Missa do 23º dom. comum. Palavra de Deus: Deuteronômio 4,1-2.6-8; Tiago 1,17-18.21b-22.27; Marcos 7,1-8.14-15.21-23.
Setembro é o mês da Bíblia. A Bíblia
nos lembra que Deus é Palavra. Sua palavra é a razão de ser da nossa
existência: “Desde o seio materno o Senhor me chamou, desde o ventre de minha
mãe pronunciou o meu nome” (Is 49,1). Por outro lado, nossa existência é
chamada a pronunciar uma palavra única de Deus à humanidade. Se é verdade que
vivemos numa época de profunda desorientação, na Palavra de Deus está a
orientação segura para a nossa vida: “Ouve as leis e os decretos que eu vos
ensino a cumprir... Nada acrescenteis, nada tireis, à palavra que vos digo, mas
guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus que vos prescrevo” (Dt 4,1-2),
disse Moisés aos israelitas, antes de entrarem na terra prometida.
Quando não nos orientamos pela “Palavra
da verdade” (Tg 1,18), acabamos por nos perder, em todos os sentidos: “”Meu
povo não ouviu a minha voz, Israel não quis obedecer-me; então os entreguei ao
seu coração endurecido: que sigam seus próprios caminhos” (Sl 81,12-13). Para a
mentalidade bíblica, ouvir a Palavra significa obedecê-la. Sem essa obediência,
somos abandonados à desorientação do nosso próprio coração.
Segundo o apóstolo Tiago, a Palavra de
Deus tem o poder de nos salvar, mas essa salvação depende da forma como
acolhemos a Palavra: “Recebei com humildade a Palavra que em vós foi
implantada, e que é capaz de salvar as vossas almas” (Tg 1,21). Receber com
humildade a Palavra de Deus significa reconhecer que nós precisamos ser guiados
por uma Palavra que nem sempre falará aquilo que gostaríamos de ouvir, mas sim
aquilo que precisamos ouvir, em vista da nossa salvação. Muitas vezes, a
Palavra de Deus vem na contramão da maneira como estamos conduzindo a nossa
vida, como nos lembra Santo Agostinho: “A palavra de Deus é o inimigo da tua
vontade, até tornar-se originador da tua salvação. Então, a palavra de Deus
também estará em harmonia contigo”. Esse “alinhar” a nossa vida segundo a Palavra
de Deus é entendido por São Tiago como o “praticar” a Palavra: “Sede
praticantes da Palavra e não meros ouvintes” (Tg 1,22).
Muito mais do que Moisés, Jesus é o
grande intérprete da vontade do Pai, expressa na Sagrada Escritura. Nós o vemos
no Evangelho de hoje em conflito com os fariseus e alguns mestres da Lei, que
se consideravam guardiães da Palavra de Deus na sua época. Diante da acusação
de que Jesus e seus discípulos não se preocupavam com a lei da pureza ritual – “Por
que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem
lavar as mãos?” (Mc 7,5) –, Jesus afirma que não tem sentido a Palavra de Deus
estar nos lábios da pessoa, sem penetrar no seu coração e modificar as suas
atitudes: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim”
(Mc 7,6).
O farisaísmo sempre foi e sempre será
uma tentação para os cristãos. Justamente por querer devolver a Igreja ao
Evangelho, o Papa Francisco tem sofrido forte rejeição e constantes ataques de grupos
católicos farisaicos, cuja fé não tem como centro o Evangelho, mas a Lei, as
regras, as normas, isto é, tudo aquilo que garanta uma clara separação entre o
puro e o impuro. Exatamente como os fariseus na época de Jesus, esses grupos
conservadores rejeitam o novo e se agarram ao velho, ignorando o alerta de
Jesus: “Ninguém, após beber vinho velho, quer do novo. Pois diz: ‘O velho é que
é bom!’” (Lc 5,39). São cristãos que não aceitam ouvir as perguntas que as
novas gerações colocam para a Igreja, refugiando-se em respostas que não
respondem aos novos desafios do mundo moderno.
A resposta de Jesus aos fariseus de
ontem e de hoje continua válida: “Escutai todos e compreendei: o que torna
impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu
interior” (Mc 7,14-15). Não há dúvida de que todos nós sofremos a influência do
ambiente em que nos encontramos e do tempo em que vivemos. No entanto, essa influência
não significa sermos determinados por aquilo que nos influencia. Jesus nos
recorda que existe dentro de nós um espaço em que aquilo que nos influencia
externamente deve entrar em diálogo com a nossa liberdade de consciência, com
os valores do Evangelho, para que possamos, então, fazer nossas escolhas e tomar
nossas decisões.
O melhor comentário às palavras de Jesus
– “o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que
sai do seu interior” – se encontra na psicologia de Victor Frankl: “O homem não
é as suas circunstâncias; o homem é as suas decisões”. Ninguém de nós é
determinado pelo que nos atinge vindo de fora, mas pela decisão que tomamos
internamente em como lidar com isso. Por mais que as pressões externas se façam
sentir em nós, há duas coisas essenciais em nosso coração que são determinantes
para as nossas atitudes: liberdade e responsabilidade. Graças a elas, nós não
reagimos simplesmente ao que nos acontece, mas escolhemos como lidar com isso,
de forma a mantermos a nossa consciência pura perante Deus.
Para os cristãos fariseus da nossa e de
outras igrejas, fica o alerta de São Tiago: “A religião pura e sem mancha diante
de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não
se deixar contaminar pelo mundo” (Tg 1,27). Um cristão que não se preocupa com
as injustiças sociais, mas unicamente em se manter distante de um mundo
corrompido como o nosso – como se a corrupção não habitasse também o seu
coração –, é um hipócrita, uma pessoa que vive projetando nos outros a sujeira
e a impureza que não admite reconhecer dentro de si mesma.
Pe. Paulo Cezar Mazzi