quinta-feira, 29 de agosto de 2024

NENHUMA INFLUÊNCIA EXTERNA ANULA A NOSSA LIBERDADE DE ESCOLHA

 Missa do 23º dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 4,1-2.6-8; Tiago 1,17-18.21b-22.27; Marcos 7,1-8.14-15.21-23.

 

            Setembro é o mês da Bíblia. A Bíblia nos lembra que Deus é Palavra. Sua palavra é a razão de ser da nossa existência: “Desde o seio materno o Senhor me chamou, desde o ventre de minha mãe pronunciou o meu nome” (Is 49,1). Por outro lado, nossa existência é chamada a pronunciar uma palavra única de Deus à humanidade. Se é verdade que vivemos numa época de profunda desorientação, na Palavra de Deus está a orientação segura para a nossa vida: “Ouve as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir... Nada acrescenteis, nada tireis, à palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus que vos prescrevo” (Dt 4,1-2), disse Moisés aos israelitas, antes de entrarem na terra prometida.

            Quando não nos orientamos pela “Palavra da verdade” (Tg 1,18), acabamos por nos perder, em todos os sentidos: “”Meu povo não ouviu a minha voz, Israel não quis obedecer-me; então os entreguei ao seu coração endurecido: que sigam seus próprios caminhos” (Sl 81,12-13). Para a mentalidade bíblica, ouvir a Palavra significa obedecê-la. Sem essa obediência, somos abandonados à desorientação do nosso próprio coração.

Segundo o apóstolo Tiago, a Palavra de Deus tem o poder de nos salvar, mas essa salvação depende da forma como acolhemos a Palavra: “Recebei com humildade a Palavra que em vós foi implantada, e que é capaz de salvar as vossas almas” (Tg 1,21). Receber com humildade a Palavra de Deus significa reconhecer que nós precisamos ser guiados por uma Palavra que nem sempre falará aquilo que gostaríamos de ouvir, mas sim aquilo que precisamos ouvir, em vista da nossa salvação. Muitas vezes, a Palavra de Deus vem na contramão da maneira como estamos conduzindo a nossa vida, como nos lembra Santo Agostinho: “A palavra de Deus é o inimigo da tua vontade, até tornar-se originador da tua salvação. Então, a palavra de Deus também estará em harmonia contigo”. Esse “alinhar” a nossa vida segundo a Palavra de Deus é entendido por São Tiago como o “praticar” a Palavra: “Sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes” (Tg 1,22).   

Muito mais do que Moisés, Jesus é o grande intérprete da vontade do Pai, expressa na Sagrada Escritura. Nós o vemos no Evangelho de hoje em conflito com os fariseus e alguns mestres da Lei, que se consideravam guardiães da Palavra de Deus na sua época. Diante da acusação de que Jesus e seus discípulos não se preocupavam com a lei da pureza ritual – “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” (Mc 7,5) –, Jesus afirma que não tem sentido a Palavra de Deus estar nos lábios da pessoa, sem penetrar no seu coração e modificar as suas atitudes: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc 7,6).

O farisaísmo sempre foi e sempre será uma tentação para os cristãos. Justamente por querer devolver a Igreja ao Evangelho, o Papa Francisco tem sofrido forte rejeição e constantes ataques de grupos católicos farisaicos, cuja fé não tem como centro o Evangelho, mas a Lei, as regras, as normas, isto é, tudo aquilo que garanta uma clara separação entre o puro e o impuro. Exatamente como os fariseus na época de Jesus, esses grupos conservadores rejeitam o novo e se agarram ao velho, ignorando o alerta de Jesus: “Ninguém, após beber vinho velho, quer do novo. Pois diz: ‘O velho é que é bom!’” (Lc 5,39). São cristãos que não aceitam ouvir as perguntas que as novas gerações colocam para a Igreja, refugiando-se em respostas que não respondem aos novos desafios do mundo moderno.

A resposta de Jesus aos fariseus de ontem e de hoje continua válida: “Escutai todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior” (Mc 7,14-15). Não há dúvida de que todos nós sofremos a influência do ambiente em que nos encontramos e do tempo em que vivemos. No entanto, essa influência não significa sermos determinados por aquilo que nos influencia. Jesus nos recorda que existe dentro de nós um espaço em que aquilo que nos influencia externamente deve entrar em diálogo com a nossa liberdade de consciência, com os valores do Evangelho, para que possamos, então, fazer nossas escolhas e tomar nossas decisões.

O melhor comentário às palavras de Jesus – “o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior” – se encontra na psicologia de Victor Frankl: “O homem não é as suas circunstâncias; o homem é as suas decisões”. Ninguém de nós é determinado pelo que nos atinge vindo de fora, mas pela decisão que tomamos internamente em como lidar com isso. Por mais que as pressões externas se façam sentir em nós, há duas coisas essenciais em nosso coração que são determinantes para as nossas atitudes: liberdade e responsabilidade. Graças a elas, nós não reagimos simplesmente ao que nos acontece, mas escolhemos como lidar com isso, de forma a mantermos a nossa consciência pura perante Deus.

Para os cristãos fariseus da nossa e de outras igrejas, fica o alerta de São Tiago: “A religião pura e sem mancha diante de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg 1,27). Um cristão que não se preocupa com as injustiças sociais, mas unicamente em se manter distante de um mundo corrompido como o nosso – como se a corrupção não habitasse também o seu coração –, é um hipócrita, uma pessoa que vive projetando nos outros a sujeira e a impureza que não admite reconhecer dentro de si mesma.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

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