quinta-feira, 29 de agosto de 2024

NENHUMA INFLUÊNCIA EXTERNA ANULA A NOSSA LIBERDADE DE ESCOLHA

 Missa do 23º dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 4,1-2.6-8; Tiago 1,17-18.21b-22.27; Marcos 7,1-8.14-15.21-23.

 

            Setembro é o mês da Bíblia. A Bíblia nos lembra que Deus é Palavra. Sua palavra é a razão de ser da nossa existência: “Desde o seio materno o Senhor me chamou, desde o ventre de minha mãe pronunciou o meu nome” (Is 49,1). Por outro lado, nossa existência é chamada a pronunciar uma palavra única de Deus à humanidade. Se é verdade que vivemos numa época de profunda desorientação, na Palavra de Deus está a orientação segura para a nossa vida: “Ouve as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir... Nada acrescenteis, nada tireis, à palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus que vos prescrevo” (Dt 4,1-2), disse Moisés aos israelitas, antes de entrarem na terra prometida.

            Quando não nos orientamos pela “Palavra da verdade” (Tg 1,18), acabamos por nos perder, em todos os sentidos: “”Meu povo não ouviu a minha voz, Israel não quis obedecer-me; então os entreguei ao seu coração endurecido: que sigam seus próprios caminhos” (Sl 81,12-13). Para a mentalidade bíblica, ouvir a Palavra significa obedecê-la. Sem essa obediência, somos abandonados à desorientação do nosso próprio coração.

Segundo o apóstolo Tiago, a Palavra de Deus tem o poder de nos salvar, mas essa salvação depende da forma como acolhemos a Palavra: “Recebei com humildade a Palavra que em vós foi implantada, e que é capaz de salvar as vossas almas” (Tg 1,21). Receber com humildade a Palavra de Deus significa reconhecer que nós precisamos ser guiados por uma Palavra que nem sempre falará aquilo que gostaríamos de ouvir, mas sim aquilo que precisamos ouvir, em vista da nossa salvação. Muitas vezes, a Palavra de Deus vem na contramão da maneira como estamos conduzindo a nossa vida, como nos lembra Santo Agostinho: “A palavra de Deus é o inimigo da tua vontade, até tornar-se originador da tua salvação. Então, a palavra de Deus também estará em harmonia contigo”. Esse “alinhar” a nossa vida segundo a Palavra de Deus é entendido por São Tiago como o “praticar” a Palavra: “Sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes” (Tg 1,22).   

Muito mais do que Moisés, Jesus é o grande intérprete da vontade do Pai, expressa na Sagrada Escritura. Nós o vemos no Evangelho de hoje em conflito com os fariseus e alguns mestres da Lei, que se consideravam guardiães da Palavra de Deus na sua época. Diante da acusação de que Jesus e seus discípulos não se preocupavam com a lei da pureza ritual – “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” (Mc 7,5) –, Jesus afirma que não tem sentido a Palavra de Deus estar nos lábios da pessoa, sem penetrar no seu coração e modificar as suas atitudes: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc 7,6).

O farisaísmo sempre foi e sempre será uma tentação para os cristãos. Justamente por querer devolver a Igreja ao Evangelho, o Papa Francisco tem sofrido forte rejeição e constantes ataques de grupos católicos farisaicos, cuja fé não tem como centro o Evangelho, mas a Lei, as regras, as normas, isto é, tudo aquilo que garanta uma clara separação entre o puro e o impuro. Exatamente como os fariseus na época de Jesus, esses grupos conservadores rejeitam o novo e se agarram ao velho, ignorando o alerta de Jesus: “Ninguém, após beber vinho velho, quer do novo. Pois diz: ‘O velho é que é bom!’” (Lc 5,39). São cristãos que não aceitam ouvir as perguntas que as novas gerações colocam para a Igreja, refugiando-se em respostas que não respondem aos novos desafios do mundo moderno.

A resposta de Jesus aos fariseus de ontem e de hoje continua válida: “Escutai todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior” (Mc 7,14-15). Não há dúvida de que todos nós sofremos a influência do ambiente em que nos encontramos e do tempo em que vivemos. No entanto, essa influência não significa sermos determinados por aquilo que nos influencia. Jesus nos recorda que existe dentro de nós um espaço em que aquilo que nos influencia externamente deve entrar em diálogo com a nossa liberdade de consciência, com os valores do Evangelho, para que possamos, então, fazer nossas escolhas e tomar nossas decisões.

