.

            Para o profeta Jeremias, ou o ser humano se apoia num outro ser humano ou se apoia em Deus, e a diferença é perceptível: aquele que “faz consistir a sua força na carne humana” é um infeliz, e essa infelicidade está retratada numa imagem: um cardo seco no deserto, que prefere vegetar na secura e na solidão do deserto em que se encontra. Já a pessoa “cuja esperança é o Senhor, é como uma árvore plantada junto às águas” (Jr 17,7-8). Mesmo que as circunstâncias à sua volta não sejam favoráveis (calor, aridez, seca), “sua folhagem mantém-se verde” e ela “nunca deixa de dar frutos” (Jr 17,8).

            Fazer do Senhor nossa esperança é a única forma de não murcharmos, de não secarmos por dentro, principalmente quando as circunstâncias externas não são favoráveis. Fazer do Senhor nossa esperança significa direcionar nossas raízes para Ele, “fonte de água viva” (Jr 2,13). Essa verdade é confirmada pelo Salmo 1: a pessoa que se confia ao Senhor, isto é, que faz d’Ele o seu apoio, “é semelhante a uma árvore, que à beira da torrente está plantada; ela sempre dá seus frutos a seu tempo, e jamais as suas folhas irão murchar. Eis que tudo o que ele faz vai prosperar” (Sl 1,3). Raiz tem a ver com profundidade e também com “escondimento”. É o contrário da superficialidade e da exposição nas redes sociais, em busca de reconhecimento. 

            O que nos chama a atenção no Salmo 1 são as consequências para a vida da pessoa que não tem suas raízes em Deus: ela se torna como a “palha seca espalhada e dispersada pelo vento” (Sl 1,4). É a imagem da desorientação, de quem hoje está seguindo um formador de opinião, amanhã outro e depois de amanhã um outro ainda, e assim por diante. É um cego sendo guiado por outro cego, uma pessoa arrastada pelas circunstâncias, que, por não se responsabilizar por sua própria vida, vive culpando o mundo por sua infelicidade.

            Enquanto o profeta Jeremias e o salmista falam do presente, Jesus aponta para o futuro. Esperança tem a ver com futuro, e o nosso futuro é preparado a partir das escolhas que fazemos no presente. Se a pessoa que faz consistir sua esperança num outro ser humano e aquela que faz do Senhor sua esperança são totalmente contrapostas, Jesus revela essa contraposição a partir das seguintes expressões: “Felizes os pobres” / “Ai de vós, ricos”. “Felizes os que passam fome” / “Ai de vós que agora tendes fartura”; “Felizes os que choram” / “Ai de vós que agora rides”; “Felizes os que são odiados por minha causa” / “Ai de vós que sois elogiados”.  

            Ao fazer essa inversão da ideia de felicidade que nós temos, Jesus quer nos tornar conscientes da inversão de valores em que vivemos. Além disso, precisamos ter claro que o Evangelho não é um livro de autoajuda e Jesus não é um motivador que nos ensina como obter sucesso na vida. Todo pregador que asperge água benta sobre as injustiças sociais e se mantém distante das pessoas que sofrem por causa das desigualdades sociais é um falso profeta; é um pregador mundano, que distorce a Palavra de Deus para legitimar uma felicidade mundana e egoísta, que não só se mantém indiferente à dor de quem sofre, mas que é mantida justamente à custa dos que sofrem.  

            Trazendo para o nosso hoje o ensinamento de Jesus, fica claro que “Deus quer que tenhamos o necessário para viver dignamente; mas não quer que guardemos para nosso uso exclusivo os bens que pertencem a todos. Deus quer ver-nos caminhar sem privações e sem carências; mas não quer que adoremos o dinheiro e que sejamos escravos de coisas que são meramente acessórias. Deus quer que tenhamos conforto e bem-estar; mas não quer que ignoremos a miséria e a indigência em que vive uma parcela da humanidade” (Liturgia Dehonianos).  

            Assim como Jesus, o apóstolo Paulo também nos faz um alerta a respeito da nossa compreensão do que seja a esperança: “Se é para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, nós somos – de todos os homens – os mais dignos de compaixão” (1Cor 15,19). Fazer de Deus nossa esperança tendo como objetivo estar entre os “vencedores” deste mundo é assinar um atestado de ignorância em relação à Sagrada Escritura como um todo e, principalmente, em relação ao Evangelho. Tanto o Pai quanto o Filho escolheram estar entre os “perdedores” deste mundo, entre aqueles que o mercado exclui para garantir a sua fome insaciável de lucro, ainda que à custa da desumanização dos mais fracos.

Cada um de nós precisa decidir onde colocar suas raízes, ou seja, onde apoiar-se, no que depositar a sua esperança.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi