quinta-feira, 30 de outubro de 2025

DEIXE SUA CASA EM ORDEM, POIS A MORTE O(A) ENCONTRARÁ NA HORA EM QUE VOCÊ MENOS IMAGINAR.

 Missa pelos fiéis falecidos. Palavra de Deus: Jó,19,1.23-27a; 1Coríntios 15,20-24a.25-28; Lucas 12,35-40. 

 

Dia de Finados, palavra que nos remete para o fim. A nossa existência terrena um dia terá um fim. Mas a nossa fé nos faz olhar para além do fim, isto é, para a finalidade para a qual tende a nossa vida, que é a nossa ressurreição em Jesus Cristo, ele que nos prepara um lugar na casa do Pai, porque quer que estejamos onde ele mesmo está (cf. Jo 14,3). Se hoje sentimos saudades e tristeza por aqueles que partiram, sabendo que a tristeza é proporcional ao amor que temos pela pessoa, a nossa tristeza deve unir-se à esperança de reencontrarmos aqueles que partiram e que estão em Cristo (1Ts 4,13.16-17), o qual afirmou que o nosso Deus “não é Deus de mortos, mas sim de vivos; todos, com efeito, vivem para ele” (Lc 20,38).

A morte, fim da nossa existência terrena, nos ensina a rever a forma como vivemos a nossa vida. “Lembra-te do fim e deixa o ódio” (Eclo 28,6). Não devemos permitir que o ódio adoeça a nossa breve existência neste mundo. A consciência da nossa morte deve nos levar a perdoar. Mas o Eclesiástico também nos orienta quanto ao luto: “Filho, derrama tuas lágrimas por um falecido. Chora amargamente; depois, consola-te de tua tristeza. Porque a tristeza leva à morte. Não abandones teu coração à tristeza, afasta-a” (Eclo 38, 16.17.20).

A morte nos dá a consciência de que a nossa existência neste mundo é única, e nunca mais se repetirá: “Os homens morrem uma só vez, depois do que vem um julgamento” (Hb 9,27). A respeito desse julgamento, o apóstolo Paulo afirma: “Todos nós compareceremos perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito em sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal” (2Cor 5,10). Aquilo que plantamos hoje, em nossa vida terrena, será colhido por nós mesmos, após a nossa morte.  

Segundo Jesus, a consciência da nossa morte deve nos libertar de todo tipo de ganância material. Quando um homem muito rico, após ter derrubado todos os seus celeiros para construir outros maiores, a fim de guardar toda a sua riqueza, diz a si mesmo: “Descansa, come, bebe, aproveita!”, Deus lhe diz: “Insensato, nesta mesma noite será pedida de volta a tua vida. E as coisas que acumulaste, de quem serão?” (Lc 12,16-20). Aqui entra também a sabedoria de Dalai Lama: “Os homens do nosso tempo vivem como se nunca fossem morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido”.

Quando o rei Ezequias ficou gravemente enfermo, o profeta Isaías recebeu a ordem de Deus para dizer-lhe: “Põem em ordem a tua casa, porque vais morrer, e não sobreviverás” (2Rs 20,1). A consciência de que um dia iremos morrer deve nos fazer perguntar: O que eu preciso colocar em ordem, na minha vida, antes de morrer? Para Jesus, o principal a ser colocado em ordem é a nossa reconciliação com o próximo (cf. Mt 5,25-26).

Como encaramos a certeza de que um dia iremos morrer? O apóstolo Paulo nos anuncia uma grande consolação: “Ninguém de nós vive para si mesmo ou morre para si mesmo. Se vivemos é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor. Com efeito, Cristo morreu e ressuscitou para ser o Senhor dos vivos e dos mortos” (Rm 14,7-9). Ainda segundo o apóstolo, morrer significa mudar da tenda (morada provisória) para a casa, “morada eterna, não feita por mãos humanas” (2Cor 5,1). Em outras palavras, morrer significa “deixar a mansão deste nosso corpo para ir morar junto Senhor” (2Cor 5,8).       

Em cada experiência de morte que fazemos, diante da perda de pessoas que nos são caras, devemos manter os olhos fixos em Jesus, que disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim nunca morrerá” (Jo 11,25-26). A morte biológica do corpo não é a morte da pessoa. Jesus experimentou a morte “em favor de todos os seres humanos” (Hb 2,9). Como ele mesmo afirma: “Eu sou o Vivente: estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho comigo as chaves da morte e da região dos mortos” (Ap 1,17-18). Ter as chaves significa ter o poder de arrancar da morte e da região dos mortos todos os que morreram.

Diante desta catequese bíblica sobre a morte, podemos rezar, neste dia de Finados: “Ó Deus, nosso Pai, vossos dias não conhecem fim, e a vossa misericórdia não tem limites. Fazei-nos lembrar sempre a brevidade da vida e a incerteza da hora da nossa morte. Que o vosso Espírito Santo nos conduza neste mundo, todos os dias da nossa vida, na santidade e na justiça. E depois de vos servirmos na terra na comunhão da vossa Igreja, na confiança de uma fé segura, na consolação da esperança e na perfeita caridade para com todos, possamos chegar ao vosso Reino. Por Cristo, nosso Senhor. Amém” (Sacramentário, Rito das Exéquias, p.229).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

 

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

SANTIFICAR-SE SIGNIFICA TORNAR-SE SEMELHANTE A JESUS, "O SANTO DE DEUS" (Jo 6,69).

 Missa de todos os Santos. Apocalipse 7,2-4.9-14; 1João 3,1-3; Mateus 5,1-12a

 

A palavra “santo” significa “separado”. Jesus afirmou aos seus discípulos: “Minha escolha separou vocês do mundo” (Jo 15,19). O cristão é alguém “separado” do mundo, no sentido de estar no mundo, mas não aceitar ser corrompido por ele: “Não se conformem com o mundo, mas transformem-se, renovando a mente de vocês a fim de poderem discernir qual é a vontade de Deus” (Rm 12,2). Jesus foi chamado por Pedro de “o Santo de Deus” (Jo 6,69) exatamente porque buscou diariamente fazer a vontade do Pai: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou” (Jo 4,34).

Jesus é o nosso modelo de santidade. Como ele, somos chamados a ser pessoas pobres em espírito (que se apoiam unicamente em Deus); pessoas que se afligem com o sofrimento alheio; pessoas que mantém a mansidão diante dos conflitos; que desejam a justiça e lutam por ela; que são misericordiosas (compadecem-se com a miséria do outro); puras de coração; pessoas que não só desejam a paz, mas buscam promovê-la no ambiente em que se encontram; pessoas que suportam perseguições e sofrimentos por causa da justiça e por causa do próprio Jesus (cf. Mt 5,3-11).

Tudo isso nos faz entender que o nosso processo de santificação se dá na terra, não no céu. É na terra que os santos são “marcados na fronte” (Ap 7,3), procurando fortalecer orientar a cada dia a sua consciência de pertencimento a Deus. Segundo o livro do Apocalipse, os santos que estão nos céus são pessoas que “vieram da grande tribulação” (Ap 7,14), e se no céu trajam “vestes brancas” (Ap 7,9), símbolo da ressurreição e da santidade, é porque na terra “lavaram e alvejaram suas roupas no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14), envolvendo-se na mesma luta que Jesus se envolveu, contra o pecado, a injustiça e a dor que tanto ferem a humanidade.

Na sua exortação apostólica sobre a santidade, o Papa Francisco afirmou que “todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra” (GE, n.14). É na rotina de cada dia, nas ocupações diárias, que cada um de nós é chamado a santificar-se. Quando você defende uma pessoa que está sendo injustiçada e sofre perseguição por causa disso, está sendo uma pessoa santa. Quando não aceita suborno, quando prefere levar uma vida mais simples, ganhando dinheiro de maneira honesta, ao invés de se enriquecer corrompendo-se, você está sendo uma pessoa santa. Quando, a exemplo de Jesus, você decide amar até o fim e não somente até que a beleza acabe, até que a doença chegue, até que a situação financeira se complique, você está sendo uma pessoa santa.

Um desafio para a nossa vida de santidade é integrar o nosso corpo, a nossa sexualidade, na vivência da nossa fé. Toda espiritualidade que despreza o corpo e demoniza a sexualidade é doentia e está na contramão do mistério da Encarnação. Jesus teve um corpo como o nosso e sentiu tudo o que nós sentimos: “ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb 4,15). É a partir do nosso corpo e na vivência da nossa sexualidade que nós nos santificamos. Uma santidade “desencarnada” é estranha à Sagrada Escritura e, sobretudo, estranha ao próprio Jesus, modelo para a nossa santidade.

Enfim, o apóstolo João nos ensina que ser uma pessoa santa significa ter paciência conosco mesmos, com os nossos limites e as nossas imperfeições, pois a nossa santificação é um processo: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1Jo 3,2). O que nós somos como pessoa não é algo definitivo; estamos em abertura, em processo, em transformação: a santificação tem por objetivo nos tornar semelhantes a Jesus, até que sejamos puros como ele é puro, até que sejamos como ele é: um verdadeiro sacramento do Deus Santo, Santo, Santo (cf. Is 6,3).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

A HUMILDADE É A PORTA QUE ABRIMOS PARA QUE DEUS POSSA ENTRAR E NOS TRANSFORMAR, ENQUANTO REZAMOS.

 Missa do 30º dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 35,15b-17.20-22a; 2Timóteo 4,6-8.16-18; Lucas 18,9-14.


            Por que nós rezamos? Porque temos consciência da nossa insuficiência enquanto seres humanos. Em outras palavras, só pode rezar quem sente a necessidade de ser salvo. Pessoas que se sentem totalmente seguras, garantidas pelos seus recursos materiais, normalmente não buscam a Deus na oração, a menos que alguma coisa saia do controle delas e as ameace.

            Depois de nos ter ensinado a oração do Pai nosso (cf. Lc 11,1-13) e nos mostrado a importância de insistirmos com Deus na oração (cf. Lc 18,1-8), Jesus hoje nos apresenta duas formas de oração: a primeira, cheia de orgulho e arrogância; a segunda, cheia de humildade; a primeira, feita por um homem que se colocou diante de Deus não para louvá-Lo, mas para louvar a si mesmo por se considerar bom, justo e não necessitado de salvação; a segunda, feita por um homem consciente dos seus pecados e, portanto, profundamente necessitado de salvação.

            Antes de tudo, precisamos prestar atenção para quem Jesus contou a parábola que acabamos de ouvir no Evangelho: “Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros” (Lc 18,9). Confiar na própria justiça significa julgar-se bom o suficiente a ponto de não necessitar ser salvo. Mas o problema maior não é apenas a postura orgulhosa e arrogante diante de Deus, e sim o desprezo pelos outros, por aqueles que julgamos piores do que nós. Quando isso acontece, acabamos por erguer um muro de separação entre nós e essas pessoas, pensando que Deus as vê como nós as vemos.   

Eis a oração do fariseu: ele se coloca diante de Deus convencido de que não precisa da salvação que Deus lhe oferece, porque já a conquistou pelo esforço do seu bom comportamento. Apresenta-se diante de Deus como uma pessoa justa que veio “cobrar” a recompensa pelo seu esforço em ser uma pessoa de bem. O pior em tudo isso é que ele sente que a sua vivência “cristã” o coloca acima dos outros homens, “miseráveis pecadores”, como o cobrador de impostos que, aos olhos do fariseu, não passa de um ladrão e explorador do seu povo.

Diferente do fariseu, o cobrador de impostos, reza a partir da sua verdade. Consciente dos seus erros e da sua necessidade de ser salvo, ele clama a Deus por misericórdia. É um homem que tem consciência da sua indignidade. Na sua oração, ele não se compara com outros homens; apenas reconhece o seu pecado e invoca a misericórdia de Deus. Não podendo agarrar-se ao seu bom comportamento para se salvar – pois seu comportamento não é correto – ele só pode confiar na compaixão de Deus: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!” (Lc 18,13).

A oração do publicano nos lembra a verdade de todo ser humano: somos pecadores, falhos, imperfeitos, e não podemos nos salvar por nós mesmos, mas unicamente nos abrindo à ação do Espírito Santo de Deus. Da mesma forma como nenhuma pessoa doente pode ser curada, se não reconhecer a sua própria doença e não aceitar ajuda, assim nós não podemos sair da oração transformados se não admitimos diante de Deus a nossa impotência em nos modificar pelo nosso próprio esforço. De fato, para Jesus o fruto mais precioso da oração é quando saímos dela “justificados”, isto é, perdoados, reconciliados, salvos. Justamente porque “diante de Deus nenhum ser humano pode se declarar justo” (Sl 143,2), o Pai das misericórdias nos concede a graça da justificação, pela nossa fé em seu Filho Jesus Cristo (cf. Rm 4,25; 5,1.18-19).     

Jesus conclui o seu terceiro ensinamento sobre a nossa vida de oração afirmando que “quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado” (Lc 18,14). A humildade não é vista como um valor, na cultura atual. Pelo contrário, somos constantemente motivados a nos expor, a pisarmos sobre as pessoas para nos destacarmos como fortes e vencedores. O distanciamento da nossa humildade é o distanciamento da nossa verdade. É como uma árvore que, na sua obsessão em crescer e ser vista e admirada pelos outros, perde o contato com as próprias raízes, tornando-se superficial, sem profundidade.

Humilhar-se não significa rebaixar-se, mas se recusar a ser definido a partir de fora, por uma sociedade vazia e que cultua o próprio vazio. Humilhar-se é ter consciência do próprio tamanho, das suas capacidades e dos seus limites; é viver a partir da sua verdade interior; é sustentar-se a partir das próprias raízes que, escondidas no húmus, na terra, dão sustentação interior à pessoa, para que ela dê frutos, independente se as circunstâncias externas são favoráveis ou não.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi   

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

REZAR É TAMBÉM LUTAR CONOSCO MESMOS E COM DEUS

 Missa do 29º dom. comum. Palavra de Deus: Êxodo 17,8-13; 2Timóteo 3,14 – 4,2; Lucas 18,1-8.

 

“Rezar sempre, e nunca desistir” (Lc 18,1). Muitos desistiram de rezar. Muitas mãos não se levantam mais e muitos joelhos não se dobram mais para a oração, apesar do apelo da carta aos Hebreus: “Reerguei as mãos cansadas e fortalecei os joelhos vacilantes” (Hb 12,12). A desistência em rezar tem como causa principal a aparente indiferença de Deus para com as nossas orações. Ele nos ouve? Se nos ouve, por que não nos atende? Se Jesus afirmou, em Lucas 11,11-12, que o Pai nunca nos daria algo inútil (uma pedra em lugar de um pão) ou mau (uma serpente em lugar de um ovo), por que Ele deixou morrer aquele(a) pelo(a) qual suplicamos cura? A única resposta possível para essas perguntas é nos recordar dessa verdade: “Meus pensamentos não são os pensamentos de vocês, nem os meus caminhos são os caminhos de vocês, diz o Senhor” (Is 55,8).

Quando rezamos, nossos olhos se fixam no que está acontecendo agora, mas Deus enxerga o que ainda virá. Além disso, a grande maioria dos nossos pedidos se concentra na vida aqui e agora, nesta vida terrena, mas o propósito de Deus para nós é a verdadeira vida, a Vida Eterna. Toda vez que Ele diz “não” ao nosso pedido, ou “ainda não”, devemos confiar que Ele sabe perfeitamente o que está fazendo. “Rezar sempre, e nunca desistir” (Lc 18,1) vai na direção contrária do imediatismo do nosso tempo. Nós não sabemos mais esperar. No entanto, “os olhos do Senhor estão voltados sobre aqueles que esperam em seu amor” (Sl 33,18); “O Senhor ama aqueles que o respeitam, aqueles que esperam em seu amor” (Sl 147,11).

O que fazer enquanto esperamos pela intervenção de Deus? Rezar, e rezar com insistência, como a viúva do Evangelho fez, ao suplicar ao juiz que lhe fizesse justiça: “Esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!” (Lc 18,5). Rezar com insistência é “aborrecer” Deus, é “cansá-Lo”, até que Ele atenda ao nosso pedido. Jesus nos manda ouvir aquele juiz da parábola: “Escutem o que diz este juiz injusto. E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele? Será que vai fazê-los esperar?” (Lc 18,7).

Diz o salmista: “Os que esperam em ti não ficam decepcionados; ficam decepcionados os que por um nada negam a sua fé” (Sl 25,3). São palavras que nos encorajam a nunca deixar de esperar no Senhor e por sua intervenção em nossa vida. No entanto, temos que admitir que a razão da nossa desistência em rezar vem da nossa decepção com Deus. Nós esperávamos cura, mas Ele permitiu a morte; nós esperávamos sucesso, mas Ele nos fez provar o fracasso; nós esperávamos subir ao mais alto dos céus, mas Ele nos fez descer ao mais profundo do abismo. Aqui é preciso recordar mais uma vez: a verdadeira oração não consiste em submeter Deus à nossa vontade, mas em nos abrir confiantemente ao Seu plano de amor e salvação para conosco.

Rezar é lutar com Deus. Se o texto do êxodo nos mostra que nossas lutas neste mundo só podem ser vencidas pela força da oração (Moisés de braços erguidos), cada um de nós precisa ter consciência que a oração é uma luta, antes de mais nada, conosco mesmos: precisamos lutar conosco mesmos para rezar; lutar contra a nossa decepção, a nossa falta de fé e de esperança; lutar contra a nossa preguiça; lutar contra o nosso ego, que não aceita se submeter à vontade de Deus. Quando rezamos profundamente, percebemos que o inimigo a ser derrotado não está fora (Amalec), mas dentro de nós.

Que a oração seja também uma luta com Deus fica claro em Gênesis 32,23-33. Durante uma noite inteira, Jacó ficou sozinho e lutou com alguém que personificava Deus. Jacó prevaleceu na luta, de modo que disse ao seu oponente: “Eu não deixarei você enquanto não me abençoar” (Gn 32,27). Essa é a postura que Jesus quer que tenhamos perante o Pai, em nossa oração: não deixar de rezar, até que Ele nos abençoe; agarrar o Pai e não soltar d’Ele, até que nos dê o que sabe ser o mais necessário para a luta que estamos enfrentando.

 Peçamos o auxílio do Espírito Santo. Só Ele pode vir em auxílio da fraqueza da nossa oração e interceder ao Pai (cf. Rm 8,26), segundo aquilo que o Pai deseja nos dar, em vista do nosso bem e da nossa salvação.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi




quinta-feira, 9 de outubro de 2025

A FORÇA INTERCESSORA DE NOSSA SENHORA

 Missa de Nossa Senhora Aparecida. Palavra de Deus: Ester 5,1b-2;7,2b-3; Apocalipse 12,1.5.13a.15-16a; João 2,1-11.

 

            O Evangelho escolhido pela Igreja no Brasil, para celebrar Nossa Senhora Aparecida, é justamente o texto bíblico que revela a força da sua intercessão. Da mesma forma como a rainha Ester intercedeu ao seu esposo pela salvação do seu povo – “Se ganhei as tuas boas graças, ó rei, e se for de teu agrado, concede-me a vida - eis o meu pedido! - e a vida do meu povo - eis o meu desejo!” (Est 7,3) – Nossa Senhora intercede junto ao seu Filho pelo vinho novo, símbolo bíblico da alegria no coração humano, símbolo, sobretudo, do Espírito Santo no coração humano, fonte de alegria.

“Peça à mãe que o Filho atende”. Ouvimos ou falamos muito esta frase. Nossa Senhora conhece nossa falta de vinho. Quando rezamos a ela, pedimos que interceda junto ao seu Filho, para que ele nos socorra e nos conceda o que mais precisamos para aquele momento em nossa vida. Porém, não basta apresentar a Nossa Senhora as nossas necessidades. Precisamos também obedecer à sua orientação: “Façam tudo o que ele lhes disser” (Jo 2,5). Se nos consideramos realmente filhos da Virgem Maria, precisamos seguir o exemplo dela: “Faça-se em mim segundo a tua palavra (ou, segundo a tua vontade” (Lc 1,38).

A intercessão de Nossa Senhora aconteceu durante uma festa casamento, na qual acabou o vinho. Aquele casamento era símbolo do casamento por excelência, que é a união de amor entre Deus e a humanidade (Antigo Testamento), entre Cristo e a Igreja (Novo Testamento). A falta do vinho, isto é, a ausência da alegria no coração humano (cf. Sl 104,15), se deve ao fato de este ter se afastado de Deus e ter se tornado como aquelas talhas de pedra vazias (cf. Jo 2,6). Mas Deus havia feito uma promessa ao seu povo: “Tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei no vosso íntimo o meu espírito...” (Ez 36,26-27).

Aqui, algumas perguntas são necessárias: Quando foi que a alegria começou a acabar no meu relacionamento? Eu esgotei a jarra de vinho, sem me preocupar em reabastecê-la? “Há mais alegria em dar do que em receber” (At 20,35). Quanto eu dou de mim para que não falte alegria no meu relacionamento? Meu coração ainda é de carne, humano, sensível, ou endureceu como pedra, tornando-se indiferente, egoísta e individualista?

“Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (Jo 2,10). A rotina, o desencanto e o desgaste fazem parte de qualquer relacionamento, inclusive em nossa vida espiritual. É aqui que entra a crise. Recordemos, então, as palavras do Papa Francisco sobre “A alegria do amor”: “Não se vive juntos para ser cada vez menos feliz, mas para aprender a ser feliz de maneira nova, a partir das possibilidades que abre uma nova etapa. Cada crise implica uma aprendizagem” (n.232).

O “vinho novo” surgiu depois da crise da falta de vinho. Crise também significa “oportunidade”. A falta de vinho foi a oportunidade para Jesus realizar o seu primeiro sinal, como Filho de Deus, e deixar claro que ele pode transformar toda e qualquer situação que confiamos às suas mãos, por meio de sua e nossa Mãe. Nesta Solenidade de Nossa Senhora Aparecida, em que também celebramos o Dia das Crianças, recordemos as palavras de Jesus: “Não impeçais as crianças de vir a mim, pois delas é o Reino dos Céus” (Mt 19,14). Sabemos o quanto nossas crianças estão adoecidas mentalmente devido ao vício do celular, o qual faz crescer sempre mais a ansiedade, a irritabilidade, a falta de concentração, baixa tolerância à frustração, insônia/sono fragmentado, e também a depressão. Não nos esqueçamos de que a plataforma digital mais usada por crianças e adolescentes é o Tik Tok, criado pela China, mas proibido na própria China. Pais que desejam orientar-se quanto ao cuidado e à educação dos filhos podem encontrar uma escelente ajuda no pediatra Daniel Becker, com inúmeros vídeos no You Tube.

Não nos esqueçamos de que a falta de vinho (alegria) na vida das crianças tem como causa principal a ausência dos pais, os quais substituem a presença por coisas materiais dadas aos filhos. Enfim, a cor vermelha do vinho deve nos fazer recordar que o Governo de Israel, nestes dois anos de guerra na faixa de Gaza, matou até agora 20 mil crianças! Segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o número de crianças mortas e feridas até agora, em Gaza, é de 64 mil!   

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi    

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

SEM A FÉ, TODOS SEREMOS DERROTADOS PELAS DIFICULDADES DA VIDA

 Missa do 27º. dom comum. Palavra de Deus: Habacuc 1,2-3; 2,2-4; 2Timóteo 1,6-8.13-14; Lucas 17,5-10.

 

            “Os apóstolos disseram ao Senhor: ‘Aumenta a nossa fé!’” (Lc 17,5). A resposta de Jesus é surpreendente: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria” (Lc 17,6). Enquanto os discípulos pedem uma fé maior, Jesus compara fé à menor semente que existe na terra: o grão de mostarda. Portanto, o problema da nossa fé não é o tamanho, mas a confiança na sua eficácia: embora sendo a menor semente da terra, a mostarda se torna a maior hortaliça que existe. Quanto à amoreira, é a árvore cujas raízes são expansivas, agressivas e podem causar danos às calçadas, canos e fundações se não forem controladas. Portanto, arrancar uma amoreira do lugar não é tarefa fácil, mas Jesus usa propositalmente a imagem da amoreira para falar da força da fé: ela remove aquilo que nossas forças humanas não podem fazê-lo.

            A fé é absolutamente necessária para nos mantermos em pé diante dos ventos contrários e das dificuldades da vida: “Se vocês não tiverem fé, não poderão se manter firmes” (Is 7,9). Quem não tem fé é como uma folha seca levada pelo vento da desorientação, do medo e da perturbação: “Na conversão e na calma estava a vossa salvação, na tranquilidade e na confiança estava a vossa força, mas vós não o quisestes” (Is 30,15). Assim como Israel, nós preferimos confiar em nossos recursos humanos, do que nos apoiar unicamente em Deus. Quando fazemos isso, a vida desaba sobre nós.

            A fé não significa crer em uma suposta força positiva do universo, mas crer em Alguém que tem o poder de nos salvar e de transformar toda e qualquer situação. Por isso, as palavras “Se vocês não tiverem fé, não poderão se manter firmes” (Is 7,9) devem ser entendidas como: “Se vocês não se atreverem a se apoiar em mim, jamais saberão que são amparados”. Só quem se joga nos braços de Deus, através da fé, sente a verdade do Seu amparo, da Sua sustentação.

            Hoje, a fé foi reduzida à emoção, de modo que as pessoas mudam de igreja ou de religião quando deixam de “sentir” Deus. Além disso, a fé deixou de ser compromisso com Deus Pai e com o Evangelho de seu Filho, para se tornar isso: “Eventos cheios, pastorais vazias”. Multidões se deslocam para participar de shows católicos ou evangélicos, mas não participam das missas e muitos menos das pastorais em suas próprias comunidades ou paróquias. Não são pessoas de fé, mas uma massa anônima correndo atrás de emoção (“efeito manada” – vão onde todo mundo está indo). Não são construtores do Reino, mas consumidores de emoções espirituais. Jesus nunca se deixou enganar por multidões. Dois exemplos claros: Jo 6 e Lc 14,25-33.   

            O profeta Habacuc nos mostra que a fé muitas vezes é uma luta com Deus: “Senhor, até quando clamarei, sem me atenderes? Até quando devo gritar a ti: ‘Violência!’, sem me socorreres? Por que me fazes ver iniquidades, quando tu mesmo vês a maldade? Destruições e prepotência estão à minha frente; reina a discussão, surge a discórdia” (Hab 1,2-3). O grito de Habacuc é o grito dos cristãos que sofrem e dos ateus que se perguntam: Se Deus existe, por que permite o mal? A oração de Habacuc é a nossa revolta contra o silêncio de Deus diante da dor dos inocentes. Esse silêncio nos machuca e põe em crise a nossa fé, nos tornando conscientes de que nunca iremos compreender os desígnios de Deus. Aqui é importante recordar que “a fé nunca sabe para onde está sendo conduzida, mas ela confia e ama Aquele que a conduz” (Oswald Chambers).          

            Diante da oração de Habacuc, Deus rompeu o Seu silêncio e disse: “Escreve esta visão... Ela refere-se a um prazo definido, mas tende para um desfecho, e não falhará; se demorar, espera, pois ela virá com certeza, e não tardará. Quem não é correto, vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (Hab 2,2-4). Deus garante a quem n’Ele crê e n’Ele se apoia que intervirá na história humana, mas essa intervenção não será imediata, como estamos acostumados, devido à rapidez da tecnologia: “se demorar, espera, pois ela virá com certeza, e não tardará” (Hab 2,3). É aqui que a nossa fé é provada, verificada como verdadeira ou não: suportar as demoras de Deus, crendo que, no fim, o Seu desígnio prevalecerá em nossa vida pessoal e na história humana.

“Quem não é correto, vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (Hab 2,4). Quem perder a sua fé, se tornará como um arco frouxo, do qual nenhuma flecha pode ser lançada. Sem a fé, nós nos tornamos vivos mortos; o corpo vive, mas a alma definha e o espírito está morto. Sem a fé, somos vencidos por toda e qualquer dificuldade. Sem a fé, não sobreviveremos às provações que já estão aí, características dos tempos finais (cf. Ap 3,10). Somente as pessoas que têm fé sobreviverão a tudo o que já está acontecendo e que virá a acontecer na história humana. Portanto, a fé não nos blinda contra o sofrimento, mas nos dá força para enfrentá-lo.

O apóstolo Paulo chama a fé de “precioso depósito”. Esse depósito deve ser guardado (mantido vivo, protegido, defendido) dentro de nós com o auxílio do Espírito Santo, sabendo que a nossa fé em Cristo Jesus também significa “sofrer por causa do Evangelho”.

Enfim, após esclarecer aos discípulos que a fé é uma questão de qualidade (transportar uma amoreira de lugar) e não de quantidade (do tamanho de um grão de mostarda), Jesus fala da fé como algo concreto: ter fé é ser um servo de Deus, um simples servo, uma pessoa que não contamina a sua fé com ambições de recompensa e nem com a expectativa de retorno imediato, mas faz o que faz por causa do Reino de Deus, por causa do Evangelho, não se deixando abalar em sua confiança em Deus por causa das circunstâncias externas, mas mantendo seus olhos fixos no próprio Jesus, “iniciador e consumador da nossa fé” (Hb 12,2).

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

Oração pela fé (Papa São Paulo VI)

 

Senhor, creio em Ti. Eu quero crer em Ti.

Senhor, faze que minha fé seja plena, sem reservas e que penetre em minha inteligência e em meu modo de julgar as realidades divinas e humanas.

Senhor, faze que minha fé seja livre, isto é, que tenha a minha adesão pessoal, aceite as renúncias e os deveres que ela impõe e seja a última instância decisiva de minha pessoa. Creio em Ti, Senhor.

Senhor, faze que minha fé seja certa. Certa pela coerência exterior dos motivos e certa pelo testemunho interior do Espírito Santo. Certa por uma luz que lhe dê segurança, por uma conclusão que a tranquilize, por uma assimilação que a faça repousar.

Senhor, faze que a minha fé seja forte. Que ela não tema a contradição que surge com os problemas, quando é plena a experiência de nossa vida à vida de luz. Que não tema a oposição de quem a discute, a ataca, a rejeita, a nega; mas que ela se robusteça com a experiência íntima de Tua verdade, resista ao cansaço da crítica, fortaleça-se com a afirmação contínua que vence as dificuldades dentro das quais se desenrola nossa existência terrena.

Senhor, faze que minha fé seja cheia de tranquilidade e que dê ao meu espírito paz e alegria, gosto pela oração com Deus e a convivência com os homens, de maneira que, no diálogo com Deus e com o mundo, se irradie a alegria interior de sua posse afortunada.

Senhor, faze que minha fé seja operante e dê à caridade os motivos de sua atuação, de sorte que a caridade seja verdadeira amizade contigo, busca contínua de Ti, contínuo testemunho, contínuo alimento de esperança nas obras, nos sofrimentos, na expectativa da revelação final.

Senhor, faze que minha fé seja humilde e não pretenda apoiar-se na experiência de meu pensamento, mas que se entregue ao testemunho do Espírito Santo e não busque maior garantia a não ser a docilidade à Tradição e à Autoridade do Magistério da Igreja. Amém.

 

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A OPÇÃO PREFERENCIAL PELOS POBRES É BLÍBLICA, E NÃO MARXISTA, COMUNISTA OU SOCIALISTA

 Missa do 26º dom. comum. Palavra de Deus: Amós 6,1a.4-7; 1Timóteo 6,11-16; Lucas 16,19-31.

 

Nos textos bíblicos do final de semana passado, ficou claro que Deus não é indiferente à desigualdade social que existe no mundo, porque ela gera fome, dor e muito sofrimento na vida dos pobres da terra. Hoje, encerrando o mês da Bíblia, tomamos consciência mais uma vez de que a Sagrada Escritura não nos oferece somente consolação e orientação, mas também nos questiona em relação ao nosso modo de viver, em um mundo onde 20% das pessoas desfrutam de 80% das riquezas, enquanto que 80% da população mundial tem que tentar sobreviver com 20% das riquezas.

Deus não criou pessoas ricas e pessoas pobres; Ele criou os seres humanos. A riqueza e a pobreza foram produzidas pela maioria dos homens que estiveram no poder, em todos os tempos. Diante dessa diferenciação entre ricos e pobres, Deus claramente toma partido: Ele se coloca do lado dos que sofrem e faz sérios alertas aos ricos, não porque sejam ricos, mas porque são indiferentes aos pobres. O texto do profeta Amós deixa isso evidente: “Ai dos que vivem despreocupadamente... que dormem em camas de marfim, deitam-se em almofadas, comendo cordeiros do rebanho e novilhos do seu gado; os que bebem vinho em taças, e se perfumam com os mais finos perfumes e não se preocupam com a ruína dos pobres. Eles irão para o desterro..., o bando dos gozadores será desfeito” (citação livre de Am 6,1.4.6.7).

A expressão bíblica “Ai” diz respeito a um lamento fúnebre. Pessoas que ostentam sua riqueza e seu alto poder de consumo, que pagam valores absurdos em produtos de marca só para mostrarem aos outros que elas podem comprá-los e que, ao mesmo tempo, se mantêm o mais distante possível dos pobres e de todos os que sofrem, “irão para o desterro” (Am 6,7), ou seja, serão arrancadas da sua terra e levadas escravas para uma terra estrangeira (Babilônia). Esse duro julgamento sobre os ricos egoístas tem uma razão: o luxo e esbanjamento deles resultam da exploração dos mais pobres e dos roubos cometidos contra os fracos. Para o nosso Deus, ninguém tem o direito de viver uma vida cômoda e confortável sem se preocupar com a miséria e o sofrimento que afligem os seus irmãos. Resumindo, Deus nunca estará do lado daqueles que não se importam com o sofrimento dos seus irmãos. 

Vejamos agora como Jesus se posiciona diante da desigualdade social do seu tempo. A conhecida parábola do rico (sem nome) e do pobre Lázaro (nome que significa “Deus ajuda”) é dirigida especificamente aos fariseus, homens religiosos “amigos do dinheiro” (Lc 16,14). Pessoas religiosas “amigas do dinheiro” são uma contradição, pois tanto o Pai quanto o Filho são “amigos dos pobres”, daqueles que os “amigos do dinheiro” exploram e mantém subjugados a uma vida de privação e sofrimento.

Jesus descreve a imagem da desigualdade social: um rico que se vestia de púrpura e linho puro (vestes muito caras) e que se banqueteava esplendidamente todos os dias, e o pobre Lázaro, que se “vestia de feridas”, cujo “banquete” era os pedaços de pão que, segundo o costume, se utilizavam para limpar as mãos e que, em seguida, eram atirados para debaixo da mesa para serem comidos pelos cães da família. Ignorado pelo rico, Lázaro recebia a atenção dos cães que vinham lamber-lhe as feridas.

Da desigualdade na terra, fabricada pelo egoísmo dos mais ricos, Jesus passa para a “desigualdade” na vida após a morte, uma desigualdade muito bem recordada no filme “Gladiador”: “O que fazemos nesta vida, ecoa na eternidade”. Ironicamente, a situação se inverte: o pobre Lázaro agora encontra-se no céu (seio de Abraão, pai na fé dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos), enquanto o rico fica enterrado, na região dos mortos, pois, quem na vida terrena viveu em função das coisas terrenas só pode ter como destino após a morte ficar enterrado.

O rico, que sempre ignorou o pobre Lázaro à sua porta agora o vê, o enxerga no céu. Atormentado pela sede, ele pede a Abraão que mande Lázaro, com o dedo humedecido em água, para lhe refrescar a língua. Mas Abraão explica que isso não é possível, por causa do abismo que existe entre o céu e região dos mortos, o mesmo abismo cavado pela desigualdade social que há no mundo. Desesperado, o rico pede a Abraão que mande Lázaro de volta à terra, para alertar os seus irmãos, ricos e egoístas, a serem solidários com os pobres. Abraão responde que os que estão na terra já têm a Sagrada Escritura (Moisés e os Profetas), como orientação. Ninguém que partiu desta vida voltará para dar qualquer aviso aos seus parentes neste mundo.

A parábola que Jesus nos contou não é sobre o que nos espera na vida futura, mas sobre a forma como devemos viver enquanto caminhamos sobre a terra.  Os bens que Deus nos confia pertencem a todos e devem ser partilhados com todos os nossos irmãos. Se nos fechamos em nosso egoísmo, na autossuficiência, e nos tornamos indiferentes aos que sofrem, teremos falhado completamente o sentido da nossa existência. 

O grande pecado do “rico” foi se tornar completamente indiferente ao sofrimento do pobre Lázaro. A indiferença nos desumaniza. Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de sentir compaixão, de chorar com os que choram e de rir com os que riem; passamos pelo irmão que sofre sem ver, ou como se o sofrimento do outro não nos dissesse respeito. Jesus deixou bem claro que o Pai não está de acordo com a nossa insensibilidade diante do sofrimento, com a nossa indiferença face ao irmão necessitado, com o egoísmo que nos leva a olhar apenas para o nosso bem-estar, com o esbanjamento dos bens que pertencem a todos os homens.

Uma última palavra. A Teologia da Libertação, tão atacada por católicos conservadores, é a resposta de uma Igreja fiel ao Evangelho de Jesus Cristo. Assim como o Pai (no Antigo Testamento) e o Filho (no Novo Testamento) fizeram uma clara opção preferencial pelos pobres, assim a Teologia da Libertação também o fez. E isso, não em nome do marxismo, do comunismo ou do socialismo, mas em nome da fidelidade ao Evangelho de nosso Senhor.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

COMO ANDA A SUA RELAÇÃO COM O DINHEIRO E COM OS MAIS POBRES?

 Missa do 25º. dom. comum. Palavra de Deus: Amós 8,4-7; 1Timóteo 2,1-8; Lucas 16,1-9.

 

                A Sagrada Escritura nos revela não somente quem é Deus, mas que o Deus em quem nós cremos tem uma sensibilidade muito grande com os pobres, com os que sofrem. Através do profeta Amós, Deus faz duras críticas às pessoas que exploram os pobres, aos que causam a prostração dos pobres da terra (v.4). Causar prostração significa derrubar a pessoa, esgotá-la, explorá-la, adoecê-la, sugar suas energias. Quem são as pessoas que prostram os pobres da terra? Segundo o profeta Oseias, são alguns empresários que pagam salários muito baixos aos seus funcionários; políticos que trabalham pelo favorecimento dos mais ricos e em prejuízo dos mais pobres (“dominam os pobres com dinheiro e os humildes com um par de sandálias”); comerciantes que “diminuem medidas, aumentam pesos e adulteram balanças” (cf. Am 8,5); e o agro, que põe à venda o refugo do trigo, sendo que o refugo pertence aos pobres, conforme está escrito: “Quando fizerem a colheita da sua terra, não colham até às extremidades da sua lavoura, nem ajuntem as espigas caídas da sua colheita. Deixem-nas para o necessitado e para o estrangeiro. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv 23,22).     

            A condenação de Deus para com os que exploram os pobres não significa romantizá-los e não enxergar que alguns deles são desonestos, mal intencionados e que exploram as empresas nas quais trabalharam, por meio de advogados desonestos. Não podemos fazer de conta que não existem casos em que empresas chegam a falir por causa de ações trabalhistas injustas e absurdas. Embora existam pobres assim, não podemos cair no erro de generalizá-los como pessoas de má vontade e que simplesmente não querem trabalhar. Do mesmo modo como há ricos desonestos e corruptos, há pobres assim também.    

           Justamente porque o Pai sempre teve uma atenção particular para com os pobres da terra, o Filho a teve também. Jesus veio para salvar a todos, mas sempre dedicou a maior parte do seu tempo diário para estar com os pobres, sentir suas dores e levar-lhes uma palavra de esperança: “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20). A preocupação de Jesus com os pobres joga por terra o discurso moralista e espiritualista de que a missão da Igreja é salvar almas, e não se envolver em questões sociais que causam desigualdade social e aumento do empobrecimento em muitas pessoas. Portanto, a opção preferencial pelos pobres não é coisa de padre, bispo ou Papa comunista, mas de padre, bispo ou Papa fiel a Jesus Cristo e ao seu Evangelho.