O melhor comentário às palavras de Jesus – “o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior” – se encontra na psicologia de Victor Frankl: “O homem não é as suas circunstâncias; o homem é as suas decisões”. Ninguém de nós é determinado pelo que nos atinge vindo de fora, mas pela decisão que tomamos internamente em como lidar com isso. Por mais que as pressões externas se façam sentir em nós, há duas coisas essenciais em nosso coração que são determinantes para as nossas atitudes: liberdade e responsabilidade. Graças a elas, nós não reagimos simplesmente ao que nos acontece, mas escolhemos como lidar com isso, de forma a mantermos a nossa consciência pura perante Deus.

Para os cristãos fariseus da nossa e de outras igrejas, fica o alerta de São Tiago: “A religião pura e sem mancha diante de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg 1,27). Um cristão que não se preocupa com as injustiças sociais, mas unicamente em se manter distante de um mundo corrompido como o nosso – como se a corrupção não habitasse também o seu coração –, é um hipócrita, uma pessoa que vive projetando nos outros a sujeira e a impureza que não admite reconhecer dentro de si mesma.

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

QUANTO MAIS DURA A ROCHA, MAIS DURO DEVE BATER A MARRETA

 Missa do 21º dom. comum. Palavra de Deus: Josué 24,1-2a.15-17.18b; Efésios 5,21-32; João 6,60-69.

 

            Chegamos ao final do cap. 6 do Evangelho de São João. No início, Jesus tinha diante de si uma multidão de cinco mil pessoas, os judeus, um grupo grande de discípulos e os doze apóstolos. A multidão foi embora por não querer se esforçar em vista do alimento que dura para a vida eterna (cf. Jo 6,27). Os judeus foram embora por não aceitarem que Jesus é o pão vivo descido do céu (cf. Jo 6,41). Agora vemos muitos discípulos de Jesus decidindo ir embora, reclamando que a palavra dele é muito dura: “Muitos dos discípulos de Jesus, que o escutaram, disseram: ‘Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?’” (Jo 6,60).

            “Esta palavra é dura”. No mundo atual, a escuta é seletiva: cada um ouve somente aquilo que gosta de ouvir, aquilo que está de acordo com as suas próprias ideias. Assim, cada um escolhe o seu pregador, o seu orientador, esquecendo-se da pergunta de Jesus: “Pode acaso um cego guiar outro cego? Não cairão ambos num mesmo buraco?” (Lc 6,39).

            Por que às vezes a Palavra de Deus é dura? Porque Ele não fala o que gostaríamos de ouvir, mas o que precisamos ouvir. Uma pessoa que está com uma doença grave só tem chance de cura se aceitar se submeter a um tratamento duro, a tomar remédios amargos. A Palavra de Deus não visa o nosso bem estar, mas a nossa conversão e a nossa salvação. O Evangelho de Jesus Cristo não é um anestésico para a nossa consciência, nem muito menos uma droga que nos mantém distantes da realidade que temos que enfrentar. Se a Palavra é dura é porque há algo duro que precisa ser quebrado em nós, em vista da nossa cura, libertação e salvação: “Não é a minha Palavra como uma marreta que despedaça a rocha?” (Jr 23,29). Quanto mais resistimos admitir o que está errado em nós, mais dura sentiremos a Palavra de Deus.

            Só a Palavra de Deus pode nos curar, mas cabe a nós decidir escutá-la ou não, obedecê-la ou não: “Escolhei hoje a quem quereis servir... Quanto a mim e à minha família, nós serviremos ao Senhor” (Js 24,15), disse Josué ao povo de Israel. A escolha é sua: continuar a viver na mentira ou se abrir à verdade; buscar apenas um alívio momentâneo para a sua dor ou aceitar submeter-se a um tratamento doloroso para curar de uma vez por todas sua enfermidade; passar de igreja em igreja, de pregador em pregador, para ouvir apenas o que você gosta de ouvir, ou aceitar permanecer na igreja onde o pregador fala o que você precisa ouvir. A escolha é sua.