            No Evangelho de hoje Jesus nos propõe uma parábola que mexe com a nossa maneira de pensar a vida e de dar prioridade a muitas coisas – ou seria uma só? (ganhar dinheiro, ficar rico) –, nos esquecendo do essencial. Um administrador, descoberto na sua desonestidade, foi colocado contra a parede: “Presta contas da tua administração, pois já não podes mais administrar meus bens” (Lc 16,1). Na visão de Jesus, todos nós somos administradores, pois Deus nos confiou bens como saúde, liberdade e recursos financeiros para a nossa sobrevivência neste mundo. No dia do nosso julgamento, Jesus, constituído pelo Pai juiz dos vivos e dos mortos (cf. At 10,42; 2Cor 5,10), nos perguntará: ‘Como você administrou a sua vida? Como você administrou seus bens? Você se lembrou de socorrer os pobres em suas necessidades?’.

            Quando o administrador infiel recebeu o aviso de que seria mandado embora, começou a pensar no seu futuro – o que significa que nós precisamos pensar na nossa salvação. O administrador chegou à mesma conclusão que Jesus quer que nós cheguemos: a nossa salvação depende da forma como tratamos os pobres da face da terra: “Já sei o que fazer, para que alguém me receba em sua casa quando eu for afastado da administração”. Então ele chamou cada um dos que estavam devendo ao seu patrão. E perguntou ao primeiro: “Quanto deves ao meu patrão?” Ele respondeu: “Cem barris de óleo!” O administrador disse: “Pega a tua conta, senta-te, depressa, e escreve cinquenta!” (Lc 16,4-6).  

            Os devedores, na parábola de Jesus, representam os pobres. O administrador desonesto representa a pessoa que está disposta a fazer de tudo para ser salva, isto é, para entrar no Reino de Deus. Numa tentativa de atenuar o escândalo dessa parábola, muitos pregadores afirmam que o administrador mandou os devedores abaterem da dívida aquilo que seria o seu lucro como administrador. Essa maneira de ver acaba por trair a intenção de Jesus, que é nos escandalizar, no sentido de nos perguntar: ‘Até onde você iria, para ser salvo? Do que você seria capaz, para recuperar a sua salvação?’.

            Eis o escândalo dessa parábola: o administrador, que já havia lesado seu patrão uma vez, o lesou pela segunda vez, diminuindo a dívida dos pobres, com a esperança de que eles o recebessem em suas casas quando fosse despedido. Jesus conclui a parábola dizendo: “E o senhor elogiou o administrador desonesto, porque ele agiu com esperteza. Com efeito, os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz” (Lc 16,8). Quem é o “senhor” que elogiou a esperteza do administrador? Obviamente que não foi o seu patrão, mas o “Senhor Jesus”, que se alegra quando nos vê recolocando em ordem os nossos valores e dando prioridade à nossa salvação e não ao desejo comum de riqueza, implantado em nós pelo sistema capitalista.

            Voltemos por um instante ao perigo de romantizar os pobres. A grande maioria de nós sonha em ficar rico, acreditando que o dinheiro nos garante não só sobrevivência no presente, mas, principalmente, segurança em relação ao futuro. Por isso ser verdade, Jesus faz um lamento: ‘As pessoas que buscam se enriquecer são muito mais espertas do que os meus discípulos de todos os tempos, que não têm a mesma esperteza no que diz respeito à sua vida espiritual e à própria salvação’.

            Concluindo a parábola, Jesus nos dá um importante conselho: “Usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois, quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas” (Lc 16,9). Para Jesus, todo dinheiro é sujo, desonesto, injusto, até aquele que nós ganhamos trabalhando de maneira honesta. Todo dinheiro é injusto porque provém de um sistema que privilegia os ricos e prostra por terra os mais pobres. Seja pouco, seja muito, o dinheiro que temos precisa ser destinado não somente à nossa sobrevivência, mas ao socorro dos mais pobres. São eles que nos receberão nas moradas eternas. Essa revelação de Jesus é surpreendente! Quem estará na porta do Céu para nos receber não será São Pedro, mas os pobres que nós ajudamos (ou que, infelizmente, ignoramos e não nos preocupamos em ajudar).

           

            Pe. Paulo Cezar Mazzi    

 

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

QUAL A IMPORTÂNCIA DA IMAGEM DO CRUCIFICADO?

 Festa da Exaltação da Santa Cruz. Palavra de Deus: Números 21,4b-9; Filipenses 2,6-11; João 3,13-17.

 

Celebramos a festa da “Exaltação da Santa Cruz”. Não exaltamos o sofrimento, nem as cruzes de cada dia. Exaltamos o que aconteceu na Cruz: a fidelidade e a entrega radical de uma Vida em solidariedade com todos os crucificados do mundo. A imagem do Crucificado nos diz: “Eu estou com todos os que sofrem”.  

A Cruz de Jesus foi prefigurada, no Livro dos Números, pela imagem da serpente de bronze. A caminhada pelo deserto dos escravos hebreus libertados do Egito foi sofrida. Por isso, a reação deles foi reclamar e esquecer tudo o que Deus havia feito por eles, ou seja: ingratidão. “Porque nos fizestes sair do Egito, para morrermos neste deserto? Aqui não há pão nem água e já estamos com nojo deste alimento miserável” (Nm 21,5). Esse “nojo” que os hebreus sentiram pelo maná que Deus fez descer do céu para que eles não morressem de fome e pudessem caminhar firmemente em direção à Terra Prometida está presente em nós também. A propaganda de consumo nos faz olhar para o que ainda não temos e desprezar o que temos. Desse modo, vivemos insatisfeitos e temos nojo da nossa rotina e da vida que levamos. Ao lamentar o que ainda não temos, nos tornamos ingratos para com a vida e para com o próprio Deus. No lugar da gratidão entra a reclamação e o amargor. Quanto mais reclamamos, mais a vida fica pesada.

A resposta à reclamação e ingratidão dos hebreus foi o surgimento das serpentes venenosas. Esse veneno tem vários nomes: o veneno do egoísmo, da violência, da injustiça, da exploração, do orgulho, da ambição, da mentira, do medo, da maldade... A cura para o veneno que nos adoece passa por uma atitude: olhar para o alto, onde está a imagem de uma serpente de bronze. Ela simboliza a bondade, a misericórdia e o amor de Deus pelo seu povo. A serpente de bronze levantada sobre uma haste é um símbolo de Jesus levantado na Cruz: “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).  

A imagem de Jesus Crucificado é fonte de cura para nossas doenças: “Por suas feridas fostes curado” (1Pd 2,24). Mas a cura que precisamos não acontece sem a nossa participação, como nos lembra Hipócrates, pai da medicina: “Antes de curar alguém, pergunte se ele está disposto a desistir das coisas que o deixam doente”. A Cruz de Cristo não é um símbolo mágico, mas um questionamento: qual é a minha responsabilidade na doença que está me acometendo? Em outras palavras, as nossas opções erradas têm consequências que nos fazem sofrer; esse sofrimento não deve ser atribuído a Deus, mas sim às nossas escolhas egoístas e aos efeitos que elas têm na nossa vida.

O salmo de hoje nos revela o quanto somos parecidos com os hebreus que andavam pelo deserto: “Quando os feria, eles então o procuravam, convertiam-se correndo para ele;  recordavam que o Senhor é sua rocha e que Deus, seu Redentor, é o Deus Altíssimo. Mas apenas o honravam com seus lábios e mentiam ao Senhor com suas línguas; seus corações enganadores eram falsos e, infiéis, eles rompiam a Aliança” (Sl 78,34-37). Em outras palavras, o que nos traz para Deus é mais a dor do que o amor. Quando a vida está boa, nos esquecemos d’Ele; quando fica ruim, O procuramos; quando volta a ficar boa, O esquecemos novamente.