Antes que muitos de seus discípulos fossem embora, Jesus os advertiu: “O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem” (Jo 6,63-64). “O Espírito é que dá a vida, a carne não adianta nada”. Quem escolhe viver no nível carnal, terreno, não aceitando renunciar a nada em vista da sua conversão e salvação, sempre vai rejeitar o Evangelho. O resultado final é um só: apodrecerá junto com a sua carne. Aqui também precisamos fazer uma escolha: viver como pessoas reduzidas à sua carnalidade, fechadas no seu egoísmo e na sua dependência da satisfação das suas necessidades, ou abrir-se à sua dimensão espiritual, transcendente, convictas de que só o Espírito dá a vida; só a dimensão espiritual dá sentido à nossa existência.

“Entre vós há alguns que não creem” (Jo 6,64). Jesus conhece cada ser humano por dentro (cf. Jo 2,25). Igrejas ou templos cheios não enganam Jesus. Ele sabe que entre nós há alguns cuja fé está reduzida à satisfação de uma necessidade momentânea; uma fé que não suporta ouvir um “não” da parte de Deus; uma fé que não admite ter que lidar com dor, frustração, perda, decepção ou perseguição; uma fé que só busca receber, ganhar, desfrutar, e nunca renunciar, se doar e se sacrificar pelo bem dos outros ou da própria Igreja; uma fé que não admite passar pelo fogo da crise, que constantemente se defende da complexidade da vida...

“A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele. Então, Jesus disse aos doze: ‘Vós também vos quereis ir embora?’” (Jo 6,66-67). Muitas pessoas que ontem decidiram caminhar com Jesus voltaram atrás, e hoje não caminham mais; muitos que hoje estão aqui conosco, voltarão atrás e amanhã não estarão mais, porque cada vez mais as pessoas são inconstantes e incapazes de perseverar: nunca terminam o que começam. Contudo, Jesus não nos pergunta a respeito das pessoas que desistiram de segui-lo, mas a respeito das razões que temos para continuarmos a segui-lo: “Vocês também querem ir embora?” (Jo 6,67). Você também quer ir atrás de respostas mais fáceis, embora enganadoras, para a sua vida? Você também quer trocar o Deus que demora pelo Mal que responde rápido?

“Simão Pedro respondeu: ‘A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus’” (Jo 6,68-69). “A quem iremos?”. Neste mundo confuso e profundamente desorientado, nós necessitamos de orientação. Machucados pelas tantas mentiras do mundo, nós precisamos do remédio da Verdade. “Tu tens palavras de vida eterna”. A palavra de Jesus é muitas vezes dura, sim, mas só ela pode nos fazer transcender o presente e nos abrir ao futuro; só ela pode nos devolver a consciência de que o sentido da vida não está fechado à pessoa que somos agora: ele se encontra na pessoa que somos chamados a nos tornar.

“Nós cremos firmemente”. Cada vez mais a Igreja de Jesus Cristo se tornará minoria. Nós permaneceremos nela, ou deixaremos Jesus para seguir a maioria? Jesus jamais suavizará as palavras do Evangelho e jamais alargará a porta estreita da salvação só para agradar as pessoas e ganhar mais seguidores. Nós permaneceremos fiéis ao Evangelho? Nós nos esforçaremos para entrar pela porta estreita?

Pe. Paulo Cezar Mazzi

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

A FUTURA GLORIFICAÇÃO DO NOSSO CORPO

 Missa da Assunção de Maria. Palavra de Deus: Apocalipse 11,19a; 12,1.3-6a.10ab; 1Coríntios 15,20-27a; Lucas 1,39-56.  

 

            “A Igreja celebra hoje em Nossa Senhora a realização do Mistério Pascal. Sendo Maria a ‘cheia de graça’, sem sombra alguma de pecado, quis o Pai associá-la à ressurreição de Jesus” (Missal dominical, p.1345). Se, na profissão de fé, afirmamos: “Creio na ressurreição da carne”, isso é muito mais verdadeiro quando consideramos o corpo de Maria, em cujo ventre foi gerado o Filho de Deus: no momento da sua morte, ela foi levada em corpo e alma ao Céu.