O apóstolo Paulo fala da Cruz de nosso Senhor como “aniquilação” ou “despojamento” (“kenosis” – v.7). Cristo abriu mão da sua condição divina para vestir a fragilidade dos seres humanos e tornou-se homem: experimentou nossas dores e limites, conviveu com os nossos dramas e nos indicou o caminho que leva à salvação, fez-se servo dos homens. Como se tudo isso não bastasse, desceu ainda mais: foi contestado, preso, condenado e sofreu uma morte infame na Cruz, a morte reservada aos malditos e abandonados por Deus (v.8), segundo a mentalidade da época. Exatamente porque Jesus nos amou até o fim, Deus Pai o ressuscitou e o exaltou, dando-lhe um nome que está acima de todo nome: “Senhor”, o que significa que Jesus está revestido do poder e da autoridade do Pai para salvar a humanidade inteira (“os céus, a terra e os infernos”).

No Evangelho de hoje, Jesus aplica a si mesmo a imagem da serpente de bronze. Como ela, Jesus será, para todos aqueles que o contemplarem, sinal visível do amor de Deus; aliás, mais do que a serpente de bronze, Jesus será, para aqueles que nele creem, fonte de vida eterna! A Cruz de Cristo sempre deve nos lembrar desta verdade fundamental: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Portanto, sempre que sentirmos que Deus não nos ama, olhemos a imagem do Crucificado. Mais ainda, sempre que nos sentirmos condenados por causa de algum pecado que cometemos, olhemos para o Crucificado e nos lembremos: “Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). Jesus veio oferecer a todos os homens, sem exceção, a Vida definitiva. Sua Cruz nos ensina que só quando amamos até o fim é que o mal pode ser vencido.

Uma última palavra. Ninguém pode se considerar cristão quando busca a comunhão com Deus, mas se afasta do drama de quem está crucificado. Não podemos separar Deus do sofrimento dos inocentes; Ele sofre nos seus filhos e filhas. A cruz ou o crucifixo que carregamos no peito ou tatuamos no corpo se torna hipocrisia religiosa, se não estamos dispostos a fazer descer da cruz aqueles que estão dependurados nela.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

O CAMINHO DO DISCIPULADO NÃO É UM CAMINHO DE FACILIDADE.

 Missa do 23º dom. comum. Palavra de Deus: Sabedoria 9,13-18; Filêmon 9b-10.12-17; Lucas 14,25-33.

 

            “Não pode ser meu discípulo” (vv.26.27.33). Essa radicalidade de Jesus, frisada três vezes no Evangelho de hoje, tem uma razão: todo discípulo seu não pode deixar-se distrair, nem pelas pessoas, nem pela preocupação dos bens materiais, nem pelos seus projetos e interesses pessoais. As três exigências que Jesus faz implicam a renúncia a qualquer coisa, a fim de centrar a própria vida n’Ele e na sua proposta do Reino de Deus.

O verdadeiro discípulo de Jesus deve segui-lo no caminho do Reino, sem desculpas, sem condicionantes, sem “paninhos quentes”, sem acomodações fáceis. O problema é que não estamos habituados a tal exigência, nem gostamos que nos coloquem sobre os ombros tanta pressão. Gostamos de caminhos que não exijam muito de nós, de propostas que não ponham em causa o nosso bem-estar, de indicações que não nos tirem da nossa zona de conforto, de direções que não nos obriguem a passar pela cruz.

A primeira renúncia que o discípulo de Jesus deve fazer é em relação à própria família: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26). Os laços afetivos, por mais sagrados que sejam, não devem afastar-nos dos valores do Reino de Deus. Pode acontecer que alguém a quem estamos ligados por laços de família ou de amizade pretenda nos afastar dos valores do Reino de Deus. Nesse caso, segundo Jesus, devemos dar prioridade ao Reino.

A segunda exigência pede a renúncia a si próprio: “Quem não toma a sua cruz para me seguir, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). Jesus fez da sua existência um dom em favor de todos, especialmente dos últimos, dos mais humildes e desprezados. Na cruz, realizou o dom total de si próprio, a sua entrega até ao extremo. “Tomar a cruz” e segui-Lo significa não viver para si próprio, correndo atrás de opções egoístas, privilegiando os próprios projetos pessoais, defendendo os seus interesses, o seu bem-estar, a sua segurança; “tomar a cruz” é seguir os passos de Jesus e fazer da própria vida um dom de amor a Deus e aos irmãos, especialmente os mais frágeis, os menores, os mais abandonados.

A terceira exigência pede a renúncia aos bens materiais: “Quem de entre vós não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,33). Quando a obsessão dos bens materiais toma conta do coração do homem, este torna-se escravo do “ter” e desliga-se de todo o resto; o amor, a partilha, a fraternidade passam a ser palavras sem qualquer significado; a preocupação fundamental do homem passa a ser acumular mais e mais; a vida do homem passa a construir-se à volta de uma lógica que não é a lógica do Reino de Deus.

Como entender a radicalidade de Jesus? Um trapezista só pode ser agarrado pelas mãos de outro trapezista e levado a um lugar mais alto e seguro se ele soltar as mãos da sua barra de segurança. Essa é a exigência que Jesus faz a cada um de nós: “Renuncie à sua barra de segurança; solte as mãos e aceite ficar suspenso no ar, para que minhas mãos segurem as suas e eu possa levar você para uma nova situação de vida”. Jesus só pode ser experimentado como Salvador por aqueles que renunciam às falsas seguranças do mundo e se jogam nos seus braços. Enquanto uma das nossas mãos se estender para Jesus e a outra ficar agarrada à barra de segurança, nada mudará em nossa vida. Jesus só pode ser inteiro para quem se entrega a Ele por inteiro.    

Devemos ter consciência de que as exigências que Jesus coloca não são negociáveis. Elas exigem decisões fortes, compromissos firmes, passos ousados. Por isso, quem deseja se tornar discípulo, antes de se comprometer, deve pensar bem se é capaz de percorrer tal caminho. O homem que desiste de construir a sua torre depois de ter lançado os alicerces e o rei que desiste do combate antes de avistar as tropas inimigas, exemplificam pessoas que decidiram seguir Jesus, mas desistiram após as primeiras dificuldades.

Uma última palavra. Jesus nunca se preocupou em ter um grande número de seguidores. Ele sempre deixou claro que o caminho do discipulado não é um caminho de facilidade. As exigências que ouvimos há pouco continuam válidas. Suavizá-las, atenuá-las, apresentá-las numa versão “light” poderá significar trairmos o Evangelho de Jesus.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi e liturgia Dehonianos.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

LIBERTAR-SE DA ESCRAVIDÃO DA VISIBILIDADE

 Missa do 22º dom. comum. Palavra de Deus: Eclesiástico 3,19-21.30-31; Hebreus 12,18-19.22-24a; Lucas 14,1.7-14.

 

            Com muita frequência, os evangelhos nos falam de Jesus à mesa, fazendo refeição com outras pessoas. Essas refeições eram ocasião não só para Jesus estreitar seu laço com as pessoas, mas também para ele ensinar algo importante a respeito do Reino de Deus. Aliás, no evangelho de domingo passado (Lc 13,22-30), Jesus afirmou: “Virão homens do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de Deus” (Lc 13,28).

            O evangelho de hoje acabou de nos apresentar Jesus como convidado de uma refeição na casa de um dos chefes dos fariseus. Ali, “Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares” (Lc 14,7). O que está por trás dessa atitude? Qual lugar você escolheria: entre os primeiros, ou entre os últimos? Não há dúvida de que, o tempo todo, nós somos provocados a estar entre os primeiros, nunca entre os últimos! Além de vivermos numa sociedade competitiva, a indústria do consumo, em vista de lucrar conosco, nos convence, através de propagandas enganadoras, que a felicidade só se encontra entre os primeiros; nunca entre os últimos. E nós acabamos caindo no erro de pensar que nós só temos valor se conseguirmos ocupar um dos primeiros lugares.   

            O problema é que existe um preço a pagar para você ocupar um dos primeiros lugares. Esse preço pode custar a sua saúde física e mental, a sua paz de espírito, o seu caráter, o seu casamento, a relação com os seus filhos, a sua espiritualidade, os valores do evangelho etc. Ainda que você esteja disposto a pagar o preço, assim que você ocupa o seu lugar entre os primeiros, a sociedade da aparência muda o conceito de “primeiros lugares”, e aí vai você novamente correr atrás daquilo que todo mundo está correndo, endividando-se, atormentando-se, desgastando-se, para não ficar para trás e não sentir-se entre os últimos.