            A imagem de Maria glorificada no Céu aparece no livro do Apocalipse: “uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas” (Ap 12,1). Ela está vestida de sol porque ressuscitada; tem a lua debaixo dos pés porque está acima do tempo terreno, na eternidade; por fim, tem uma coroa de doze estrelas na cabeça porque é a imagem da Igreja glorificada, prefigurada no Antigo Testamento pelas 12 tribos de Israel e edificada pelos 12 apóstolos escolhidos por Jesus (cf. Ef 2,20).

            Justamente por ser imagem da Igreja, a mulher de Ap 12 é ameaçada por um grande Dragão, cor de fogo, imagem da violência que produz morte. A verdadeira Igreja de Jesus Cristo é uma Igreja ferida, ameaçada, atacada por Satanás. Esses ataques fazem com que uma parte dos cristãos sejam derrubados na sua fé: “com a cauda, varria a terça parte das estrelas do céu, atirando-as sobre a terra” (Ap 12,4). Seja no campo pessoal, seja no eclesial, cada cristão se encontra dentro de um combate espiritual. O Maligno faz de tudo para nos derrubar do Céu, ou seja, para nos afastar da presença de Deus. Para isso, ele nos ataca a partir de dentro e também a partir de fora: a partir de dentro, por meio das nossas tentações pessoais; a partir de fora, procurando nos fazer desacreditar da nossa própria Igreja.

            Para não nos deixarmos enganar, o capítulo 12 do Apocalipse deixa claro que o Dragão não consegue causar dano nem à mulher, nem ao Filho gerado por ela: “o Filho foi levado para junto de Deus e do seu trono. A mulher fugiu para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um lugar” (Ap 12,5b-6a). Se todos os cristãos, espalhados pelo mundo, enfrentam um combate espiritual contra o Maligno (cf. 1Pd 5,8-9), devem se manter firmes na fé, confiando na intervenção de Deus: “Agora realizou-se a salvação, a força e a realeza do nosso Deus, e o poder do seu Cristo” (Ap 12,10).

            Como você se vê dentro desse combate? Você tem conseguido resistir às seduções do Maligno ou está se deixando arrastar por sua cauda e sendo derrubado para a terra? O Dragão sabe como derrubar cada um de nós. A um ele seduz pela ambição do dinheiro; a outro, pela dependência afetiva ou pela carência sexual; a um, pela necessidade de sentir-se forte (poder); a outro, pela incapacidade de suportar uma frustração ou de se sentir inferior, insignificante; a um, pela compulsão em comprar (consumir); a outro, pelo medo da dor ou da morte.      

            Se o Apocalipse nos mostra Maria glorificada no Céu, o Evangelho nos fala da sua presença na Terra, compartilhando da mesma condição dos pobres, dos humildes e dos famintos. Seu hino de louvor a Deus expressa a sua fé na intervenção divina em favor de todos aqueles que sofrem com a indiferença política e religiosa e também com as desigualdades sociais: “Ele (Deus) mostrou a força de seu braço: dispersou os soberbos de coração. Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-53). Deus não está na força dos grandes, mas na fraqueza dos pequenos; não está com os “vencedores”, mas com os “perdedores”; não está com quem tem tudo, mas com os que nada têm.  

            Se Maria louva a Deus por sua intervenção na história humana, em favor dos que nada significam para este mundo, Isabel louva Maria com duas expressões: “Bendita és tu entre as mulheres” (v.42) e “Bem-aventurada aquela que acreditou” (v.45), isto é, que teve fé na Palavra do Senhor! “Bendita és tu entre as mulheres” (Lc 1,42). Bendita é a pessoa que não deixa sua consciência deformar-se frente aos contra valores deste mundo. Bendita é a pessoa que resiste à cauda sedutora do Dragão e se mantém firme no Céu, na sua comunhão com Deus. Bendita é a pessoa que se coloca junto daqueles que são desprezados pelo mundo. “Bem-aventurada aquela que acreditou” (Lc 1,45). Feliz a pessoa que alimenta diariamente a sua fé com a Palavra de Deus. Feliz a pessoa que aprendeu a esperar em Deus, até que sua Palavra se cumpra. Feliz todo aquele que sabe que somente Deus tem a palavra final sobre a história humana.

            Crendo na glorificação de Maria em corpo e alma no Céu, renovemos a nossa fé nesta verdade: “A nossa cidade está nos céus, de onde também esperamos ansiosamente como Salvador o Senhor Jesus Cristo, que transfigurará nosso corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso, pela força que lhe dá poder de submeter a si todas as coisas” (Fl 3,20-21). Confiemos ao poder redentor do nosso Deus todo ser humano cujo corpo está doente, ferido, agredido, faminto, preso à dependência química, definhando numa cama, prostituído, banalizado, traficado para a venda de órgãos, escravo do trabalho etc.

 

            Pe. Paulo Cezar Mazzi

 

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

SEU DESTINO NÃO É MORRER NO DESERTO, MAS CHEGAR AO MONTE DE DEUS

 Missa do 19º dom. comum. Palavra de Deus: 1Reis 19,4-8; Efésios 4,30 – 5,2; João 6,41-51.

 

            Este é o terceiro domingo em que lemos um trecho do capítulo 6 do Evangelho segundo são João. Jesus, primeiro, alimentou uma multidão de cinco mil pessoas. Quando essa multidão voltou a procurá-lo no dia seguinte, Ele a convidou a se esforçar não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna (Evangelho de domingo passado). Já o Evangelho de hoje nos deixa entrever que a multidão foi embora; por enquanto, ainda estão com Jesus três grupos de pessoas: os judeus, um grupo de discípulos e os Doze. Por sua vez, o texto que acabamos de ouvir nos fala da resistência dos judeus em crer nas palavras de Jesus – concretamente, em crer na sua Pessoa como Pão que desceu do céu. Na sequência de Jo 6, os judeus irão embora, seguido pelo grupo dos discípulos, permanecendo com Jesus somente os Doze.

            Como Jesus entendeu esse aparente “fracasso” na sua vida: das cinco mil pessoas que estavam com Ele, permaneceram somente doze? Serenamente, Ele concluiu: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,44). Crer em Jesus é levantar-se e colocar-se em movimento, na direção da sua Pessoa – “vir a mim”. É justamente esse movimento que faz com que aquele que crê passe de uma situação de morte para uma situação de vida. Mas esse movimento não depende somente da vontade humana; há uma força misteriosa que age dentro da pessoa que a faz sentir-se atraída para Jesus: só o Pai pode atrair alguém para o Filho. Portanto, a fé não é obra humana, não é resultado da vontade humana, mas da ação de Deus no interior da pessoa.

            Muitas pessoas de fé sofrem por não conseguirem “levar” seus familiares e amigos a Jesus. Elas precisam acalmar seu coração, procurar viver sua vida cotidiana segundo o Evangelho e orar ao Pai, pois só Ele pode atrair alguém para o seu Filho. Ninguém penetra na consciência de outra pessoa, assim como ninguém consegue chegar ao fundo do abismo que é o coração de cada ser humano, a não ser o Pai. Ainda assim, o Pai respeita a liberdade de cada ser humano. A atração que Ele possa porventura despertar na pessoa não atropela a liberdade da mesma. Por isso, a verdadeira fé em Jesus não é fanatismo, não é droga que anestesia a consciência da pessoa, mas um “convencer” a partir de dentro, de modo que a pessoa sinta no mais profundo de si mesma: “Eu preciso ser salvo(a)”.           

            Esse “convencer a partir de dentro” é descrito por Jesus como um escutar o Pai: “Todo aquele que escutou o Pai e por ele foi instruído, vem a mim” (Jo 6,45). Aqui entra um grande desafio: somos uma geração do barulho, uma geração que se incomoda com o silêncio. Deus é Palavra, e a Palavra só pode ser escutada no silêncio do coração humano. Deus fala no profundo de cada pessoa, mas a maioria vive na superfície de si mesma, porque tem medo de descer ao profundo de si, tem medo de se deparar com aquilo que vai encontrar no profundo de si. Quanto mais nos mantemos distantes do nosso profundo, mais se torna difícil ouvir Deus.

            Vejamos o exemplo do profeta Elias. Depois de ter experimentado um intenso momento de sucesso em sua vida – ele derrotou os 450 sacerdotes de Baal – Elias experimenta um grande vazio dentro de si, um vazio tão insuportável que ele chega a pedir a Deus a morte: “Agora basta, Senhor! Tira a minha vida” (1Rs 19,4). Quantos de nós já pedimos ou estamos pedindo a Deus para “desligar o botão” da nossa existência? Para quê continuar vivo(a) se o filho morreu de câncer, de acidente ou se se suicidou? Para quê continuar vivo(a) se o relacionamento afetivo acabou, se a vida financeira desmoronou, se os motivos que mantinham a pessoa viva foram todos retirados dela?

            “Elias entrou deserto adentro” (1Rs 19,4) – eis o retrato de uma pessoa afundada na depressão. Ela não experimenta apenas uma situação de deserto, mas se encontra no mais profundo do seu deserto. Não há forças para sair de dentro desse poço escuro; não há vontade de voltar a viver. Ali, a pessoa não consegue escutar Deus; ela só escuta a sua dor, o seu vazio, a sua raiva, a sua revolta, a sua tristeza. Quando nos encontramos assim, precisamos ter a coragem de ir mais ainda para o profundo de nós mesmos porque, mais profunda que a voz da nossa raiva, da nossa dor ou da nossa tristeza, está a voz de Deus nos dizendo: “Levanta-te e come!” (1Rs 19,5).

            Elias se levantou, “comeu, bebeu e tornou a dormir” (1Rs 19,6). O processo da retomada do sentido da vida é lento e exige perseverança. Uma única conversa não basta para ajudar a pessoa deprimida a voltar a enxergar horizonte na sua vida. Por isso, Deus volta a falar com Elias: “‘Levanta-te e come! Ainda tens um caminho longo a percorrer’. Elias levantou-se, comeu e bebeu, e, com a força desse alimento, andou quarenta dias e quarenta noites, até chegar ao Horeb, o monte de Deus” (1Rs 19,7-8). Eis a chave para reagir ao luto, à dor, ao fracasso, à tristeza, à perda do sentido da vida: a consciência de que temos um caminho a percorrer, temos uma meta a alcançar. Por mais que estejamos afundados no deserto, nosso lugar não é ali; não é ali que morreremos; ali não é o final da nossa existência. O Pai não chamou à vida nenhum ser humano para deixá-lo morrer abandonado no deserto. A meta de cada um de nós é chegar ao Horeb, o monte de Deus, e dizer: “Com a tua graça, Pai, consegui atravessar o deserto, consegui me levantar do meu desânimo e chegar à tua presença com a minha missão cumprida, com a minha tarefa realizada!”.

            Hoje pedimos ao Pai por todo pai/mãe que está atravessando um período de deserto em sua vida, especialmente por todo pai/mãe que perdeu o sentido da vida e tem desejado todos os dias morrer. Hoje o mesmo Deus que enviou um anjo para animar o profeta Elias nos envia para junto do pai, da mãe, da pessoa que decidiu jogar a toalha, abandonar a missão e desistir da vida, para dizer-lhe: “Levante-se! Alimente-se do ‘pão vivo descido do céu’ (Jo 6,51). Recobre as suas forças e retome o caminho que você foi chamado(a) a percorrer. Volte seus olhos para o Horeb, o monte de Deus, e lembre-se: ‘Aquele que começou em você a boa obra há de levá-la à perfeição’ (cf. Fl 1,6), há de completá-la”.  

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

PELO QUÊ VOCÊ SE ESFORÇA NA VIDA?

 Missa do 18º. dom. comum. Palavra de Deus: Êxodo 16,2-4.12-15; Efésios 4,7.20-24; João 6,24-35

 

Assim como aconteceu com o povo de Israel, diversas vezes em nossa vida teremos que atravessar um deserto. Isso é condição para entrarmos numa nova situação de vida; é a passagem necessária apontada pelo apóstolo Paulo: nos despojarmos do homem velho e nos revestirmos do homem novo; rompermos com uma situação que nos adoece e nos deixa prostrados para iniciarmos uma nova fase em nossa vida, na qual a nossa existência volta a ter sentido, na qual podemos fazer a experiência de um renascimento.

O grande problema do deserto é a fome. Enquanto nos encontramos numa situação de deserto, a nossa mão, a nossa força, se tornam impotentes. Não podemos viver daquilo que somos capazes de produzir, mas unicamente daquilo que Deus nos concede. E aí surge a grande tentação: voltar para o Egito; desistir de fazer a travessia para uma vida mais digna; voltar para uma situação na qual, apesar do adoecimento e da escravidão, não tínhamos que passar fome: “Quem dera que tivéssemos morrido pela mão do Senhor no Egito, quando nos sentávamos junto às panelas de carne e comíamos pão com fartura! Por que nos trouxestes a este deserto para matar de fome a toda esta gente?” (Ex 16,3).

Deus, que deseja uma vida plena para cada ser humano, nos convida a enfrentar a travessia do deserto, mantendo nossos passos firmes em direção ao futuro e não desejando voltar à escravidão do passado: “Eis que farei chover para vós o pão do céu. O povo sairá diariamente e só recolherá a porção de cada dia a fim de que eu o ponha à prova, para ver se anda ou não na minha lei” (Ex 16,4). Eis o retrato da nossa fé: viver daquilo que Deus nos dá a cada dia; viver na absoluta dependência d’Ele, sem nos garantir por nós mesmos, sem acumular para não precisarmos esperar pelo socorro diário do Senhor.

Aquele pão descido do céu – o maná, tradução da pergunta “o que é isto?” (man hu?) era apenas uma figura de Jesus, o pão vivo descido do céu: “É meu Pai que vos dá o verdadeiro pão do céu. Pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (Jo 6,32-33). Jesus é a resposta de Deus à pergunta do ser humano por vida, por sentido e por salvação. Mas o próprio Jesus questiona a nossa fome: “Vocês estão me procurando não porque viram sinais, mas porque comeram pão e ficaram satisfeitos. Esforcem-se não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do Homem lhes dará” (Jo 6,26-27).

Eis a questão principal: pelo quê nos esforçamos na vida? No quê investimos nosso dinheiro? Pelo quê trabalhamos? Antes de mais nada, precisamos nos dar conta de que o convite de Jesus – “Esforcem-se” – está na contramão da cultura do bem estar: o desejo de uma vida sem esforço, sem luta, sem sacrifício, sem ter que atravessar qualquer tipo de deserto, uma vida na qual tudo nos é dado de graça, uma vida garantida pelos bens materiais, de modo que não tenhamos que depender de Deus, no sentido de esperar pelo Seu socorro.

Segundo Jesus, a fé não é uma atitude passiva perante a vida, mas ativa. Trata-se de nos esforçar, de nos desacomodar, de buscarmos diariamente o Senhor na Palavra e na Eucaristia, de nos colocarmos a cada dia no seu seguimento, atravessando o deserto deste mundo ilusório e passageiro para alcançarmos a verdadeira vida, a vida eterna. A fome mais profunda que nos habita não se encontra em nosso estômago, mas em nossa alma, em nosso coração. Justamente porque não compreendemos essa fome é que damos respostas erradas a ela, caindo na armadilha do consumismo, correndo atrás do vazio e nos sentindo sempre mais vazios.

Algumas perguntas que a Palavra de Deus nos coloca no dia de hoje:


1.      Eu suporto atravessar uma situação de deserto para me libertar da prisão do passado e alcançar uma vida que está aberta ao futuro? Eu suporto passar um tipo específico de fome que é próprio do deserto que estou atravessando? Eu confio na providência de Deus ou continuo a desperdiçar minhas forças na tentativa de fazer brotar alimento do chão do meu deserto?

2.      O velho não responde mais. Contudo, o novo não é um remendo, mas um despir-se totalmente do velho e um revestir-se por inteiro do novo. Estou disposto a me tornar novo a partir de dentro, ou busco apenas uma roupa nova, uma “harmonização facial” incapaz de fazer-me sentir uma pessoa nova a partir de dentro?

3.      Meu esforço diário está reduzido a um materialismo rasteiro? O que eu espero de Jesus: um milagre temporário para uma vida temporária, ou busco nele a verdadeira Vida? Eu suporto a transitoriedade da vida presente, com suas perguntas não respondidas e com suas lacunas não preenchidas, sabendo que só na eternidade terei todas as respostas e minhas lacunas todas preenchidas? Eu entendo e aceito que, enquanto estiver neste mundo, há uma dor que deve doer em mim e que só será extinguida quando eu estiver face a face com Deus?

 

 

Pe. Paulo Cezar Mazzi