A questão, na verdade, não é saber se você hoje está ocupando um lugar entre os primeiros ou entre os últimos, mas se o lugar que você escolheu ocupar te deixa perto ou longe de Deus. O Salmo da missa de hoje deixa claro que Deus escolheu se colocar junto daqueles que não têm lugar neste mundo: os órfãos, as viúvas, os deserdados, os prisioneiros. Exatamente para aquelas pessoas, para as quais não há lugar, ou seja, não há atenção, nem cuidado, nem consideração, Deus escolher ser lugar, acolher, proteger, amparar, defender, alimentar. Essa foi também a escolha do Pe. Júlio Lancelotti: “Sou um padre cancelado, porque ando com pessoas que também são ‘canceladas’ pela sociedade. Quero estar do lado dessas pessoas, das que são pisadas pelo poder. Quero ser uma delas e não ser as pessoas que pisam. É preciso amar os que não são amados, e servir os que ninguém quer servir. É preciso estar do lado de quem ninguém quer estar”.

A busca pelos primeiros lugares é a busca pela visibilidade. Essa busca se tornou doentia com as redes sociais. Para ganhar visibilidade, algumas pessoas chegam a fazer coisas absurdas. O importante é que sua postagem ganhe o maior número possível de curtidas e de visualizações. São pessoas escravas do reconhecimento dos outros. A busca doentia pela visibilidade alcançou também pessoas religiosas, cristãs, que deixaram de seguir Jesus, em seu caminho de humildade, e passaram a se preocupar em fazer aumentar o número dos seus próprios seguidores. Ainda que falem de Deus, pregam a si mesmas e prestam culto à sua própria necessidade de reconhecimento.      

O contrário da busca por visibilidade é a humildade. “Na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade, e assim encontrarás graça diante do Senhor. Muitos são altaneiros e ilustres, mas é aos humildes que ele revela seus mistérios” (Eclo 3,20). Deus não cabe no coração de uma pessoa cheia de si, com um ego inflado. Humildade vem de húmus, terra, o que significa que a pessoa humilde não vive fazendo propaganda das suas folhas e dos seus frutos (aspectos externos), mas cuida das suas raízes (daquilo que está escondido e que ninguém vê). Enquanto a preocupação com a visibilidade faz de nós pessoas superficiais, o cultivo da humildade faz de nós pessoas profundas, que não tombam diante dos ventos contrários porque têm um alicerce interior.       

            Depois de nos aconselhar a respeito da humildade, Jesus nos fala de outro valor importante: a gratuidade. “Quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. Então tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos” (Lc 14,13-14). Aqui está o segredo da verdadeira alegria: dar a quem não pode nos devolver; ajudar gratuitamente, sem esperar por recompensa ou reconhecimento; fazer um trabalho voluntário sem divulga-lo nas redes sociais para recebermos elogios. “Então tu serás feliz!”. Quanto mais nos voltamos para nós mesmos, girando em torno da necessidade de reconhecimento e de visibilidade, mais infelizes nos sentimos. Quanto mais amamos quem não é amado e mais nos colocamos junto daqueles que o mundo ignora, mais nos sentimos felizes, porque estamos onde Deus escolheu estar.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

NÃO HÁ CÉU PARA QUEM VIVE FAZENDO CORPO MOLE NA TERRA

 Missa do 21º. dom. comum. Palavra de Deus: Isaías 66,18-21; Hebreus 12,5-7.11-13; Lucas 13,22-30.

            “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?” (Lc 13,23). Quem hoje pergunta pela salvação, seja de si mesmo, seja dos outros? A pergunta pela salvação é a pergunta pela Vida Eterna. Neste mundo onde “quem pode mais chora menos”, cada um vive correndo atrás não da sua salvação, mas da sua sobrevivência. Além disso, as redes sociais fizeram nascer outra preocupação nas pessoas: como tornar-se um youtuber, um influencer; como ganhar seguidores e, consequentemente, dinheiro, postando vídeos fúteis, banais e vazios. Se há algo que está longe da vida cotidiana da maioria das pessoas hoje em dia é a pergunta pela Vida Eterna.   

             Talvez, uma outra razão para as pessoas não se preocuparem com a própria salvação seja a confiança na ciência, na tecnologia, no dinheiro ou, quem sabe, nas armas etc. Neste sentido, precisamos nos lembrar de uma importante verdade: “Ninguém se salvará por sua própria força” (Sl 33,17). A salvação não é uma conquista nossa, mas uma resposta de fé ao Deus que nos enviou o seu Filho como Salvador do mundo: “Deus enviou seu Filho ao mundo para salvar o mundo. Quem n’Ele crê não é condenado; mas quem não crê, já está condenado” (citação livre de Jo 3,17-18).     

            Então, basta a fé em Jesus Cristo para sermos salvos? Depende do que entendemos por fé. A fé é uma força que nos tira da acomodação e nos põe em movimento. Jesus traduz a fé n’Ele usando um exemplo bem concreto: “Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita. Porque eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão” (Lc 13,24). A porta da salvação é o próprio Jesus, como Ele mesmo afirma: “Eu sou a porta. Quem entrar por mim será salvo” (Jo 10,9). Mas, por que Jesus é uma porta “estreita” e não larga?

            Na verdade, o que torna a porta da salvação estreita é a nossa preguiça espiritual. A maioria das pessoas faz corpo mole perante a vida, buscando sempre o caminho mais fácil e menos custoso. Como alguém disse: “todo mundo quer ir para o céu, desde que não tenha que fazer nada”. Para uma geração como a atual, que quer tudo fácil e rápido, que vive se desviando do que é difícil e custoso, a desistência em ser salva é regra e não exceção. No entanto, Deus não desiste de nos chamar à conversão e à salvação. Por isso, permite situações dolorosas em nossa vida em vista da nossa educação, da nossa correção: “Meu filho, não desprezes a educação do Senhor, não te desanimes quando ele te repreende; pois o Senhor corrige a quem ele ama e castiga a quem aceita como filho” (Hb 12,5-6).

Quanto mais “corpo mole” uma pessoa é, mais ela vai “apanhar” da vida, até virar gente. Quanto mais teimoso, arrogante e autossuficiente for o coração humano, mais ele precisará sofrer para se tornar humilde e reconhecer-se necessitado de salvação. Isso não quer dizer que todas as pessoas que sofrem aceitam ser educadas, corrigidas. Muitos seguirão pela vida destruindo a si mesmos e aos outros, seja por orgulho, seja pela própria preguiça em se esforçar para mudar e melhorar.  

            Se existe em nós um instinto em fugir da dificuldade e buscar facilidade, o autor da carta aos Hebreus afirmou algo intolerável de se ouvir: “É para a vossa educação que sofreis” (Hb 12,7). Em outras palavras: quando estamos passando por uma situação de sofrimento, precisamos nos fazer uma pergunta: “O que esse sofrimento veio me ensinar?”. A vida ensina quem está disposto a aprender, e as lições mais importantes só são aprendidas por meio da dor. Só o sofrimento tem o poder de nos transformar em pessoas melhores, mas isso depende da forma como lidamos com ele e se estamos abertos a ouvir o que ele tem a nos ensinar.

Assim termina o texto de hoje da carta aos Hebreus: “Acertai os passos dos vossos pés, para que não se extravie o que é manco, mas antes seja curado” (Hb 12,13). Os passos que temos dado na vida têm nos levado na direção da porta estreita, que é Cristo, ou nos afastado cada vez mais dela? Tenhamos consciência disso: só existe cura para quem se reconhece doente e não somente busca pelo Médico, Jesus Cristo, mas também aceita tomar o remédio “amargo” do Evangelho. Só existe salvação para quem, de fato, se preocupa e se esforça por viver de maneira digna da Vida Eterna. No fundo, a pergunta que precisa ser respondida não é se são poucos os que se salvam, mas se cada um de nós tem consciência de que necessita ser salvo.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi